Resumos
No Brasil, as violências psicológicas no trabalho são atualmente caracterizadas como afrontas aos direitos fundamentais do trabalho, ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho. Embora não haja uma legislação específica sobre violências psicológicas no ambiente de trabalho, o judiciário tem apresentado um recente e crescente reconhecimento jurídico do tema, norteando-se, principalmente, por princípios constitucionais e de proteção à saúde do trabalhador. O objetivo deste artigo é demonstrar como tem ocorrido o reconhecimento jurídico da proteção à saúde psicológica no ambiente de trabalho. Para tal, utilizamos o procedimento monográfico e nos baseamos na realização de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.
Violências psicológicas no trabalho; Assédio moral; Reconhecimento jurídico
Psychologically violence at work, in Brazil, has only recently been recognized as a transgression to the fundamental rights of work, to the principle of the dignity of the human person and to the social value of work. Although there is no specific legislation on psychological violence at the workplace, the judiciary has presented a recent and growing juridical recognition to the subject, being guided mainly by constitutional principles as well as by principles related to the protection of the health of the worker. The aim of this article is to discuss how has been occurred the legal recognition of the protection of the psychological health at the work environment. In order to reach the aim of this article, we analyse a specific monographic procedure as well as bibliographical and jurisprudential research.
Psychologically violence at work; Moral harassment; Legal recognition
Au Brésil, les violences psychologiques au travail sont actuellement caractérisés comme un affront aux droits fondamentaux du travail, au principe de la dignité humaine et à la valeur sociale du travail. Bien qu’il n’existe pas de législation spécifique sur les violences psychologiques dans l’environnement de travail, le pouvoir judiciaire a présenté une reconnaissance juridique récente et croissante du thème, principalement guidée par des principes constitutionnels et de protection de la santé des travailleurs. Le but de cet article est démontrer le processus de reconnaissance juridique de la protection de la santé psychologique dans l’environnement de travail. Pour cela, nous avons utilisé la procédure monographique et recherches bibliographiques et jurisprudentielles.
Violence psychologique au travail; Harcèlement moral; Reconnaissance juridique
INTRODUÇÃO
As pressões crescentes por aumento de produtividade e o distanciamento entre gestores e trabalhadores promovidos nas fábricas pelo modelo de organização do trabalho taylorista-fordista, durante quase todo século o XX, deram causa a inúmeros prejuízos à saúde física e mental dos trabalhadores. Assim, a partir da segunda metade do referido século, iniciam-se debates sobre as pressões psicológicas sofridas pelos trabalhadores no ambiente de trabalho, até então entendidas como inerentes às relações laborais. Termos como estresse ocupacional, síndrome de burnout, assédio moral, straining, gestão por estresse, entre outros, passaram a ser apontados por psicólogos como decorrentes do aumento de pressão psicológica dentro das empresas, podendo levar, em casos mais extremos, até ao suicídio dos trabalhadores.
Em tempos de flexibilização produtiva, bem mais que no período taylorista-fordista, o mundo do trabalho se encontra submetido a um fluxo constante de mudanças organizacionais. A tônica tem sido o aumento da competitividade, exigindo do trabalhador o seu engajamento nas metas da empresa e a responsabilização pela sua condição de empregabilidade, isto é, sua capacidade de manter-se empregável. Ambientes de trabalho com essa configuração tendem a produzir desgastes entre os trabalhadores, o corpo gerencial e o corpo administrativo das empresas, tensionando as relações de trabalho e fazendo emergir situações de conflitos decorrentes de processos de reestruturação produtiva que, ao mesmo tempo em que intensificam o ritmo do trabalho, reduzem a necessidade de contratação de pessoal.
Com isso em vista, o objetivo deste artigo é analisar os fatores que têm tornado possível o reconhecimento jurídico da proteção dos trabalhadores diante de práticas de violências psicológicas no ambiente de trabalho. No Brasil, apenas recentemente tais práticas foram reconhecidas como violações de princípios e normas (infra) constitucionais e de proteção à saúde do trabalhador. Nossa base informativa fundamentou-se em pesquisas bibliográfica e documental. Realizamos um mapeamento de 9.858 decisões judiciais que citavam o termo “assédio moral” nos julgamentos do TRT da 4ª Região-RS, no período compreendido entre os anos de 2001 e 2014, a fim de analisar as mudanças ocorridas no tratamento judicial sobre o tema no decorrer do tempo. A pesquisa que deu origem a este artigo foi executada no período de janeiro de 2014 a fevereiro de 20151 1 Vale ressaltar que a pesquisa que deu origem a este artigo foi finalizada antes das profundas mudanças introduzidas na CLT pela lei N° 13.467 de 2017. Portanto, os resultados obtidos, assim como a análise empreendida, levaram em conta uma tutela jurídica das relações de trabalho que claramente possuía normas bem menos desfavoráveis aos trabalhadores. Afinal, com a Reforma Trabalhista de 2017, foram criados dispositivos obstaculizadores à capacidade postulatória do trabalhador, entre os quais: a) a retirada da justiça gratuita por declaração de insuficiência financeira do trabalhador (art. 790, §3º, e §4º da CLT); b) a inclusão de dispositivo autorizando a condenação de honorários advocatícios de sucumbência no patamar de 5% a 15% à parte vencida (art. 791-A §1º, §2º e §3º da CLT); e c) a responsabilização por litigância de má-fé, no percentual superior a 1% e inferior a 10%, ao trabalhador que der causa a alguma situações fáticas (artigos 793-A, 793-B, 793-C e 793-D da CLT). Todos esses dispositivos se apresentam como fortes obstáculos no que concerne à postulação do reconhecimento judicial de eventuais violências psicológicas sofridas no ambiente de trabalho, uma vez que se trata de um tipo de dano de difícil comprovação devido ao elevado teor de subjetividade que as experiências implicadas nesses tipos de ocorrências suscitam e a dificuldade de estabelecer o nexo causal entre o assédio e uma eventual situação de adoecimento . As teorias de base utilizadas em nossa análise foram a teoria da modernização reflexiva de Giddens (1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991., 1997GIDDENS, A. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, A.; BECK, U.; LASCH, S. Modernização reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997. p. 73-133., 2002GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.) e as teorias do reconhecimento de Taylor (1989)TAYLOR, C. Sources of the self: the making of the modern identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989. e de Honneth (2003)HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: 34, 2003.. As demais perspectivas sociológicas das quais lançamos mão, como, por exemplo, o materialismo histórico e dialético, servem apenas para efeito de ilustração de certas compreensões sobre o mundo do trabalho e de como nós a elas, em maior ou menor medida, nos alinhamos.
AS MUTAÇÕES DO TRABALHO NAS SOCIEDADES CAPITALISTAS
Na perspectiva do materialismo histórico e dialético de Marx ([1867] 2012), o trabalho é a categoria central da condição humana, por ser a atividade social que permite aos seres humanos transformar, mediante planejamento, a natureza, ao mesmo tempo em que transforma a natureza humana. Nenhuma outra espécie animal é capaz de empreender tal feito, por mais bem elaborado que seja o resultado de seus esforços. O que, nas outras espécies, é fruto de impulsos instintivos, nos seres humanos é fruto de uma ação planejada em que seu resultado final se faz mentalmente presente antes de sua efetivação.
