RESUMO
Este trabalho analisa as transformações na paisagem da Floresta Ombrófila Mista (FOM) do Oeste catarinense, tendo como fio condutor a prática da suinocultura, entre o período que compreende o início da colonização, a partir de fins da década de 1910, até o final da década de 1950, quando o setor agroindustrial de produção de carnes se consolida regionalmente. Para isso, analisou-se uma variada tipologia de fontes, em diálogo com os preceitos da história ambiental.
PALAVRAS-CHAVE:
Porcos; História Ambiental; Caboclos; Colonização; Paisagem
ABSTRACT
This work aims to analyze the transformations in the landscape of the Ombrophilous Mixed Forest (OMF) in western Santa Catarina, using pig farming as the guiding thread, between the period that comprises the beginning of colonization, from the end of the 1910s to the end of the 1950s, when the agro-industrial sector of meat production was regionally consolidated. To this end, a varied typology of sources was analyzed, in dialogue with the precepts of environmental history.
KEYWORDS:
Pigs; Environmental History; Caboclos; Colonization; Landscape
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo analizar las transformaciones en el paisaje del Bosque Ombrófilo Mixto (BOM) en oeste del estado de Santa Catarina (Brasil), utilizando la porcicultura como hilo conductor desde los años 1910 hasta finales de la década de 1950 cuando el sector agroindustrial de la producción de carne se consolida regionalmente. Para ello, se analizó una variada tipología de fuentes, en diálogo con los preceptos de la historia ambiental.
PALABRAS CLAVE:
Cerdos; Historia Ambiental; Caboclos; Colonización; Paisaje
INTRODUÇÃO
A paisagem, como salienta Ab’Saber (2008AB’SABER, Aziz Nacib. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 5. ed. São Paulo: Ateliê, 2008.), é sempre uma herança. Herança não apenas de processos fisiográficos e biológicos, mas também de processos sociais, econômicos, tecnológicos e culturais, expressos em variadas formas de ocupação, apropriação e uso dos recursos naturais. Isso pode ser percebido, por exemplo, no Oeste catarinense, cuja formação histórico-territorial está ligada à ocupação das florestas por indígenas, caboclos e migrantes teuto e ítalo-brasileiros provenientes do Rio Grande do Sul. Na pesquisa, considera-se como região Oeste toda a área compreendida pelos municípios de Chapecó e Cruzeiro (atual Joaçaba) criados em 1917, logo após o final do acordo de limites envolvendo os estados do Paraná e de Santa Catarina, em 1916, e seus futuros desmembramentos. A extensão desses dois municípios pode ser visualizada no Mapa 1, produzido em 1934.
Atualmente, a estruturação socioespacial do Oeste catarinense é fortemente ligada à economia agroindustrial, tendo como um de seus principais produtos a criação de porcos, que se destaca pelo impacto econômico, social e ambiental e pela sua importância histórica. A suinocultura no Oeste catarinense está relacionada ao processo de ocupação luso-brasileira, que se intensifica a partir da segunda metade do século XIX, promovido, sobretudo, por antigos moradores das fazendas das áreas de Campos do planalto do Paraná e Santa Catarina, em um movimento espontâneo em direção às áreas de florestas. A esse processo se acrescenta a colonização promovida por teutos e ítalo-brasileiros a partir da década de 1910, trazendo consigo usos e práticas socioespaciais distintos da população que a antecedia, tanto nas práticas agrícolas quanto na criação de animais.
E tendo como fio condutor a suinocultura, este artigo visa compreender de que forma suas diferentes formas de criação, desde o porco criado solto pela população cabocla,2 2 O termo caboclo, para Marquetti e Silva (2016: 109), designa “um dos habitantes das fronteiras do sul do Brasil, que aí vive desde o período anterior à chegada dos colonizadores de origem europeia”. Mesmo que, como aponta Machado (2004: 48), “não haja uma conotação étnica nesta palavra, frequentemente o caboclo era mestiço, muitas vezes negro. Mas a principal característica desta palavra é que distingue uma condição social e cultual, ou seja, são caboclos os homens pobres, pequenos lavradores posseiros, agregados ou peões”. às nascentes agroindústrias de carne transformaram o meio ambiente e a paisagem da Floresta Ombrófila Mista (FOM) do Oeste catarinense entre finais da década de 1910, quando a colonização se inicia na região, até o final da década de 1950, quando o setor agroindustrial se consolida regionalmente.
Compreender esse processo de mudanças ambientais do passado é um dos campos que podem ser estudados pela história ambiental. Ao incorporar a natureza em seus estudos, o historiador ambiental, nas palavras de Worster (1991WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4. n. 8, 1991.: 199), “rejeita a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolveu sem restrições naturais, de que os humanos são uma espécie distinta e ‘supernatural’ [e] de que as consequências ecológicas dos seus feitos passados podem ser ignoradas”. Concorda-se assim com Pádua (2010PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 81-101, 2010.: 97), para quem “a história ambiental, como ciência social, deve sempre incluir as sociedades humanas. Mas também reconhecer a historicidade dos sistemas naturais. O desafio, […] é construir uma leitura aberta e interativa da relação entre ambos”.
