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Resenha

Liana Araújo Lopes

Doutoranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio)

A Diplomacia do Interesse Nacional - A Política Externa do Governo Médici

Cíntia Vieira Souto. Porto Alegre, Editora UFRGS, 2003, 128 páginas.

As Mudanças da Política Externa Brasileira nos Anos 80 - Uma Potência Média Recém-Industrializada

Ricardo Sennes. Porto Alegre, Editora UFRGS, 2003, 143 páginas.

A Política Externa do Governo Sarney - A Nova República diante do Reordenamento Internacional (1985-1990)

Analúcia Danilevicz Pereira. Porto Alegre, Editora UFRGS, 2003, 98 páginas.

Esta resenha reúne o trabalho de três autores voltados para uma sistematização das relações exteriores brasileiras que lhes permitiu identificar particularidades de momentos específicos na condução da política externa do país. Dessa forma, cada um busca apontar características que individualizam a atuação diplomática brasileira conforme o governo examinado. Contudo, ressalte-se que, embora estas obras variem em seus modelos analíticos e se concentrem em períodos distintos da história do Brasil, elas nos possibilitam verificar, também, uma continuidade na matriz de inserção internacional do país entre as décadas de 70 e 90, conforme será visto a seguir.

Em seu trabalho sobre as orientações diplomáticas da administração Médici (1969-1974), Cíntia Vieira Souto centra suas preocupações analíticas em um dos períodos de nossa história atéagora pouco explorado por estudiosos da política externa do país. Sua revisão bibliográfica sobre alguns dos trabalhos mais relevantes acerca desse tema busca apontar contradições presentes nessa literatura que, no seu entender, limitam o entendimento sobre a inserção internacional do país durante aquela fase do governo militar. Ao longo de seu livro, àmedida que se propõe a esclarecer tais equívocos, apresenta uma nova leitura sobre as relações exteriores do Brasil enquanto Médici esteve na Presidência.

Entre os problemas de interpretação que constam na bibliografia sobre esse período histórico, dois merecem atenção por sua relevância na posterior argumentação da autora. Por um lado, Souto critica estudos retratando a política exterior dessa época como um mero desdobramento de determinadas práticas adotadas na gestão de Costa e Silva, deixando, por conseguinte, de salientar certos elementos da diplomacia do governo Médici, fundamentais para se reconhecer que se tratava de uma matriz de política exterior com características próprias. Por outro, questiona a validade das análises baseadas em modelos dualistas. Nesta direção, como exemplos centrais, destaca as explicações fundadas em dicotomias do liberal-imperialismo e do nacional-autoritarismo, obscurecendo a real participação do país no cenário internacional, ou que tornam confusas as distinções entre as políticas interna e externa.

Diante dessas constatações, Souto propõe-se a identificar quais as especificidades da política externa do governo Médici permitem dizer que esta possuía um caráter próprio. Suas indagações sobre este ponto se encontram no primeiro capítulo, ao discutir a ligação entre o projeto político-econômico doméstico e as diretrizes da política externa durante aquele governo. Seguindo essa ordem de idéias, a autora examina em que medida o projeto "Brasil Grande Potência", apresentado em 1970 como parte do plano de governo para a inserção internacional do país, se correlacionava à diplomacia do interesse nacional. Nesse processo de questionamento, conclui que a formulação da política externa passou a ser orientada conforme a definição de um programa governamental específico, voltado para a promoção do rápido desenvolvimento do país.

Feita essa discussão, Souto avalia, nos três capítulos subseqüentes, o modo pelo qual o país concebeu as decisões de política externa diante das transformações por que passava o cenário internacional. Como observa a autora, a distensão no relacionamento entre as superpotências, favorecendo a multipolaridade política, e as prosperidades econômicas européia e nipônica sinalizavam novas oportunidades para o Brasil pôr em prática sua diplomacia do interesse nacional. Em suas considerações sobre tal questão, essas seções do livro são dedicadas a uma detalhada análise das principais realizações de nossa diplomacia no que tange às relações hemisféricas e extra-hemisféricas do Brasil, tanto na esfera bilateral como no plano multilateral.

