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Dizer e mostrar como performativos

Saying and showing as performatives

RESUMO

Este artigo pensa a distinção wittgensteiniana entre dizer e mostrar sob a atmosfera das reflexões de Austin acerca da performatividade na linguagem. A literatura secundária sobre Wittgenstein tende a favorecer a tese de que desaparece dos escritos posteriores ao Tractatus Logico-Philosophicus e à Conferência sobre ética a oposição entre aquilo que se pode dizer e aquilo que apenas se mostra. Investiga-se aqui a pertinência do pensamento austiniano para reforçar a hipótese, menos disseminada, de que essa distinção sobrevive, modificada, na filosofia madura de Wittgenstein. Defende-se, ainda, a relevância do ponto em foco para além de seu aspecto meramente exegético.

Palavras-chave:
Wittgenstein; dizer e mostrar; Austin; performativos

ABSTRACT

This article reflects on the Wittgensteinian distinction between saying and showing under the atmosphere of Austin's theory of performativity. Much of the secondary literature on Wittgenstein favors the thesis that the opposition between what can be said and what can only be shown disappears from texts written after the Tractatus Logico-Philosophicus and Lecture on Ethics. This paper investigates the pertinence of Austin's philosophy to strengthen the less pervasive hypothesis that this distinction survives in Wittgenstein's mature philosophy, albeit modified. It claims, moreover, that the relevance of the point in focus is not merely exegetical.

Key-words:
Wittgenstein; saying and showing; Austin; performative

Somo minha voz ao coro dos muito contentes com a chance de participar de um volume dedicado a Kanavilil Rajagopalan. Este texto busca homenageá-lo por atenção a dois autores que lhe são caros: Ludwig Wittgenstein e John L. Austin.

Aproximo assim dois nomes já antes muitas vezes aproximados, sobretudo pelo quase apelo metonímico que têm na esfera institucional da assim chamada "filosofia da linguagem ordinária". Minha abordagem se orienta aqui - creio que em sintonia com a de Rajagopalan - não por um interesse nos desenvolvimentos e métodos particulares dessa escola filosófica, mas antes pelo desejo de uma apropriação transversal de certos aspectos dos pensamentos dos dois filósofos no campo dos Estudos da Linguagem.

Para caracterizar o breve diálogo que aqui estabeleço, começo por lembrar que ele se faz na ausência de qualquer respaldo biográfico substantivo. Wittgenstein, 22 anos mais velho que Austin, chegou a ser seu contemporâneo no mundo da filosofia, mas não há registros de que tenha tido qualquer contato maior com os escritos do colega britânico, exceto talvez pela tradução de Austin para os Princípios da aritmética, de Frege, tradução que Wittgenstein teria utilizado em debates com um estudante que o visitara por uma semana, em 1948, durante uma de suas temporadas de reclusão, numa vila remota no oeste Irlanda (Cf.: Monk, 1990MONK, Ray. 1990. Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius. London: Penguin Books.: 574).

Austin, por sua vez, teve sem dúvida um acesso maior aos escritos de Wittgenstein. Ao que tudo indica, porém, travou com eles um contato apenas esporádico - um contato, diga-se, na melhor das hipóteses ambíguo, na pior, declaradamente hostil. Há quem diga que ele teria mesmo reconhecido em Wittgenstein um charlatão (Cf.: Cavell, 1997_______. 1997. Esta América nova, ainda inabordável. Trad. Heloísa Toller Gomes. São Paulo: Ed. 34.: 68). John Searle, que foi aluno de Austin, confirma essa versão: "Austin não tinha a menor simpatia por Wittgenstein", considerava seu pensamento "frouxo" e "desprovido de qualquer originalidade" (Searle, 2001SEARLE, John. 2001. J. L. Austin (1911-1960). In: MARTINICH, Aloysius; SOSA, David (eds.). A Companion to Analytic Philosophy. Massachusetts/Oxford: Blackwell . p. 218-230.: 227). O fato é, no entanto, que Austin tomou as Investigações Filosóficas como objeto de leitura e discussão com seus alunos e pares em mais de uma ocasião - e não há como negar que há óbvios pontos de contato entre as visões de linguagem com que ambos os autores nos brindaram, abordagens tão igualmente decididas, como se sabe, a dar à práxis lugar protagonista. Um indício a mais dessa confluência seria o próprio empenho de alguns dos alunos de Austin em afirmar que as ideias do mestre já estavam bem estabelecidas quando ele veio a conhecer os escritos de Wittgenstein, não se devendo à influência intelectual quaisquer coincidências observáveis e estando assim acima de qualquer suspeita a originalidade da filosofia austiniana (Cf.: Potter, 2001POTTER, Jonathan. 2001. Wittgenstein and Austin. In: WETHERELL, Margaret; TAYLOR, Stephanie; YATES, Simeon J. (eds.). Discourse Theory and Practice: A Reader. London: SAGE Publications. pp. 39-46.: 43).