Em Marx ([1867] 2012), a reciprocidade transformadora inerente ao trabalho é o fator que o converte em elemento central da sociabilidade humana. Por ser criador de valores de uso, o trabalho, como trabalho útil ou concreto, apresenta-se como condição básica para a existência humana, independentemente do modo de produção do qual se esteja falando. Isto é, o trabalho se constitui em uma eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre o homem e a natureza. Em outras palavras, o trabalho é uma ação de produção e reprodução da vida humana, pois, por seu intermédio, o homem se torna um ser social, distinguindo-se de outras formas não humanas (Antunes, 2013ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2013.).
A revolução industrial foi um marco na história da humanidade exatamente por ter possibilitado um avanço sem precedentes nas capacidades de produção e acumulação do homem, ensejando o surgimento e o aperfeiçoamento de técnicas que permitiram um maior controle sobre a natureza. Ela promoveu mudanças sociais e econômicas tão aceleradas, que transformou radicalmente as ideias sobre a vida social nas sociedades modernas, entre outras coisas, por ter rompido com os constrangimentos sociais e jurídicos da escravidão e da servidão, instaurando o trabalhado livre como expressão formal das relações de trabalho. Não apenas as formas e os conteúdos do trabalho sofreram alterações, mas também a função que ele assumiu como fator estruturante da vida social, uma vez que carreira e status profissional foram convertidos em componentes centrais de identidades individuais e coletivas.
Diante do crescimento econômico sem precedentes gerado pelo industrialismo, acompanhado da pauperização e da falta de garantias jurídicas adequadas para a classe trabalhadora e do clima de conflituosidade social entre capital e trabalho, estados europeus ocidentais, a partir de meados dos anos de 1870, passaram a promover políticas sociais, econômicas e sanitárias visando a supervisionar o funcionamento das indústrias, o que implicou uma inflexão à ordem econômica então vigente do laissez faire. No início do século XX, com a crescente ingerência estatal, a classe trabalhadora, mais organizada, passou a exercer forte pressão para o estabelecimento de melhores condições de trabalho.
Os principais progressos se cristalizaram em torno da jornada de trabalho, da medicina do trabalho e das indenizações por acidentes de trabalho. Após a Segunda Grande Guerra, mediante ações da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Medicina do Trabalho, a ideia de Previdência Social e os Comitês de Higiene e de Segurança expandiram-se e consolidaram-se mundialmente (Dejours, 2013DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez, 2013.).
Com o crescimento do operariado e de sua capacidade de organização, o Estado assumiu, como instituição reguladora, a tarefa de planejar e coordenar a expansão da economia capitalista. Desse modo, foram promovidos “pactos sociais” entre capital e trabalho, nos quais se procurou garantir direitos não apenas formais (direitos civis e políticos), mas reais (direitos sociais) aos trabalhadores. Em um plano idealizado, a intenção era frear ações desmedidas dos patrões contra os trabalhadores. Nesse ciclo, compreendido entre 1945 e 1973, nos termos de Bihr, o Estado converteu-se no “verdadeiro mestre de obras de reprodução do capital” (Bihr, 1998, p. 47), encarregando-se das mais diversas funções: a) a produção de determinados meios de produção (infraestruturas industriais e produção de energia); b) reprodução da força social de trabalho, ao gerir o conjunto da relação salarial; c) a regulação da acumulação (políticas monetárias e orçamentárias); d) animação e enquadramento permanente do “diálogo social”, esforçando-se para manter o “equilíbrio de compromisso” entre os “parceiros sociais”. Tais pactos sociais, também chamados de “compromisso fordista”, tinham como principais características: a negociação coletiva, a uniformização da condição jurídica dos diferentes trabalhadores e a efetividade do emprego.
Por sua vez, Castel (1998)CASTEL, R. As Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998., em uma interpretação distinta, defendeu que, no ciclo acima referido, o trabalho tornou-se uma forma privilegiada de inscrição do indivíduo na estrutura social, porque o Estado, ao instituir a sua tutela jurídica como meio de obtenção de renda e de acesso ao consumo, expressou o reconhecimento da sociedade à sua utilidade social e, por conseguinte, a sua função como meio de integração social.
A partir da década de 1970, com o esgotamento desse ciclo de expansão capitalista baseado na produção padronizada em massa e em formas rígidas de organização do trabalho inspiradas no modelo taylorista-fordista, arranjos produtivos mais flexíveis foram gestados a fim de promover novos ganhos de produtividade. O cenário de crise dos Estados de Bem-estar Social deu ensejo à emergência de uma ofensiva neoliberal, na qual o leitmotiv é o da desregulamentação dos mercados, incluindo o mercado de trabalho. Desde então, as proteções jurídicas trabalhistas e previdenciárias têm sido sistematicamente colocados em xeque.
As inovações tecnológicas promovidas pela telemática, robótica e informática contribuíram para a redução da necessidade de força de trabalho no setor industrial e de situações em que as trajetórias individuais não necessariamente têm, na formação profissional, a realização de uma carreira a ela condizente. Por isso, nos anos 1980, autores como o Habermas (1987a, 1987b), Gorz (1997)GORZ, A. Adeus ao proletariado. Rio de Janeiro: Forense, 1997. e Offe (1989)OFFE, C. Trabalho como categoria fundamental. In:OFFE, C. (Org.) Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 167-197. passaram a defender a tese da perda da centralidade do trabalho como categoria explicativa da vida social nas sociedades capitalistas. Alegavam que seria cada vez mais difícil construir uma unidade subjetiva a partir do trabalho, devido ao tempo que os indivíduos despendem no exercício de uma atividade laboral e da condição de transitoriedade da permanência em uma mesma ocupação. Em outras palavras, as identidades individuais e coletivas construídas pela via do trabalho estariam perdendo força.
Em certa medida, entendemos que o trabalho ainda é uma categoria-chave para a compreensão da dinâmica das sociedades contemporâneas, pois, além de ser fonte de valorização do capital para um grande número de indivíduos espalhados pelo mundo, não deixou de ser uma forma privilegiada de inscrição na vida social. Todavia não podemos desconsiderar que a produção flexível e a flexibilização e (ou) a desregulamentação das relações de trabalho têm enfraquecido sobremaneira a construção de uma unidade subjetiva sólida pela via do trabalho, pois as trajetórias profissionais tornam-se demasiado instáveis. A instabilidade, a incerteza e a insegurança decorrentes desse cenário fomentam uma situação de vulnerabilidade social que, por si só, é capaz de suscitar problemas de ordem psíquica e emocional nos indivíduos.
PROCESSOS PRODUTIVOS E MAL-ESTAR NO TRABALHO
No modelo de organização da produção e do trabalho taylorista-fordista, instaurado no final do século XIX e início do século XX, o trabalhador esteve sujeito a vários tipos de violência. Na vigência desse modelo, as reivindicações dos trabalhadores eram principalmente por melhores condições de trabalho, diante de ambientes insalubres e inseguros das unidades fabris. Esse modelo organizacional tinha como uma de suas características a intensa repetição de movimentos nas atividades desempenhadas pelos trabalhadores, o que desencadeava doenças físicas. Nesse sentido,
[...] a evolução das condições de vida e de trabalho e, portanto, de saúde dos trabalhadores não pode ser dissociada do desenvolvimento das lutas e das reivindicações operárias em geral. [...] a “frente pela saúde” só progrediu graças a uma luta perpétua, pois as melhorias das condições de trabalho e de saúde foram raramente oferecidas graciosamente pelos parceiros sociais (Dejours, 2013DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez, 2013., p. 13).
