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Uso, mediação e construção de evidências pela burocracia federal: quem está e o que acontece na interface entre a gestão e a academia?

The use, mediation and construction of evidence by the federal bureaucracy: who is and what happens at the interface between management and academics?

Resumo:

A interface entre a gestão e a academia é um dos elementos constitutivos do campo de políticas públicas. O processo decisório se dá em contextos específicos que mobilizam distintos subsídios, dentre os quais o conhecimento científico. O artigo buscou compreender quem realiza e como se dá a intermediação entre gestores e pesquisadores no âmbito do governo federal brasileiro. Os métodos empregados foram uma pesquisa de survey e dois estudos de caso. Os resultados indicam burocratas intermediadores com elevada escolaridade, cujas atividades relacionais contribuem para o papel que desempenham. Observa-se uma postura ativa e de atuação conjunta entre gestores e pesquisadores para produzir conhecimento aplicado. Portanto, a pesquisa não corrobora a Teoria de Duas Comunidades e aponta para a existência de múltiplas comunidades epistêmicas, conformadas pelo contexto decisório.

Palavras-chave:
políticas públicas baseadas em evidências; evidência; knowledge brokerage; burocracia

Abstract:

The interface between management and academia is one of the constitutive elements of the field of public policies. The decision-making process takes place in specific contexts that mobilize different subsidies, including scientific knowledge. This article aimed to understand who performs and how the intermediation between managers and researchers occurs within the Brazilian federal government. The methods used were survey research and two case studies. The results point to intermediary bureaucrats with a high level of education, whose relational activities contribute to the role they play. There is an active posture and joint action between managers and researchers to produce applied knowledge. Therefore, the research does not corroborate the Theory of Two Communities and points to the existence of multiple epistemic communities, shaped by the decision-making context.

Keywords:
evidence-based public policies; evidence; knowledge brokerage; bureaucracy

Introdução

A realidade da Covid-19 trouxe ao centro do debate nacional e internacional questões sobre o papel do conhecimento científico e sobre o que embasa ou deveria embasar o processo de produção das políticas públicas. Em que pese a defesa do movimento das Políticas Públicas baseadas em Evidências (PPBE) pela intensificação do uso das fontes científicas - reconhecidas como evidências -, a literatura especializada tem problematizado os limites de acesso e uso dessas fontes (OLIVER et al., 2014OLIVER, Kathryn et al. A systematic review of barriers to and facilitators of the use of evidence by policymakers. BMC Health Services Research, v 14, n. 2, 2014. p. 1-12. Disponível em: https://doi.org/10.1186/1472-6963-14-2 Acesso em: 1 jan. 2023.
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), assim como os trabalhos empíricos têm demonstrado seu baixo uso por burocracias em diversos países (VESELÝ; OCHRANA; NEKOLA, 2018VESELÝ, Arnošt; OCHRANA, František; NEKOLA, Martin. When evidence is not taken for granted: the use and perception of “evidence” in the Czech Republic ministries. NISPAcee Journal of Public Administration and Policy, v. 11, n. 2, p. 219-234, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.2478/nispa-2018-0020 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; CHERNEY et al., 2015CHERNEY, Adrian et al. Use of academic social research by public officials exploring preferences and constraints that impact on research use. Evidence & Policy, v. 11, n. 2, p.169-188, 2015.; NEWMAN; CHERNEY; HEAD, 2017NEWMAN, Joshua; CHERNEY, Adrian; HEAD, Brian W. Policy capacity and evidence-based policy in the public service. Public Management Review, v. 19, n. 2, p. 157-174, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1080/14719037.2016.1148191 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; ENAP, 2018cENAP. Capacidades estatais para produção de políticas públicas: resultados do survey sobre serviço civil no Brasil. Cadernos Enap, v. 56. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública, 2018c. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3233 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; MACEDO; VIANA; NASCIMENTO, 2019MACEDO, Alex dos Santos; VIANA, Rafael; NASCIMENTO, Maricilene Isaira Baia. Capacidades analíticas no processo de produção de políticas públicas: quais fontes de evidências utilizam o serviço civil da administração pública federal? Administração Pública e Gestão Social, v. 11, n. 4, p. 1-22, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.21118/apgs.v11i4.7199 Acesso em: 1 jan. 2023.
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).

Este estudo faz parte de uma agenda de pesquisa que busca compreender as dinâmicas, condicionantes e resultados do uso e construção de recursos informacionais pela burocracia nas políticas federais. Esta agenda parte de duas proposições interligadas. A primeira, trazida da literatura crítica à PPBE, trata do reconhecimento de que outros fatores como valores, julgamentos e experiências, para além das evidências científicas, importam e influenciam a produção das políticas (FISCHER; GOTTWEIS, 2012FISCHER, Frank; GOTTWEIS, Herbert. The argumentative turn revisited: public policy as communicative practice. Durham & London: Duke University Press, 2012.; STONE, 2012STONE, Deborah. Policy paradox: the art of political decision making. New York: W.W. Norton & Co, 2012.; BOULLOSA, 2013BOULLOSA, Rosana. Mirando ao revés nas políticas públicas: notas sobre um percurso de pesquisa. Revista Pensamento & Realidade, v. 28, n. 3, p. 67-84, 2013.) e a segunda, refere-se à adoção de um modelo moderado de entendimento de evidências que sustenta que os contextos de atuação dos policymakers condicionam a escolha das fontes a serem por eles utilizadas (PINHEIRO, 2020PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: uma avaliação crítica. Boletim de Análise Político-Institucional, Rio de Janeiro, n. 24, p. 17-27, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.38116/bapi24art12020. Acesso em: 1 jan. 2023.
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; 2022PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: um modelo moderado de análise conceitual e avaliação crítica. In: KOGA, N. M. et al. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. p. 59-84.).

Achados prévios em pesquisas nacionais, embora confirmem o padrão internacional do uso reduzido de fontes científicas pelo universo dos burocratas federais brasileiros (MACEDO; VIANA; NASCIMENTO, 2019MACEDO, Alex dos Santos; VIANA, Rafael; NASCIMENTO, Maricilene Isaira Baia. Capacidades analíticas no processo de produção de políticas públicas: quais fontes de evidências utilizam o serviço civil da administração pública federal? Administração Pública e Gestão Social, v. 11, n. 4, p. 1-22, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.21118/apgs.v11i4.7199 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; KOGA, et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.; 2022KOGA, Natália Massaco et al. Uso de evidências pela burocracia dirigente do nível federal. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022.), apontam, entretanto, para a existência de um grupo que faz uso intensivo destas fontes. Procuramos, neste artigo, avançar nessas análises, utilizando a lente analítica do fenômeno do knowledge brokerage (MEYER, 2010MEYER, Morgan. The rise of the knowledge broker. Science Communication, v. 32, n. 1, p. 118-127, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1075547009359797 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; MACKILLOP; QUARMBY; DOWNE, 2019MACKILLOP, Eleanor; QUARMBY, Sarah; DOWNE, James. Does knowledge brokering facilitate evidence-based policy? A review of existing knowledge and an agenda for future research. Policy & Politics, v. 48, n. 2, p. 335-353, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1332/030557319X15740848311069 Acesso em: 1 jan. 2023.
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). Trata-se de um estudo quanti-quali que traça uma radiografia desses burocratas usuários e intermediadores do conhecimento científico, a partir de dados de um survey conduzido com cerca de 2.000 servidores federais lotados nos ministérios, e analisa dois estudos de caso - o do Cadastro Único para Programas Sociais e o do Governo Digital. Buscamos explorar as interfaces e as dinâmicas informacionais estabelecidas entre as comunidades da gestão pública e científica na produção das políticas federais. Com isso, esperamos contribuir para a análise não apenas do processo de uso e transferência do conhecimento científico pelos burocratas, mas também do processo de mediação e até mesmo produção de conhecimento gerado quando se estabelece a conexão entre burocracia e pesquisadores.

Vale esclarecer que, para os fins deste artigo, os termos “conhecimento”, “recursos informacionais” e “evidência” serão utilizados da seguinte forma: “conhecimento”, como conjunto de recursos informacionais adquirido pelos burocratas; “recursos informacionais” como subsídios informacionais que podem advir de diferentes fontes de produção do conhecimento como científica, da experiência pessoal, do próprio Estado, de stakeholders da política pública (participação social, beneficiários, mídia, grupos empresarias, etc.) e, por fim, “evidência” como recurso informacional que é reconhecido como evidente, claro, verificável dentro de uma determinada moldura contextual de uso, a qual se configura por elementos constitutivos distintos como, por exemplo, elementos políticos, epistemológicos e institucionais/organizacionais. Conforme proposto por Pinheiro (2020PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: uma avaliação crítica. Boletim de Análise Político-Institucional, Rio de Janeiro, n. 24, p. 17-27, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.38116/bapi24art12020. Acesso em: 1 jan. 2023.
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; 2022)PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: um modelo moderado de análise conceitual e avaliação crítica. In: KOGA, N. M. et al. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. p. 59-84., o entendimento de evidência neste artigo coloca-se numa posição moderada entre as abordagens positivistas e construtivistas da análise de políticas públicas.

Este artigo divide-se em seis seções, contando com esta breve introdução. A próxima seção discute a literatura de PPBE e de knowledge brokerage a fim de justificar o objeto desta pesquisa. A terceira seção trata da apresentação da metodologia aplicada. A quarta, detalha os resultados do survey e a quinta, da análise dos estudos de caso. A última seção, por fim, traz as principais considerações sobre os achados referentes ao uso, mediação e produção do conhecimento e procura apontar caminhos para futuras pesquisas.

A intermediação do conhecimento e o que sabemos sobre o que informa as políticas públicas no Brasil?

A Política Pública baseada em Evidências (PBBE), movimento que surge nos anos 1990 no Reino Unido, preconiza a ampliação do uso das melhores evidências científicas na tomada de decisão. Essa abordagem tem em seu cerne uma posição prescritiva quanto à superioridade da produção científica frente a outras fontes de conhecimento e defende uma hierarquia entre os tipos de evidências científicas, na qual revisões sistemáticas e experimentos controlados figurariam no topo (DAVIES; NUTLEY; SMITH, 2012DAVIES, Huw T. O.; NUTLEY, Sandra M.; SMITH, Peter C. (orgs.). What works? Evidence-based policy and practice in public services. Bristol: Policy Press Scholarship, 2012.; HAYNES et al, 2012HAYNES, Laura et al. Test, learn, adapt: developing public policy with randomized controlled trials. Cabinet Office Behaviour Insights Teams, p. 1-34, jun. 2012. Disponível em: Disponível em: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/62529/TLA-1906126.pdf Acesso em: 1 jan. 2023.
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; PEW-MACARTHUR FOUNDATION, 2014PEW-MACARTHUR FOUNDATION. Evidence-based policymaking: a guide for effective government, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.pewtrusts.org/~/media/assets/2014/11/evidencebasedpolicymakingaguideforeffectivegovernment.pdf Acesso em: 1 jan. 2023.
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).