Não há razão aqui para estendermo-nos no conflito de versões da história: se começo por essa nota biográfica, é porque ela me permite dar uma imagem abreviada do jogo ambivalente de atração e repulsa entre os pensamentos de Austin e Wittgenstein, ajudando-me assim a armar um pano de fundo mínimo para a reflexão que se segue.

Apoio-me neste trabalho, em todo caso, sobre o que me parece ser a perspectiva mais fértil, aquela que reconhece afinidades apreciáveis entre o Wittgenstein dos jogos de linguagem e o Austin dos performativos: divido com Rajagopalan a percepção de que "há muitos momentos em que Austin chega muito perto de admitir que talvez esteja lidando com verdadeiros jogos de linguagem no sentido de Wittgenstein" (Rajagopalan, 1990RAJAGOPALAN, Kanavillil. 1990. Dos dizeres diversos em torno do fazer. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada 6(2):223-54.:,239).1 1 . A tradução é minha neste e em todos os demais casos de textos aqui citados a partir do original. Orientam-se também nessa direção, e me servirão igualmente de base, os escritos de um outro importante leitor de Wittgenstein e de Austin, o filósofo norte-americano Stanley Cavell (1979, 1998, 2005_______. 2005. Philosophy the Day After Tomorrow. Cambridge, MA: Belknap, Harvard University Press.) - como veremos, terá importância aqui a percepção cavelliana de que, nos pensamentos desses dois autores que aqui ponho em diálogo, o comum (the ordinary) não é um dado, mas uma tarefa a ser sempre renovada e recriada, um imperativo que, entre outras coisas, pode aproximar os empreendimentos da filosofia e da literatura.

Sob esse viés, exploro aqui, de forma breve e sugestiva, a possibilidade de que as reflexões de Austin sobre a performatividade tragam elementos valiosos com que repensar a importante distinção wittgensteiniana entre dizer e mostrar.

Trata-se, como se sabe, de uma distinção que Wittgenstein estabeleceu sobretudo no seu Tractatus Logico-Philosophicus, publicado em 1921WITTGENSTEIN, Ludwig. [1921] 1994. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de Luiz H. L. dos Santos. São Paulo: EDUSP., e que comparece exemplarmente também em sua "Conferência sobre Ética", de 1929_______. [1929] 2005. Conferência sobre Ética. Tradução de Darlei Dall'Agnol. In: DALL'AGNOL, Darlei. Ética e Linguagem: uma introdução ao Tractatus de Wittgenstein. Florianópolis/São Leopoldo: UFSC/Unisinos.. No Tractatus (doravante TLP), Wittgenstein tinha de fato estabelecido uma distinção entre aquilo que se pode dizer e aquilo que, inefável, apenas se mostra. Ele nos diz ali, lembremos: "o que pode ser mostrado não pode ser dito" (TLP 4.1212). E formula, ao final da obra, o hoje célebre adágio, fonte de tantas (in)compreensões: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (TLP 7).

