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Para: Injúria renal aguda e hipertensão intra-abdominal em paciente queimado em terapia intensiva

Ao Editor

A dificuldade do manejo de fluidos em pacientes grande queimados e o fato de a monitorização da pressão intra-abdominal (PIA) não ser ainda uma rotina da terapia intensiva tornam mandatória a leitura do artigo de Talizin et al.,(11 Talizin TB, Tsuda MS, Tanita MT, Kauss IA, Festti J, Carrilho CM, et al. Acute kidney injury and intra-abdominal hypertension in burn patients in intensive care. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(1):15-20) especialmente para profissionais que trabalham com esse grupo de pacientes.

A resposta inflamatória sistêmica observada no paciente grande queimado justifica a ocorrência da síndrome do estresse intestinal agudo, uma teoria moderna descrita por Malbrain, que explica a fisiopatologia da hipertensão intra-abdominal/síndrome compartimental abdominal. Segundo Malbrain, qualquer lesão de isquemia e reperfusão levam à síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SRIS) e intestinal, o que gera aumento da permeabilidade vascular intestinal. Dessa forma, ocorrem a translocação bacteriana, a absorção de endotoxinas e o edema intersticial. Este edema é responsável pela obstrução da drenagem linfática para fora da cavidade abdominal, ocasionando a elevação da PIA que, por sua vez, gera mais SRIS, fechando o "ciclo vicioso" do estresse intestinal agudo.(22 Malbrain ML, Vidts W, Ravyts M, De Laet I, De Waele J. Acute intestinal distress syndrome: the importance of intra-abdominal pressure. Minerva Anestesiol 2008;74(11):657-73.)

A insuficiência renal é uma importante consequência da hipertensão intra-abdominal, sendo de causa multifatorial, como descrito por Doty et al.(33 Doty JM, Saggi BH, Blocher CR, Fakhry, Gehr T, Sica D, et al. Effects of increased renal parenchymal pressure on renal function. J Trauma. 2000;48(5):874-7.,44 Doty JM, Saggi BH, Sugerman HJ, Blocher CR, Pin R, Fakhry I, et al. Effect of increased renal venous pressure on renal function. J Trauma. 1999;47(6):1000-3.) em estudos experimentais com animais. Doty et al. demonstraram que, no grupo com aumento isolado da pressão no parênquima renal, não houve redução significativa do fluxo renal e na taxa de filtração glomerular (TFG), assim como não ocorreu elevação da renina ou da aldosterona séricas.(33 Doty JM, Saggi BH, Blocher CR, Fakhry, Gehr T, Sica D, et al. Effects of increased renal parenchymal pressure on renal function. J Trauma. 2000;48(5):874-7.) No entanto, no modelo animal de síndrome compartimental abdominal, foi observada não só a diminuição da taxa de filtração glomerular, como a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, comprovadas pelo aumento da angiotensina II e da aldosterona séricas. A tentativa de correção do débito cardíaco com expansão volêmica não resultou em reversão da disfunção renal, porém a reversão da síndrome compartimental abdominal reverteu rapidamente o quadro.(44 Doty JM, Saggi BH, Sugerman HJ, Blocher CR, Pin R, Fakhry I, et al. Effect of increased renal venous pressure on renal function. J Trauma. 1999;47(6):1000-3.)

Não compreendemos por que Talizin et al.(11 Talizin TB, Tsuda MS, Tanita MT, Kauss IA, Festti J, Carrilho CM, et al. Acute kidney injury and intra-abdominal hypertension in burn patients in intensive care. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(1):15-20) investigaram a utilização de glicopeptídeos como fator de risco para hipertensão intra-abdominal, visto que não encontramos esta correlação na literatura. Acreditamos que, considerando que a sepse e a infecção intra-abdominal são descritas pela WSACS - The Abdominal Compartment Society como fatores de risco para hipertensão intra-abdominal/síndrome compartimental abdominal, é necessária uma melhor caracterização do grupo exposto ao uso de glicopeptídeos.

A mensuração intermitente da PIA por via intravesical em adultos foi descrita pela primeira vez por Kron et al.(55 Kron IL, Harman PK, Nolan SP. The measurement of intra-abdominal pressure as a criterion for abdominal re-exploration. Ann Surg. 1984;199(1):28-30.) e sofreu críticas, por exigir que o sistema de sondagem vesical de demora, originalmente estéril, fosse aberto, para instilação de soro para medida da PIA. Essa técnica foi, então, modificada por Cheatam e Safcsak,(66 Cheatham ML, Safcsak K. Intra-abdominal pressure: a revised method for measurement. J Am Coll Surg. 1998;186(5):594-5.) que sugeriram a punção de uma das vias da sondagem vesical de demora com um jelco número 18, diminuindo o risco de contaminação do sistema. Tal técnica, utilizada pelo estudo de Talizin et al.,(11 Talizin TB, Tsuda MS, Tanita MT, Kauss IA, Festti J, Carrilho CM, et al. Acute kidney injury and intra-abdominal hypertension in burn patients in intensive care. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(1):15-20) foi considerada padrão pela WSACS em 2013.(44 Doty JM, Saggi BH, Sugerman HJ, Blocher CR, Pin R, Fakhry I, et al. Effect of increased renal venous pressure on renal function. J Trauma. 1999;47(6):1000-3.) Discordamos, dessa maneira, que a válvula antirrefluxo da AbViser(tm) permita mensuração contínua da PIA, como descrito na metodologia.