Não obstante a aparente atratividade do discurso normativo da PPBE, especialmente em contextos de demandas decisórias certeiras e tempestivas, como a da Covid-19, a literatura especializada chama a atenção para as limitações dessa abordagem que, por um lado, desconsidera a importância da realidade prática e a dimensão política do policymaking e, por outro, sobrevaloriza a capacidade da racionalidade instrumental em oferecer soluções em quaisquer contextos, inclusive naqueles de alta complexidade e em que a definição dos problemas públicos ainda estão em disputa (CAIRNEY, 2012CAIRNEY, Paul. Understanding public policy: theories and issues. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2012.; PARKHURST, 2017PARKHURST, Justin. The politics of evidence: from evidence-based policy to the good governance of evidence. London; New York: Routledge; Taylor & Francis Group, 2017.).

Ademais, pesquisas empíricas nacionais e internacionais demostram que evidências científicas não estão entre as mais diretamente utilizadas pelos burocratas (VESELÝ; OCHRANA; NEKOLA, 2018VESELÝ, Arnošt; OCHRANA, František; NEKOLA, Martin. When evidence is not taken for granted: the use and perception of “evidence” in the Czech Republic ministries. NISPAcee Journal of Public Administration and Policy, v. 11, n. 2, p. 219-234, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.2478/nispa-2018-0020 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; CHERNEY et al., 2015CHERNEY, Adrian et al. Use of academic social research by public officials exploring preferences and constraints that impact on research use. Evidence & Policy, v. 11, n. 2, p.169-188, 2015.; NEWMAN; CHERNEY; HEAD, 2017NEWMAN, Joshua; CHERNEY, Adrian; HEAD, Brian W. Policy capacity and evidence-based policy in the public service. Public Management Review, v. 19, n. 2, p. 157-174, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1080/14719037.2016.1148191 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; ENAP, 2018cENAP. Capacidades estatais para produção de políticas públicas: resultados do survey sobre serviço civil no Brasil. Cadernos Enap, v. 56. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública, 2018c. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3233 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; MACEDO; VIANA; NASCIMENTO, 2019MACEDO, Alex dos Santos; VIANA, Rafael; NASCIMENTO, Maricilene Isaira Baia. Capacidades analíticas no processo de produção de políticas públicas: quais fontes de evidências utilizam o serviço civil da administração pública federal? Administração Pública e Gestão Social, v. 11, n. 4, p. 1-22, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.21118/apgs.v11i4.7199 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; KOGA et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.) e que sua atuação, inclusive em trabalhos analíticos, não se dá de forma isolada, mas em interação com stakeholders da política e, portanto, recebem influência e informações de outras fontes de conhecimento produzidas ou trazidas por esses grupos (COLEBATCH; HOPPE; NOORDEGRAAF, 2012COLEBATCH, Hal; HOPPE, Robert; NOORDEGRAAF, Mirko. Working for policy. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012.).

Ao procurarem reconhecer e analisar a complexidade da relação entre a técnica e a política no policymaking, parte importante da literatura da PPBE tem centrado esforços em entender os motivos do baixo uso instrumental do conhecimento científico, assim como em identificar obstáculos e facilitadores desse uso (FRENCH, 2019FRENCH, Richard. Is it time to give up on evidence-based policy? Four answers. Policy & Politics, v. 47, p. 151-168, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1332/030557318X15333033508220 Acesso em: 1 jan. 2023.
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).

Vários desses autores exploram os argumentos da Teoria das Duas Comunidades a qual sustenta que o baixo uso das evidências científicas deve-se aos desafios de interação entre cientistas e policymakers que “vivem em mundos apartados com valores, sistemas de recompensas e linguagens distintos e frequentemente conflitantes” (CAPLAN, 1979CAPLAN, Nathan. The two-communities theory and knowledge utilization. American Behavioral Scientist, v. 22, n. 3, p. 459-470, 1979., p. 459, tradução nossa). Enquanto a Academia atua em uma lógica de provisoriedade e acúmulo do conhecimento, a gestão demanda certeza e agilidade de resposta. A primeira calca-se na racionalidade e a segunda está em constante busca pela legitimidade. Esses aspectos constitutivos conflitantes gerariam, portanto, obstáculos para a relação tanto da parte dos produtores de conhecimento como de seus usuários. Alguns desses limitadores seriam, por exemplo, pesquisas que não respondem tempestivamente às demandas dos decisores ou que não trazem recomendações práticas, a falta de competência do corpo técnico para uso das pesquisas, a ausência de incentivos institucionais para o uso, entre outros.

Parte mais recente da literatura tem questionado o tradicional enfoque do debate nas razões pelas quais as evidências científicas são pouco utilizadas. Sugerem, em complementação, identificar quem utiliza e de que forma as evidências são utilizadas e, assim, direcionar a atenção para o que acontece quando as relações são estabelecidas “entre” as supostas duas comunidades (NEWMAN; CHERNEY; HEAD, 2016NEWMAN, Joshua; CHERNEY, Adrian; HEAD, Brian W. Do policy makers use academic research? Reexamining the “two communities” theory of research utilization. Public Administration Review, v. 76, n. 1, p. 24-32, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1111/puar.12464 Acesso em: 1 jan. 2023.
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). Dessa forma, torna-se possível não apenas identificar o lócus de absorção do conhecimento científico, mas também desmistificar a rigidez dessas fronteiras por meio da análise das formas em que acontecem os processos de absorção.

A literatura sobre o fenômeno de knowledge brokerage e intermediação do conhecimento tem contribuído para esse debate ao examinar os indivíduos, arranjos, instrumentos e organizações que mobilizam conhecimento e estabelecem conexões entre pesquisadores e suas várias audiências, entre elas, os policymakers. Diversas funções podem ser assumidas pelos knowledge brokers, tais como: a) identificar e localizar conhecimento; b) transmitir, redistribuir e disseminar o conhecimento; c) traduzir e criar linguagens comuns; d) reescalar, transformar e, por fim, produzir conhecimento próprio (MEYER, 2010MEYER, Morgan. The rise of the knowledge broker. Science Communication, v. 32, n. 1, p. 118-127, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1075547009359797 Acesso em: 1 jan. 2023.
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). Ademais, por conta de todas essas funções que o KB pode desempenhar, é importante reconhecer o seu potencial político em construir confiança e produzir legitimidade decisória e todos os riscos de seu mau uso e cooptação por interesses escusos.

Embora parte da literatura de knowledge brokerage ainda se dedique a propor modelos embasados na concepção de evidências da PPBE, isto é, como “fatos” e “verdades” herméticas a serem meramente transferidas, e tratem os burocratas como um grupo homogêneo e passivo que apenas recebe tais evidências, emergem mais recentemente trabalhos que partem do entendimento de que o conhecimento é constantemente construído e reconstruído, interpretado e contestado (MACKILLOP; QUARMBY; DOWNE, 2019MACKILLOP, Eleanor; QUARMBY, Sarah; DOWNE, James. Does knowledge brokering facilitate evidence-based policy? A review of existing knowledge and an agenda for future research. Policy & Politics, v. 48, n. 2, p. 335-353, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1332/030557319X15740848311069 Acesso em: 1 jan. 2023.
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; NEWMAN, 2011NEWMAN, Janet. Boundary troubles: working the academic-policy interface. Policy & Politics, v. 39, n. 4, p. 473-484, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1332/030557310X550150 Acesso em: 1 jan. 2023.
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) inclusive dentro das diversas camadas da burocracia (NEWMAN; CHERNEY; HEAD, 2017NEWMAN, Joshua; CHERNEY, Adrian; HEAD, Brian W. Policy capacity and evidence-based policy in the public service. Public Management Review, v. 19, n. 2, p. 157-174, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1080/14719037.2016.1148191 Acesso em: 1 jan. 2023.
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).

A agenda de pesquisa ampliada e este estudo em particular seguem essa última abordagem ao adotarem, em primeiro lugar, uma visão ampliada de evidências, a qual concebe que conhecimentos relevantes para as políticas públicas podem ser gerados em outros espaços além dos estritamente acadêmicos, inclusive na interação entre pesquisadores e burocratas. Em segundo lugar, ao adotarem uma lente de maior definição sobre a burocracia que permita perceber a pluralidade de contextos em que atuam na produção das políticas e possíveis lócus de dissolução da fronteira entre academia e gestão.

Partindo então de um modelo moderado de evidências e do interesse em examinar seu uso em diversos contextos de atuação da burocracia, verificamos em pesquisas prévias com o survey aplicado em 2019 junto à mesma amostra analisada neste artigo que os burocratas federais da Administração Direta utilizam uma variedade de fontes informacionais (KOGA et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.). Tais fontes puderam ser sintetizadas em quatro tipos em função de sua origem: a) internas, produzidas por entes estatais, tais como notas técnicas, sistemas informacionais, pareceres judiciais e recomendações dos entes do controle; b) científicas, como artigos, livros e relatórios de pesquisa; c) externas, oriundas de stakeholders da política como opinião de beneficiários, recomendações de instâncias participativas, informações de grupos de interesse e d) advindas da experiência dos próprios burocratas ou de seus colegas de trabalho.

Contudo, corroborando estudos empíricos internacionais e nacionais, os resultados demonstraram o uso direto reduzido de fontes científicas em detrimento do uso de fontes internas e experienciais. Por exemplo, 75,8% dos respondentes do survey responderam que se valem sempre ou frequentemente da consulta de colegas de trabalho, 62,6% de notas técnicas, 49,8% de sistemas informacionais e bases de dados, 49,4% de recomendações de órgãos do controle e apenas 30,4% de artigos e livros produzidos por pesquisadores e 19,7% de relatórios de pesquisa científica (KOGA et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.).