Naquele momento, anterior à virada intelectual que justificaria a periodização de sua filosofia em primeira e segunda, Wittgenstein reconhecia, por exemplo, na ética, na estética e na religião esferas daquilo que, escapando ao dizer, apenas se mostra. Para muitos de seus leitores, desaparece de sua segunda filosofia essa dimensão de um indizível, de um algo que se mostra sem se deixar dizer. E essa percepção faz sentido, é claro. Pois acreditar em algo que escape ao dizer parece a princípio depender de que se dê à linguagem um compartimento ontológico específico: para que algo possa cair fora de seus limites, a linguagem precisa ter limites, existir como "coisa" em algum lugar. E é, sabemos, justamente essa visão reificada da linguagem que Wittgenstein busca recusar em sua assim chamada segunda filosofia, nisso aproximando-se de Austin. Se a linguagem não é mais, como Wittgenstein afirma, "contígua ao que quer que seja" ([1930-32] 1980_______. [1930-32] 1980. Wittgenstein's Lectures, Cambridge 1930-1932. Chicago, Chicago University Press.: 112), se não se deixa abstrair da práxis e da vida, se não há um dentro e um fora da linguagem, o que então poderia ainda escapar à linguagem - mostrar-se no seu limite? Diante disso, muitos concluíram que, para o segundo Wittgenstein, não há mais um indizível - a linguagem, não estando em parte alguma, estaria em toda parte, nada se mostra sem se dizer.2 2 . Hacker (1996:239) ilustra bem essa posição: afirma peremptoriamente que, depois de 1929, Wittgenstein "repudiou a distinção entre mostrar e dizer, deixando de sustentar que verdades metafísicas inefáveis se mostram nas proposições com sentido".

Tenho explorado, em menor companhia, um outro caminho: parece-me que uma tensão ou um jogo entre dizer e mostrar sobrevive, ainda que de forma deformada ou transformada, na segunda escrita de Wittgenstein (Cf.: Martins e El-Jaick, 2011MARTINS, Helena; EL-JAICK, Ana Paula G. Tem certeza? In: LEVY, Lia; PEREIRA, Luiz Carlos; ZINGANO, Marco (orgs.). 2011. Metafísica, lógica e outras coisas mais. Vol. 1. Rio de Janeiro: NAU. p. 99-114.; Martins, 2012MARTINS, Helena. 2012. Dizer-mostrar o estranho. Alea: Estudos Neolatinos 14: 93-105.).

Sobre dizer. Não há a menor dúvida de que Wittgenstein se empenhou em desconvidar a ideia (que ele mesmo antes tinha convidado) de que dizer é essencialmente declarar, representar. Em suas Investigações Filosóficas (doravante IF), atacou com as suas conhecidas e formidáveis armas a visão insidiosa de que a linguagem se funda no gesto de um dizer capaz de se dar no vácuo, como representação pura de um fora qualquer (o real, o pensamento). Recusou, é sabido, a possibilidade de um dizer que poria, assim, a práxis entre parênteses, que teria no contexto uma espécie de aposto logicamente posterior. Como Austin, ele insiste agora, muito ao contrário, no laço entre linguagem e ação, na ideia de que dizer é sempre também fazer - de que não há, de um lado a coisa linguagem, de outro a coisa práxis, contexto, vida. As trajetórias de Wittgenstein e de Austin têm em comum, sabemos todos, um gradual dar-se conta de que a distinção entre a esfera constativa e performativa "não é tão clara quanto poderia parecer" (Austin, 1979_______. 1979. Philosophical Papers. Oxford: Oxford University Press.: 246) - um progressivo discernimento de que, mesmo enquanto falamos das coisas, "fazemos as mais diversas coisas" (IF §27).

Sobre mostrar. O que quer que se mostre, num pensamento agora tão avesso ao representacionismo, não poderá mais ser uma espécie de região ignorada do ser, uma verdade inefável qualquer - ética, estética, religiosa. E o célebre imperativo final do Tractatus - calar sobre o que não se pode falar - começa também agora a se desconjuntar. Uma comparação entre esse primeiro Wittgenstein e Austin aqui é oportuna. Como aponta Rajagopalan, "diante da sensação inusitada do indizível, Wittgenstein pede silêncio, e Austin, mais ação, isto é, 'fazer' no lugar de 'dizer'" (Rajagopalan, 1990RAJAGOPALAN, Kanavillil. 1990. Dos dizeres diversos em torno do fazer. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada 6(2):223-54.: 232). A divisa que Rajagopalan atribui aqui a Austin (mais ação!) promete se comunicar, não sem algum atrito, com o movimento do Wittgenstein das Investigações Filosóficas.

