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Atenção à crise de crianças e adolescentes: estratégias de cuidado dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis sob a ótica de gestores e familiares

Attention to the crisis of children and adolescents: care strategies of Psychosocial Care Centers for Children and Adolescents from the perspective of managers and family members

Resumo

Este estudo objetivou compreender a atenção à crise de crianças e adolescentes nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSij), sob a ótica de gestores e familiares, e identificar as estratégias de cuidado utilizadas pelos serviços nas situações de crise. Trata-se de estudo de abordagem qualitativa do qual participaram seis gestores e 12 familiares vinculados a seis CAPSij da cidade de São Paulo. Para a análise de dados, foram utilizados os métodos Análise de Conteúdo e Discurso do Sujeito Coletivo. Os resultados apontam que as estratégias de cuidado se pautam no acolhimento imediato, cuidado intensivo, intervenção em equipe e articulação da rede, indicando alinhamento às diretrizes da atenção psicossocial. Os principais equipamentos acionados pelas equipes são o CAPSij III e os Hospitais Gerais. A indicação de ações médico-centradas pode revelar o processo de transição paradigmática vivenciado por esses serviços. Reflete-se que a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, em que crianças e adolescentes se encontram, sinaliza especificidades que devem estar presentes na atenção às situações de crise, como a intensa inclusão das famílias e dos outros atores da rede no processo de cuidado, o respeito aos direitos e a luta contra toda e qualquer forma de institucionalização.

Palavras-chave:
Intervenção na crise; Serviços de saúde mental; Políticas públicas; Criança; Adolescente.

Abstract

This study aimed to understand crisis care for children and adolescents in Children and Youth Psychosocial Care Centers (CAPSij), from the perspective of managers and family members, and to identify the care strategies used by services in crisis situations. This is a study with a qualitative approach in which six managers and 12 family members linked to six CAPSij in the city of São Paulo participated. For data analysis, Content Analysis and Collective Subject Discourse were used. The results show that the care strategies are based on immediate care, intensive care, team intervention and network articulation, indicating alignment with psychosocial care guidelines. The main equipment used by the teams are the CAPSij III and general hospitals. The indication of doctor-centered actions can reveal the process of paradigm transition experienced by these services. It is reflected that the peculiar condition of the developing person, in which children and adolescents find themselves, points to specificities that must be present in the care of crisis situations, such as the intense inclusion of families and other actors in the network in the care process, respect for rights and the fight against any form of institutionalization.

Keywords:
Crisis intervention; Mental health services; Public policies; Child; Adolescent.

Introdução

Com a expansão da rede de saúde mental e a diminuição de leitos psiquiátricos, a atenção à crise ganha lugar especial nas práticas de cuidado ofertadas pelos serviços territoriais e comunitários, assim como a composição de novos conceitos, estratégias e mudanças na organização institucional, contrapondo os discursos e práticas manicomiais produzidos no interior dos hospitais psiquiátricos (DIAS; FERNANDES; FERIGATO, 2020DIAS, M. K.; FERNANDES, A. D. S. A.; FERIGATO, S. H. Atenção à crise em saúde mental: centralização e descentralização das práticas. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 595-602, 2020.).

Para que as transformações necessárias no campo da saúde mental se efetivem, é fundamental a superação do paradigma psiquiátrico hospitalocêntrico medicalizador e sua substituição pelo paradigma psicossocial. Este compreende o processo saúde-doença como decorrente de processos sociais complexos, exigindo, assim, ações interdisciplinares, transdisciplinares e intersetoriais, capazes de construir uma diversidade de estratégias de cuidado e dispositivos de atenção territorializados (YASUI; COSTA-ROSA, 2008YASUI. S.; COSTA-ROSA, A. A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan-dez. 2008.).

Assim, promover a atenção à crise sob a perspectiva psicossocial é questionar a simplificação deste fenômeno, buscando novos dispositivos de cuidado que superem as práticas manicomiais e que compreendam a crise para além do silenciamento dos sintomas e do isolamento dos sujeitos (MOEBUS, 2014MOEBUS, R. Crise - Um conceito constitutivo para a saúde mental. In: GOMES, M. P. C.; MERHY, E. E. (Orgs.). Pesquisadores In-Mundo: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. 1ª Ed., Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. ), considerando-a uma complexa situação existencial inserida num continuum histórico de vida, que repercute no sujeito, em seus contextos de vida e em sua rede de relações (DELL’ACQUA; MEZZINA, 1991DELL’ACQUA, G.; MEZZINA, R. Resposta à crise. In: DELGADO, J. (Org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Autor, 1991, p. 53-79.).