A publicação do primeiro consenso, com definições e fatores de risco para hipertensão intra-abdominal e síndrome compartimental abdominal pela WSACS em 2006,(77 Malbrain ML, Cheatham ML, Kirkpatrick A, Sugrue M, Parr M, De Waele J, et al. Results from the International Conference of Experts on Intra-abdominal Hypertension and Abdominal Compartment Syndrome. I. Definitions. Intensive Care Med. 2006;32(11):1722-32.)) e a posterior atualização dos dados em 2013(88 Kirkpatrick AW, Roberts DJ, De Waele J, Jaeschke R, Malbrain ML, De Keulenaer B, Duchesne J, Bjorck M, Leppaniemi A, Ejike JC, Sugrue M, Cheatham M, Ivatury R, Ball CG, Reintam Blaser A, Regli A, Balogh ZJ, D'Amours S, Debergh D, Kaplan M, Kimball E, Olvera C; Pediatric Guidelines Sub-Committee for the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intra-abdominal hypertension and the abdominal compartment syndrome: updated consensus definitions and clinical practice guidelines from the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intensive Care Med. 2013;39(7):1190-206.) representaram marcos importantes para a monitorização e o manejo de pacientes gravemente doentes, porém novos estudos como este são necessários, para comprovar e divulgar a necessidade de monitorização da PIA como sinal vital na terapia intensiva.

Gabriela Cerqueira Caldas Pinto
Unidade de Terapia Intensiva, Instituto para Tratamento do Câncer Infantil, Hospital das Clínicas, Universidade de São Paulo - São Paulo (SP), Brasil.
Michelle Campos Zaupa
Unidade de Terapia Intensiva, Hospital Municipal Menino Jesus - São Paulo (SP), Brasil.
Eduardo Juan Troster
Unidade de Terapia Intensiva, Instituto para Tratamento do Câncer Infantil, Hospital das Clínicas, Universidade de São Paulo - São Paulo (SP), Brasil.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Talizin TB, Tsuda MS, Tanita MT, Kauss IA, Festti J, Carrilho CM, et al. Acute kidney injury and intra-abdominal hypertension in burn patients in intensive care. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(1):15-20
  • 2
    Malbrain ML, Vidts W, Ravyts M, De Laet I, De Waele J. Acute intestinal distress syndrome: the importance of intra-abdominal pressure. Minerva Anestesiol 2008;74(11):657-73.
  • 3
    Doty JM, Saggi BH, Blocher CR, Fakhry, Gehr T, Sica D, et al. Effects of increased renal parenchymal pressure on renal function. J Trauma. 2000;48(5):874-7.
  • 4
    Doty JM, Saggi BH, Sugerman HJ, Blocher CR, Pin R, Fakhry I, et al. Effect of increased renal venous pressure on renal function. J Trauma. 1999;47(6):1000-3.
  • 5
    Kron IL, Harman PK, Nolan SP. The measurement of intra-abdominal pressure as a criterion for abdominal re-exploration. Ann Surg. 1984;199(1):28-30.
  • 6
    Cheatham ML, Safcsak K. Intra-abdominal pressure: a revised method for measurement. J Am Coll Surg. 1998;186(5):594-5.
  • 7
    Malbrain ML, Cheatham ML, Kirkpatrick A, Sugrue M, Parr M, De Waele J, et al. Results from the International Conference of Experts on Intra-abdominal Hypertension and Abdominal Compartment Syndrome. I. Definitions. Intensive Care Med. 2006;32(11):1722-32.
  • 8
    Kirkpatrick AW, Roberts DJ, De Waele J, Jaeschke R, Malbrain ML, De Keulenaer B, Duchesne J, Bjorck M, Leppaniemi A, Ejike JC, Sugrue M, Cheatham M, Ivatury R, Ball CG, Reintam Blaser A, Regli A, Balogh ZJ, D'Amours S, Debergh D, Kaplan M, Kimball E, Olvera C; Pediatric Guidelines Sub-Committee for the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intra-abdominal hypertension and the abdominal compartment syndrome: updated consensus definitions and clinical practice guidelines from the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intensive Care Med. 2013;39(7):1190-206.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019
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