Se para este Wittgenstein, como afinal para Austin, todo dizer é de alguma forma um performativo e se não há mais espaço para verdades éticas, estéticas ou religiosas, que, inefáveis, se mostrariam sem se deixar dizer, então é legítimo, como já se disse, perguntar como sobreviveria, nesse novo movimento de pensamento, ainda algum jogo entre dizer e mostrar. Para reagir a esse "como?", reconheçamos, primeiro, que o jogo agora se joga de um modo que se promete não dicotômico - contaminam-se reciprocamente o dizer-fazer e o mostrar, dada sua natureza igualmente performática, dada a impossibilidade de abstrairmos a linguagem da vida. Segundo, o que se mostra, ou se diz-mostra, nos nossos dizer-fazeres, nos modos como fazemos coisas com as palavras, isto é, nas nossas formas de vida, o que se mostra ou pode se mostrar, em ocasiões mais ou menos raras, de promissora vertigem, é talvez o que nesses dizeres e fazeres há de estranho e de inexplicável.

É oportuno observar, entre parênteses, que inexplicável, para Wittgenstein, não se confunde com ilusório. A diferença é importante: juízos como "tudo é ilusório", recorrentes em tantos círculos intelectuais e artísticos contemporâneos, são ainda explicações - exerceriam, em toda sua negatividade, um efeito pacificador, uma rarefação da experiência desse estranho a que se quer dar atenção aqui.

Mas pode-se perguntar: o estranho nos escritos do célebre pensador da linguagem ordinária, da linguagem comum? O estranho no comum? Aqui me alinho às leituras de autores como Marjorie Perloff e o já citado Stanley Cavell, que marcaram nos próprios títulos de importantes obras que escreveram sobre Wittgenstein a percepção de que o comum no pensamento do filósofo é melhor apreendido como um comum-estranho: The uncaniness of the ordinary (Cavell, 1988_______. 1988. The uncanniness of the ordinary. In: The Quest of the Ordinary. Chicago: The University of Chicago Press.); The strangeness of the ordinary (Perloff, 1996PERLOFF, Marjorie. 1996. Wittgenstein's Ladder: the Strangeness of the Ordinary. Chicago: The University of Chicago Press.). Creio, como eles, que a força da escrita de Wittgenstein fica debilitada nas (muitas) leituras que de alguma forma insistem ainda em compreender a linguagem dita comum como um espaço relativamente pacífico e sem surpresas, desde que devidamente protegido das investidas doentias dos filósofos profissionais.

Esse tipo de leitura, que tende a restringir o impacto do pensamento de Wittgenstein ao "mundo filosófico", associa-se às vezes à percepção de que, em sua suposta confiança na transparência do comum e do ordinário, ele estaria afinal incorrendo em uma atitude neo-moderna, ainda inadvertidamente nostálgica da segurança dos fundamentos (Ruby, 1990RUBY, C. 1990. Le Champ de Bataille - post-moderne/neo-moderne. Paris: Éditions l'Harmattan.). Aqui novamente podemos traçar um paralelo com Austin. Também este foi famosamente acusado de trivializar a norma com sua teoria do desvio - de refrear, por assim dizer, as consequências mais radicais que se insinuavam no seu próprio pensamento. O freio austiniano mais comentado é, sabemos, a aposta na possibilidade de uma oposição confiável e objetiva entre usos sérios e não sérios da linguagem, aposta aparentemente presumida na decisão declarada de restringir suas reflexões à esfera dos primeiros (Austin, 1975AUSTIN, John Langshaw. 1975. How to Do Things with Words. J. O. Urmson, Marina Sbisa (eds.). Cambridge: Harvard University Press.: 22). Desnecessário repetir aqui as conhecidas e inspiradas ponderações de Derrida (1990DERRIDA, Jacques. 1990. Signature événement contexte. In: Limited Inc. Paris: Éditions Galilée, p. 15-51.) sobre esse ponto, bem como as de tantos dos outros leitores de Austin que viram aí um momento em que se arrefece o seu característico e em geral vigoroso "fervor anti-formalista" (Rajagopalan e Arrojo, 2003RAJAGOPALAN, Kanavilil; Arrojo, Rosemary. 2003. A crise na metalinguagem: uma perspectiva interdisciplinar. In: ARROJO, Rosemary (Org.). O Signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas, SP: Pontes, p. 57-62.: 60).

Percebo também, tanto no caso de Austin quanto no de Wittgenstein, momentos de escrita que parecem perder em potência transformadora, ao se abrirem incongruentemente para o que se insinua como espécie de domesticação do comum. Essa percepção tanto mais se altera, no entanto, quanto mais dou atenção às virtudes, por assim dizer, mostrativas dessas duas escritas-performance. Explico.