Nos modelos organizacionais de inspiração taylorista-fordista, o excessivo desgaste físico dos trabalhadores e a tensão psicológica com o corpo gerencial, no ambiente de trabalho, eram comuns, haja vista que, as relações eram essencialmente hierárquicas, verticalizadas e autocráticas, baseadas em um poder diretivo e disciplinar quase ilimitado. E aqui, não podemos esquecer que, do ponto de vista jurídico:
[...] a subordinação do trabalhador aos comandos do empregador (seu estado de ‘sujeito-objeto) é, portanto, indispensável para o bom andamento da atividade produtiva (sua organização e finalidades), a qual é dinâmica e envolve uma coletividade. A direção e a fiscalização da atividade do empregado resultam também na admissão de medidas coercitivas para o cumprimento da sua obrigação de fazer, a qual se expressa no exercício do poder disciplinar. A esse conjunto de faculdades, o Direito do Trabalho denomina poder hierárquico” ou “poder diretivo” do empregador. Contudo a dificuldade reside no embasamento do exercício desse poder, de um homem sobre outro homem (Araújo, 2012ARAÚJO, A. R. O assédio moral organizacional. São Paulo: LTr, 2012., p. 97).
Feito esse breve esclarecimento, no tocante a isso, Ramos Filho esclarece que:
[...] nos modos de gestão fordista [...] o mal-estar inerente às relações de subordinação (decorrentes da complexa rede de controle dos empregados por parte de chefias e supervisões superpostas que caracterizava a hierarquia empresarial) era compensado pela existência de um Direito Capitalista do Trabalho que garantia uma série de direitos e de contrapartidas a serem assegurados pelos empregadores, incluindo a possibilidade de se construírem carreiras dentro das empresas, e por uma série de políticas públicas garantindo aos trabalhadores saúde, educação, segurança, previdência social e aposentadoria digna, entre outras (Ramos Filho, 2012RAMOS FILHO, W. Direito capitalista do trabalho: história, mitos e perspectivas no Brasil. São Paulo: LTr, 2012., p. 384).
Com o advento do Sistema Toyota de Produção ou toyotismo, desenvolvido entre 1948 e 1975 no Japão, deu-se ensejo a formas de gestão que permitiram o aumento dos níveis de eficiência organizacional e ganhos inéditos de produtividade baseados na eliminação de sobrecustos ligados à rigidez dos processos de produção e de trabalho. Com o sucesso obtido pelo modelo de empresa enxuta toyotista, indústrias situadas em países ocidentais, a partir dos anos 1980, passaram a promover processos de reestruturação produtiva inspirados nesse modelo. Daí por diante, a tônica, no mundo empresarial, tem sido a da flexibilidade, seja dos processos produtivos, da força de trabalho ou das formas de contrato de trabalho. Mas, a despeito de o toyotismo promover rupturas com a rigidez do modelo taylorista-fordista, ele se inscreve na mesma linhagem de racionalização e de aperfeiçoamento de formas de intensificação do trabalho. As práticas gerenciais nele inspiradas demandam um maior engajamento do trabalhador nos processos organizacionais e se sustentam, discursivamente, na responsabilização do indivíduo pela capacidade de manter-se empregável.
No final do século XX, com a emergência da produção flexível, o estabelecimento de metas tornou-se o principal dispositivo de fluidificação do controle das empresas sobre o trabalho, pois, uma vez alcançadas, elas se tornam parâmetros mínimos para novas metas coletivas e (ou) individuais. Esses novos “objetivos” são frequentemente estabelecidos de modo mecânico, com base em resultados precedentes, e os resultados de cada etapa dos programas de aumento de produtividade são mensurados por escalas arbitrárias, que podem extrapolar as capacidades do trabalhador médio. Caso o trabalhador, por impossibilidade física ou por qualquer outro motivo, não consiga atender “às expectativas da empresa” ou do grupo de empregados vinculados ao atendimento das metas, pode deparar-se com pressões geradoras de sentimentos de isolamento, derrota, fracasso ou impotência (Ramos Filho, 2012RAMOS FILHO, W. Direito capitalista do trabalho: história, mitos e perspectivas no Brasil. São Paulo: LTr, 2012.).
O medo de tornar-se obsoleto ou de não se adaptar às novas exigências organizacionais é operacionalizado pelas práticas de gestão empresarial como fator de mobilização do trabalhador. Aqui, nos referimos ao medo da inadequação entendida como o caminho para tornar-se desnecessário, isto é, tornar-se alvo preferencial de uma demissão justificada pela não adequação ao perfil de trabalhador que a empresa deseja (Barbosa, 2014BARBOSA, A.M.S. Engajamento subjetivo e organização flexível do trabalho: o caso dos trabalhadores da indústria do alumínio primário paraense. Sociedade & Estado, Brasília, v. 29, n. 1, p. 225-252, abril 2014.).
O poder diretivo das empresas mantém os trabalhadores em um estado permanente de prontidão, de modo que, em caso de incidentes, possam intervir imediatamente, mesmo se a ocorrência não for diretamente ligada às suas atribuições específicas. O medo compartilhado cria uma verdadeira solidariedade na eficiência. Nesse sentido, o risco e a ameaça referem-se a todos os trabalhadores de uma unidade, pois quanto maior o engajamento de todos no processo de produção, menores os problemas enfrentados. Os riscos e as ameaças contidos nas situações de trabalho suscitam a iniciativa, favorecendo a multiplicidade das tarefas e permitindo à empresa economizar com investimento efetivo em formação profissional, que, de outro modo, seria bastante custoso de viabilizar. Consequentemente, criam-se condições propícias para a emergência de um cenário de pressões físicas e psicológicas, das mais adversas e precárias, no ambiente de trabalho (Dejours, 2013DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez, 2013.).
VIOLÊNCIAS PSICOLÓGICAS NO TRABALHO
Em decorrência de pesquisas realizadas nas áreas da psicologia e da medicina do trabalho, os danos físicos, psíquicos e emocionais sofridos pelos indivíduos, no ambiente de trabalho, ganharam visibilidade, admitindo-se que são causados por pressões hierárquicas, manifestações de desrespeito à dignidade da pessoa humana ou intensificação física e mental das exigências organizacionais. Assim, anteriormente invisíveis, banalizadas e aceitas socialmente, as violências no ambiente de trabalho passaram a ser combatidas. Inicialmente, rejeitando-se danos à saúde física. Posteriormente, de modo reflexivo, violências psicológicas também passaram a ser moralmente repreendidas.
Para Giddens (1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991., 1997GIDDENS, A. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, A.; BECK, U.; LASCH, S. Modernização reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997. p. 73-133., 2002GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.), a reflexividade ou o monitoramento reflexivo da ação é uma característica definidora da ação humana. Ela corresponde à capacidade de cognição que os indivíduos possuem sobre como as suas ações impactam no mundo e como este impacta sobre eles. Nas sociedades tradicionais “a tradição é um modo de integrar a monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade [...]. A tradição não é inteiramente estática, porque ela tem que ser reinventada a cada nova geração conforme essa assume sua herança cultural dos precedentes” (Giddens, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991., p. 44). Por sua vez, nas sociedades modernas, a reflexividade encontra-se na base de reprodução do sistema, o que faz com que pensamento e ação se reflitam, constantemente, um no outro.