O sucesso do acolhimento à crise em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, como é o caso dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), é essencial para o cumprimento dos objetivos desses serviços, que é o de atender usuários em sofrimento psíquico intenso e evitar as internações (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.). Pitta (2011PITTA, A. M. F. Um balanço da reforma psiquiátrica brasileira: instituições, atores e políticas. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 16, n. 12, p. 4579-4589, 2011.) afirma que a atenção às situações de crise se configura como um dos maiores desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Considerando a atenção à crise de crianças e adolescentes, o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij) é um equipamento estratégico nessa atenção e deve oferecer um cuidado intensivo, integral, interdisciplinar e intersetorial de base territorial e comunitária a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico e suas famílias (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).

Além dos CAPSij, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída pela Portaria nº 3.088 de 2011, conta com outros pontos de atenção que também podem compor as estratégias de atenção à crise vivenciadas por crianças e adolescentes. São eles os CAPS III (com funcionamento 24 horas); os componentes de atenção às urgências e emergências - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e Pronto-Socorro (PS); os componentes da atenção hospitalar - leitos ou enfermaria de saúde mental em Hospital Geral; além dos componentes da atenção básica como as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Ministério da Saúde, Brasília, 2011.).

Dell’Acqua e Mezzina (1991) destacam que os serviços territoriais apresentam recursos potenciais que permitem a sustentação das situações de crise em seus locais de vida e em sua rede de relações, incluindo-as no interior de uma série de nexos capazes de torná-las compreensíveis, possibilitando, assim, que o usuário possa atravessar essa experiência preservando sua continuidade existencial e histórica.

Algumas características são essenciais para que se garanta uma atenção à crise efetiva em um serviço de saúde mental territorial. Para Saraceno (2001SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Te Cora, 2001.), um serviço de saúde mental integrado adota “um estilo de trabalho com alto consumo afetivo, intelectual e organizativo, onde os recursos se encontram permanentemente disponíveis, as competências flexíveis e a organização orientada às necessidades do paciente e não às do próprio serviço” (p. 97-98). Ressalta também que os contextos e as relações sociais são as variáveis mais importantes no processo de reabilitação psicossocial, sendo a família uma protagonista essencial nesse processo.

As situações de crise apresentam em si uma complexidade, pois não dizem respeito apenas ao sujeito que a vivencia, mas a todas suas relações e contextos de vida, revelando também a capacidade de suporte da rede em que se encontra inserido. Segundo Pereira, Sá e Miranda (2017PEREIRA, M. O.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L. Uma onda que vem e dá um caixote: representações e destinos da crise em adolescentes usuários de um CAPSi. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 11, p. 3.733-3.742, 2017.), o tema da crise torna-se ainda mais relevante quando focalizamos a população infantojuvenil, que além de um sofrimento psíquico intenso, vivenciam as mudanças e conflitos próprios de sua faixa etária.

Verifica-se que a atenção à crise de crianças e adolescentes é pouco abordada em pesquisas da área. As pesquisas que abordam a crise na infância e adolescência são recentes e há um consenso na literatura sobre a necessidade de aprofundar e ampliar o conhecimento de forma a responder a esta lacuna (BLIKSTEIN; VICENTIN, 2016BLIKSTEIN, F.; VICENTIN, M. C. G. De volta ao manicômio: reflexões sobre internações psiquiátricas de crianças e adolescentes. In: LAURIDSEN-RIBEIRO, E; LYKOUROPOULOS, C. B. (Orgs.). O CAPSi e o desafio da gestão em rede. São Paulo: Hucitec, 2016, p. 253-264.; BRAGA; D’OLIVEIRA, 2015BRAGA, C. P.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L. A continuidade das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Interface - Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 19, n. 52, p. 33-44, 2015. ; JANSSENS et al., 2013JANSSENS, A. et al. Emergency psychiatric care for children and adolescents: a literature review. Pediatric Emergency Care, v. 29, n. 9, p. 1041-1050, 2013.; LAMB, 2009LAMB, C. E. Alternatives to admission for children and adolescents: providing intensive mental healthcare services at home and in communities: what works? Current Opinion Psychiatry, v. 22, n. 4, p. 345-359, 2009.; PEREIRA; SÁ; MIRANDA, 2014PEREIRA, M. O.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L. Um olhar da atenção psicossocial à adolescentes em crise a partir de seus itinerários terapêuticos. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 10, p. 2145-2154, 2014.; 2017PEREIRA, M. O.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L. Uma onda que vem e dá um caixote: representações e destinos da crise em adolescentes usuários de um CAPSi. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 11, p. 3.733-3.742, 2017.; ROSSI et al., 2018ROSSI, L. M. et al. Crise e saúde mental na adolescência: a história sob a ótica de quem vive. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, 2019. ; SHEPPERD et al., 2014SHEPPERD, S. et al. Alternatives to inpatient mental health care for children and young. Cochrane Data Base of Systematic Reviews, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4014676/ > Acesso em: 14 jan. 2018.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
).