Comecemos por registrar que a tese da performatividade irrestrita da linguagem atinge também, é claro, os atos de fala/escrita de Wittgenstein e de Austin. Não é bom que percamos de vista o que eles estão fazendo com suas palavras, mesmo quando afirmam que pouco ou nada fazem, ou que se limitam a dar a ver o óbvio:

A filosofia deixa tudo como está. (Wittgenstein [1953_______. [1953] 2001. Philosophische Untersuchungen / Philosophical Investigations: The German Text, with a Revised English Translation 50th Anniversary Commemorative Edition, tr. G. E. M. Anscombe. Oxford: Blackwell.] 2001 §124)

O que tenho a dizer não é difícil, nem polêmico. O único mérito que lhe gostaria de atribuir é o de ser verdadeira, pelo menos em partes. O fenômeno a ser discutido é bastante disseminado e óbvio, e já haverá de ter sido registrado por outros, pelo menos aqui e ali. (Austin, 1962:1)

Como bem apontou o nosso homenageado, no caso de Austin, trata-se de uma escrita "desconstrutora", com muitas consequências radicais, entre elas o próprio reconhecimento de que qualquer discurso sobre a linguagem é ele mesmo revestido de uma "inalienável performatividade" (o que, para Rajagopalan, impõe, em especial nas ciências sociais e humanas, a adoção de uma atitude de franca "pesquisa militante"3 3 . "A natureza situada de qualquer pensamento sobre linguagem, somada à inalienável performatividade de todas as afirmações científicas significa que os pesquisadores nas ciências humanas não podem senão ser também eles militantes nas causas que abraçam" (Rajagopalan, 2012: 98). ). Creio que o mesmo tipo de raciocínio poderia ser feito em relação ao caso de Wittgenstein, malgrado as objeções de alguns dos admiradores de Austin que, no que tange a Wittgenstein, subscrevem a já citada tese de que ele se confinaria ainda "ao mundo da filosofia" (um exemplo, Ottoni, 2002OTTONI, Paulo. 2002. John Langshaw Austin e a Visão Performativa da Linguagem. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada 18(1): 117-143.). Aqui me alinho mais uma vez a Cavell: admitindo que o §124 das Investigações Filosóficas, citado logo acima, "soa quietista, conformista", ele pondera que, ao dizer que a filosofia deixa tudo como está, Wittgenstein está de fato reagindo contra uma propensão da filosofia para "mudar as coisas mecanicamente, mudá-las destrutivamente"; já sabemos, Cavell acrescenta, "o suficiente sobre a ideologia para saber que pode mudar as coisas destrutivamente" (Cavell, 2012CAVELL, Stanley. 2012. Remarks from discussion. In: SAITO, Naoko & Standish, Paul (eds.). Stanley Cavell and the Education of Grownups. New York: Fordham University Press, p. 146-147.: 146). Acredito, com Cavell, que, precisamente na contramão do quietismo, a escrita-performance de Wittgenstein, tanto quanto a de Austin, propicia ocasiões - politicamente promissoras - em que podemos nos "lançar de volta contra a nossa cultura, indagando por que fazemos as coisas da forma que fazemos, julgamos da forma julgamos, como chegamos a essas encruzilhadas" (Cavell, 1979: 125).

Como já se disse, uma atenção às "virtudes mostrativas" dessas escritas, a de Austin e a de Wittgenstein, permite que percebamos ênfases opostas à domesticação do comum que ali parece se insinuar em alguns momentos. Mais especificamente sobre o ponto que anima este texto, disse também que, se vamos reconhecer no pensamento maduro de Wittgenstein uma sobrevivência do jogo entre dizer e mostrar, então não é descabido pensar que o que se mostra ali é a estranheza do comum. Expondo essa percepção sobre Wittgenstein à atmosfera do pensamento austinano, poderíamos talvez, em face do que se disse acima, reconhecer no mostrar um performativo. Como se mostraria performativamente o estranho na escrita madura de Wittgenstein? A pergunta me leva afinal ao nexo entre filosofia e literatura.