Em trabalho recente, ao explorarmos condicionantes9 9 O modelo explorou variáveis de: áreas de política pública, tipos de trabalho, capacidades analíticas (individual e organizacional) e características individuais dos burocratas (ocupação de cargos, atuação no Distrito Federal, idade e gênero). do uso dos quatro tipos de fontes informacionais pelos burocratas dos ministérios, identificamos associação entre o uso de fontes científicas e o desempenho de trabalhos do tipo analítico10 10 Caracterizado por atividades como: elaborar relatórios e notas técnicas, coletar e analisar dados relacionados à política pública, elaborar textos normativos, atender a demandas dos órgãos de controle e assessorar dirigentes. e relacional11 11 Caracterizado por atividades como: representar seu órgão junto a outros entes governamentais, consultar e atender grupos da sociedade, coordenar equipes, organizar eventos, contratar e validar estudos de avaliação de políticas públicas, captar e negociar recursos. ; assim como com o maior nível educacional dos burocratas e a existência de recursos organizacionais ou unidades especializadas para o acesso a pesquisas e estudos científicos nas organizações. Em outras palavras, o tipo de trabalho assim como as capacidades analíticas dos burocratas e das organizações estatais demonstraram-se relevantes para o emprego de fontes científicas na produção de políticas públicas. Contudo, além dessas relações, em alguma medida esperadas, os resultados indicaram associações expressivas entre o trabalho analítico e o emprego de fontes internas produzidas pela própria burocracia e fontes advindas da experiência dos burocratas, além das fontes científicas (KOGA et al, 2022KOGA, Natália Massaco et al. Uso de evidências pela burocracia dirigente do nível federal. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022.).

À luz da literatura discutida e dos dados empíricos apresentados, duas hipóteses são levantadas sobre o processo de absorção de conhecimento pelo Estado brasileiro. A primeira é a de que o trabalho de análise de políticas públicas não mobiliza as diferentes fontes informacionais separadamente, mas resulta da interação entre elas, especialmente, entre as fontes internas, experienciais e científicas. A segunda é a de que as fontes científicas são absorvidas pelos burocratas não apenas por meio do trabalho analítico stricto sensu, mas também no trabalho interacional com outros atores estatais e não estatais. Tais hipóteses sugerem, como apontado pela literatura mais recente de KB, que o emprego do conhecimento científico pode ocorrer de modo mais interativo, complexo e até mesmo frequente do que o exame apenas do uso direto e instrumental nos permite observar.

A fim de avançar no entendimento do processo de absorção de evidências e do fenômeno de KB no Estado brasileiro, o artigo analisa a dinâmica interacional entre produção, acesso e uso de evidências no policymaking, abordando as seguintes perguntas:

1. Qual é o perfil dos burocratas que fazem uso recorrente a pesquisas e estudos científicos? Qual é a dimensão desse grupo, que tipo de funções desempenham, com quem interagem e onde eles se encontram?

2. Como acontece a interação entre os burocratas e os pesquisadores? O que os burocratas buscam com essa interação? Que tipo de funções os burocratas exercem nessa relação? Quais tipos de produtos informacionais são gerados a partir dessas interações?

3. As fontes internas e experienciais, advindas da própria burocracia estatal, seriam intermediárias do conhecimento científico? Em que contextos os burocratas atuam como intermediários do conhecimento entre a gestão e a academia?

Metodologia

Esta pesquisa adota uma abordagem quanti-qualitativa. Por meio de análises estatísticas exploratórias de dados coletados via survey aplicado a burocratas federais, buscamos identificar aqueles que recorrem com elevada frequência a fontes científicas, assim como caracterizar seu perfil e contexto de uso, a fim de responder às questões do item 1 da seção acima. A opção pela aplicação do survey e análise exploratória deu-se em razão de sua potencialidade para captar práticas e percepções com representatividade estatística e a escassez de pesquisas sobre esse perfil de intermediários do conhecimento científico na gestão. Com a análise de dois estudos de caso, procuramos aprofundar a compreensão da atuação desse tipo de burocrata nas dinâmicas interacionais estabelecidas por eles e pesquisadores, assim como os motivos, tipos de uso e produtos dessas interações, como elencado no item 2 da seção anterior.

No que se refere ao survey, a coleta de dados ocorreu entre outubro e dezembro de 2019 por meio da aplicação de questionário autoadministrado online (Plataforma Lime Survey), enviado por e-mail a uma amostra aleatória previamente selecionada do público-alvo da pesquisa que consistia nos 96.534 servidores civis lotados em todos os órgãos superiores da administração direta, isto é, ministérios e Presidência da República, englobando os servidores públicos civis estatutários e ocupantes de cargos em comissão. A amostragem foi realizada por meio da técnica de estratificação simples. Essa técnica consiste em se subdividir uma população em subpopulações ou estratos, para se selecionar uma amostra aleatória simples de cada um deles. A referência para montagem dos estratos foi unicamente o órgão/ministério da administração direta. A primeira amostra selecionada continha 6.055 servidores. Foram então realizadas mais duas rodadas de seleção utilizando exatamente o mesmo método, chegando ao número final de 18.165 servidores selecionados.12 12 O processo de amostragem para este survey teve de lidar com um impedimento técnico decisivo, que foi a indisponibilidade dos dados atualizados relativos à unidade de lotação e contato de e-mail dos servidores da Administração Pública Federal para o ano de 2019. Desse modo, optamos por utilizar exatamente a mesma amostra selecionada em survey anterior da Enap sobre o serviço civil no Brasil (ENAP, 2018c). A utilização da amostra anterior solucionou a questão da falta dos dados - sobretudo, os de contato - dos servidores, indispensáveis para a realização da pesquisa. Também permitiu algum grau de comparabilidade entre resultados dos dois surveys, visto que algumas perguntas do survey de 2017 foram replicadas neste estudo. Ao fim do processo, foram obtidos 2.180 registros completos válidos, o que representa uma taxa de resposta de 12% da amostra triplicada (36% da amostra original). Uma comparação entre a distribuição dos dados de survey e os populacionais pode ser vista no Apêndice A.

O questionário aplicado continha seis sessões temáticas e procurava identificar: a) perfil funcional dos respondentes, mapeando o tipo de vínculo com a administração, a carreira, o ministério de lotação, entre outros; b) a área de atuação no campo da política pública; c) as principais atividades e funções desempenhadas; d) padrões de acesso e utilização de diferentes tipos de informação (com foco no que se designou como “evidências científicas”), contextos individuais e organizacionais que condicionam os usos e os não-usos dessas informações, entre outros; e) conhecimentos, habilidades e valores dos respondentes; f) perfil sociodemográfico (sexo, raça/etnia, escolaridade, etc.).

Nesta pesquisa, as variáveis acima são analisadas para um recorte que incorpora apenas os burocratas que afirmaram utilizar sempre ou frequentemente os seguintes tipos de informação: artigos científicos, capítulos ou livros produzidos por pesquisadores ou relatórios de pesquisa científica (produtos de consultoria de pesquisa, textos de discussão do IPEA, etc.).

Nos estudos de caso selecionados do Cadastro Único para Programas Sociais (Cadastro) e da Plataforma GOV.BR foram adotadas técnicas qualitativas com o intuito de reconstituir os processos de interações entre academia e gestão para transferência, mediação e produção de conhecimento na formulação, implementação e desenvolvimento desses contextos de política pública. Desse modo, foram feitas: a) análises documentais dos registros oficiais produzidos pela Administração Federal, bem como notas técnicas, relatórios de gestão, relatórios de pesquisas e trabalhos científicos produzidos tanto por pesquisadores como por burocratas ao longo das etapas de criação e gestão dessas políticas públicas; b) 15 entrevistas semiestruturadas realizadas (6 entrevistas realizadas no caso do Cadastro Único e 9 no da Plataforma GOV.BR), conforme roteiros no Apêndice B, com servidores públicos federais que participaram diretamente nos processos de criação e gestão desses dois programas.

Os casos do Cadastro e Plataforma GOV.BR foram selecionados pelos critérios a seguir. Em primeiro lugar, buscamos identificar casos que tivessem maior probabilidade de representar um contexto institucional típico da burocracia federal na produção de análise de políticas públicas (GERRING, 2008GERRING, John. Case selection for case‐study analysis: qualitative and quantitative techniques In: BOX-STEFFENSMEIER, J. M.; BRADY, H. E.; COLLIER, D. (eds.). The Oxford handbook of political methodology. Oxford: Oxford Academic, 2008. p. 645-684. Disponível em: https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199286546.003.0028 Acesso em: 1 jan. 2023.
https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
). Trabalhos prévios (SCHMIDT et al., 2022SCHMIDT, Flávia de Holanda et al. O uso das evidências nas políticas brasileiras de ciência, tecnologia e inovação. In: KOGA, N. M. et al. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. p. 771-804.; VIEIRA; PIOLA; SERVO, 2022VIEIRA, Fabiola Sulpino; PIOLA, Sérgio Francisco; SERVO, Luciana Mendes Santos. Avaliação e decisão sobre tecnologias em saúde no SUS: uma análise de fatores de influência sobre o processo decisório. In: KOGA, N. M. et al. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. p. 609-652.), assim como os resultados do Gráfico 1, demonstram que os dois casos não se encontram nem entre aqueles de mais elevado, nem entre os de menor uso de evidências científicas e interação com o ambiente científico. Dentre os casos típicos, procuramos selecionar políticas de relevância para os governos (FILGUEIRAS; CIRENO; PALOTTI, 2019FILGUEIRAS, Fernando; CIRENO, Flávio; PALOTTI, Pedro. Digital transformation and public service delivery in Brazil. Latin American Policy, v. 10, n. 2, p. 195-219, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1111/lamp.12169 Acesso em: 1 jan. 2023.
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
; DIREITO et al., 2016DIREITO, Denise et al. O Cadastro Único como instrumento de articulação de políticas sociais. Brasília: Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), 2016. [Working Paper 145]. Disponível em: Disponível em: https://ipcig.org/pt-br/publication/27962?language_content_entity=pt-br Acesso em: 1 jan. 2023.
https://ipcig.org/pt-br/publication/2796...
; 2018DIREITO, Denise et al. As possibilidades e os limites do Cadastro Único como mecanismo de coordenação federativa e de intersetorialidade de políticas públicas. In: XIMENES, D. A. (org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília: ENAP, 2018. p. 97-124.) e protagonismo da burocracia na implementação (HECKERT, 2018HECKERT, Cristiano Rocha. Casos SEGES: renovando a gestão pública. Plataforma de cidadania digital. Brasília: Enap/SEGES, 2018.; OLIVEIRA; LOTTA, 2015OLIVEIRA, Vanessa; LOTTA, Gabriela. Implementando uma inovação: a burocracia de médio escalão do Programa Bolsa Família. In: CAVALCANTE, P.; LOTTA, G. (orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: Enap, 2015. p. 115-142.), a fim de que fosse possível examinar dinâmicas interacionais de mobilização de capacidades e recursos e de atuação de burocratas com o perfil oferecido pelo survey. E, por fim, por serem políticas de áreas distintas (social e econômica13 13 O Cadastro Único do Programa Bolsa Família é uma tecnologia desenvolvida e operada pelo ministério a cargo do Programa Bolsa Família (Desenvolvimento Social/Cidadania), no âmbito das políticas sociais; os processos de transformação digital dos serviços públicos federais foram idealizados e fomentados a partir de ministério da área econômica (Planejamento/Economia/Gestão Pública), com apoio do centro de governo (Casa Civil e Presidência da República). ), a seleção possibilita comparar semelhanças e levantar hipóteses sobre características contextuais específicas das duas áreas que possam explicar eventuais diferenças.