Souto não ignora a existência de pontos em comum nos discursos do governo Médici e de seus antecessores militares no que se refere à definição da ordem mundial, porém a autora ressalta que há mudanças nas estratégias de atuação no plano externo nesse período, além de ser possível perceber uma concepção diferenciada para a inserção internacional do Brasil. E, nesse sentido, as negociações bilaterais e multilaterais tinham um caráter instrumental, objetivando atender às metas de desenvolvimento nacional, concomitante à busca pela maximização das oportunidades de participação do país no Primeiro e no Terceiro Mundos.

Contudo, esse posicionamento brasileiro em suas relações exteriores, privilegiando as questões de interesse nacional e os imperativos da ordem econômica, resultou em alguns contenciosos com outros países. As conclusões da autora sobre essa temática são um ponto importante em sua análise, uma vez que corrige algumas das interpretações de estudiosos da política externa de Médici, sobretudo aquelas que apontam um alinhamento automático e subordinado aos Estados Unidos. Ao contrário, afirma Souto, o comportamento externo do Brasil, tanto com o governo norte-americano como sua participação em foros multilaterais, evidenciava o esforço da diplomacia nacional para tirar vantagens, quando possível, para o projeto de desenvolvimento do país. Ao mesmo tempo, prossegue a autora, buscava-se evitar atritos em suas relações exteriores com posicionamentos mais radicais em torno de determinados temas.

Enquanto Souto propõe um ensaio abrangente, seguindo um formato mais analítico sobre a atuação diplomática do governo Médici, a avaliação sobre a política externa brasileira empreendida por Ricardo Sennes demonstra preocupações eminentemente teóricas e conceituais. Esse percurso analítico do autor se evidencia logo no primeiro capítulo de seu livro, ao dedicar-se à definição do tipo de inserção internacional do Brasil nos anos 80.

Nesta seção, ao constatar a diversidade de abordagens na literatura de relações internacionais a respeito dos padrões de comportamento e das características da política externa brasileira, Sennes julga essencial, primeiramente, identificar qual é a categoria que revela a singularidade da inserção internacional brasileira. A classificação do Brasil como uma potência média recém-industrializada permite compreender a relevância do país no cenário internacional, sua interação e estratégias com relação às grandes potências, assim como sua atuação e seu papel estruturador no sistema regional, argumenta o autor. E o principal elemento que caracteriza os países que se enquadram nessa categoria se refere ao conjunto de opções estratégicas disponível, tendo em vista a natureza de sua inserção internacional e sua capacidade de barganha em diversas arenas.

No segundo capítulo, o autor dedica-se à descrição das características da matriz da política externa, cujas origens remontam à década de 70, durante o regime militar, e que permaneceria inalterada até fins dos anos 80, na gestão de José Sarney. Dentro dessa ordem de idéias, no que se refere às atuações multilaterais no início da década de 80, são três as linhas básicas delineando a matriz externa brasileira: o país apresentava-se como uma potência intermediária; baseava-se no alinhamento com o Terceiro Mundo; e, por último, buscava estabelecer alianças e coalizões que reforçassem a presença do país em órgãos multilaterais. Nota o autor que a agenda externa revelava nitidamente o privilégio de temas econômicos multilaterais, em detrimento de questões que pudessem suscitar enfrentamentos políticos. Para Sennes, esses aspectos das relações exteriores do país denotam uma postura dúbia diante do movimento terceiro-mundista, e flexível na formação de suas alianças. Em outras palavras, a filiação e o engajamento com outros países eram estabelecidos de acordo com a capacidade do país para assegurar uma margem de manobra que maximizasse meios efetivos de perseguição de seus objetivos e sua inserção internacional. No âmbito bilateral, dois eixos norteavam as estratégias brasileiras, quais sejam, a busca pela diversificação das interações com as grandes potências e países desenvolvidos e a ampliação e aprofundamento das relações econômicas e políticas com as pequenas potências. Paralelamente a esses princípios, objetivava-se um relativo distanciamento dos Estados Unidos e um maior grau de autonomia para executar o programa de desenvolvimento nacional. Por fim, no plano regional, a matriz de política externa definiu-se de acordo com dois objetivos:por um lado, uma das metas referia-se à maior participação do país na América do Sul, estabelecendo um papel de destaque na região; por outro, pretendia-se evitar o aumento da influência de potências extra-regionais no continente sul-americano.