Na literatura nacional, a maior parte dos estudos publicados trata da atenção à crise em CAPS Adulto (COSTA, 2006COSTA, M. S. Reforma psiquiátrica, transformações e limites nos modos de lidar com as situações de crise: uma análise a partir das experiências de dois serviços de atenção psicossocial do Rio de Janeiro. 182 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de janeiro, 2006. ; FONTANELLE, 2010FONTANELLE, A. Sujeitos em crise: estratégias de intervenção de profissionais em Centro de Atenção Psicossocial. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Federal do Espírito Santo. Espírito Santo, 2010. ; LIMA et al., 2012LIMA, M. et al. Significados, signos e práticas de manejo da crise em Centros de Atenção Psicossocial. Interface - Comunicação, Saúde e Educação , v. 16, n. 41, p. 423-434, 2012.; WILLRICH et al., 2011WILLRICH, J. Q. et al. Periculosidade versus cidadania: os sentidos da atenção à crise nas práticas discursivas de um Centro de Atenção Psicossocial. Physis Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 47-63, 2011.), revelando uma lacuna de estudos que abordem o tema nos serviços CAPSij.

A abordagem sobre a crise na infância e adolescência em pesquisas internacionais também é relativamente recente e estudos têm apontado a necessidade de pesquisas que evidenciem a qualidade e resolutividade de serviços comunitários alternativos à internação de crianças e adolescentes (LAMB, 2009LAMB, C. E. Alternatives to admission for children and adolescents: providing intensive mental healthcare services at home and in communities: what works? Current Opinion Psychiatry, v. 22, n. 4, p. 345-359, 2009.; SHEPPERD et al., 2014SHEPPERD, S. et al. Alternatives to inpatient mental health care for children and young. Cochrane Data Base of Systematic Reviews, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4014676/ > Acesso em: 14 jan. 2018.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
).

Ainda que não exista consenso sobre cuidados ou configuração recomendados para atenção às situações de crise da população infantojuvenil, há uma tendência, no mundo inteiro, em prestar cuidados o menos restritivo possível, dentro do ambiente da criança e do adolescente e de sua comunidade (JANSSENS et al., 2013JANSSENS, A. et al. Emergency psychiatric care for children and adolescents: a literature review. Pediatric Emergency Care, v. 29, n. 9, p. 1041-1050, 2013.).

Considerando a relevância da atenção à crise na infância e adolescência para a consolidação das políticas públicas no campo da saúde mental infantojuvenil, este estudo coloca foco sobre as práticas de cuidado ofertadas pelas equipes de CAPSij a essa população. Objetiva-se compreender a atenção à crise de crianças e adolescentes nos CAPSij, sob a ótica de gestores e familiares, identificando as estratégias de cuidado utilizadas pelos serviços nas situações de crise.

Métodos

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa e de caráter descritivo-exploratório.1 1 Este estudo contou com financiamento da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e é parte integrante de pesquisa de mestrado da primeira autora, não apresentando conflito de interesses. Todos os procedimentos adotados no estudo obedeceram aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução 466/2012 do Ministério da Saúde, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos, parecer nº 1.884.614, bem como pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo-SP, parecer nº 1.897.807.

Participaram do estudo seis gestores de CAPSij e doze familiares de crianças e adolescentes vinculados aos CAPSij. Optou-se pela participação dos gestores por considerar que essa escolha viabilizaria uma apresentação mais abrangente das experiências dos CAPSij. Como estratégia para inclusão das percepções dos profissionais na pesquisa, sugeriu-se aos gestores que preenchessem o questionário em conjunto com suas equipes.

A amostra foi composta por conveniência e os critérios de participação adotados para os gestores se referiram ao vínculo a uma mesma Coordenadoria Regional de Saúde do município de São Paulo e, também, à disponibilidade em participar do estudo. Já os critérios de participação adotados para os familiares referiam-se a familiares de usuários acompanhados nos CAPSij que tivessem vínculo de cuidado com a criança ou o adolescente, que já haviam vivenciado mais de duas situações de crises.

A Coordenadoria Regional de Saúde focalizada neste estudo é a região mais populosa da cidade e reúne seis dos dez bairros mais vulneráveis de São Paulo, possui seis CAPSij, sendo um deles CAPSij III, com funcionamento 24 horas.

O tempo de experiência na gestão dos seis gestores participantes do estudo variou de 2 meses a 13 anos. Já o tempo de experiência na saúde mental infantojuvenil variou de 2-13 anos. Dentre as formações dos participantes estão: Serviço Social, Psicologia, Terapia Ocupacional, Enfermagem e Fonoaudiologia.

Dos doze familiares participantes do estudo, nove são mães, dois são avós e um é pai. A idade dos participantes variou de 33 a 65 anos. Apenas quatro trabalhavam fora e a renda das famílias participantes do estudo encontrava-se entre menos de 1-4 salários-mínimos.