Radiografia dos burocratas federais que recorrem ao conhecimento científico

Ao longo desta seção, serão apresentadas estatísticas descritivas de dados do survey com o objetivo de construir um perfil dos servidores públicos federais que fazem uso recorrente de pesquisas e estudos científicos, bem como de explorar o seu contexto de atuação profissional.14 14 É importante destacar que as estatísticas apresentadas são descritivas, sem nenhuma pretensão inferencial. Não foram realizados testes de diferenças de médias, de modo que algumas das diferenças encontradas entre categorias podem não ser estatisticamente significativas. Os dados apresentados retratam as características funcionais desses burocratas (ministério de exercício, carreira atual, cargo em comissão), o nível de escolaridade, as redes de interação, as atividades desempenhadas no âmbito das políticas públicas, além de fatores individuais e organizacionais relacionados ao uso de evidências científicas.

Dos 2.180 participantes do survey, 664 (30,5%) afirmaram que utilizavam artigos, capítulos ou livros científicos sempre ou frequentemente (Tabela 1). Já com relação aos relatórios de pesquisa, apenas 431 (19,8%) assinalaram as opções sempre ou frequentemente. Quando justapostos, esses burocratas somam 719 (33%) observações. Ou seja, embora as pesquisas anteriores tenham demonstrado um uso inferior de fontes científicas se comparado a outras fontes informacionais pelo grupo ampliado dos ministérios, esses dados demonstram que há um grupo significativo de 33% desses burocratas que recorre a fontes científicas com alta frequência.

Tabela 1.
Frequência de utilização dos tipos de informação1(Percentual e número)

No que se refere à variável “Ministério/órgão superior de exercício”, optamos por analisar a presença desses burocratas com base na sua proporção dentro de cada ministério. Desse modo, o Gráfico 1 traz uma classificação dos órgãos superiores de acordo com o índice relativo de burocratas que fazem uso frequente de evidências científicas. A média geral da variável é de 32,9%.

Como pode-se notar, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações destaca-se dos demais por apresentar um índice de presença bem mais elevado, duas vezes maior do que o índice geral. Além disso, é o único ministério que possui mais de 50% de burocratas que utilizam evidências científicas com frequência. Esses dados vão ao encontro de resultados de outras pesquisas que apontam as especificidades dos burocratas desse órgão que, além de atuarem na temática de desenvolvimento científico e tecnológico, possuem alta titulação e são incentivados em suas regras de progressão funcional a participarem de programas de pós-graduação (SCHMIDT et al., 2022SCHMIDT, Flávia de Holanda et al. O uso das evidências nas políticas brasileiras de ciência, tecnologia e inovação. In: KOGA, N. M. et al. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. p. 771-804.).

Vale destacar também o importante índice de presença no Ministério da Justiça e Segurança Pública, com 42,1% de burocratas com esse perfil. Esse resultado talvez decorra da existência de produção significativa de avaliações no campo e da mobilização crescente de evidências científicas nos debates para políticas de segurança pública, como as de combate às drogas, desarmamento, entre outras, embora de forma atrasada em comparação a outros países (KOPITTKE, 2019KOPITTKE, Alberto Lieblin. Segurança pública baseada em evidências: a revolução das evidências na prevenção à violência no Brasil e no mundo. 2019. 414 p. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.). O mesmo pode ser aventado em relação a áreas em que há maior acúmulo de avaliações e produção científica e de maior frequência de uso do argumento científico no debate público como as áreas da Saúde e Meio Ambiente.

Gráfico 1.
Índice de burocratas que utilizam evidências científicas por ministério1,2(Percentual)

Chama a atenção, no entanto, que o Ministério da Infraestrutura ocupe um dos últimos lugares na classificação. Pesquisas sobre a burocratas da infraestrutura apontam para a titulação elevada e incentivos institucionais para o uso de conhecimento científico (FARIAS, 2017FARIAS, Josivania. O apoio setorial à absorção e à aplicação do conhecimento na área de infraestrutura brasileira: um estudo sob a abordagem exploration e exploitation. In: PAULA et al. (orgs.) Burocracia federal de infraestrutura econômica: reflexões sobre capacidades estatais. Brasília: Ipea, 2017. p. 353-390.). A posição desse ministério no ranking desse índice pode decorrer, no entanto, do fato de que, no survey, estão representados apenas burocratas do ministério e não das entidades da Administração Indireta onde talvez estejam os intermediadores do conhecimento científico. No caso da Casa Civil e demais órgãos da Presidência, os Ns foram muito baixos, de modo que não é possível assegurar a solidez dos índices apresentados. De qualquer forma, também desperta a atenção que eles ocupem as últimas posições.

Outro dado interessante, que corrobora o quadro encontrado na variável “órgão de exercício”, diz respeito às carreiras dos burocratas. As carreiras da área de Ciência e Tecnologia se destacam pela presença majoritária do grupo que utiliza evidências científicas. O cargo de Pesquisador apresentou um índice de 100% de respondentes pertencentes a esse grupo, enquanto o de Tecnologista apresentou 78,6%. O cargo de Analista em Ciência e Tecnologia, por sua vez, obteve um índice de 47,4%, que pode ser considerado elevado em comparação com a média geral de 34% (na variável).

As carreiras de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e de Diplomata também se sobressaem com 53% e 51% dos respondentes pertencendo ao grupo que faz uso frequente de evidências científicas. Outras carreiras que devem ser mencionadas por terem apresentado índices superiores à média geral são: Analista Ambiental (46,3%), Técnico em Assuntos Educacionais (44,4%) e Analista de Planejamento e Orçamento (44%). Estes resultados apontam para um perfil de analista que não atua apenas na busca e mobilização de conhecimento, mas que também assume outras responsabilidades de cunho relacional voltadas à gestão dessas políticas públicas.

No que concerne à variável “Cargo de Direção e Assessoramento”, é importante mencionar que o índice de burocratas que utilizam evidências científicas é o mesmo tanto entre aqueles que ocupam quanto entre aqueles que não ocupam cargos de direção.

Contudo, quando os dados são desagregados entre os diferentes níveis de cargos, é possível notar que dois deles se destacam dos demais. Enquanto quase todos os níveis apresentam índices próximos ou abaixo da média geral para a variável (33%), os cargos DAS-4 e FCPE-4 possuem respectivamente 41% e 39% de ocupantes que pertencem ao grupo que usa evidências científicas com frequência. Novamente o aspecto técnico-relacional se destaca no perfil desses burocratas. Isto é, os DAS 4 e FCPE 4 compõem os chamados burocratas de médio escalão que têm como função preponderante atuar na interface entre as diferentes camadas da burocracia e os decisores políticos, como filtros e viabilizadores de recursos de todas as naturezas, dentre eles os recursos informacionais.

Uma variável que tem sido amplamente apontada pela literatura como determinante na utilização de evidências científicas é a escolaridade dos servidores públicos (NEWMAN; CHERNEY; HEAD, 2017NEWMAN, Joshua; CHERNEY, Adrian; HEAD, Brian W. Policy capacity and evidence-based policy in the public service. Public Management Review, v. 19, n. 2, p. 157-174, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1080/14719037.2016.1148191 Acesso em: 1 jan. 2023.
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). Como é possível observar no Gráfico 2, quanto maior o nível de escolaridade, maior o índice de burocratas que pertencem ao perfil usuário de evidências científicas. A média geral para a variável é de 33%.

Destaque para os 80,4% de servidores com doutorado/pós-doutorado que se enquadram nesse perfil. Entre aqueles que possuem mestrado, o índice de 46,3% também é expressivo porque está bem acima dos demais níveis.

Gráfico 2.
Índice de burocratas que utilizam evidências científicas por nível de escolaridade1(Percentual)

Mais um dado importante levantado refere-se aos atores e organizações com os quais o burocrata interage em seu trabalho. Como indicado no Gráfico 3, quanto maior a frequência de “interação com Universidades, institutos de pesquisa, professores universitários e pesquisadores individuais”, maior o índice de burocratas que utilizam evidências científicas.

Entre os burocratas que sempre interagem com esses atores, a grande maioria (75%) tem como característica associada o uso frequente de evidências científicas. Entre aqueles que interagem frequentemente, o índice também é elevado: 59,5%. Por outro lado, entre os burocratas que nunca interagem com eles, somente 15,7% enquadra-se no perfil de usuário de evidências científicas. A média geral para a variável é de 34%.

Gráfico 3.
Índice de burocratas que utilizam evidências científicas por nível de interação com universidades, institutos de pesquisa, professores universitários e pesquisadores individuais1(Percentual)

Parte da literatura sobre PPBE tem apontado relações importantes entre o tipo de trabalho que o servidor público executa e os recursos e capacidades que eles mobilizam (COLEBATCH; HOPPE; NOORDEGRAAF, 2012COLEBATCH, Hal; HOPPE, Robert; NOORDEGRAAF, Mirko. Working for policy. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012.; FILGUEIRAS; CIRENO; PALOTTI, 2019FILGUEIRAS, Fernando; CIRENO, Flávio; PALOTTI, Pedro. Digital transformation and public service delivery in Brazil. Latin American Policy, v. 10, n. 2, p. 195-219, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1111/lamp.12169 Acesso em: 1 jan. 2023.
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
). Diferentes análises que realizamos a partir dos dados do survey também demonstraram a importância desse fator, inclusive apontando para as correlações estatísticas existentes entre tipos de trabalho e perfis de informação utilizados - entre eles, o perfil científico e acadêmico (KOGA et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.; 2021KOGA, Natália Massaco et al. The use of multiple sources of information in public policy: the Brazilian federal bureaucracy. RAP - Revista Brasileira de Administração Pública, v. 55, p. 1164-1189, 2021.).