Na modernidade reflexiva, mecanismos de desencaixe dos sistemas sociais, como as fichas simbólicas e os sistemas peritos, removem as relações sociais das imediações dos contextos particulares nos quais os atores sociais estão inseridos (Giddens, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.). As primeiras correspondem aos meios de intercâmbio que podem ser “circulados” sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com elas em qualquer conjuntura particular. O dinheiro seria um exemplo de ficha simbólica. Os segundos seriam os sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos e, por isso, se encontram no cerne da ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais à luz de contínuas entradas (inputs) de conhecimento, afetando as ações de indivíduos e grupos. A psicologia e a medicina do trabalho são exemplos de sistemas peritos.
Os avanços e os resultados de pesquisas nas áreas da psicologia e da medicina do trabalho têm sido cruciais para as mudanças no modo de avaliação moral das formas de violência psicológica no ambiente de trabalho ou, se preferirmos, no monitoramento reflexivo de ações que, por se encontrarem naturalizadas por práticas culturais hierarquizadas e autoritárias, manifestam-se como aceitáveis.
De acordo com Soboll (2008)SOBOLL, L. A. P. Assédio moral/organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008., as violências no trabalho são divididas em três categorias, considerando a natureza dos comportamentos agressivos que envolvem pessoas externas e internas à organização: física, sexual e psicológica. Na conceituação da Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência física é descrita como o uso da força física contra uma pessoa ou grupo, o que pode resultar em prejuízo no desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social. Já a violência sexual inclui o assédio sexual e as agressões físicas e psicológicas de natureza sexual no local de trabalho, que podem envolver chantagens e ameaças profissionais, de forma explícita ou implícita. Por último, caracterizada mais recentemente, a violência psicológica, ou o assédio psicológico, é considerada a mais difícil de ser identificada, pois, na maioria dos casos, está oculta nas ações individuais. Salienta-se que a violência psicológica está presente também em casos de violência física e sexual.
A violência psicológica, no ambiente de trabalho, pode ocorrer de diversas formas, encontrando inúmeras denominações abordadas pela doutrina jurídica, como assédio sexual, assédio moral (de modo interpessoal), assédio organizacional ou institucional (de modo coletivo), straining (gestão por estresse), maltrato psicológico, agressões psicológicas reiteradas e discriminação moral. Manifestam-se na forma de abusos verbais, condutas e comportamentos ameaçadores, intimidadores e humilhantes, que prejudiquem as relações de trabalho e a saúde mental do trabalhador, podendo ser causadores de várias doenças, como estresse, síndrome de burnout, ansiedade e depressão, podendo, em casos extremos, conduzir ao suicídio (Namie; Namie, 2013NAMIE, G.; NAMIE, R. Bullying no trabalho. Rio de Janeiro: Best Business, 2013.).
O entendimento jurídico que começa a ser delineado é o de que as violências psicológicas, no ambiente de trabalho, podem ocorrer de forma individual ou coletiva. O primeiro tipo se caracteriza por repetidos ataques psicológicos ao assediado, mediante atos diversos que vão desde aqueles aparentemente inocentes até os ostensivamente humilhantes, que afetam psiquicamente o empregado e provocam uma degradação das condições de trabalho. No segundo tipo, os atos ocorrem de modo institucionalizado, banalizando-se procedimentos, atitudes e comportamentos psicologicamente aviltantes que transcendem a relação entre vítima e agressor, uma vez que se efetivam em uma rede de relações sociais instituída pelas práticas de gestão organizacional.
A saúde mental dos trabalhadores e as formas de violência no trabalho são preocupações de organismos internacionais como OIT e OMS. A primeira reconhece o alcance de atos menores de violência laboral, tanto em suas manifestações físicas quanto psicológicas, assim como reconhece que, mesmo não resultando em danos ou morte, elas podem acarretar cargas ou prejuízos significativos para os indivíduos, seus familiares, as comunidades e os sistemas de saúde em geral. Por sua vez, a OMS reconhece como violência as ameaças, as intimidações e as omissões que, no ambiente de trabalho, se apresentam como humilhações, perseguições, assédio moral ou assédio organizacional.
Em virtude do reconhecimento das violências psicológicas no trabalho por organismos internacionais como OIT e OMS, assim como de pesquisas sobre o tema, formas de desrespeito e de abuso, que até recentemente eram naturalizadas nas relações de trabalho, reflexivamente tornam-se práticas condenáveis. Desse modo, têm sido promovidas respostas jurídicas protetivas de direitos da personalidade que estão relacionadas à ampliação da sensibilidade social sobre o que significa o conceito de dignidade da pessoa humana.
O termo violência psicológica refere-se às agressões promovidas por comportamentos, palavras, gestos, atitudes, expressões faciais e olhares que visam a perpetuar fatos e situações intensas de força desproporcional. Esse tipo de violência, também denominada de violência moral, corresponde à transgressão a um código de regras morais vigentes em determinado grupo social. A despeito de o assédio moral ser a modalidade mais conhecida desse tipo de violência, ele é apenas uma de suas manifestações. Outras seriam: humilhações, provocações de grupos, discriminações, gestão por estresse; gestão por injúria, agressões pontuais e assédio organizacional ou institucional (Soboll, 2008SOBOLL, L. A. P. Assédio moral/organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.).
O assédio moral começou a ser compreendido tal como hoje o é apenas a partir da década de 1980, como resultado de pesquisas nas áreas da saúde e da psicologia, nas quais foram largamente demonstrados os efeitos danosos dessa prática. As análises sobre as violências psicológicas geraram reflexivamente denominações até então inexistentes sobre tais ocorrências. No caso específico das violências no ambiente de trabalho, o assédio moral é uma delas, correspondendo ao conjunto de comportamentos ofensivos à subjetividade do indivíduo, que atinge sua identidade. Constitui-se de atos ou processos agressivos transgressores das regras que garantem a harmonia e o convívio social e se manifesta por meio de instrumentos coercitivos (explícitos ou sutis) ou por fatos, situações ou ações de intensa desproporcionalidade, permeadas de exageros, abusos, maus-tratos, isolamento, perseguição, humilhação, intimidação, manipulação, ameaças, constrangimentos e pressões excessivas. Pode implicar prejuízo à saúde física e psicológica, à autodeterminação ou ao desenvolvimento pessoal e social, e ocasiona, ou tem grandes possibilidades de ocasionar, danos psíquicos, alteração no desenvolvimento e privações individuais (Soboll, 2008SOBOLL, L. A. P. Assédio moral/organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.).
Segundo Hirigoyen (2012b), o assédio moral distingue-se do estresse ou da pressão no ambiente de trabalho, ou ainda do desentendimento ou conflito laboral. O estresse é um estado biológico gerado por situações de ordem social ou sociopsicológica; é constituído por sobrecargas e más condições de trabalho, podendo estar relacionado apenas a uma fase do assédio moral. O estresse repetitivo, gerado por pressões ao desempenho de tarefas múltiplas, pode esgotar o trabalhador e levá-lo à síndrome de burnout, ou depressão por esgotamento. Nos casos de assédio moral, distintamente, não se trata apenas de otimizar os resultados, mas de afastar o trabalhador por meio de constantes humilhações. O assédio moral possui um objetivo: um interesse consciente de prejudicar. Apesar das distinções, o assédio moral no trabalho pode entrelaçar-se com as demais especificidades.