Para a coleta de dados, utilizaram-se um questionário aplicado junto aos gestores e um roteiro de entrevista semiestruturada aos familiares. O questionário foi dividido em duas seções. A seção I referiu-se aos dados de identificação do gestor, além de dados sobre o serviço e informações sobre a composição da equipe técnica. Já a seção II foi composta por questões abertas que abarcaram a compreensão da equipe sobre crise, estratégias de cuidado dos CAPSij, além de questões referentes à RAPS e à rede intersetorial. Os gestores foram orientados a responder à seção II do questionário em conjunto com suas equipes. Neste artigo serão focalizados os resultados advindos da seção II relativos às estratégias de cuidados dos CAPSij e aos equipamentos da RAPS acionados pelas equipes.

Já o roteiro de entrevista semiestruturada foi dividido em cinco seções que abordaram desde o cuidado prestado pelo CAPSij nas situações de crise até os impactos das situações de crise no cotidiano das famílias.

A coleta de dados procedeu pelo envio do questionário e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) a todos os gestores participantes do estudo, contendo todas as orientações referentes ao preenchimento.

Já em relação à coleta de dados com os familiares, em reunião com a equipe técnica de cada CAPSij, foi solicitado aos técnicos dos serviços que indicassem os familiares que teriam indicação em participar do estudo, conforme os critérios de participação estabelecidos. A própria equipe técnica fez o primeiro contato informando sobre a pesquisa e verificando o interesse do familiar em participar.

Após indicar o interesse, a pesquisadora agendou um encontro presencial com os familiares para apresentar os objetivos da pesquisa e o TCLE e, assim, dar seguimento à realização das entrevistas. Todos os familiares indicados aceitaram participar da entrevista.

Os dados obtidos pelos questionários foram analisados por meio da etapa de categorização da técnica de Análise de Conteúdo (BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.). Foram utilizadas categorias a posteriori, elaboradas após a coleta de dados. As categorias foram construídas a partir da leitura exaustiva das respostas dos gestores e optou-se pela manutenção dos termos utilizados por eles, a fim de manter as categorias e as descrições que as ilustram o mais próximo possível do que foi enunciado por eles. Alguns resultados não apresentam descrições, uma vez que os gestores apenas citaram a estratégia de cuidado sem apresentar maiores detalhes sobre ela.

Já para os dados obtidos nas entrevistas com os familiares, foi utilizado o Discurso do Sujeito Coletivo - DSC (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2010LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A.M.C. Pesquisa de representação social: a metodologia do discurso do sujeito coletivo. Brasília: Líber Livro, 2010.). Trata-se de um método de análise no qual são construídos blocos de discursos compostos por trechos de falas de diferentes sujeitos, que apresentam os mesmos sentidos e significados sobre o tema em questão. Desta forma, os DSCs indicados neste estudo serão apresentados na primeira pessoa do singular, porém representam uma voz coletiva, composta por um conjunto de familiares que apresentam opiniões semelhantes sobre uma determinada temática abordada durante as entrevistas.

Resultados e Discussão

Os resultados e a discussão do presente estudo serão apresentados, a seguir, buscando a interlocução entre os resultados advindos da participação dos gestores dos CAPSij e dos familiares. Primeiramente, serão apresentadas as estratégias de cuidado dos CAPSij nas situações de crise e na sequência os principais serviços da RAPS acionados pelas equipes nessas situações.

Atenção à crise: estratégias de cuidado dos CAPSij

Os gestores de CAPSij participantes do estudo responderam quais estratégias de cuidado são ofertadas pelas equipes de CAPSij nas situações de crise. As respostas categorizadas, acompanhadas da frequência em que foram citadas e suas descrições, encontram-se no quadro 1, apresentado a seguir.

Quadro 1
Estratégias de cuidado dos CAPSij nas situações de crise

Como apresentado no quadro 1, o acolhimento ao usuário e o acolhimento diurno são as principais estratégias de cuidado ofertadas pelas equipes, seguida de encaminhamentos para rede, acolhimento à família, intensificação do Projeto Terapêutico Singular (PTS) e avaliação e intervenção da equipe. Intervenções médico centradas, como contenção física, medicação e avaliação médica foram menos citadas pelas equipes.

Compreende-se que os resultados revelam que as equipes dos CAPSij têm pautado suas ações nas diretrizes da atenção psicossocial que prevê o acolhimento imediato ao usuário e sua família, a intensificação do cuidado, o trabalho em equipe e a articulação em rede (BRASIL, 2004; 2005).

Em concordância com as principais estratégias indicadas pelos gestores, os familiares participantes do estudo também apontaram que uma das principais potencialidades dos CAPSij é o acolhimento ofertado nas situações de crise, conforme aponta o DSC 1, a seguir.