Consideremos "sotaque" escritural de Wittgenstein; alguns diriam, com algum escrúpulo, o seu estilo. E pensemos também que isso, o estilo - se não é mais, de modo algum, o velho operador de uma identidade autoral inflacionada e dona de si - tampouco poderá ser um simples detalhe para um filósofo como Wittgenstein, que um dia disse, muito explicitamente, que a filosofia deveria ser escrita como uma espécie de composição poética (Wittgenstein, [1977]1989_______. [1977] 1989. Vermischte Bemerkungen / Culture and value. [German-English parallel text]. G. Von Wright in collaboration with Nyman, tr. Peter Winch. Oxford: Basil Blackwell.: 24; v. tb. p. 89). A escrita de Wittgenstein é comum, porque é muito simples, muito afeita às palavras do dia a dia, muito refratária ao jargão. Mas é também ao mesmo tempo muito estranha, nas suas quebras e descontinuidades, nas suas repetições proteiformes, nos seus silêncios, nos pequenos diálogos de vozes que se confundem, na reticência sonegadora das tantas perguntas que ressoam como ecos sem nos levar pela mão a parte alguma, na combinação incongruente dos tons da humildade e da arrogância, da gravidade e do humor, da maturidade e da infância.4 4 . Da escrita de Austin poderíamos, a propósito, dizer algo semelhante: o seu humor, por exemplo, parece a toda hora desconcertar (estranhamente?) o que ele mesmo afirma; atua desconstruindo, por exemplo, a própria dicotomia do discurso sério x lúdico que ele teria parecido encampar - e isso pode bem ser "parte constitutiva de seu projeto filosófico" (Rajagopalan, 2000b: 287). Mostra-se nas linhas comum-estranhas com que Wittgenstein trama no seu texto o testemunho de um incompreendido, o senso de um inexplicável que não se deixa pacificar. Esse mostrar é ou pode ser performativo - dá ou pode dar ocasião para profundos deslocamentos e transformações.

O mostrar-se desse estranho em dizer-fazeres - em escritas-performance com as de Wittgenstein e Austin - pode ser tomado, já se disse, como uma ocasião rara e vertiginosa. É rara e é vertiginosa, porque, na sua feição mais radical, é uma ocasião que implica, por assim, uma espécie de desparafusamento radical da linguagem, isto é, um desparafusamento radical das nossas formas de vida. Não apenas um desparafusamento intelectual, do tipo que comparece, digamos, na crítica de uma ideologia discernível - trata-se antes de algo que promete se dar em níveis mais irrefletidos da experiência, algo com o potencial de afetar convicções subterrâneas, "sem razão de ser", certezas não intelectuais associadas aos modos de estar no mundo tacitamente em jogo nas formas de vida a que pertencemos.

Creio que um interesse por essas ocasiões - um desejo de dar a ver ou a ouvir, um estranho irredutível e inexplicável no que é comum -, um desejo assim move, nas Investigações, não apenas a sua particular dicção poética, mas também os incontáveis experimentos de pensamento em que se encenam ali situações de alteridade radical. Essa é uma estratégia endêmica nos escritos de Wittgenstein: incontáveis são os confrontos entre nativos e estrangeiros; humanos e animais; adultos e crianças; sãos e loucos; orientais e ocidentais, e assim por diante.

Quem lê Wittgenstein, recebe de fato, a toda hora, convites do tipo: "Imagine uma tribo em que..." As tribos e comunidades da imaginação de Wittgenstein são frequentemente as mais loucas: tribos de gente que nunca ouviu falar em sonho, ou dissimulação, ou jogo; gente que acredita vender mais ou menos madeira conforme as toras estejam ou não empilhadas; gente que acha prático batizar com nomes próprios as suas mãos, e assim por diante. Nesses confrontos ganha muitas vezes saliência o motivo da resistência à tradução: são casos em que parecemos confrontar, junto com limites de tradução, e num sentido não trivial, limites profundos de experiência.

Essas são ou prometem ser, no entanto, ocasiões em que a estranheza do outro é já também a nossa própria estranheza. Nossas palavras mais confiáveis começam a gaguejar, nossos fazeres mais habituados começam a claudicar - mancamos. São ocasiões, Blanchot nos diz, em que se afirma ou se pode afirmar "tudo o que uma língua [um modo de vida] contém de futuro num momento particular, tudo nela convoca ou indica um estado que é outro, por vezes perigosamente outro" (1997: 59). No desparafusamento da linguagem, das línguas, e das vidas, afirma-se o seu perigoso, arriscado e talvez promissor devir.