Uma das formas de se estudar a ação humana sobre o meio natural está relacionada, como apontam Oliveira e Montezuma (2010OLIVEIRA, Rogerio Ribeiro de; MONTEZUMA, Rita de Cassia Martins. História Ambienal e ecologia da paisagem: caminhos integrativos na geografia física. Mercator, Fortaleza, v. 9, n. 19, p. 117-128, 2010.: 118), a “trajetória evolutiva dos elementos da paisagem das intervenções antrópicas ocorridas em escalas diversas de tempo e espaço”. Ao se trabalhar com as transformações da paisagem e sua antropização, se adota uma perspectiva integradora, que a considera como a materialização de elementos econômicos, políticos, culturais e naturais nas diversas (re)construções do espaço. Entendida como um palimpsesto, a paisagem, para Santos (2006SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.: 103-104), é “o conjunto das formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações entre o homem e a natureza”. Nela é possível ler, nas palavras de Paul Claval (2004CLAVAL, Paul. A paisagem dos geógrafos. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (org.). Paisagens textos e identidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.: 71), “as relações complexas que se estabelecem entre os indivíduos e os grupos, o ambiente que eles transformam, as identidades que ali nascem ou se desenvolvem”.
Para compreender esse processo de transformações na paisagem promovida pela criação de porcos, o artigo foi dividido em três itens. O primeiro procura analisar sua importância dentro do modo de vida da população cabocla, tanto para a alimentação quanto para a economia de diversas famílias que ocupavam as florestas da região. O segundo mostra como o aporte de uma nova lógica socioespacial, baseada na propriedade privada da terra, promoveu uma série de rupturas no ambiente local, incidindo também na crise da então costumeira forma de criação dos porcos. A partir da colonização, verifica-se então uma nova forma de uso da terra, e consequentemente da criação desses animais, que passaram a ter como principal destino as nascentes fábricas de banha e pequenos frigoríficos que passam a surgir na região. O último compreende como a colonização e o desenvolvimento das nascentes agroindústrias locais promoveram uma ampla mudança na produção animal, cada vez mais baseada no binômio milho-porco.
USO COMUM DA FLORESTA NA CRIAÇÃO DE ANIMAIS
A natureza da ocupação do planalto da região Sul do Brasil, e por sua vez também do Oeste catarinense, está marcada pelo que Waibel (1949WAIBEL, Léo. Princípios da colonização europeia no Sul do Brasil. Revista Brasileira de Geografia , Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 159-222, 1949.) apontou como dualidade campo/floresta. Em Santa Catarina, a dualidade é mais visível na relação entre os Campos3 3 Embora o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (2012), denomine os Campos como “Estepes”, autores como Lindmann (1974), Klein (1978), Pillar (1997) e Overbeck (2007), preferem referir-se a esta vegetação simplesmente como “Campos”. e a FOM. Também conhecida como Floresta de Araucária, Mata de Araucária ou Mata dos Pinhais, dada à presença dominante da araucária (Araucaria angustifolia), na Floresta Ombrófila Mista (FOM) também são encontradas diversas espécies de lauráceas de alto valor comercial, mirtáceas e aquifoliáceas como a erva-mate. Os Campos encontram-se em sua maioria nos divisores de águas ou nas bordas do planalto, mais ao leste, com altitudes que não raro ultrapassam mil metros. Neles também se encontram capões, que consistem em bosques em meio aos Campos, matas ciliares e de galeria, cuja composição florística é idêntica à da FOM (Klein, 1978KLEIN, Roberto Miguel. Mapa fitogeográfico do Estado de Santa Catarina. Itajaí: Herbário Barbosa Rodrigues, 1978.; Leite e Klein, 1990LEITE, Pedro Furtado.; KLEIN, Roberto Miguel. Geografia do Brasil: região Sul. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística , 1990.). O Mapa 2 apresenta a localização dos Campos e da FOM em Santa Catarina.
A FOM, na época do recorte temporal deste artigo, encontrava-se num melhor estágio de conservação, com uma quantidade muito maior de araucárias e, significativamente, de árvores de grandes dimensões, o que implicava numa elevada produção de pinhão na época produtiva (outono/inverno). Além da araucária, outras espécies nativas frutíferas eram mais abundantes e colaboravam para essa criação tradicional de suínos, como a guabirobeira (Campomanesia sp.), a guaviroveira-de-porco (Campomanesia guaviroba), a pitangueira (Eugenia uniflora), o araçá (Psidium sp.), a cereja do mato (Eugenia involucrata), o butiá (Butia sp.), a uvaia (Eugenia pyriformis), a jabuticaba (Plinia cauliflora), entre outras (Raseira et al., 2004RASEIRA, Maria do Carmo Bassols et al. Espécies Frutíferas Nativas do Sul do Brasil. Pelotas: Embrapa Clima Temperado, 2004.).
Tal dualidade, no entanto, não foi exclusiva do povoamento por parte de portugueses e seus descendentes. Campos e florestas já compunham diferentes territórios para as populações indígenas que antecederam esse processo, conforme sugere Peres (2009PERES, Jackson Alexsandro. Entre as matas de araucárias: cultura e história Xocleng em Santa Catarina (1850-1914). 2009. 81 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.) em relação a atividades como a caça e a coleta. Tanto nos Campos como na FOM, era o pinhão um dos recursos alimentares mais valorizados por essa população, da qual também se alimentavam animais selvagens. Esse espaço passou a ser alvo de incursões portuguesas e espanholas desde o século XVI, por meio da presença de jesuítas e, mais tarde, de bandeirantes provenientes da província de São Paulo à procura de alguma forma de riqueza, incluindo a escravização dos indígenas. A fixação junto a esse espaço por não indígenas seria registrada somente a partir da abertura dos caminhos de tropas ligando o Rio Grande do Sul ao Sudeste, na primeira metade do século XVIII, com a posterior formação de fazendas de criação de gado nas regiões de Lages, Curitibanos e Campos Novos, em Santa Catarina, de Guarapuava e Palmas, no Paraná, e nas regiões de Passo Fundo e Vacaria, no Rio Grande do Sul, onde dominavam as formações de campos (Machado, 2004MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Editora da Unicamp, 2004.; Silva; Rosa, 2018SILVA, Augusto; ROSA, Adenilson. Antes do Oeste Catarinense. Fronteiras, Florianópolis, n. 18, p. 139-160, 2018.).