Assim, no presente estudo, também exploramos a variável “Atividades e funções desempenhadas no trabalho de política pública” com o objetivo de identificar se o grupo que utiliza evidências científicas realiza mais ou menos certos tipos de trabalho (em comparação com o grupo que não utiliza).

Das quatorze atividades listadas, pelo menos sete apresentaram variação considerável, com o grupo que utiliza evidências científicas realizando essas atividades com mais frequência do que o grupo que não utiliza. Aquelas que apresentaram as maiores variações (mais de 20% de acréscimo nas marcações “sempre” ou “frequentemente”) foram: i) “coletar e analisar dados e informações relacionadas à política pública”; ii) “representar seu órgão junto a outros entes governamentais”; iii) “consultar e atender grupos interessados da sociedade”; iv) “organizar eventos”. As outras três atividades que apresentaram acréscimo (entre 10 e 15% de diferença nas marcações “sempre” ou “frequentemente”) foram: v) “Contratar e validar estudos de avaliação da política pública”; vi) “Captar e negociar recursos financeiros para viabilizar ações”; vii) “Realizar assessoramento de dirigentes”. As tendências encontradas são corroboradas por modelagem de equações estruturais (MEE) realizada em estudo anterior (KOGA et al, 2022KOGA, Natália Massaco et al. Uso de evidências pela burocracia dirigente do nível federal. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022.). Na ocasião, foram identificadas correlações de caminho positivo entre atividades de cunho “analítico” (como as atividades i e vii) e “relacional” (como as atividades ii, iii, iv, v e vi) 15 15 Conforme descrito em KOGA et al (2020), a variável “Tipos de trabalho na política pública” foi previamente submetida à técnica de análise fatorial com o intuito de detectar perfis comuns nas respostas obtidas para os quatorze tipos de trabalho apresentados aos respondentes. Na ocasião, foi possível delimitar quatro perfis específicos: Analítico/Controle, Relacional, Gerenciamento/Fiscalização e Administrativo. e informações de perfil acadêmico-científico.16 16 Na mesma oportunidade, a variável “Tipos de informação” também foi submetida à técnica de análise fatorial (KOGA et al, 2020). A partir das respostas obtidas para os quinze tipos de informação apresentados, também foi possível delimitar quatro perfis específicos: Interno, Externo, Acadêmico-Científico e Experiencial. A MEE também apontava que a correlação com o tipo “relacional” é mais forte do que com o tipo “analítico”.

Por fim, também examinamos variáveis do survey relativas a aspectos individuais e organizacionais, como tempo de leitura disponível ou recursos organizacionais para utilização de pesquisa, que poderiam estar associados a um maior uso de evidências científicas.

Em primeiro lugar, vale destacar que todas as seis variáveis17 17 Os seis itens apresentados eram: i) “Durante minha jornada de trabalho, há tempo suficiente para leitura de pesquisas científicas”; ii) “No meu trabalho, quando preciso tomar uma decisão, prefiro recorrer a estudos científicos”; iii) “Na minha rotina de trabalho, eu faço pessoalmente esforços para entrar em contato com pesquisadores”; iv) “Assessores e servidores da minha organização são encorajados pelos dirigentes a utilizar resultados de pesquisas”; v) “Minha organização oferece oportunidades para construir relacionamentos com pesquisadores”; vi) “Minha organização dispõe de meios e recursos suficientes para obter informações produzidas por estudos científicos”. O respondente poderia marcar 1-“Nunca”, 2-“Raramente”, 3-“Eventualmente”, 4-“Frequentemente” e 5-“Sempre”. analisadas apresentaram acréscimo bastante elevado no grupo que utiliza evidências científicas. Ou seja, elas estão bem mais presentes (entre 15 e 30% de aumento nas marcações “sempre” ou “frequentemente”) no contexto do grupo usuário de evidências.

Entre os aspectos individuais, destaque para as variáveis “Na minha rotina de trabalho, eu faço pessoalmente esforços para entrar em contato com pesquisadores e acadêmicos” e “No meu trabalho, quando preciso tomar uma decisão, prefiro recorrer a pesquisas e estudos científicos do que a outras fontes de informação”, com ambas apresentando 33% de aumento em comparação com o grupo que não utiliza evidências.

Com relação aos aspectos organizacionais, as variáveis que se mostraram mais relevantes foram “Minha organização oferece oportunidades para construir relacionamentos com pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa” (21,3% de aumento) e “Assessores e servidores da minha organização são encorajados pelos dirigentes a utilizar resultados de pesquisas e estudos científicos” (20% de aumento).

Os dados sobre os aspectos individuais e organizacionais apontam para uma maior relevância dos esforços dos burocratas do que de iniciativas organizacionais para que haja um uso expressivo de fontes científicas. Esta conclusão deve ser feita tendo em conta o baixo incentivo institucional identificado na maior parte dos órgãos.

Ao considerarmos que aqueles que usam fontes científicas em seu dia a dia podem viabilizar de alguma forma a absorção desse tipo de conhecimento na produção das políticas, é possível levantar a hipótese de que dentro desse grupo de burocratas que utiliza evidências com alta incidência há ou pode se incentivar a atuação de intermediários do conhecimento, knowledge brokers.

Esses potenciais burocratas intermediadores, além de ter alta escolaridade, já atuam não exclusivamente em funções analíticas, mas concomitantemente e intensamente em atividades relacionais, como em carreiras com essa natureza ou em cargos em comissão de nível de média direção e assessoramento. Parte significativa encontra-se em áreas de políticas públicas que já têm acúmulo de produção de avaliações e evidências científicas ou nas quais esse tipo de fonte informacional já é mais tradicionalmente utilizado nos debates públicos. Embora os incentivos e condições institucionais para o uso do conhecimento científico sejam relevantes, esta não parece ser a realidade da maior parte dos burocratas intermediários que se valem fortemente de seus esforços individuais para fazer uso das fontes científicas.

Analisando os encontros entre burocratas e pesquisadores

Caso do Cadastro Único para Programas Sociais

O estudo de caso buscou identificar e analisar a interação entre a burocracia e a comunidade científica em contextos decisórios relevantes na formatação do desenho e operação do Cadastro Único para Programas Sociais, instrumento de política social, previsto pelo Decreto n. 5707/01 para exercer duas finalidades principais. A primeira seria a de caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda para seleção de beneficiários de programas sociais e a segunda para servir de meio de integração desses programas (BRASIL, 2007BRASIL. Decreto no. 6.135, de 26 de junho de 2007. Dispõe sobre o Cadastro Único para programas sociais do governo federal e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 jun. 2007.).

Ao longo de suas duas décadas de existência, o Cadastro Único tornou-se uma das principais bases de dados de beneficiários para mais de duas dúzias de programas sociais federais como Bolsa Família, Tarifa Social de Energia Elétrica e Minha Casa Minha Vida. Atualmente, o Cadastro reúne um amplo espectro de informações de cerca de 30 milhões de famílias brasileiras com rendimento per capita menor ou igual a 1/2 salário mínimo. Em que pese a relevância do Cadastro como registro administrativo, seu uso por diversos atores estatais nesse período tornou-o mais do que uma base de dados. Diversos papéis adicionais foram assumidos tais como o de constituição de um sistema de articulação interfederativa que abrange todos os municípios brasileiros, o de uma rede de interlocução de programas usuários, o de mecanismo de monitoramento e assessoramento de programas sociais e, por fim, de meio de visibilização e caracterização da pobreza e das vulnerabilidades sociais não apenas pelo Estado, mas também pela comunidade científica e a sociedade em geral (KOGA et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.).

A literatura no campo já apontou especificidades da burocracia de médio escalão da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC), gestora do Cadastro Único até 2018, quanto à sua posição intermediária não apenas entre a alta direção e as equipes, mas também entre a técnica e política (OLIVEIRA; LOTTA, 2015OLIVEIRA, Vanessa; LOTTA, Gabriela. Implementando uma inovação: a burocracia de médio escalão do Programa Bolsa Família. In: CAVALCANTE, P.; LOTTA, G. (orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: Enap, 2015. p. 115-142.). A expertise e experiência na gestão de políticas, assim como as capacidades de conexão com as discussões políticas e de tradução entre os dois campos, credenciaria esta “burocracia articuladora” a atuar nessa interface (OLIVEIRA; LOTTA, 2015OLIVEIRA, Vanessa; LOTTA, Gabriela. Implementando uma inovação: a burocracia de médio escalão do Programa Bolsa Família. In: CAVALCANTE, P.; LOTTA, G. (orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: Enap, 2015. p. 115-142.).

Embora o fenômeno da intermediação entre as áreas técnicas e a alta direção da Senarc já tenha sido bastante explorada na literatura, ainda há poucas análises sobre a relação dessa burocracia articuladora e a comunidade científica. Assim, buscamos neste estudo identificar se houve interações entre burocratas da gestão do Cadastro e pesquisadores, no período de criação, implementação e principais mudanças de funcionamento no Cadastro Único.

As entrevistas e a análise documental demonstraram que interações ocorreram em diversas ocasiões. Algumas das principais temáticas que suscitaram essas interações referem-se às definições sobre: a) dimensões de vulnerabilidades e tipos de informações a serem coletadas pelos formulários de cadastramento (ex: composição familiar, trabalho e renda, características domiciliares, escolaridade, deficiência, entre outros); b) forma de coleta dos dados (por autodeclaração das próprias famílias ou por modelo preditivo); e c) recorte de renda para estimativas de público.

As principais interações identificadas foram com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Essas interações aconteceram não de forma pontual, unidirecional e de absorção imediata e instrumental do conhecimento produzido pelos pesquisadores, como geralmente idealizado numa perspectiva estrita da abordagem da PPBE. Ao contrário, as experiências de interação aconteceram de forma dialogada, em diferentes formatos e momentos, gerando relações de mais longa duração entre burocratas, dirigentes técnicos e pesquisadores especialistas nas questões relativas ao Cadastro e ao tema da pobreza:

O IPEA e IBGE foram essenciais porque foram grandes parceiros de reformulação do cadastro único. O IPEA foi essencial para todo desenvolvimento do cadastro e do Bolsa Família. A própria percepção e identificação de que a renda dos mais pobres é muito volátil e que a linha do Bolsa Família precisa ser mais ampla do que a gente enxerga na Pnad. Isso aí, Sergei Soares auxiliou profundamente. Paes de Barros à época auxiliou muito também, compôs o indicador [índice de desenvolvimento da família, o IDF], discutiu muito o Cadastro (Entrevista 1).