O estranho, o inexplicável, o incompreendido não são agora descritos - não mais convocam revelações, pois nada está oculto: deixam-se reconhecer no comum, sem se deixar compreender. A performance poética de Wittgenstein se dá numa escrita comum que mostra, no entanto, "um contínuo compromisso com a inquietação, com a desorientação, com fantasmas de solidão e devastação" (Cavell, 2005b_______. 2005b. Responses. In: Russel, Goodman (ed.). Contending with Stanley Cavell. New York: Oxford University Press, 2005.: 161). Reconhecer no comum o estranho, o inquieto, não é aqui torná-lo conhecido, aquietá-lo: com sorte, é, muito ao contrário, uma ocasião para nele persistir - experimentar seus riscos, suas oportunidades.

É nesse jogo não dicotômico entre dizer e mostrar - jogo que sobrevive, creio, na escrita madura de Wittgenstein e que comparece também em Austin - que podemos dizer que esses filósofos da linguagem que pouco falaram sobre política são pensadores políticos, profundamente políticos. São escritas que nos lembram sempre que somos todos estrangeiros para nós mesmos - que não temos que fazer sempre as mesmas coisas com as palavras, que podemos atentar com insuspeito interesse a quem está falando diferente, andando diferente, cantando diferente, escrevendo diferente. Atentar mesmo que sem entender.

Encerro este texto lembrando uma passagem de Derrida que me parece muito oportuna, na qual ele insiste no que seria uma valorosa disposição de persistir no estranho - "tremer nessa estranha repetição que liga um passado irrefutável (...) a um futuro que não pode ser antecipado", tremer "diante daquilo excede o meu ver e o meu saber, e que no entanto diz respeito ao que me é mais íntimo" (Derrida, 1995_______. 1995. The Gift of Death. Translated by D. Wills. Chicago/London: University of Chicago Press.: 54). Poderíamos talvez descrever essa valorosa disposição com outras duas palavras: Kanavilil Rajagopalan.

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  • _______. [1930-32] 1980. Wittgenstein's Lectures, Cambridge 1930-1932. Chicago, Chicago University Press.
  • _______. [1953] 2001. Philosophische Untersuchungen / Philosophical Investigations: The German Text, with a Revised English Translation 50th Anniversary Commemorative Edition, tr. G. E. M. Anscombe. Oxford: Blackwell.
  • _______. [1977] 1989. Vermischte Bemerkungen / Culture and value. [German-English parallel text]. G. Von Wright in collaboration with Nyman, tr. Peter Winch. Oxford: Basil Blackwell.
  • 1
    . A tradução é minha neste e em todos os demais casos de textos aqui citados a partir do original.
  • 2
    . Hacker (1996HACKER, Peter M.S. 1996. Wittgenstein: Mind and will. Vol. 4 of An analytical Commentary on the Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell.:239) ilustra bem essa posição: afirma peremptoriamente que, depois de 1929, Wittgenstein "repudiou a distinção entre mostrar e dizer, deixando de sustentar que verdades metafísicas inefáveis se mostram nas proposições com sentido".
  • 3
    . "A natureza situada de qualquer pensamento sobre linguagem, somada à inalienável performatividade de todas as afirmações científicas significa que os pesquisadores nas ciências humanas não podem senão ser também eles militantes nas causas que abraçam" (Rajagopalan, 2012_______. 2012. Performativity and the claims of scientificity of modern linguistics. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada 28(1): 85-103.: 98).
  • 4
    . Da escrita de Austin poderíamos, a propósito, dizer algo semelhante: o seu humor, por exemplo, parece a toda hora desconcertar (estranhamente?) o que ele mesmo afirma; atua desconstruindo, por exemplo, a própria dicotomia do discurso sério x lúdico que ele teria parecido encampar - e isso pode bem ser "parte constitutiva de seu projeto filosófico" (Rajagopalan, 2000b_______. 2000b. Austin's humorous style of philosophical discourse in light of Schrempp's interpretation of Oring's "incongruity theory" of humor. Humor 13(3):287-311.: 287).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Abr 2014
  • Aceito
    Jan 2015
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