Ah! Quando ele está meio assim, ou se acontecer algo em casa e ele ficar muito alterado, eu posso trazer ele aqui. [...] Quando deu a crise nele, ele ficou vindo a semana toda. [...] E ajudou porque ele voltou rapidinho. O médico disse que era de 30 a 45 dias para a mente dele voltar e ele voltou com 15 dias, então voltou rapidinho. (DSC 1)

A partir dos DSC 1 verifica-se, dentre os pontos abordados, a intensificação das ações de cuidado no serviço, disponibilidade de recursos e acolhimento imediato como estratégias essenciais ao cuidado ofertado nas situações de crise. Dentre as estratégias de cuidado citadas, os gestores também foram questionados sobre quais estratégias de atenção à crise consideravam mais efetivas, sendo elencadas o acolhimento, a escuta, o acolhimento diurno (hospitalidade diurna), o acolhimento à crise e o atendimento de urgência. Esses resultados reforçam o quanto as situações de crise exigem ações imediatas de cuidado e apontam a importância do investimento no vínculo e na relação terapêutica, como principais ferramentas de trabalho nesse campo.

Conforme afirma Saraceno (2001SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Te Cora, 2001.), os recursos humanos e seus instrumentos não padronizáveis, como o acolhimento, a escuta, a solidariedade, a afetividade e a negociação, são os recursos mais úteis nesse trabalho.

O acolhimento ganha destaque especial nos resultados deste estudo, revelando que é a ferramenta que diferencia e qualifica os serviços CAPSij na atenção à crise tanto para gestores quanto familiares. Tal resultado se soma à importância do acolhimento porta aberta como a principal premissa de um serviço substitutivo, já que rompe as barreiras de acesso e reforça seu mandato ético de subjetivar e contextualizar a vivência do sofrimento psíquico. Também possibilita o rompimento de respostas pré-moldadas, que etiquetam e simplificam o sofrimento, reduzindo-o a sintomas e tirando o poder dos usuários - processos estes tão característicos do modelo manicomial.

Assim, os resultados deste estudo reforçam a compreensão de que o acolhimento é o conceito-ferramenta mais potente da atenção psicossocial, pois atravessa os processos relacionais em saúde, rompe com a supremacia das técnicas, cria atendimentos mais humanizados e promove espaços de escuta qualificada, possibilitando a vinculação com o usuário, a responsabilização pelo cuidado e a construção de respostas ágeis, flexíveis e plásticas (MÂNGIA et al., 2002MÂNGIA, E. F. et al. Acolhimento: uma postura, uma estratégia. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 15-21, 2002.; SILVEIRA; VIEIRA, 2005SILVEIRA, D. P.; VIEIRA, A. L. V. Reflexões sobre a ética do cuidado em saúde: desafios para a atenção psicossocial no Brasil. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, a. 5, n. 1, p. 92-101, 2005.).

Reflete também em maior permeabilidade, disponibilidade, responsabilidade e compromisso ético pelos serviços, além de favorecer um reordenamento da lógica de recepção em saúde, propondo que a organização do serviço esteja centrada no usuário (MÂNGIA et al., 2002MÂNGIA, E. F. et al. Acolhimento: uma postura, uma estratégia. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 15-21, 2002.; SILVEIRA; VIEIRA, 2005SILVEIRA, D. P.; VIEIRA, A. L. V. Reflexões sobre a ética do cuidado em saúde: desafios para a atenção psicossocial no Brasil. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, a. 5, n. 1, p. 92-101, 2005.).

Para que a atenção à crise seja efetiva em um serviço territorial, é essencial que os serviços tenham o que Dell’Acqua e Mezzina (1991)DELL’ACQUA, G.; MEZZINA, R. Resposta à crise. In: DELGADO, J. (Org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Autor, 1991, p. 53-79. chamaram de “tomada de responsabilidade”. Para os autores, um serviço territorial deve ser referência para toda e qualquer forma de sofrimento, possibilitando que se reduzam os períodos de latência entre emergência e contato com o serviço e que se garanta a manutenção dos vínculos com seu ambiente.

Compreende-se que o acolhimento ofertado pelos CAPSij possibilita essa tomada de responsabilidade ao acolher prontamente crianças, adolescentes e familiares, contextualizando e singularizando os momentos de crise e oportunizando a construção de um cuidado integral e ampliado.

De acordo com quadro 1, outra estratégia bastante citada pelas equipes é o acolhimento diurno (hospitalidade diurna), representado pela ambiência/convivência, um dispositivo fundamental na atenção à crise e pouco discutido no campo da saúde mental infantojuvenil.

O DSC 2, abaixo, também reforça a relevância desse dispositivo de cuidado, revelando a importância da intensificação da atenção nas situações de crise.

Principalmente quando ele teve crises. Eles me ajudaram muito. Eu vinha três vezes por semana, toda semana e ele ficava aqui, elas ficavam com ele e davam a maior atenção. (DSC 2)

De acordo com Dell’Acqua e Mezzina (1991)DELL’ACQUA, G.; MEZZINA, R. Resposta à crise. In: DELGADO, J. (Org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Autor, 1991, p. 53-79., a hospitalidade tem condição de mobilizar maior quantidade de energia humana e recursos institucionais, uma vez que a atenção de toda a organização é focalizada no usuário, afirmando, deste modo, as valências terapêuticas que a instituição possui. Fortalece a relação terapêutica e proporciona momentos de convivência e encontros, favorecendo laços de cumplicidade, reciprocidade e afetividade entre profissionais e usuários.