Como mencionado em entrevista, até 2014/2015, era um costume os pesquisadores serem chamados a contribuir não apenas por meio de seus artigos ou publicações científicas, mas também em eventos como oficinas e seminários com gestores ou mesmo em conversas diretas com os dirigentes. A contribuição ocorria para finalidades distintas que iam desde a geração e análise de dados, como elucidação de questões conceituais e criação de soluções conjuntas com a equipe gestora do Cadastro, como relatado abaixo:

O próprio IPEA sempre trabalhou de forma muito próxima na construção desses conceitos [adotados pelo Cadastro, como renda, família e domicílio]. Muito dando apoio técnico. A construção da estimativa, foi um trabalho em conjunto com o IPEA usando a base do censo e junto com a área do ministério. O ministério inicialmente não tinha estrutura de TI né, o IPEA ajudava muito. A gente não tinha computadores locais para fazer várias análises. Tinha pessoas muito engajadas e muito capacitadas, mas a estrutura técnica não existia. Então o IPEA ajudava muito nessa manipulação de grandes bases de dados e construção desses conceitos de estimativa. O próprio uso do cadastro, o IPEA tem uma publicação do índice de desenvolvimento da família, o IDF, que eu acho que também foi muito importante em relação: a gente tem esse conceito de renda, mas o cadastro tem um potencial muito maior para a gente identificar outras vulnerabilidades. E quando o IPEA fez este estudo do IDF, também em trabalho de parceria, o ministério desenvolveu um aplicativo em que o próprio município podia ver gráficos de como estavam os indicadores do seu município no seu território, em comparação com o Estado, com o Governo Federal. Acho que ficou muito bacana (Entrevista 2).

Identificamos, ainda, que essas relações não se estabeleceram em via única. Como mencionado na transcrição acima, se inicialmente a interação com Ipea estabeleceu-se para viabilizar capacidade básica de estrutura de análises de dados, depois o próprio ministério passou a construir aplicativos que apoiavam a gestão local utilizando do conhecimento gerado em parceria com o Ipea. Nesse sentido, vale mencionar o papel da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI), criada no então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e hoje Ministério da Cidadania, como unidade responsável a realizar e levantar estudos e pesquisas, desenvolver conceitos e ferramentas para auxiliar na gestão da informação do órgão.

A SAGI pode ser vista como importante inovação institucional na função de intermediação do conhecimento referente ao Cadastro. Como lembrado nas entrevistas, a SAGI atuou em diversas frentes, tais como na contratação de avaliações, no desenvolvimento de pesquisas, no desenvolvimento de plataformas como o CECAD - ferramenta pública de consulta online das características socioeconômicas das famílias e pessoas incluídas no Cadastro Único - e, ainda, na disponibilização de dados do Cadastro junto à comunidade científica, em uma lógica “vem estudar o cadastro , a gente quer que vocês estudem e desenvolvam trabalhos sobre o Bolsa Família, sobre o cadastro” (Entrevista 2).

Assim, os burocratas articuladores, além de demandarem e produzirem conhecimento de forma dialogada junto aos pesquisadores, também incentivaram o uso dos dados do Cadastro para gerar mais conhecimento sobre as vulnerabilidades sociais pela comunidade científica. Um entrevistado lembra que essa relação chegou a ser tão intensa e bidirecional que o próprio IBGE, na disputa recente sobre recursos para o Censo, solicitou à gestão do Cadastro que se manifestasse no pleito quanto à importância do Censo para garantir as estimativas da cobertura e a qualidade dos dados do Cadastro.

Vale mencionar ainda que observamos um fluxo expressivo de cruzamento de fronteiras entre especialistas da gestão e da pesquisa. Se, no início da constituição da Senarc e do Cadastro, os burocratas eram predominantemente experts em gestão, como observado por Oliveira e Lotta (2015)OLIVEIRA, Vanessa; LOTTA, Gabriela. Implementando uma inovação: a burocracia de médio escalão do Programa Bolsa Família. In: CAVALCANTE, P.; LOTTA, G. (orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: Enap, 2015. p. 115-142., ao longo do tempo, vários ingressaram em programas de pós-graduação e/ou produziram dissertações, teses e publicações científicas, passando a se tornar igualmente especialistas na área da pesquisa no campo. Da parte dos pesquisadores, percebe-se um movimento na direção da gestão quando alguns são convidados a assumir cargos e funções no ministério. E, por fim, notamos ainda um movimento de ida desses burocratas articuladores e que se especializam a atuar nessas instituições de pesquisa.

Segundo os relatos e documentos coletados, embora a interação entre burocratas e pesquisadores tenha se demonstrado intensa e diversificada na trajetória de constituição e implementação do Cadastro Único, o momento atual aponta para direções distintas. A interação com a academia parece ter se reduzido e outros atores, como entes de controle, têm se tornado mais relevantes na justificação e legitimação das decisões referentes à gestão do Cadastro Único, fenômeno este que merece ser acompanhado em futuras pesquisas.

Caso da Plataforma GOV.BR

O processo de inserção e de desenvolvimento de novas tecnologias digitais pelo governo brasileiro é recorrente, com impactos gerenciais e para a interação dos usuários - cidadãos e empresas - com o governo. O desenvolvimento da Plataforma GOV.BR segue uma esteira de aperfeiçoamentos gerenciais que se iniciam nos anos 2000, com maior ênfase a partir de 2016.

A ideia de Governo Digital está centrada na reconfiguração da interação entre usuários e governo, indo além da simples transferência de ambientes presenciais para a utilização de plataformas digitais. Margetts e Dunleavy (2013)MARGETTS, Helen; DUNLEAVY, Patrick. The second wave of digital-era governance: a quasi-paradigm for government on the web. Philosophical Transactions of the Royal Society A, v. 371, n. 1987, 2013. destacam que o Governo Digital compreende também a retenção de dados dos usuários para aperfeiçoamento da tecnologia, que poderá mapear e prever demandas, produzir automação e personificar a prestação dos serviços de atendimento para o atingimento de diversas finalidades da política pública. Além da introdução de novas tecnologias, a digitalização implica a obtenção e o processamento de novos dados, provenientes dos próprios usuários e de suas interações com as plataformas, para produção de novas estratégias de atuação governamental. Ou seja, produzir conhecimento aplicável à gestão passa por captar e traduzir experiências dos usuários em mudanças na prestação dos serviços públicos.

No período recente, que remonta ao período de 2016 a 2020, observou-se acentuada ênfase na introdução de novas tecnologias digitais no governo federal brasileiro, capitaneada em diversos momentos pela própria burocracia federal. Um conjunto de normativos federais foram responsáveis pela redefinição de um conjunto de temáticas relacionadas à implantação de fundamentos do Governo Digital. Essas questões perpassaram tanto processos internos e gerenciais - como os de governança digital e de regulamentação do compartilhamento de dados do governo federal - até medidas de caráter finalístico - como a criação de uma plataforma e um portal únicos, além dos direitos dos usuários de serviços públicos (KOGA et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.).

A organização desse novo arcabouço jurídico em alguns momentos se beneficiou de estratégias de intermediação do conhecimento científico na própria constituição dos normativos. O caso mais ilustrativo é o “E-Digital: estratégia brasileira para a transformação digital”, previsto pelo Decreto nº 9.584/2018, depois substituído pelo Decreto nº 10.332/2020. Sua conformação envolveu a mobilização de subgrupos de servidores públicos; a consulta a um grupo de 130 especialistas; reuniões setoriais com membros da sociedade civil e entidades governamentais; consulta pública e mobilização de estudos nacionais e internacionais sobre o tema. Em outro sentido, alguns normativos criaram a obrigação de estudos que pudessem atender às obrigações elencadas. Foi o caso do Decreto nº 8.936/2016, que instituiu a Plataforma de Cidadania Digital. Esse normativo previu o cadastramento e atualização de informações sobre os serviços públicos no Portal de Serviços do Governo Federal, o que resultou na realização da pesquisa Censo dos Serviços Públicos de Atendimento do Governo Federal pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) (HECKERT, 2018HECKERT, Cristiano Rocha. Casos SEGES: renovando a gestão pública. Plataforma de cidadania digital. Brasília: Enap/SEGES, 2018.).

A pesquisa do Censo dos Serviços Públicos de Atendimento do Governo Federal foi iniciada no final de 2016, tendo sido concluída no final de 2018. Nesse período, foram identificados, caracterizados e inseridos na plataforma digital 2.704 serviços públicos de atendimento, perfazendo 189 órgãos da administração direta e indireta que responderam à pesquisa em suas duas ondas. Um elemento a ser destacado na intermediação entre academia e gestão é a participação ativa de órgãos da Presidência da República, como a Casa Civil, e do próprio financiador, o então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, na mobilização dos demais órgãos da administração pública para participarem do estudo. Além disso, diversas reuniões técnicas foram realizadas entre a Enap e os órgãos demandantes, que contribuíram na definição conceitual e na confecção do questionário de pesquisa (ENAP, 2018aENAP. Pesquisa sobre serviços públicos de atendimento do Governo Federal. Caderno Enap, v. 55, Brasília: Escola Nacional de Administração Pública, 2018a. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3217 Acesso em: 1 jan. 2023.
https://repositorio.enap.gov.br/handle/1...
; 2018bENAP. Pesquisa sobre serviços públicos de atendimento do Governo Federal: instituições federais de ensino superior. Caderno Enap, v. 63. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública, 2018b. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3692 Acesso em: 1 jan. 2023.
https://repositorio.enap.gov.br/handle/1...
). Os resultados possuíram aplicação imediata na estratégia governamental:

A gente sabia, a partir do Censo, inúmeros recortes, mas coisas do tipo qual o nível de digitalização dos serviços do governo federal, órgãos com menor nível de digitalização que talvez precisem de mais socorro, quais são os serviços que demandam um número de requisitos por ano e esses são importantes porque quanto mais requisitos você tem, mais importante pra sociedade ele é. Então, serviço que tem milhões de requisições por ano são prioritários, eles impactam muitos brasileiros (Entrevista 2).