Nesse contexto de ocupação, os campos e as florestas, como a FOM, representavam não apenas paisagens distintas. A floresta, de pouca utilidade para o fazendeiro dos campos representava também a possibilidade de uma nova vida para muitas pessoas até então ligadas às lides pastoris. Como agentes dessa expansão espacial rumo as florestas, encontravam-se ex-escravizados, negros libertos, foragidos da justiça, ex-agregados, peões e fazendeiros em buscas de novas terras, partindo principalmente das áreas de Campos (Brandt; Nodari, 2011BRANDT, Marlon; NODARI, Eunice Sueli. Comunidades tradicionais da Floresta de Araucária de Santa Catarina: territorialidade e memória. História Unisinos, São Leopoldo, v. 15, n. 1, p. 80-90, 2011.).
Instalando-se em sua maioria sob o regime da posse, essa população, também conhecida localmente como “cabocla”, poderia viver da criação de animais, extrativismo da erva-mate, caça, pesca e a agricultura de subsistência. Nas florestas, formavam o que Queiroz (1981QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). 3. ed. São Paulo: Ática, 1981. (Ensaios, 23).) denominou como “roça cabocla”, caracterizada, conforme Renk (2006RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico no Oeste catarinense. 2. ed. Chapecó: Argos, 2006.: 107) por “uma prática costumeira de dividir espacialmente as terras em terras de plantar e terras de criar”. A lavoura, que formava as “terras de plantar”, era destinada à subsistência. Nela, geralmente afastada da moradia, eram abertas roças fechadas em meio a floresta, no sistema da coivara, onde eram plantados principalmente o milho, consorciado ao feijão, abóboras e melancias. As “terras de criar”, por sua vez, compreendiam todo o perímetro das terras, onde os animais como bois e, principalmente, os porcos eram criados em comum, estes últimos compartilhando as florestas com criadores vizinhos.
O porco era comum no Brasil já no período colonial, sendo essa forma de criação possivelmente a responsável pela conservação e/ou disseminação da vegetação florestal em algumas regiões (Dean, 2004DEAN, Warren Kempton. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica. São Paulo: Companhia das Letras , 2004.). Pelo fato de se adaptarem às florestas e serem onívoros, mas não ruminantes, havia, para eles, em comparação aos herbívoros bois, cavalos e mulas das áreas de campos, uma maior variedade de alimentos disponíveis. Comiam de tudo: frutos caídos, sementes, raízes, relva e qualquer animal pequeno (Crosby, 1993CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa (900-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.). Tal fato fez com que a criação de porcos fosse considerada vantajosa, não apenas pela maior capacidade de conversão de alimento em carne e banha em relação aos bovinos, mas também pelo menor trabalho e tempo necessário para a comercialização, que poderia ser até de um ano. Nas florestas do Sul do Brasil, a sua criação acompanhou o processo de povoamento da região desde pelo menos a segunda metade do século XIX. Criado solto com pouco manejo e de forma extensiva, essa forma de criação, além de conservar morfologicamente a paisagem florestal, era uma prática costumeira e uma importante fonte de renda para diversas famílias da região.
Existia, para essa forma de criação, não apenas um acordo firmado entre os criadores, baseado na oralidade e no costume no que cabe ao acesso e uso em comum dos recursos da floresta, como apontado por Brandt e Nodari (2011BRANDT, Marlon; NODARI, Eunice Sueli. Comunidades tradicionais da Floresta de Araucária de Santa Catarina: territorialidade e memória. História Unisinos, São Leopoldo, v. 15, n. 1, p. 80-90, 2011.), mas também uma dependência desse meio para o manejo dos animais baseados no ciclo das estações do ano, onde o pinhão era, nos meses frios, a principal fonte de alimentação dos porcos. Isso, por sua vez, ficava evidenciado na paisagem, marcada pela “roça cabocla” que em muitos lugares permaneceu por mais de um século e serviu inclusive como uma espécie de delimitação territorial dessas populações.
Esses animais poderiam ser destinados tanto ao próprio consumo das famílias quanto à comercialização. Caso fossem vendidos, depois de arrebanhados, os animais eram confinados em uma encerra de milharal aberta em meio à floresta para continuarem a engorda. Já com mais peso, as varas de porcos partiam, conduzidas a pé, para o destino final, que poderia ser um comerciante local ou uma das nascentes fábricas de banha e frigoríficos da região (Valentini, 2006VALENTINI, Delmir José. O tropeirismo de suínos na região do contestado e sua influência no incipiente processo agroindustrial. In: ZOTTI, Solange Aparecida. História faz história: contribuições ao estudo da História Regional. Concórdia: Universidade do Contestado; Hised, 2006.). Na área de abrangência da FOM no Paraná, essa espécie de tropeirismo de porcos envolvia uma movimentação de animais aparentemente por distâncias maiores, que chegavam a percorrer de 200 a 300 quilômetros de distância (Bach, 2009BACH, Arnoldo Monteiro. Porcadeiros. Ponta Grossa: Pallotti, 2009.). Talvez essa menor distância percorrida pelos tocadores de porcos no oeste de Santa Catarina, devido à instalação local das fábricas de banha, tenha sido uma vantagem econômica desta última região, considerando-se que havia um grande desperdício energético nessas jornadas a pé.