Compreende-se que o acolhimento diurno ofertado pelos CAPSij focalizados neste estudo expressa o papel da ambiência/convivência, conforme apontam Pimentel e Moura (2016PIMENTEL, F. A.; MOURA, B. R. Do caos a corresponsabilização: o espaço de ambiência no CAPSi. In: LAURIDSEN-RIBEIRO, E.; LYKOUROPOULOS, C. B. (Orgs.). O CAPSi e o desafio da gestão em rede. São Paulo: Hucitec , 2016, p. 116-129. ). Para as autoras, este dispositivo de cuidado favorece a construção de relações de proximidade e de vínculo e deve estar baseado na postura de acolhimento e suporte e na disponibilidade para o encontro com o usuário. As autoras reforçam ainda a importância de pensar o uso deste dispositivo de forma singular a partir de situações nas quais a convivência da criança ou adolescente em outros espaços sociais esteja dificultada, em especial em situações de crise, rupturas de laços sociais ou prejuízos no convívio social.

É inegável a potência que o acolhimento diurno tem como estratégia de cuidado na atenção à crise, porém também é importante refletir sobre o risco de seu caráter institucionalizante. É direito de todas as crianças e adolescentes conviverem com suas famílias, escolas e comunidades. Por essa razão, esta estratégia de cuidado deve responder ao acolhimento e à reconstrução de relações com vistas à convivência em seus espaços sociais de direito, evitando assim qualquer forma de institucionalização.

A avaliação e a intervenção da equipe também foram citadas como importante estratégia de cuidado nas situações de crise. Vale ressaltar que quando questionados sobre as principais potencialidades do CAPSij, o trabalho em equipe foi a potencialidade mais citada pelos gestores. Compreende-se que este resultado reforça a essencialidade do componente humano e técnico nesse trabalho, por meio da relação estabelecida entre os membros da equipe, da clínica construída coletivamente e de seu consequente reflexo no cuidado ofertado aos usuários e familiares. Observa-se, no entanto, uma contradição nos resultados, uma vez que os gestores também citam a avaliação médica separada da avaliação da equipe, o que contraria um importante princípio do trabalho em CAPSij, que é a interdisciplinaridade.

A interdisciplinaridade tem destaque especial na atenção psicossocial, pois possibilita a sustentação e elaboração de um projeto assistencial coletivo que integre a equipe, constituindo um eixo em torno do qual se organiza a dinâmica cotidiana de trabalho. A partir da pluralidade de enfoques e trocas constantes entre os diferentes membros da equipe, a visão simplista do adoecer psíquico vai sendo substituída pela compreensão de uma complexa teia de eventos biológicos, sociais, emocionais, psicológicos, culturais e políticos, contribuindo para a superação da lógica manicomial (MILHOMEM; OLIVEIRA, 2007MILHOMEM, M. A. G. C.; OLIVEIRA, A. G. B. O trabalho em equipe nos Centros de Atenção Psicossocial. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 12, n.1, p. 101-8, 2007.; PEDUZZI, 2009PEDUZZI, M. Trabalho em equipe. In: LIMA, J. C. F., PEREIRA, I. B. (Orgs.). Dicionário de educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2009. ).

Segundo Saraceno (2001SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Te Cora, 2001.), o principal recurso de um serviço é a equipe. O autor aponta que este recurso pode ser multiplicado ou reduzido não somente pelo número de profissionais que compõem uma equipe, mas também por fatores como motivação, expectativas com os usuários, senso de pertença a um projeto coletivo e a qualidade das relações no campo do trabalho.

Compreende-se que é imprescindível a presença de algumas características em uma equipe de saúde mental para que o trabalho em equipe seja uma potência em um CAPSij, como a disponibilidade, a flexibilidade e a adaptabilidade. Tais características devem compor a base ética de um serviço e que precisa ser tecida coletivamente, com espaços democráticos de conversação e negociação onde todos tenham voz e vez, possibilitando a horizontalização do saber, a coletivização das decisões, além da abertura para que entraves, conflitos e contradições vivenciados pelo coletivo possam vir à tona.

Outra estratégia de cuidado apontada pelos gestores é a intensificação do PTS, que é descrita como ampliação de ofertas de atividades assistenciais. No quadro 1, observa-se a baixa indicação de ações extramuros, sendo citada apenas a busca ativa. Tal resultado é preocupante, visto que as situações de crise exigem ações de intensificação de cuidado, devendo estar incluído nestas ações o contexto do território e não somente o contexto institucional.