Nos dois capítulos subseqüentes, Sennes desenvolve sua argumentação sobre as mudanças na política externa brasileira durante a década de 80, fundamentando-se na premissa de que essas transformações ocorreram não apenas em termos estratégicos e retóricos, mas alterações mais profundas podem ser igualmente percebidas nas concepções e perspectivas sobre as capacidades e possibilidades da política exterior do país nos planos internacional e regional.

Seguindo essa ordem de idéias, o terceiro capítulo centra-se nos efeitos negativos sobre as potências médias e países recém-industrializados provocados pelo reordenamento econômico no sistema internacional, sendo acompanhados por um acelerado processo de globalização, mudanças tecnológicas e produtivas nos anos 70 e 80. Outro importante fenômeno examinado pelo autor refere-se ao fim da Guerra Fria. Como conseqüência dessa série de eventos, houve um reposicionamento estratégico dos países desenvolvidos e novas orientações passaram a ser definidas em órgãos multilaterais voltados para questões econômicas, comerciais e financeiras que, por sua vez, afetariam as estratégias de desenvolvimento e o comportamento internacional dos países do Terceiro Mundo.

O quarto capítulo trata dos impactos desse novo ordenamento internacional sobre o Brasil. Em primeiro lugar, Sennes descreve detalhadamente as sucessivas crises de vulnerabilidade por que passa o país, em particular no setor energético e nas áreas financeira e comercial, levando a um comprometimento da viabilidade operacional da matriz externa. Em seguida, trata do isolamento político e das derrotas consecutivas, nas negociações do GATT, sofridas por países recém-industrializados, dentre eles o Brasil, a partir da desarticulação do movimento terceiro-mundista naquele período. Todos esses fatores, reconfigurando o sistema internacional, foram responsáveis por um redirecionamento dos princípios e rumos da política externa brasileira, como, por exemplo, a retomada de uma participação mais ativa na América do Sul.

O quinto e último capítulo trata da natureza da matriz da política externa que emerge no final da década de 80 e início dos anos 90. Ao avaliar o comportamento externo do país nesse período, o autor aponta os elementos indicadores de um esgotamento da matriz que prevaleceu até então. Nesse sentido, embora a postura do Brasil ainda correspondesse à de uma potência média recém-industrializada, o país passa a adotar um outro padrão de inserção internacional, que se torna mais evidente a partir de 1987-1988. Nesse contexto, iniciava-se o processo de abertura econômica, ocorria uma alteração do seu posicionamento nas negociações com o GATT e a integração regional passava a assumir uma considerável relevância na agenda externa brasileira. É nesse momento, ainda, observa Sennes, que o país se revela como grande mercado emergente, tentando demonstrar ser uma área atrativa para investimentos e negócios internacionais.

Conforme fica sugerido no título da obra de Analúcia Pereira, assim como Sennes, a autora revela uma preocupação com os impactos do reordenamento internacional sobre as relações exteriores do país. Outros aspectos levantados por Pereira indicam convergências entre sua análise e a de Sennes sobre a atuação externa do país no governo Sarney. Todavia, enquanto Sennes se concentra na premissa de que os fatores sistêmicos foram dominantes em relação aos determinantes de ordem interna na reestruturação do posicionamento externo do país, Pereira sugere um exame mais detalhado da arena doméstica. Nesta direção, Pereira concentra sua investigação na base política nacional e na redemocratização para compreender as mudanças nas dimensões políticas do país no cenário internacional. Dito de outro modo, a autora propõe-se a verificar em que medida a condição democrática foi capaz de garantir um maior grau de autonomia para a atuação diplomática em face das pressões externas.