O crescimento na produção de banha estava relacionado, conforme Corrêa (1970CORRÊA, Roberto Lobato. O sudoeste paranaense antes da colonização. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. 87-98, 1970.: 89), à expansão do mercado consumidor, “que o comércio importador não poderia suprir em função dos preços elevados dos artigos importados, possibilitando o aparecimento de unidades fabris produtoras”. A banha era um produto valorizado e os porcos amplamente disseminados na criação em comum na região, como os da raça Macau, Caruncho, Tatu, Piau, Canastra e Canastrão, variedades rústicas de origem ibérica e asiática e bem adaptadas às condições locais, apresentavam resistência a doenças e facilidade de reprodução, o que os tornava próprios para a produção de banha (Olinger, 1969OLINGER, Glauco. Siga êste livro e crie suínos. 3. ed. Florianópolis: [s. n.], 1969.). A banha, nesse contexto, apresentava um preço de venda superior ao da carne. É preciso considerar que não havia uma indústria de óleo vegetal que fosse capaz de concorrer com a banha, o que só passou a acontecer na década de 1970, com a ascensão econômica da indústria da soja, que envolvia fundamentalmente a produção de ração a partir da parte seca e proteica do grão. Por esse motivo, essas raças de suínos mencionadas, anteriores aos planos modernizadores dos anos 1960 e 1970, eram chamados pelas agroindústrias e pelos técnicos da extensão rural em geral como porcos “tipo banha”, o que passou a representar naquele contexto um tipo inferior, não desejável de animal (Carvalho, Provin e Valentini, 2016CARVALHO, Miguel Mundstock Xavier de; PROVIN, Bruno Griebler; VALENTINI, Renan Paganini. Uma leitura da modernização da suinocultura: história, agropecuária e bem-estar animal - Paraná, Brasil (1960-1980). Expedições: Teoria da História e Historiografia, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 119-140, 2016.). Além de ser um ingrediente culinário valorizado nesse período pré-modernização, e sem um substituto vegetal facilmente disponível, a banha era muito utilizada como conservador de carnes em várias regiões rurais, onde não havia energia elétrica até os anos 1970 e 1980. Utilizava-se latas de banha para mergulhar pedaços de carne de porco assada ou frita, onde se mantinha conservada por meses (Menasche; Schmitz, 2007MENASCHE, Renata; SCHMITZ, Leile Claudete. Agricultores de origem alemã, trabalho e vida: saberes e práticas em mudança em uma comunidade rural gaúcha. In: MENASCHE, Renata (org.). A agricultura familiar à mesa: saberes e práticas da alimentação no vale do Taquari. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.).
A colonização promoveu um surto na criação desses animais, porém, à medida que avançava, trazia também o declínio da criação suína em comum na floresta. Isso porque esta era, conforme Corrêa (1970CORRÊA, Roberto Lobato. O sudoeste paranaense antes da colonização. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. 87-98, 1970.: 93), “uma atividade de áreas de muito baixa densidade demográfica, e à medida que o povoamento de colonos progredia, essa atividade afastava-se para áreas mais remotas”. Verificou-se a partir de então um intenso processo de transformação da paisagem, promovido pelo aumento populacional e a introdução de novas formas de produção agrícola, que incidiram também nas formas de criação dos animais na região. Ao passo que as companhias colonizadoras comercializavam as terras e as florestas eram derrubadas, pela ação dos colonos e das madeireiras que se instalaram na região, algumas famílias criadoras passaram a sofrer com a redução dos espaços onde essa prática era possível, culminando no gradual fim dessa prática.
COLONIZAÇÃO E DEVASTAÇÃO DA FLORESTA
A colonização do oeste catarinense, da mesma forma que a colonização do Sul do Brasil em geral, era vista pelos grupos políticos e econômicos como uma forma de se ocupar território de modo racional para a exploração econômica do solo (Gregory, 2002GREGORY, Valdir. Eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no oeste do Paraná (1940-1970). Cascavel: Unioeste, 2002.). Até então, esse espaço, oficialmente visto como um “vazio demográfico” ou esparsamente ocupado, passou a ser alvo da atuação de diversas companhias colonizadoras que colocaram, conforme Nodari (2009NODARI, Eunice Sueli. Etnicidades renegociadas: práticas socioculturais no oeste de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009.: 34), “em prática a opção de uma migração dirigida a grupos específicos que se adequassem aos padrões estabelecidos pelo governo estadual e por elas próprias, ou seja, que povoassem e colonizassem a região ordeiramente”. Escolha que não incidiu sobre a população cabocla local, mas sim sobre os teuto e ítalo-brasileiros das colônias do Rio Grande do Sul. Esses colonos, conforme Brandt e Nodari (2011BRANDT, Marlon; NODARI, Eunice Sueli. Comunidades tradicionais da Floresta de Araucária de Santa Catarina: territorialidade e memória. História Unisinos, São Leopoldo, v. 15, n. 1, p. 80-90, 2011.: 86), “tanto teutos quanto ítalos, formavam grupos bastante fechados, dentro da sua identidade étnica com suas retóricas, símbolos e rituais através dos quais defendiam a manutenção e se, necessário, a renegociação das suas práticas socioculturais”. Assim, “a utilização do espaço até então habitado, principalmente, por caboclos sofreria modificações e remodelações com a chegada desses novos moradores, no decorrer dos anos” (Nodari, 2009NODARI, Eunice Sueli. Etnicidades renegociadas: práticas socioculturais no oeste de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009.: 57).