Kinker (2006)KINKER, F. S. Um olhar crítico sobre os projetos terapêuticos singulares. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar. São Carlos, SP, v. 24, n. 2, p. 413-420, 2016. alerta que o PTS não deve se confundir com um conjunto de procedimentos que os serviços oferecem aos usuários. Para o autor, é o tecer a vida junto aos usuários em seus cotidianos e em suas relações que as cenas que geram sofrimento poderão ser modificadas, possibilitando a transformação de todos os atores envolvidos.

Em relação ao cuidado às famílias, os gestores apontaram o acolhimento à família como uma das estratégias de cuidado, porém os resultados do presente estudo revelaram que apenas metade dos familiares focalizados referiu participar das atividades ofertadas pelos serviços, evidenciando uma fragilidade na efetividade dessas ações.

Tal fragilidade merece ser destacada, visto que a centralidade no cuidado à família é uma das especificidades na infância e adolescência, especialmente se considerarmos o fato de que as estratégias relatadas pelos gestores de CAPSij não parecem se diferenciar das estratégias de cuidado utilizadas por CAPS de outras modalidades - como os CAPS Adultos e os CAPS Álcool e Drogas. Tal fato é compreensível, visto que os princípios e diretrizes dos serviços são os mesmos.

Compreende-se que, além do importante lugar ocupado pela família, as especificidades do cuidado a crianças e adolescentes se colocam na complexidade presente nesta etapa da vida, exigindo que cada ação seja dimensionada sob esta perspectiva, respeitando a condição de pessoa em desenvolvimento em que se encontram.

Considerando a intensa participação familiar como uma marca importante na atenção a crianças e adolescentes, lacunas relativas a essa participação são preocupantes e alertam para a necessidade de aprimoramento na efetivação destas estratégias.

Algumas hipóteses para a compreensão desses resultados podem ser apresentadas, dentre as quais, a compreensão que a participação familiar nas atividades ofertadas pelos CAPSij implica flexibilidade do serviço ofertar horários e arranjos diversos, que contemplem as necessidades e possibilidades dos familiares. Como exemplos, o caso de familiares que trabalham fora e não conseguem comparecer em horários preestabelecidos; ou a não disponibilidade de recursos financeiros para deslocamentos até o serviço, impossibilitando o acesso a famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade social; dentre outras.

Outra hipótese a ser considerada é que a baixa participação das famílias pode revelar resquícios de um modelo manicomial e institucionalizante. Por muitos anos no Brasil, a “assistência” foi marcada pela institucionalização, seja por meio dos manicômios ou de instituições filantrópicas a menores abandonados ou delinquentes (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Caminhos para uma política de saúde mental infantojuvenil. Ministério da Saúde, Brasília, 2005.). Nesse modelo, as famílias eram colocadas no lugar de culpadas ou vítimas das situações vivenciadas com seus familiares, marcando uma relação de distanciamento e passividade com essas instituições e de perda de seu poder.

Já na atenção psicossocial, as famílias passam a desempenhar papel ativo e participante nos processos de cuidado, reinserção social, fortalecimento dos laços sociais e construção da cidadania (SARACENO, 2001SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Te Cora, 2001.; YASUI; COSTA-ROSA, 2008YASUI. S.; COSTA-ROSA, A. A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan-dez. 2008.).

Especialmente quando falamos de infância e adolescência, é impossível dissociar essas fases da vida do contexto sociofamiliar que crianças e adolescentes se encontram inseridas. As famílias exercem papel fundamental no seu cuidado, desenvolvimento, pertencimento e socialização. Nenhuma criança ou adolescente pode crescer e se desenvolver sem ter assegurados laços sociais em torno de si (VICENTIN, 2006VICENTIN, M. C. G. Infância e adolescência: uma clínica necessariamente ampliada. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo , São Paulo, v. 17, n.1, p. 10-17, jan-abr. 2006. ); por essa razão, não há como propor um cuidado à população infantojuvenil destacado de sua família, escola e comunidade.

É importante refletir que as situações de crise na infância e adolescência envolvem uma complexa teia de fatores de desenvolvimento, subjetivos, familiares, sociais e culturais. Desta maneira, uma situação de crise não revela apenas o sofrimento de uma criança e um adolescente, mas também todas as potências e impotências de sua rede de suporte, dos contextos em que se encontra (ou não) inserido e de suas relações.

O DSC 3, a seguir, revela que o sofrimento vivenciado por uma situação de crise também é familiar, reforçando a importância da atenção às famílias como parte integrante do cuidado ofertado nos CAPSij, possibilitando, assim, mudanças no contexto e nas relações familiares.

As meninas me passam que a pessoa tem que conversar, quando começa a ficar nessa agitação. [...] Eu fui aprendendo a lidar com ele porque até aí, eu não sabia. Eu só chorava. E aí, eu comecei a me sentir mais forte graças a Deus! Agora quando precisa falar com ele, eu sento e converso [...]. (DSC 3)

Em relação à medicação, os CAPSij apontam o uso de intervenções medicamentosas quando necessário nas situações de crise. O DSC 4, abaixo, reforça a importância dada pelos familiares ao recurso da medicação.