Dessa forma, suas considerações levam em conta se esse período de transição, entre o fim de um governo militar e a instauração da democracia, representou um momento de ruptura ou de continuidade em relação às práticas de política externa do regime anterior. Para responder a essa indagação, a autora avalia, na primeira parte de seu livro, a conjugação de fatores internos e externos que representaram desafios à diplomacia brasileira naquele momento. Dentre os condicionantes do cenário mundial, ressalta as pressões exercidas pelas potências hegemônicas ocidentais para que o país promovesse a abertura de sua economia. No plano nacional, a construção democrática e a crise econômica delinearam as orientações da política externa ao longo do governo Sarney. Em seguida, Pereira destaca os elementos que caracterizam as mudanças na política externa implementadas durante a administração desse presidente. Como reação às pressões das grandes potências, o governo apresentou formulações autônomas de ação diplomática, procurou consolidar suas relações exteriores e estabelecer alternativas de relacionamento com países em desenvolvimento, como a China, além de tentar evitar o monitoramento de organismos internacionais, como o FMI, sobre a dívida externa brasileira.

As três seções seguintes voltam-se para as relações hemisféricas, extra-hemisféricas e para a participação brasileira em organismos multilaterais. Quanto às primeiras, foram marcadas pelos constantes conflitos de interesses entre o Brasil e os Estados Unidos, decorrentes das práticas protecionistas norte-americanas em áreas estratégicas, e sanções comerciais impostas ao país, além de atritos em virtude das renegociações da dívida externa por parte do governo brasileiro. Diante desse quadro de vulnerabilidade, buscou-se fortalecer as relações diplomáticas com a América do Sul de modo a consolidar um eixo de cooperação regional na esfera econômica, objetivando-se, ainda, uma ampliação do poder de barganha junto aos Estados Unidos sobre problemas de endividamento externo, quando as propostas eram apresentadas por um conjunto de países sul-americanos. No que concerne às relações extra-hemisféricas, a autora explica que os atritos e tensões com a Europa Ocidental fizeram com que o governo brasileiro estreitasse e aprofundasse os laços de cooperação com outras regiões que representassem opções à sua proposta de desenvolvimento. Entre as alternativas encontradas, houve iniciativas de aproximação com a URSS e a Europa do Leste para a obtenção de recursos ao fomento da cooperação econômica e tecnológica, e ações diplomáticas e comerciais com países da África Subsaariana, Ásia e Oriente Médio. No que diz respeito às organizações multilaterais, a diplomacia brasileira utilizou-se de espaços em fóruns e em instituições como a ONU para denunciar e protestar contra as desigualdades do sistema internacional.

Ao final, Pereira responde a uma de suas indagações iniciais. Conclui que a política externa no governo Sarney ainda revelava traços de continuidade em relação aos governos do regime militar, como, por exemplo, a manutenção do poder estatal na condução do programa de desenvolvimento. Contudo, se, por um lado, não houve grandes inovações, argumenta a autora, por outro, houve avanços qualitativos, sobretudo em direção à integração e cooperação com a América Latina e o Cone Sul, quando expressos com o restabelecimento de relações diplomáticas com Cuba e com uma maior ênfase nos temas ambientais e de direitos humanos.

Os pontos aqui destacados não esgotam todos os aspectos das análises desses três ensaios da Coleção Estudos Internacionais. Todavia, são suficientes para mostrar sua contribuição ao preencherem lacunas da literatura de política externa brasileira. Suas novas interpretações sobre a ação diplomática do Brasil e suas considerações sobre os impactos das transformações no cenário internacional para a agenda externa do país, são de especial interesse para historiadores e estudiosos preocupados em refletir de forma mais aprofundada sobre essas três décadas de nossa política externa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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