O choque demográfico promovido pela colonização, baseado em pequenas propriedades que possuíam em média 24,2 hectares ou 10 alqueires, promoveu uma série de impactos no modo de criação dos animais por parte da população cabocla por promover um maior uso do solo para as atividades agrícolas, que assumiam o principal papel na produção econômica dos colonos que aportavam na região. Na imagem da Mapa 3, que apresenta uma planta publicitária de venda de terrenos coloniais, é possível observar esse modelo de ocupação do solo realizado pelas companhias colonizadoras no Oeste catarinense:
Não tardou muito para aparecerem as primeiras situações de tensão e conflito envolvendo colonos e caboclos. Para além da questão da posse da terra, quando muitos caboclos posseiros passaram a ser expropriados pela ação das companhias colonizadoras que se apropriaram de imensas quantidades de terras concedidas pelo governo estadual, suas formas de uso da terra passaram a ser motivo de conflitos em razão da incompatibilidade com as intenções das companhias, conforme expõe Renk (2006RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico no Oeste catarinense. 2. ed. Chapecó: Argos, 2006.: 120-121):
Os conflitos se originariam por duas razões. A primeira, pela desvalorização, no mercado imobiliário, das terras próximas às dos intrusos, com a criação sem cerca […]. Interessava à companhia o fim desta prática. A segunda razão, em nível de atitudes, seria a utilização das terras, isto é, com a agricultura rotativa. Uma utilização mais “racional” permitiria que diversas famílias, em exploração familiar, se valessem da área com resultados que, do ponto de vista do colonizador, seriam, seguramente, melhores. Além disso, o argumento étnico, de origem, embasou-se no desperdício de terras, e no não saber aproveitá-las corretamente.
Com a derrubada das florestas, feita pelos colonos para a abertura de roças, a invasão de animais nas plantações confrontantes às terras de famílias caboclas não era rara. Aos caboclos, excluídos das políticas oficiais de povoamento territorial, restava a inclusão nessa nova lógica, não sem resistências, ou a exclusão. Os posseiros que legalizaram as terras acabaram por incorporar as novas lógicas de uso delas, fechando as criações, empregando o modo adotado pelos colonos. Já os que foram expropriados de suas terras pela ação das companhias colonizadoras passaram a atuar como mão de obra assalariada para empresas ervateiras ou madeireiras locais, na derrubada ou transporte da madeira por meio de balsas ou partiram para áreas mais remotas, reproduzindo suas formas tradicionais de uso da terra (Brandt; Cassaro; Naibo, 2021BRANDT, Marlon; CASSARO, Clóvis Alceu; NAIBO, Gerson Júnior. População cabocla em um espaço de fronteira: paisagem e uso comum da terra na Floresta Ombófila Mista de Santa Catarina (séculos XIX e XX). Caminhos de Geografia, Uberlândia, v. 22, n. 81, p. 217-234, 2021.).
Esses “vazios” dominados pela floresta em meio às áreas de colonização eram alvo de críticas na imprensa local. Em CruzeiroCRUZEIRO. Cruzeiro do Sul (Joaçaba), ano 1, n. 17, 11 mar. 1934. Acervo da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina., por exemplo, ainda eram vastas as florestas em 1934, quando Valentin P. Cuts, ajudante técnico do Ministério da Agricultura, tecia comentários críticos sobre a situação da agricultura local:
Quem viaja pela Estrada de Ferro que corre na margem esquerda do rio, fica estranhado: encontram-se quilômetros e mais quilômetros de mata virgem beirando a linha ferrea. Qualquer extrangeiro [sic] que viajar nesta zona tem que pensar: “Si na margem da via ferrea ha viveiros para tigres, o que pode-se encontrar à distância de 20, 30 quilômetros da linha?
Mais a Oeste, em Chapecó, as florestas, outrora destinadas a produção ervateira, eram agora vistas como espaços abandonados, uma vez que o setor entrou em declínio na década de 1930 devido à queda na exportação do produto para a Argentina, até então principal mercado comprador da erva-mate local (Ferrari, 2011FERRARI, Maristela. Interações transfronteiriças na zona de fronteira Brasil-Argentina: o Extremo-Oeste de Santa Catarina e Paraná e Província de Misiones (Século XX e XIX). 2011. 445 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.). Em uma reportagem sobre o declínio da economia ervateira no município, o jornal A Voz de Chapecó (1939bA VOZ DE CHAPECÓ. Chapecó, ano 1, n. 22, 3 dez. 1939. Acervo do Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina (CEOM).: 2) destaca que ainda existiam diversas áreas de florestas onde abundavam os ervais nativos, sendo possível conjeturar que nesses lugares ainda poderia ocorrer a existência da prática da criação de porcos soltos.
Os hervaes continuam frondosos por quasi toda extensão territorial do município.
Ao lado de todas as estradas, do Goio-En a Passo Bormann até a sede da comarca, indo para Guatambú, Caxambú para Xanxerê, Fachinal dos Guedes para Abelardo Luz e S. Domingos, Campo-Erê e Dionisio Cerqueira, a todos os distritos são matas e matas de hervaes, que se extendem a perder de vista, com algumas interrupções.