O Censo ilustra simultaneamente o papel dos normativos para motivar a utilização de pesquisa científica e aquele desempenhado pela contratação de órgãos de ensino e pesquisa do governo federal. A parceria com a Enap foi relevante também na organização de uma rede de inovação, o Inova.Gov, e de outras iniciativas promovidas em parceria com o GNova (Entrevista 5).

Ao lado da Enap, a Universidade de Brasília (UnB) foi mobilizada em diversos momentos para implementação da digitalização dos serviços e concomitante organização da Plataforma Gov.Br. Os entrevistados são unânimes em destacar o papel desempenhado pela universidade simultaneamente como agregadora de conhecimento e de pessoal técnico que colaborou diretamente na execução de atividades pertinentes à política pública em parceria com a equipe técnica do Ministério:

[A] gente tem envolvimento da UNB com TED [Termo de Execução Descentralizada] para ajudar a gente a multiplicar braços, e ajudar a gente com metodologias nesse processo de transformação

Então, a gente dispunha de pelo menos um professor doutor, com experiência com métodos de pesquisas, que já tinha feito pesquisas diversas [...] definir metodologias para orientar sobre essa abordagem, sobre pluralidade de métodos e técnicas. Depois, a gente conseguia fazer mesmo sem a ajuda deles, mas foi muito importante e, muitas vezes, a gente contava com alunos bolsistas vinculados pra ajudar a gente a fazer pesquisa, então muitas vezes a gente ia a campo e íamos, sei lá, dois de nós e dois alunos da UNB para apoio (Entrevista 5).

A UNB trouxe muita capacidade metodológica pra gente [...] a cooperação existe até hoje, estamos inclusive renovando por mais dois anos com ela agora, é uma cooperação que nos dá muito braço, não só mente e cabeça, eles nos ajudam a fazer produções, mas nos ajudam em campo também, por exemplo, uma coisa que eles ajudam muito é em pesquisa com usuários. A gente às vezes precisa fazer teste de protótipo, de tela [...].

É, a gente desenvolveu também junto com a UNB um modelo de qualidade de serviços que tem duas dimensões, a técnica que é de adesão do serviço público às nossas ferramentas [...], Mas, tem outra dimensão que é a experiência do usuário [...] (Entrevista 4).

Desse modo, ao lado da motivação para o uso de estudos e pesquisas proveniente dos normativos da política e da parceria com instituições de ensino e pesquisa, a própria burocracia empreendeu esforços de intermediação. Em alguns casos, a própria trajetória profissional dos burocratas facilitou esse processo, como a formação na área de tecnologia ou a atuação como pesquisador e professor universitário (Entrevista 6). Em outros casos, foram constantes a organização de visitas técnicas e a interlocução com especialistas de países como Estônia, Reino Unido e Canadá (Entrevistas 2 e 5):

Além disso, houve a mobilização pela burocracia de métricas internacionais, como os “rankings internacionais da ONU” (Entrevista 2), e de organismos internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que contribuíram para “internalizar o modelo de custo [...] o quanto você reduziu de operação no estado de forma digital e o quanto você tirou do cidadão a carga de hora, de espera em fila, de deslocamento na cidade, coisas desse tipo” (Entrevista 4).

A burocracia federal operou, portanto, como um intermediador relevante do processo de produção do conhecimento. Essa intermediação se operou por duas formas. A primeira pela interlocução e apropriação de conhecimento técnico-científico produzido pela academia e por organismos internacionais. A segunda, pela internalização de rotinas e procedimentos técnicos e de pesquisa que contribuíram com a produção de conhecimento, a partir da extensa massa de dados produzida pelo uso das plataformas digitais ou na interação direta com os usuários (user experience).

Considerações finais

Neste artigo, propusemos avançar na discussão sobre o uso do conhecimento científico no policymaking, no sentido de ampliar o escopo de análise comumente adotado pela literatura especializada que se restringe a observar o uso instrumental e direto das fontes científicas, isto é, o uso para o embasamento da tomada de decisão na formulação de políticas. Argumentamos que, ao considerar evidências como fontes informacionais úteis para usos também conceituais e simbólicos, assim como para os diversos estágios da política pública, torna-se possível ter uma dimensão mais clara da real influência do conhecimento científico em todo o processo de produção de políticas públicas.

Com tal propósito, buscamos contrastar os argumentos da Teoria das Duas Comunidades que sustenta que gestão e academia comporiam comunidades apartadas com obstáculos constitutivos de difícil enfrentamento. Para tanto, lançamos mão do debate sobre knowledge brokerage e analisamos dados de um survey com burocratas dos ministérios e de dois estudos de caso de políticas em que ocorreram interfaces entre representantes das duas “pretensas comunidades”. Ao deslocarmos nossa análise do foco no sentido de entender os obstáculos para observar as interações, pudemos levantar algumas considerações inéditas sobre o contexto do uso de conhecimento científico pelo governo federal.

A análise do survey permitiu descrever o perfil de potenciais burocratas intermediadores, isto é, daqueles que fazem uso recorrente de fontes científicas e que atuam na interface estatal-acadêmica. Em que pese outros tipos de fontes, tais como as produzidas internamente pelo Estado, assim como as fontes advindas das experiências pessoais, serem a de uso mais preponderante entre o universo dos burocratas dos ministérios, há um grupo de 33% desse universo que usa sempre ou frequentemente fontes científicas. E, de fato, este grupo apresentou características eminentemente de intermediadores que não apenas são capazes de identificar e localizar conhecimento em razão de sua alta escolaridade, mas também de levá-lo e traduzi-lo às instâncias decisórias e a outras camadas da burocracia pelas carreiras e posições que ocupam e pelas atividades relacionais que desempenham. O contexto institucional (órgão) e sistêmico (área de política pública) dos burocratas intermediadores também puderam indicar alguns aspectos sobre os limites, potencialidades e resultados de sua atuação.

Os estudos de caso, por sua vez, demonstraram que o contato com o conhecimento científico não se dá de forma passiva, no sentido de mera recepção de estudos e pesquisa e transmissão direta a interlocutores, mas que há ação crítica e produção conjunta de conhecimento quando as interações entre burocratas intermediadores e pesquisadores ocorrem. O conhecimento da gestão é um recurso de autoridade que credencia os burocratas a debater com os pesquisadores e gerar novos conhecimentos e novas fontes informacionais. Este achado faz com que o dado de que os burocratas, em geral, utilizam essencialmente fontes produzidas pela própria burocracia ou de suas próprias experiências seja interpretado com mais cuidado. Tanto no caso do Cadastro como no caso do Governo Digital, normas, notas técnicas, seminários, relatórios de gestão e experiências foram produzidos a partir da interação com acadêmicos e com outras fontes informacionais como organismos multilaterais, usuários ou unidades especializadas.

Em síntese, nesta pesquisa, ao invés de identificarmos duas comunidades apartadas, pudemos perceber diversos movimentos de abertura e dissolução de fronteiras, em que burocratas e pesquisadores transitam pelas duas esferas formando múltiplas comunidades epistêmicas, a depender do contexto decisório. Confiança entre gestores e pesquisadores é estabelecida na recorrência de suas interações. Conhecimento e expertise conjuntos são gerados. E esse acúmulo dialogado é reconhecido e utilizado como meios de embasamento, legitimação e conceituação para impulsionar a criação de novos conhecimentos e formas de interação com a academia.

Por fim, sinalizamos algumas possíveis frentes para novas pesquisas. Parece-nos bastante profícuo o aprofundamento tanto teórico como empírico da análise do fenômeno da intermediação. Análises sobre os efeitos do plano de carreira e da presença de revolving doors, em que burocratas e pesquisadores atravessam os campos, assim como sobre o papel das fontes internas e experienciais na intermediação do conhecimento científico podem ser caminhos promissores. Mais estudos que permitam explorar com densidade a diversidade de contextos de atuação dos burocratas intermediadores seria um caminho para ampliar o escopo de análise deste estudo que sabemos resumiu-se ao contexto dos burocratas da Administração Direta federais e dois estudos de casos de áreas específicas. Um outro caminho seria na direção de compreender os efeitos de iniciativas institucionais como a criação de unidades especializadas nas organizações como a Sagi, o estabelecimento de parcerias com universidades e a previsão normativa de uso de pesquisas para o desenho e implementação de políticas como ocorreu no caso do Governo Digital e a implementação de outros arranjos de intermediação criados com a finalidade de aproximar academia e gestão, como os recém criados comitês científicos para enfrentamento da Covid-19. Em que pese as limitações desta pesquisa, entendemos que a proposição de mais estudos que envolvam métodos mistos também tem o condão de trazer contribuições integradas de distintas abordagens a este campo.