O assédio moral pode gerar danos tanto para o trabalhador quanto para as organizações e para sociedade de um modo geral. Para o trabalhador, incide sobre as esferas emocional, social e familiar, podendo afetar sua saúde e sua condição financeira. Para as empresas, pode implicar redução da capacidade produtiva, redução da qualidade e da quantidade de trabalho, aumento do absenteísmo e da rotatividade, desmotivação no trabalho, custos com processos judiciais, custos com substituições e falta de pessoal. Para a sociedade, pode gerar aumento dos custos previdenciários, aposentadorias precoces e licenças de saúde prolongadas.
O sofrimento individual, de natureza mental, começa quando o homem, inserido no ambiente de trabalho, já não pode fazer modificações na sua tarefa no sentido de adequá-la às suas necessidades fisiológicas e aos de seus anseios psicológicos. Tal quadro pode promover o bloqueio da relação entre homem e trabalho, uma vez que acentua a desilusão individual em relação ao trabalho, a passividade ante as humilhações, o que reitera as práticas do assediador, contribuindo para a rotinização delas no convívio laboral. Assim, sentimentos como medo, incerteza, insegurança e isolamento tendem a ser intensificados em situações de violências morais (Dejours, 1992).
Segundo Hirigoyen (2012a, 2012b), o que é característico dos casos de assédio moral é a predominância da vergonha e da humilhação, gerando consequências específicas sobre a subjetividade do trabalhador e transformando sua ordem psíquica:
O assédio moral pode provocar uma destruição da identidade e influenciar por muito tempo o temperamento da pessoa. Nossa identidade se constrói progressivamente desde a infância e nunca está definitivamente formada. Quando somos vítimas de uma agressão contra a qual não temos meios psíquicos de lutar, pode ocorrer uma acentuação de traços de personalidade anteriores ou surgir distúrbios psiquiátricos. Trata-se de uma verdadeira alienação, no sentido de que a pessoa perde o próprio domínio e se sente afastada de si mesma (Hirigoyen, 2012b, p. 175).
O assédio moral é um ataque à rotina, à habitualidade, à confiança depositada no outro, o que acarreta uma perturbação ao indivíduo. Ademais, as dúvidas e as inseguranças sobre as próprias ações, o estresse, o medo e o isolamento são radical e perversamente intensificados em casos de assédio moral, visto que se trata de uma agressão à identidade do outro. Assim:
O sentimento de vergonha vem acompanhado, como condição essencial, dos sentimentos de inferioridade e de exposição. Ao ser observada, a pessoa passa de sujeito para objeto, alvo de olhares e juízos, numa posição vulnerável e de inferioridade. A vergonha evidencia a vulnerabilidade de estar no olhar do outro para ser julgado. Se o julgamento é negativo, a vergonha vem acompanhada de culpa, medo, sofrimento e tem relação direta com a identidade. [...] A exposição – acompanhada de rebaixamento – apresenta-se como destruidora da identidade e tem como consequências a vergonha, a culpa e o medo (Soboll, 2008SOBOLL, L. A. P. Assédio moral/organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008., p. 151-152).
O sentimento de inferioridade do assediado é reforçado por situações de rebaixamento moral que estão associadas à aceitação da imagem negativa que o outro lhe impõe. O medo surge como o indício de uma relação assimétrica e intersubjetiva, na qual o inferiorizado se encontra em condição vulnerável em relação ao outro. A ofensa repetida evidencia a relação de inferioridade, e a imagem negativa que o outro impõe, quando assimilada, afeta a autoestima e a autoconfiança do indivíduo (Soboll, 2008SOBOLL, L. A. P. Assédio moral/organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.).
A mobilização de sentimentos de vergonha e de medo compõe o sistema disciplinar sustentado na humilhação e nas ameaças. Sentir-se incompetente, ser humilhado, esconder seu sofrimento são comportamentos que desenham o trabalho permeado de violência psicológica, fonte de sofrimento, de adoecimento e de prejuízos na vida social e familiar. O trabalho perde o sentido na construção da identidade, num contexto de vida em que predominam vínculos afetivos também superficiais e temporários (Soboll, 2008SOBOLL, L. A. P. Assédio moral/organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008., p. 153).
A identidade se constrói progressivamente durante a vida de um indivíduo, com início na infância e nunca definitivamente é formada. Quando o indivíduo é vítima de uma agressão contra a qual não possui meios psíquicos de enfrentar, pode ocorrer a acentuação de traços de personalidade anteriores ou surgirem distúrbios psiquiátricos. Assim, o assédio moral pode provocar a destruição da (auto) identidade e influenciar, por um longo tempo, o temperamento da pessoa (Hirigoyen, 2012b).
As consequências do assédio moral para o indivíduo dependem da segurança ontológica construída no decorrer de suas experiências. Ademais, por se tratar de uma espécie de violência psicológica, há uma tendência à dissimulação, ensejando a invisibilidade dos danos à saúde. Os danos à mente e ao corpo são variáveis, dependendo da resiliência física e psíquica, da maturidade, da imunidade e da condição de saúde de cada indivíduo.
O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS VIOLÊNCIAS PSICOLÓGICAS NO TRABALHO
Já primeira metade do século XX, devido ao crescente questionamento social sobre alguns aspectos nefastos que perduravam nas relações laborais e sobre a pauperização de uma parte considerável da classe trabalhadora, o Estado buscou “proteger” os trabalhadores frente a situações de insegurança e instabilidade que os tornavam vulneráveis ao poder diretivo do capital. Os direitos trabalhistas adquiridos nesse período decorreram de lutas sociais por melhores condições de trabalho e vida e de uma preocupação crescente dos Estados capitalistas em promover garantias jurídicas aos trabalhadores objetivando a reprodução do sistema econômico. Nesse contexto, os movimentos em defesa da saúde dos trabalhadores ganharam força e passaram a reivindicar mais intensamente a efetivação de direitos referentes às condições físicas e psicológicas dos trabalhadores.
O combate às violências psicológicas no ambiente de trabalho é uma consequência de um esforço de construção jurídica ativado por demandas sociais. O reconhecimento jurídico pleiteado origina-se em demandas resultantes de uma reflexividade social respaldada em conhecimentos produzidos nas áreas das ciências sociais, que contribuíram para mudanças sobre as percepções morais a respeito da vida social e da noção de indivíduo como sujeito de direitos e nas áreas da psicologia e da medicina do trabalho, nas quais são evidenciados os danos de ordem psíquica e emocional causados à saúde do trabalhador, derivadas de pressões excessivas e (ou) aviltantes no ambiente de trabalho. Nesse sentido, é possível dizer que:
[...] a estrutura [...] só assume a forma de reconhecimento do direito quando ela se torna dependente historicamente das premissas dos princípios morais universalistas. Pois, com a passagem para a modernidade, as categorias pós-convencionais, que já antes foram desenvolvidas na filosofia e na teoria política, penetram no direito em vigor, submetendo-o às pressões de fundamentação associadas à ideia de um acordo racional acerca de normas controversas; o sistema jurídico precisa ser entendido, de agora em diante, como expressão dos interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, de sorte que ele não admita mais, segundo sua pretensão, exceções e privilégios. Visto que, desse modo, uma disposição para a obediência de normas jurídicas só pode ser esperada dos parceiros de interação quando eles puderem assentir a elas, em princípio, como seres livres e iguais. Migra para a relação de reconhecimento do direito uma nova forma de reciprocidade, altamente exigente: obedecendo à mesma lei, os sujeitos de direito se reconhecem reciprocamente como pessoas capazes de decidir com autonomia individual sobre normas morais (Honneth, 2003HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: 34, 2003., p. 181-182).