Se, para a população cabocla, a floresta era de extrema importância para a reprodução do manejo do porco criado solto, para os colonos que migravam para o Oeste, a floresta possuía outro significado, semelhante ao de seus antepassados das colônias do Rio Grande do Sul. A floresta, como destaca Bublitz (2008BUBLITZ, Juliana. Forasteiros na floresta subtropical: notas para uma história ambiental da colonização alemã no Rio Grande do Sul. Ambiente e Sociedade, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 323-340, 2008.: 335), era “mais do que um marco divisor, pois fronteiras também são linhas unificadoras. Ela foi, além disso, uma linha móvel. Divisora, à medida que demarcou dois espaços distintos: o civilizado, marcado pela agricultura colonial, e o inculto, marcado pela própria mata”. É preciso considerar também que o modelo colonizador baseado nessas pequenas propriedades e em famílias numerosas onde fatalmente a geração seguinte deveria sair em busca de novas terras, além da menor produtividade das sementes e da necessidade de rotação da terra para não esgotar a fertilidade, eram todos fatores que concorriam para a impossibilidade de conservação florestal (Waibel, 1949WAIBEL, Léo. Princípios da colonização europeia no Sul do Brasil. Revista Brasileira de Geografia , Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 159-222, 1949.).
Essa derrubada da floresta foi a responsável por um rápido processo de redução das áreas da FOM e da Floresta Estacional Decidual (FED) da região, ao passo que cresciam as lavouras, como é possível observar na Tabela 1. Em sua leitura, é possível observar o impacto das transformações na paisagem advindas da colonização, trazendo consigo o aumento da população e das áreas destinadas ao uso agropecuário na região, que compreendiam, nos Censos Demográficos da época as regiões da Zona do Oeste e a Zona do Rio do Peixe.
As florestas, a partir de então, passaram a ter cada vez menos presença na paisagem regional, ao passo que aumentavam as terras destinadas ao uso agropecuário. Percentualmente, em pouco mais de quatro décadas, as matas e florestas tiveram redução de cobertura de 73% para a Zona do Rio do Peixe, em 1920, para 31%, no final da década de 1950, enquanto o Oeste, com quase 80% de matas e florestas na mesma época, teve uma redução para 45% nessas quatro décadas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1952INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Recenseamento Geral do Brasil (1º de Setembro de 1940). Série Regional, parte XIX - Santa Catarina. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1952., 1956INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estado de Santa Catarina: censos econômicos. Série Regional, v. XXVII, Tomo II. Rio de Janeiro: [s. n.], 1956. e 1967INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Agrícola de 1960: Paraná e Santa Catarina. VII Recenseamento Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967. v. 2, t. 12, pt. 1.; Ministério da Agricultura, Industria e Commercio, 1923MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, INDUSTRIA E COMMERCIO. Recenseamento do Brazil (Realizado em 1º de setembro de 1920). Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1923. v. 3, pt. 1.). Lembrando-se que as referidas zonas do Oeste e do Rio do Peixe englobam tanto a FOM, geralmente acima dos 500 metros de altitude, e também áreas significativas da FED, localizada em altitudes menores, nos vales dos principais rios da região, conforme visto no Mapa 2. Essa redução percentual esconde ainda uma redução na qualidade da cobertura florestal, ou seja, de uma redução na extensão das florestas primárias, com árvores de maior porte e com maior potencial de preservação da biodiversidade, além de uma maior fragmentação florestal em áreas menores (Ribeiro et al., 2009RIBEIRO, Maria do Carmo et al. The Brazilian Atlantic Forest: how much is left, and how is the remaining forest distributed? Implications for conservation. Biological Conservation, Amsterdam, v. 142, n. 6, p. 1141-1153, 2009.).
No Vale do Rio do Peixe, a colonização foi viabilizada pela construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, que propiciou a formação de pequenos povoados em volta das estações ferroviárias (Valentini, 2015VALENTINI, Delmir José. Memórias da Lumber e da Guerra do Contestado. Porto Alegre: Letra e Vida; Chapecó: Ed. da UFFS, 2015.), enquanto mais a Oeste, a estratégia adotada por empresas colonizadoras foi a de formar núcleos coloniais ao longo das estradas abertas pelas próprias companhias, em média a cada 20 quilômetros (Rodrigues, 2020RODRIGUES, Adriano Vanderlei Michelotti. Era puro mato: o processo de desmatamento nas terras da Companhia Territorial Sul Brasil (1925-1978). 2020. 128 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, 2020.). Esses nascentes núcleos atraíram comerciantes que atuavam na compra da produção colonial de porcos, alfafa e erva-mate para venda em outras regiões do país e empresas como serrarias, pequenas oficinas mecânicas, moinhos e fabricantes de banha, derivados de carne e frigoríficos.
No caso das empresas ligadas à produção de banha e carne, sua produção visava ao atendimento local e ao mercado externo, sobretudo o eixo Rio-São Paulo, que passavam por um processo intenso de urbanização, provocando um aumento no consumo de derivados de carne e banha, facilitado, no caso do Vale do Rio do Peixe, pela existência da ferrovia. Muitas dessas empresas foram formadas a partir do capital comercial pois, a partir de 1940, passou a ser mais lucrativo realizar o abate de animais e a venda da banha e da carne suína do que o comércio de animais vivos para São Paulo (Pertile, 2008PERTILE, Noeli. Formação do espaço agroindustrial em Santa Catarina: o processo de produção de carnes do Oeste Catarinense. 2008. 322 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.). Outras surgiram a partir da inversão de capitais do setor madeireiro local (Alves, 2021ALVES, Luciano Adilio. O capital gerado pelo extrativismo da madeira e o surgimento da SAIC. Anais História em Debate, Chapecó, v. 4, n. 1, p. 1-5.).