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    » https://doi.org/https://doi.org/10.38116/bapi24art12020
  • SCHMIDT, Flávia de Holanda et al. O uso das evidências nas políticas brasileiras de ciência, tecnologia e inovação. In: KOGA, N. M. et al. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. p. 771-804.
  • STONE, Deborah. Policy paradox: the art of political decision making. New York: W.W. Norton & Co, 2012.
  • VESELÝ, Arnošt; OCHRANA, František; NEKOLA, Martin. When evidence is not taken for granted: the use and perception of “evidence” in the Czech Republic ministries. NISPAcee Journal of Public Administration and Policy, v. 11, n. 2, p. 219-234, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.2478/nispa-2018-0020 Acesso em: 1 jan. 2023.
    » https://doi.org/https://doi.org/10.2478/nispa-2018-0020
  • VIEIRA, Fabiola Sulpino; PIOLA, Sérgio Francisco; SERVO, Luciana Mendes Santos. Avaliação e decisão sobre tecnologias em saúde no SUS: uma análise de fatores de influência sobre o processo decisório. In: KOGA, N. M. et al. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. p. 609-652.
  • 9
    O modelo explorou variáveis de: áreas de política pública, tipos de trabalho, capacidades analíticas (individual e organizacional) e características individuais dos burocratas (ocupação de cargos, atuação no Distrito Federal, idade e gênero).
  • 10
    Caracterizado por atividades como: elaborar relatórios e notas técnicas, coletar e analisar dados relacionados à política pública, elaborar textos normativos, atender a demandas dos órgãos de controle e assessorar dirigentes.
  • 11
    Caracterizado por atividades como: representar seu órgão junto a outros entes governamentais, consultar e atender grupos da sociedade, coordenar equipes, organizar eventos, contratar e validar estudos de avaliação de políticas públicas, captar e negociar recursos.
  • 12
    O processo de amostragem para este survey teve de lidar com um impedimento técnico decisivo, que foi a indisponibilidade dos dados atualizados relativos à unidade de lotação e contato de e-mail dos servidores da Administração Pública Federal para o ano de 2019. Desse modo, optamos por utilizar exatamente a mesma amostra selecionada em survey anterior da Enap sobre o serviço civil no Brasil (ENAP, 2018cENAP. Capacidades estatais para produção de políticas públicas: resultados do survey sobre serviço civil no Brasil. Cadernos Enap, v. 56. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública, 2018c. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3233 Acesso em: 1 jan. 2023.
    https://repositorio.enap.gov.br/handle/1...
    ). A utilização da amostra anterior solucionou a questão da falta dos dados - sobretudo, os de contato - dos servidores, indispensáveis para a realização da pesquisa. Também permitiu algum grau de comparabilidade entre resultados dos dois surveys, visto que algumas perguntas do survey de 2017 foram replicadas neste estudo.
  • 13
    O Cadastro Único do Programa Bolsa Família é uma tecnologia desenvolvida e operada pelo ministério a cargo do Programa Bolsa Família (Desenvolvimento Social/Cidadania), no âmbito das políticas sociais; os processos de transformação digital dos serviços públicos federais foram idealizados e fomentados a partir de ministério da área econômica (Planejamento/Economia/Gestão Pública), com apoio do centro de governo (Casa Civil e Presidência da República).
  • 14
    É importante destacar que as estatísticas apresentadas são descritivas, sem nenhuma pretensão inferencial. Não foram realizados testes de diferenças de médias, de modo que algumas das diferenças encontradas entre categorias podem não ser estatisticamente significativas.
  • 15
    Conforme descrito em KOGA et al (2020)KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020., a variável “Tipos de trabalho na política pública” foi previamente submetida à técnica de análise fatorial com o intuito de detectar perfis comuns nas respostas obtidas para os quatorze tipos de trabalho apresentados aos respondentes. Na ocasião, foi possível delimitar quatro perfis específicos: Analítico/Controle, Relacional, Gerenciamento/Fiscalização e Administrativo.
  • 16
    Na mesma oportunidade, a variável “Tipos de informação” também foi submetida à técnica de análise fatorial (KOGA et al, 2020KOGA, Natália Massaco et al. O que informa as políticas públicas: survey sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Texto para Discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020.). A partir das respostas obtidas para os quinze tipos de informação apresentados, também foi possível delimitar quatro perfis específicos: Interno, Externo, Acadêmico-Científico e Experiencial.
  • 17
    Os seis itens apresentados eram: i) “Durante minha jornada de trabalho, há tempo suficiente para leitura de pesquisas científicas”; ii) “No meu trabalho, quando preciso tomar uma decisão, prefiro recorrer a estudos científicos”; iii) “Na minha rotina de trabalho, eu faço pessoalmente esforços para entrar em contato com pesquisadores”; iv) “Assessores e servidores da minha organização são encorajados pelos dirigentes a utilizar resultados de pesquisas”; v) “Minha organização oferece oportunidades para construir relacionamentos com pesquisadores”; vi) “Minha organização dispõe de meios e recursos suficientes para obter informações produzidas por estudos científicos”. O respondente poderia marcar 1-“Nunca”, 2-“Raramente”, 3-“Eventualmente”, 4-“Frequentemente” e 5-“Sempre”.

APÊNDICE A - Caracterização do universo e da amostra

Os dados a seguir foram extraídos do Painel Estatístico de Pessoal do Ministério da Economia e correspondem à situação do universo populacional da Administração Direta Federal no mês de dezembro de 2019.

No que diz respeito ao perfil sociodemográfico dos servidores, há uma preponderância do sexo masculino (56,7%) com relação ao sexo feminino (43,3%).

Gráfico A1.
Sexo dos servidores (universo)

Com relação à faixa etária dos servidores, a média de idade dos integrantes da Administração Direta Federal é de 48 anos. A distribuição entre as faixas etárias pode ser observada no Gráfico A2. Nota-se que o maior grupo possui entre 51 e 60 anos (27,56%), seguido pelos grupos entre 31 e 40 anos (22,08%) e 41 e 50 anos (20,29%).

Gráfico A2.
Faixa etária dos servidores (universo)

No que diz respeito ao nível de escolaridade (Gráfico A3), pode-se observar que a maioria dos servidores possui alguma graduação de nível superior (60,98%). Em seguida, os servidores com ensino médio ou técnico correspondem a 24,35%. Os servidores com ensino fundamental, por sua vez, são 7,75% do total. Finalmente, os servidores com especialização (4,19%), mestrado (1,56%) e doutorado (1,17%).

Gráfico A3.
Nível de escolaridade dos servidores (universo)

No que concerne à ocupação dos cargos de confiança e funções gratificadas, apenas 14% dos servidores da Administração Direta Federal possuíam algum dos dois em dezembro de 2019. Os servidores com comissões de direção e assessoramento (como DAS e FCPE) correspondiam a apenas 7% do total. O mesmo percentual de servidores recebia alguma função gratificada ou técnica.

Gráfico A4.
Cargos de confiança e funções gratificadas (universo)

Os dados a seguir correspondem à distribuição da amostra de 2180 registros completos válidos obtidos através do survey aplicado no ano de 2019.

Com relação ao perfil sociodemográfico dos servidores pesquisados, seguindo a distribuição do próprio universo da Administração Direta Federal, a maior parte dos respondentes se reconheceu como do sexo “Masculino”, 60% dos participantes para 40% do sexo “Feminino”.

Gráfico A5.
Sexo dos servidores pesquisados (amostra)

No que diz respeito ao nível de escolaridade (Gráfico A6), pode-se observar que a maioria dos servidores possui algum tipo de pós-graduação (Especialização, Mestrado e Doutorado). A maior parte deles (33,50%) possui alguma especialização ou pós-graduação lato sensu. Considerando os 30,20% que obtiveram “Graduação”, 93,80% dos respondentes possui pelo menos nível superior.

Gráfico A6.
Nível de escolaridade dos servidores pesquisados (amostra)

Como se pode ver no Gráfico A7, grande parte respondeu que não ocupa nenhuma função comissionada (71%). Ainda assim, um número considerado alto respondeu que sim (29%). Tudo indica que muitos participantes responderam “Sim” porque recebem algum tipo de tipo de função gratificada ou técnica, o que não quer dizer que efetivamente ocupem cargo de direção e assessoramento superior.

Gráfico A7.
Cargo de Direção e Assessoramento Superior (DAS) ou equivalente (amostra)

Com relação à distribuição dos respondentes por órgão de lotação (Tabela A1), em primeiro lugar da lista, com o maior número de participantes, encontra-se o Ministério da Economia: 23,7% (513) das observações. Em seguida, o Ministério da Cidadania e o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações aparecem com 9,4% (203) e 9,1% (197). Ocupando o quarto lugar, com 7,8% (168), está o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Finalmente, chama a atenção a presença da Controladoria-Geral da União no quinto lugar da lista, com 6% (129) dos respondentes.

O elevado índice de repostas registrado para o Ministério da Economia condiz com o quadro atual do órgão, que conta com o maior número de servidores na Esplanada: em torno de 53 mil em dezembro de 2019.

Tabela A1.
Ministério ou órgão superior do servidor pesquisado (amostra)

APÊNDICE B - ROTEIROS DAS ENTREVISTAS SEMI-ESTRUTURADAS

B.1 - Cadastro Único:

  1. Poderia nos contar brevemente sua trajetória profissional e como foi a sua relação com o Cadastro Único?

  2. Você acompanhou os debates iniciais sobre a definição das finalidades e conceitos do Cadastro? Se sim, como foram?

  3. O que ou quem influenciou/aram as definições do Cadastro? Ou seja, dos critérios de elegibilidade e de identificação do público? Como influenciou?

  4. Falando mais especificamente das instituições de pesquisa e das pesquisas científicas, elas apoiaram esse processo? De que forma? Para que foram utilizadas? Como era a relação entre elas e a gestão do Cadastro? Houve mudanças ao longo do tempo?

  5. Qual a importância da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do Ministério nesse processo?

  6. E quanto à relação com o TCU e CGU? Poderia contar como era a relação entre eles e a gestão? As recomendações eram utilizadas? Para que finalidade?

  7. Outros entes influenciaram? Quem e como?

  8. Ao longo da história do Cadastro, buscou-se ouvir a população cadastrada sobre o funcionamento do Cadastro? E sobre a visão da pobreza?

  9. Na sua avaliação, houve outras iniciativas no sentido de adensar ou tornar mais precisa e abrangente a compreensão da Pobreza?

B.2 - Plataforma GOV.BR

  1. Por gentileza, descreva brevemente sua trajetória profissional e o trabalho desenvolvido na Secretaria de Governo Digital.

  2. Na sua opinião, quais são os principais componentes/estratégias da sua diretoria/coordenação para realizar a transformação digital dos serviços públicos de atendimento? Houve a criação de plataformas digitais?

  3. Para cada uma dessas estratégias, quais seria as principais informações mobilizadas? Lembrar/explorar com o entrevistado(a) essas quatro possibilidades:

    1. Informações do próprio Estado - normativos; notas técnicas; pareceres legais e decisões judiciais; recomendações de órgãos de controle; dados de monitoramento e de sistemas informacionais etc.

    2. Informações de fora do Estado - opinião de beneficiários/usuários; instâncias participativas; de organizações da sociedade civil e de interesse; organismos internacionais; boas práticas de governos locais; matérias jornalísticas etc.

    3. Informações acadêmicas - artigos científicos, capítulos de livro e relatórios de pesquisa produzidos por universidades e institutos de pesquisa.

    4. Informações pessoais - experiência pessoal e de colegas.

  4. Na sua opinião, houve uma hierarquia ou informação mais recorrentemente utilizada que as demais? Qual(is) seria(m), em sua opinião?

  5. Você diria que as informações, em geral, foram mobilizadas para fundamentar decisões previamente tomadas, para facilitar a compreensão do problema ou para guiar decisões e escolher melhores decisões em políticas públicas?

  6. Gostaria de fazer algum comentário adicional? Obrigado!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2022
  • Aceito
    08 Fev 2023
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