Nas sociedades tradicionais, o reconhecimento jurídico estava vinculado ao valor social atribuído às propriedades e às qualidades pessoais de um indivíduo. O reconhecimento de direitos era classificado distintivamente conforme o status social. Nessas sociedades, fortemente hierarquizadas, diante da fusão da honra e da dignidade, o reconhecimento de um indivíduo como possuidor de direitos estava vinculado à estima social, logo, a dignidade do indivíduo era restrita. Diferentemente disso, na modernidade, entre as consequências sociais da universalização da noção cidadania, tem-se a nítida separação jurídica entre a estima social e a dignidade nas relações. Assim, a moral moderna impõe que todo e qualquer indivíduo, independentemente de sua classe social, possa potencialmente usufruir de reconhecimento jurídico. No plano individual, a universalização da imputabilidade moral permitiu, ao romper com o reconhecimento pela estima social das sociedades hierarquizadas, a gestação das condições necessárias para a autorrelação prática do “autorrespeito” (Honneth, 2003HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: 34, 2003.).
[...] visto que possuir direitos individuais significa poder colocar pretensões aceitas, eles dotam o sujeito individual com a possibilidade de uma atividade legítima, com base na qual ele pode constatar que goza do respeito de todos os demais. É o caráter público que os direitos possuem, porque autorizam seu portador a uma ação perceptível aos parceiros de interação, o que lhes confere a força de possibilitar a constituição do autorrespeito; pois, com a atividade facultativa de reclamar direitos, é dado ao indivíduo um meio de expressão simbólica, cuja efetividade social pode demonstrar-lhe reiteradamente que ele encontra reconhecimento universal como pessoa moralmente imputável. [...] então se poderá tirar a conclusão de que um sujeito é capaz de se considerar, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da vontade; e a possibilidade de se referir positivamente a si mesmo desse modo é o que podemos chamar de “autorrespeito” (Honneth, 2003HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: 34, 2003., p. 181-182).
O reconhecimento jurídico constitui uma proteção contra atos que afetam o autorrespeito do indivíduo, preservando sua integridade moral por combater formas de desrespeito decorrentes do rebaixamento moral ou da humilhação social. O rebaixamento moral gera um sentimento de vergonha social, no qual o conteúdo emocional é caracterizado por uma baixa autoestima resultante de um sentimento de inferioridade em relação aos outros, criando, assim, uma autoimagem depreciativa que mina os ideais individuais da cidadania.
Diante da experiência do desrespeito psíquico e da emergência dos ideais da autoidentidade, originaram-se as chamadas “políticas de identidade”, articuladas na forma de luta por reconhecimento jurídico. Derivadas, em princípio, das lutas dos movimentos negros por direitos civis nos Estados Unidos nos anos de 1960, as políticas de identidade reivindicavam a ampliação dos direitos individuais fundamentais, os direitos à dignidade do indivíduo e de grupos estigmatizados socialmente. Embora as violências psicológicas não fossem caracterizadas da forma como concebemos atualmente, é nesse contexto histórico que surgem as primeiras demandas jurídicas sobre os constrangimentos morais no trabalho (Thome, 2009THOME, C. F. O assédio moral nas relações de emprego. São Paulo: LTr, 2009.).
No Brasil, a partir das décadas de 1970 e 1980, a demanda social por melhores condições de saúde e segurança para os trabalhadores induziu a inclusão de medidas protetivas por meio de normas coletivas de trabalho, isto é, de convenções coletivas de trabalho pactuadas entre empregadores e empregados para o estabelecimento de regras no âmbito de categorias econômicas ou profissionais ou de acordos coletivos, limitados às empresas acordantes e a seus empregados. Entretanto, diante de ilegalidades e violações ao cumprimento de normas relativas à saúde do trabalhador, a Justiça do Trabalho tem sido invocada frequentemente para posicionar-se a respeito.
Nesse sentido, a CF/88, em seu art. 5°, inciso X, teve papel essencial ao incluir os direitos da personalidade no quadro dos direitos fundamentais, admitindo-os, assim, como uma espécie do gênero dos direitos humanos. É necessário dizer que, o reconhecimento dos direitos da personalidade como uma categoria dos direitos subjetivos, isto é, àqueles inerentes ao indivíduo, os tornam, por definição, irrenunciáveis e intrasmissiveis. Nos termos constitucionais, são definidos como invioláveis e relacionados à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem da pessoa e a quaisquer outros aspectos relacionados à identidade pessoal. Assim, respaldados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, ganharam proteção constitucional e sua violação pode ensejar a responsabilização por danos morais e reparações pecuniárias. Disso se depreende que os direitos da personalidade estão indissocialmente ligados ao reconhecimento da dignidade humana, atributo fundamental para o desenvolvimento das potencialidades físicas, psíquicas e morais de todo ser humano. Ao se reconhecer essa tutela jurídica para o trabalhador no ambiente de trabalho, os poderes do empregador2 2 Do ponto de vista jurídico, o poder diretivo, poder organizativo ou de comando, permite ao empregador definir e organizar a estrutura interna da empresa, isto é, os processos de trabalho, as rotinas e o andamento das atividades exercidas pelo empregado. Em outras palavras, é o poder de estabelecer regras a serem observadas durante a prestação de serviços decorrentes do vínculo jurídico trabalhista. O poder de regulamentação corresponde à exteriorização do poder diretivo no cotidiano das atividades empresariais por meio de ordens de serviços (verbais e escritas) que visam a organizar o exercício das atividades desenvolvidas. O poder disciplinar ou poder de controle corresponde à prerrogativa conferida ao empregador de desempenhar o exercício da vigilância no espaço interno da empresa e de impor sanções ao empregado na hipótese de inobservância de suas obrigações contratuais. Tal exercício deste não poderá constituir violação de direitos e de garantias fundamentais expressos na CF de 88, como, por exemplo, o direito de inviolabilidade da intimidade (art, 5.º, X, da CF/88) e de não ser submetido a tratamento desumano ou degradante (art, 5.º, III, da CF/88). (poder diretivo, de regulamentação, de fiscalização e disciplinar), positivados na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), foram restringidos em seus possíveis excessos.
Na teoria do reconhecimento de Taylor (1989)TAYLOR, C. Sources of the self: the making of the modern identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989. os direitos da personalidade pressupõem três condições essenciais: autonomia da vontade, alteridade e dignidade. A primeira se configura mediante a fruição da autonomia moral de toda pessoa humana. A segunda pelo reconhecimento de cada ser humano como entidade única e distinta de seus semelhantes, que só adquire forma com a existência do outro. A terceira é um atributo derivado das duas precedentes, pois sua efetivação só é possível se o ser humano for autônomo em sua vontade e se houver o reconhecimento de sua alteridade na comunidade na qual está inserido. É exatamente a proteção dessas três condições que se configuram, no direito positivo, sob a denominação de direitos da personalidade.