Essa produção se beneficiava do fornecimento dos animais criados localmente, tanto os soltos pela população cabocla, cada vez mais distantes, quanto da produção realizada pelos colonos em áreas anteriormente dominadas pela floresta, porém, de modo confinado, cujo manejo era baseado no binômio milho-porco.
O BINÔMIO MILHO-PORCO: SIMPLIFICAÇÕES NA PAISAGEM
A dimensão dos lotes coloniais, aliada ao relevo íngreme das áreas de vale de rios como o Uruguai, Chapecó, Irani e do Peixe, restringia a criação do gado bovino. Dessa maneira, a criação de suínos em confinamento assumiu um importante papel na economia dos colonos da região, pois era compatível com a dimensão média das suas propriedades, desde que adotassem o binômio milho-porco. Esse binômio, contudo, não foi invenção dos colonos que se estabeleciam no Oeste, e já era observado em outras áreas de colonização, como na região de Urussanga e no Vale do Itajaí, da mesma forma que era identificado no meio-oeste norte-americano e na porção norte dos pampas argentinos, onde já se constatava “a eficácia do enlace entre o mais notável cereal do Novo Mundo e a espécie porcina” (Lago, 1988LAGO, Paulo Fernando. Gente da terra catarinense: desenvolvimento e educação ambiental. Florianópolis: UFSC; FCC; Lunardelli; Udesc, 1988.: 289).
Mesmo antes da colonização, o uso do milho já fazia parte do manejo dos animais pela população cabocla, servindo para a engorda antes da comercialização. O milho também era empregado pelos chamados safristas, que compravam os porcos de diversos criadores e reuniam os animais adquiridos em uma área fechada de dimensões variadas, geralmente maiores que as roças das “terras de plantar” da “roça cabocla”. Com o milharal desenvolvido, a porcada era solta para a engorda e posterior venda (Corrêa, 1970CORRÊA, Roberto Lobato. O sudoeste paranaense antes da colonização. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. 87-98, 1970.). Por isso, era comum encontrar produção de milho nas regiões criadoras de suínos.
Na região, é possível constatar a produção de milho em diversas imagens que retratam sua paisagem rural, inclusive nas áreas de grande declividade, como mostra a Figura 1.
A adoção desse binômio milho-porco tornou a presença de mangueiras, chiqueiros e plantações de milho elementos comuns na paisagem rural da região. Em uma imagem da década de 1940, na Figura 2, observa-se a criação de porcos em mangueiras, alimentados com milho e lavagem, mostrando ao fundo a floresta recém-devastada para a abertura de lavouras.
Porcos criados em mangueiras pelos colonos da região de Chapecó (Colônia Cella, década de 1940)
A produção agrícola dessas terras, conforme os censos desse período, eram principalmente de milho, feijão, trigo e mandioca, além de outras culturas em menor quantidade. A soja, atual carro-chefe da produção agrícola, só começaria a aparecer timidamente no censo de 1960, quando ainda constava no item “produção de outras culturas temporárias”, correspondendo a pouco mais de 1.500 toneladas, enquanto o milho, nessa mesma colheita, atingiu quase 388 mil toneladas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Agrícola de 1960: Paraná e Santa Catarina. VII Recenseamento Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967. v. 2, t. 12, pt. 1.). A área destinada a produção de milho, bem como o número de animais pode ser observado na Tabela 2, onde é possível acompanhar o gradual aumento de sua produção, acompanhando a expansão da suinocultura, esta praticada cada vez mais no modo confinado à medida que diminuíam as florestas.
A devastação promovida para a formação de lavouras, simplificando um ambiente outrora florestal, também tornou as áreas suscetíveis ao ataques de insetos considerados indesejáveis aos colonos, como saúvas ou gafanhotos. Em 1939, o jornal A Voz de Chapecó (1939aA VOZ DE CHAPECÓ. Chapecó, ano 1, n. 20, 19 nov. 1939. Acervo do Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina (CEOM).: 4) relatava, por exemplo, os problemas enfrentados pelos agricultores com as saúvas, sendo necessário o emprego, por parte da prefeitura, de máquinas e formicidas. Ataques de nuvens de gafanhotos passaram a ser registradas, por exemplo, na década de 1940. Em mensagem do governador Aderbal Ramos da Silva, em 1948 (Santa Catarina, 1949SANTA CATARINA. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 15 de abril de 1948 pelo Governador Aderbal Ramos da Silva. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado, 1949.), é mencionado o ataque dos insetos a lavouras de diferentes partes do estado, atingindo todo o Oeste em 1946-1947: “comunas intensamente agricultadas como Concórdia e Joaçaba, foram tão atingidas pelas invasões dos acrídios que se pode dizer, sem exagero, ser a totalidade dos seus territórios ‘uma só postura’”. Para seu combate, foram empregados produtos como o “Hexacloreto de Benzeno (Gamexame), por meio de máquinas povilhadeiras, a motor e manuais”. Além de produtos químicos com o uso de “povilhamento, pulverizações e iscas envenenadas”, barreiras físicas e lança-chamas foram empregados.
No contexto nacional, a entrada dos anos de 1950 dá início a uma série de transformações na economia, com a expansão da atividade industrial, a modernização agrícola, a elaboração de planos e projetos econômicos e políticas públicas que marcaram de forma acentuada os espaços rurais e urbanos brasileiros. Em Santa Catarina esse processo foi conduzido também pelo governo estadual, através do aporte financeiro via crédito, investimento em infraestrutura como estradas, pontes e energia elétrica, além da assistência ao produtor rural. Outras iniciativas visaram a melhoria dos animais através da criação de postos de suinocultura, onde eram distribuídos os reprodutores “especialmente ao pequeno criador”. No relatório da Secretaria de Agricultura de 1956 (Santa Catarina, 1957SANTA CATARINA. Relatório da Secretaria de Agricultura referente ao ano de 1956. Florianópolis, 1957. Acervo do Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.), por exemplo, menciona a existência desses postos no Oeste em Videira e Caçador.
É também a partir desse período que o setor agroindustrial começa a ascender em importância econômica no Oeste, ultrapassando a atividade madeireira. O ramo agroindustrial foi fortemente incentivado pelos governos estadual e federal na formação de um modelo de desenvolvimento que, conforme Silva e Hass (2017SILVA, Claiton Marcio da; HASS, Monica. “O Oeste Catarinense não pode parar aqui”: política, agroindústria e uma história do ideal de progresso em Chapecó (1950‐1969). Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 338‐374, 2017.), produziu um consenso político e econômico em torno da agroindústria. Construiu-se, então, todo um discurso em torno de uma “vocação” agrícola da região, que, na época, a recebeu a alcunha de “Celeiro Catarinense” (Andrioli, 2020ANDRIOLI, Marina. “Celeiro Catarinense”: a agricultura e a paisagem do oeste de Santa Catarina nos planos desenvolvimentistas (1968-1979). 2020, 106 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, 2020.). Créditos, subsídios, amparo tecnológico e suporte técnico passaram, assim, a beneficiar sobretudo esse ramo, o que possibilitou o crescimento de empresas como Sadia, Perdigão, Seara, Chapecó e Saule Pagnocelli, bem como a instalação, na década seguinte, de novos frigoríficos, como Reunidas Ouro, Safrita, Unifrico, Cooperativa Central Oeste Catarinense e Friscar (Goularti Filho, 2001GOULARTI FILHO, Alcides. Padrões de crescimento e diferenciação econômica em Santa Catarina. 2001. 391 f. Tese (Doutorado em economia) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A suinocultura esteve presente na região que compreende o atual Oeste catarinense desde quando esse espaço passou a ser ocupado por famílias que se instalaram nas florestas nos interstícios das fazendas pastoris, a partir da segunda metade do século XIX. Nessas terras, ocupadas em muitos casos sob o regime da posse, dedicavam-se à agricultura de subsistência, extração da erva-mate e à criação de animais, principalmente os porcos, onde a floresta era compartilhada entre diversos criadores vizinhos. Essa forma de uso da terra e dos seus recursos naturais era compatível com a conservação da floresta, ao menos morfologicamente, em muitos espaços por mais de um século, até o aporte de uma nova lógica socioespacial baseada na propriedade privada da terra, representada pela colonização e pela exploração madeireira.
A colonização, iniciada em fins da década de 1910 promoveu o aumento populacional local e inserção de práticas agrícolas incompatíveis com o costume da criação em comum dos porcos. As florestas, paulatinamente, cediam lugar às lavouras, e a criação dos animais pelos colonos, agora fechada, era realizada com o binômio milho-porco, que se tornou, a partir de então, a principal característica da paisagem rural da região. Produção animal que possuía como destino as pequenas fábricas de banha e frigoríficos que surgiam nos núcleos urbanos da região entre os anos de 1930 e 1940, muitos dos quais deram origem às agroindústrias que passaram a dominar a partir de fins da década de 1950 até os dias atuais a estruturação socioespacial do Oeste catarinense.
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A pesquisa contou com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) via Edital 12/2020 - UNI2020121000338, e da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) via Edital 89/GR/UFFS/2022, projetos PES-2022-0121 e PES-2022-0119.
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O termo caboclo, para Marquetti e Silva (2016MARQUETTI, Délcio; SILVA, Juraci Brandalize Lopes da. Cultura cabocla nas fronteiras do sul. In: RADIN, José Carlos Radin; VALENTINI, Delmir José; ZARTH Paulo Afonso (org.). História da Fronteira Sul. Chapecó: Ed. UFFS, 2016.: 109), designa “um dos habitantes das fronteiras do sul do Brasil, que aí vive desde o período anterior à chegada dos colonizadores de origem europeia”. Mesmo que, como aponta Machado (2004MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Editora da Unicamp, 2004.: 48), “não haja uma conotação étnica nesta palavra, frequentemente o caboclo era mestiço, muitas vezes negro. Mas a principal característica desta palavra é que distingue uma condição social e cultual, ou seja, são caboclos os homens pobres, pequenos lavradores posseiros, agregados ou peões”.
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Embora o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (2012INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Manual Técnico da Vegetação Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística , 2012.), denomine os Campos como “Estepes”, autores como Lindmann (1974LINDMANN, Carl Axel Magnus. A vegetação do Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.), Klein (1978KLEIN, Roberto Miguel. Mapa fitogeográfico do Estado de Santa Catarina. Itajaí: Herbário Barbosa Rodrigues, 1978.), Pillar (1997PILLAR, Valério de Patta; QUADROS, Fernando L. F. de. Grassland-forest boundaries in southern Brazil. Coenoses, Gorizia, v. 12, n. 1/2, p. 119-126, 1997.) e Overbeck (2007OVERBECK, Gerhard Ernst et. al. Brazil’s neglected biome: The South Brazilian Campos. Perspectives in Plant Ecology, Evolution and Systematics, Zurich, v. 9, n. 9, p. 101-116, 2007.), preferem referir-se a esta vegetação simplesmente como “Campos”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
26 Abr 2023 -
Aceito
03 Jul 2023