Feita essa pequena digressão teórica, necessária para os fins de nossa análise, voltemos à discussão sobre normatividade jurídica. Da mesma forma que os direitos da personalidade, também foram positivados, constitucionalmente, os direitos à saúde, segurança, higiene e medicina do trabalho, que, de modo direto ou indireto, relacionam-se com os conteúdos dos artigos 6° e 7°, assim como dos artigos 196 a 200 da CF/88. Assim, tornou-se direito social indisponível dos trabalhadores, ou seja, direito público subjetivo, exercerem suas funções em ambientes seguros e sadios, cabendo ao empregador tomar as medidas necessárias no sentido de reduzir os riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Em 2004, a Emenda Constitucional nº 45 alterou e ampliou a competência da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar ações sobre as relações de trabalho, inclusive àquelas entre trabalhadores e entes de direito público externo, da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Portanto, após a positivação de direitos relativos à saúde do trabalhador na CF/88, o entendimento passou a ser o de que o direito à saúde e de personalidade também acompanham os contratados de trabalho. Se, antes, havia a controvérsia da competência para julgamentos relativos à saúde do trabalhador, com essa mudança de direção, a Justiça do Trabalho incorporou tais questões, aumentando, assim, a visibilidade e o debate sobre os tipos de violência no ambiente de trabalho.
No Direito brasileiro, não há regulamentação, positivação ou descrição específica de questões relativas às violências psicológicas no ambiente de trabalho. Porém, segundo Calvo (2014)CALVO, A. O direito fundamental à saúde mental no ambiente de trabalho: o combate ao assédio moral institucional. São Paulo: LTr, 2014., isso não significa que haja uma lacuna jurídica, uma vez que existe a tutela de diversos princípios contidos na CF/88. Assim, a proteção da saúde mental no trabalho é um direito fundamental reconhecido pela justaposição com diversos instrumentos e princípios internacionais, nascendo ao mesmo tempo do direito à saúde e constituindo-se em um direito da pessoa humana, bem como a um ambiente de trabalho sadio, parte integrante dos direitos sociais que visam à proteção dos trabalhadores em face da exploração do trabalho. A noção de dignidade constitui, a título supletivo, um alicerce do direito à proteção da saúde mental do trabalhador e do combate às violências psicológicas no trabalho (Baruki, 2015BARUKI, L.V. Riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador: por um regime jurídico preventivo. São Paulo: LTr, 2015.).
Além da violação ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, as práticas de violências psicológicas no ambiente de trabalho também ofendem o princípio dos valores sociais do trabalho. Em uma concepção jurídica contemporânea, a dignidade da pessoa humana exige, entre outras coisas, a proteção do trabalho decente como trabalho digno. A esse respeito, trabalho decente é entendido como aquele que é convenientemente remunerado, que se faz em condições de salubridade aceitável e que origina relações humanas que respeitem a dignidade do trabalhador.
No caso da saúde mental, a tutela protetiva, assegurada pelo art. 7º, inciso XXII, da CF/88, garante acesso a um ambiente de trabalho sadio e equilibrado, no qual sejam reduzidos os riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (Baruki, 2015BARUKI, L.V. Riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador: por um regime jurídico preventivo. São Paulo: LTr, 2015.). Se, no texto constitucional, esse direito está implícito, em legislação ordinária aparece expresso no art. 3°, parágrafo único, da Lei 8.080/90, a chamada lei do Sistema Único de Saúde (SUS): “... dizem respeito também à saúde às ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem estar físico, mental e social” (Oliveira, 2010OLIVEIRA, S. G. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. São Paulo: LTr, 2010.).
Com a entrada em vigor, no Brasil, das Convenções nº 1553 3 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº2, de 17/03/1992, ratificada em 18/05/1992 e promulgada pelo Decreto n.1254 de 19/09/1994. e 1614 4 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 86 de 14/12/1989, ratificada em 18/05/1990 e promulgada pelo Decreto nº 127, de 22/05/1991 da OIT, respectivamente de 1981 e 1985, a segurança e a saúde no ambiente de trabalho foram juridicamente ratificadas. A primeira, de modo pioneiro, aborda a relação entre ambiente de trabalho, saúde e segurança do trabalhador, indicando que saúde se corresponde apenas à ausência de afecções ou doenças, mas também de elementos físicos e mentais que afetam a saúde e que estão diretamente ligados à segurança e à higiene do trabalho. Já a segunda, reconhece os “Serviços de Saúde no Trabalho” como medidas preventivas adequadas para o estabelecimento e a manutenção de um ambiente de trabalho seguro e salubre, favorecendo a saúde física e mental do trabalhador.
Assim, considera-se que a integridade física do trabalhador é um direito da personalidade oponível ao empregador. Por isso, a integridade psíquica mereceria uma tutela protetiva apriorística, típica daquela reservada aos direitos fundamentais, pois eles devem ser respeitados, independentemente de qualquer formalismo, positividade ou tipicidade. A fragilidade da proteção jurídica das violências psicológicas no ambiente de trabalho indica haver necessidade de formalismos e sanções. Todavia a falta de legislação específica sobre o tema não impede uma fundamentação jurídica. Por exemplo, a jurisprudência da Justiça do Trabalho tem sido fundamentada no Art. 483 da CLT, que versa sobre danos morais trabalhistas e na própria CF de 88, que garante o direito ao meio ambiente de trabalho saudável. Além da possibilidade de indenização financeira, pode-se ajuizar ação requerendo a rescisão do contrato de trabalho por culpa do empregador. No campo previdenciário, é possível reconhecer a violência como causadora de doença relacionada ao trabalho.
Segundo Thome (2009)THOME, C. F. O assédio moral nas relações de emprego. São Paulo: LTr, 2009., no Brasil, casos de constrangimento moral vêm sendo julgados na Justiça desde a década de 1960. Porém as demandas judiciais por reparações advindas de violências psicológicas no trabalho, nos termos e espécies concebidas atualmente, iniciam-se apenas no começo deste século. Especificamente sobre assédio moral, a primeira decisão judicial ocorreu em 2002, no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 17ª Região, Espírito Santo, referente à classificação e enquadramento de perseguições sofridas por um técnico de publicidade e propaganda. A esse respeito, Calvo assevera que:
A tortura psicológica, destinada a golpear a autoestima do empregado, visando forçar sua demissão ou apressar sua dispensa através de métodos que resultem em sobrecarregar o empregado de tarefas inúteis, sonegar-lhe informações e fingir que não o vê resultam em assédio moral, cujo efeito é o direito à indenização por dano moral, porque ultrapassa o âmbito profissional, eis que mina a saúde física e mental da vítima e corrói a sua autoestima (Calvo, 2014CALVO, A. O direito fundamental à saúde mental no ambiente de trabalho: o combate ao assédio moral institucional. São Paulo: LTr, 2014., p. 52).
No TRT 4ª Região, Rio Grande do Sul, a primeira decisão sobre o tema foi deferida em 2003. As primeiras decisões sobre o tema são recentes, mas a demanda judicial tem crescido rapidamente. No caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, estado por nós analisado mais detalhadamente na pesquisa que deu origem a este artigo, entre 2004 e 2009, o número de decisões praticamente dobrou a cada ano, estabilizando o ritmo de crescimento a partir de 2009. Até o ano de 2014, o TRT da 4ª Região havia julgado 9.858 processos sobre o tema.
Por sua vez, o chamado assédio moral organizacional ou institucional, aquele que se diferencia do assédio moral comum por não ser individual, mas sim coletivo, isto é, por estar incorporado à política de gestão empresarial, teve sua primeira decisão judicial em um processo do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte contra uma companhia de bebidas, sendo deferido pelo TRT da 17ª Região em 2006. Embora essa espécie de assédio moral seja de mais difícil comprovação judicial, a demanda também tem crescido significativamente. No Tribunal Superior do Trabalho, órgão máximo da Justiça do trabalho brasileira, até agosto de 2016, registravam-se, na pauta de julgamentos, 2.150 processos solicitando indenização por danos morais em casos de assédio moral, seja em sua modalidade individual ou coletiva (TST, 2016).
A insuficiência de dados oficiais e o receio dos trabalhadores em denunciar seus empregadores ainda são obstáculos a serem superados. Ademais, os fatores que mais dificultam a formulação de leis sobre o tema e, por conseguinte, a instauração de punições cabíveis, são o elevado teor de subjetividade que tais ocorrências suscitam e a dificuldade de estabelecer o nexo causal entre o assédio e uma eventual situação de adoecimento. Não podemos esquecer que, em se tratando de ações judiciais, para que o assédio moral fique caracterizado, além das impressões do assediado, faz-se necessária a apresentação de provas materiais e testemunhais da conduta lesiva. A despeito desses obstáculos e dificuldades, não se pode negar que, no período considerado, o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho têm atuado no sentido de reconhecer que, por representarem uma ameaça à dignidade humana, as violências psicológicas no ambiente de trabalho devem ser coibidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aqui, procuramos analisar o reconhecimento jurídico da proteção à saúde do trabalhador ante as violências psicológicas ocorridas no ambiente de trabalho. A condição de sujeito de direitos do trabalhador, reconhecida pelo direito brasileiro, resulta na compreensão de limites ao poder diretivo do empregador sobre formas de agressão psicológica até então naturalizadas por práticas de gestão autoritárias.
A interlocução do direito com áreas do conhecimento, como a medicina do trabalho e a psicologia, tem possibilitado o reconhecimento jurídico das formas de violência psicológica no ambiente de trabalho, como formas sutis, individuais ou estruturalmente difusas de obtenção do “consentimento” do trabalhador às condições de trabalho as quais está submetido. Além do reconhecimento jurídico de coações individuais verticalizadas, impostas por chefias hierárquicas, também são reconhecidas formas de coação organizacional, correspondentes àquelas feitas por colegas que se encontram nas mesmas turmas ou grupos de trabalho, caracterizando, assim, coações horizontalizadas.
No Brasil, embora casos de humilhações e constrangimentos já venham sendo julgados na Justiça desde a década de 1960, o reconhecimento jurídico das violências psicológicas, como concebidas atualmente, ocorreu apenas no início deste século. Desde então, tais ocorrências passaram a ser pleiteadas ante o poder judiciário de modo mais claro e veemente. Assim, podemos observar que esses tipos de violência passaram a ser compreendidos como afrontas aos princípios jurídicos fundamentais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, como também em desacordo com convenções da OIT que versam sobre a proteção à saúde mental do trabalhador.
O reconhecimento jurídico de certas práticas como causadoras de danos de ordem psíquica e emocional, no ambiente de trabalho, está relacionado a uma mudança reflexiva na compreensão moral de princípios como liberdade individual e dignidade da pessoa humana. Esse quadro sinaliza o reconhecimento jurídico da proteção à saúde mental do trabalhador como um problema de ordem social. Todavia não podemos desconsiderar que a demanda social por medidas de enfrentamento dessa questão sofre resistência de parte do empresariado brasileiro que, ainda imersa em referências culturais hierarquizadas e autoritárias, naturaliza a experiência do desrespeito e da humilhação no ambiente de trabalho.
REFERÊNCIAS
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» http: //www.tst.jus.br/documents/10157/bf98013f-9c3a-4134-863d-d4ef59114ca1
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Vale ressaltar que a pesquisa que deu origem a este artigo foi finalizada antes das profundas mudanças introduzidas na CLT pela lei N° 13.467 de 2017. Portanto, os resultados obtidos, assim como a análise empreendida, levaram em conta uma tutela jurídica das relações de trabalho que claramente possuía normas bem menos desfavoráveis aos trabalhadores. Afinal, com a Reforma Trabalhista de 2017, foram criados dispositivos obstaculizadores à capacidade postulatória do trabalhador, entre os quais: a) a retirada da justiça gratuita por declaração de insuficiência financeira do trabalhador (art. 790, §3º, e §4º da CLT); b) a inclusão de dispositivo autorizando a condenação de honorários advocatícios de sucumbência no patamar de 5% a 15% à parte vencida (art. 791-A §1º, §2º e §3º da CLT); e c) a responsabilização por litigância de má-fé, no percentual superior a 1% e inferior a 10%, ao trabalhador que der causa a alguma situações fáticas (artigos 793-A, 793-B, 793-C e 793-D da CLT). Todos esses dispositivos se apresentam como fortes obstáculos no que concerne à postulação do reconhecimento judicial de eventuais violências psicológicas sofridas no ambiente de trabalho, uma vez que se trata de um tipo de dano de difícil comprovação devido ao elevado teor de subjetividade que as experiências implicadas nesses tipos de ocorrências suscitam e a dificuldade de estabelecer o nexo causal entre o assédio e uma eventual situação de adoecimento
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Do ponto de vista jurídico, o poder diretivo, poder organizativo ou de comando, permite ao empregador definir e organizar a estrutura interna da empresa, isto é, os processos de trabalho, as rotinas e o andamento das atividades exercidas pelo empregado. Em outras palavras, é o poder de estabelecer regras a serem observadas durante a prestação de serviços decorrentes do vínculo jurídico trabalhista. O poder de regulamentação corresponde à exteriorização do poder diretivo no cotidiano das atividades empresariais por meio de ordens de serviços (verbais e escritas) que visam a organizar o exercício das atividades desenvolvidas. O poder disciplinar ou poder de controle corresponde à prerrogativa conferida ao empregador de desempenhar o exercício da vigilância no espaço interno da empresa e de impor sanções ao empregado na hipótese de inobservância de suas obrigações contratuais. Tal exercício deste não poderá constituir violação de direitos e de garantias fundamentais expressos na CF de 88, como, por exemplo, o direito de inviolabilidade da intimidade (art, 5.º, X, da CF/88) e de não ser submetido a tratamento desumano ou degradante (art, 5.º, III, da CF/88).
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Aprovado pelo Decreto Legislativo nº2, de 17/03/1992, ratificada em 18/05/1992 e promulgada pelo Decreto n.1254 de 19/09/1994.
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Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 86 de 14/12/1989, ratificada em 18/05/1990 e promulgada pelo Decreto nº 127, de 22/05/1991
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Out 2019 -
Data do Fascículo
May-Aug 2019
Histórico
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Recebido
16 Nov 2016 -
Aceito
01 Jul 2019