[...] Sempre quando ele tem crise a gente traz ele aqui, já passa no médico, ele já dá um diagnóstico, passa remédio para ele e ele acalma. (DSC 4)

É importante considerar que as situações de crise na infância e adolescência envolvem múltiplas dimensões da vida e não devem ser simplificadas a sintomas, nem seu cuidado restrito a um único recurso. Compreende-se que os medicamentos possam ser recursos de cuidado, desde que singularizados e inscritos na lógica psicossocial que prevê a negociação e a construção coletiva de estratégias de cuidado a partir da participação ativa de todos os atores envolvidos no processo, profissionais, familiares, usuários, entre outros.

Vale alertar sobre o risco de medicalização do sofrimento na infância e adolescência, transformando questões complexas de ordem social, contextual e cultural em questões individuais que podem ser enquadradas em diagnósticos e intervenções médicas. Cabe a reflexão: “a crise de quem estamos respondendo quando medicamos o sofrimento?”

A contenção é citada pelos familiares como uma estratégia de cuidado realizada pelos CAPSij em situações limite e que também pode gerar sofrimento nos familiares, conforme apresenta o DSC 5.

Uma vez ele quebrou um vidro com as mãos e ficou muito nervoso, eles levaram ele pra uma sala e seguraram, a técnica falou: - Pode ir embora ele vai ficar bem, nós vamos conversar com ele! - Eu fui embora, mas do outro lado da rua eu escutava os gritos dele. Naquele dia eu fui embora muito deprimida. Aí, eu liguei e ela falou: - Ele já está bem! Está brincando, já comeu! Não está mais em crise não. (DSC 5)

Os gestores também apontam a contenção física como estratégia de cuidado, e apesar de ser citada como último recurso é utilizada pelas equipes para evitar situações de risco. A forte relação do risco com a manutenção de práticas manicomiais é histórica, assim, se faz necessário que os serviços reflitam e aprofundem a discussão sobre os reais riscos presentes no cuidado de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico e a real necessidade do uso deste recurso, apostando numa clínica singular e coletiva, que ultrapasse os limites impostos pelo estigma da periculosidade e suas respostas pré-moldadas que buscam proteger a sociedade e não o sujeito que sofre.

E mesmo quando a contenção física é utilizada em caráter de exceção e em situações avaliadas como inevitáveis, é fundamental que os serviços se mantenham coerentes com os princípios da atenção psicossocial e firmes em uma ética do cuidado que preserve o lugar de sujeitos de direitos de crianças e adolescentes, respeitando suas singularidades, seu protagonismo, sua história e momento de vida, seus vínculos afetivos, seus limites e desejos, não produzindo ou reproduzindo qualquer tipo de violência ou de violação de direitos.

Dell’Acqua e Mezzina (1991)DELL’ACQUA, G.; MEZZINA, R. Resposta à crise. In: DELGADO, J. (Org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Autor, 1991, p. 53-79. defendem que o controle ou a contenção não devem ser dados a priori em um serviço, mas sim como limites críticos que devem ser discutidos com o próprio usuário a fim de reverter qualquer relação de objetificação, manipulação ou quebra de vínculo. Como um serviço de saúde mental territorial, é essencial que os CAPSij ampliem o olhar e os recursos de atenção à crise, a fim de recolocar crianças, adolescentes e suas famílias como protagonistas de seu cuidado, retirando-os de qualquer lugar que invalide seu poder contratual e possibilitando a revisão constante de práticas que apresentem potencial para reprodução do modelo manicomial.

Sugere-se que estudos futuros possam se aprofundar no uso da contenção física e suas implicações tanto para o cuidado imediato, quanto para a continuidade do cuidado nos CAPSij.

A RAPS nas situações de crise de crianças e adolescentes

Os gestores dissertaram, ainda, sobre quais os principais serviços da RAPS acionados pelas equipes nas situações de crise. O quadro 2, a seguir, apresenta os serviços categorizados, a frequência em que foram citados pelos gestores e suas descrições.

Quadro 2
Serviços da RAPS acionados pelos CAPSij em situações de crise

De acordo com o quadro 2, os serviços mais acionados pelas equipes de CAPSij nas situações de crise são o CAPSij III e os Hospitais Gerais, seguidos do SAMU e das UBS. Dentre os equipamentos citados pelos gestores, observa-se que o único específico para infância e adolescência é o CAPSij III, apresentando-se como potente recurso no cuidado às situações de crise dessa população.

Sabe-se que na região estudada é pactuado que o acesso ao CAPSij III se dará prioritariamente por encaminhamento do CAPSij II de referência. Este serviço ligará solicitando a vaga e discutirá as condições psicossociais e clínicas que fazem com que aquele usuário necessite do recurso de acolhimento noturno.

No caso da existência de vaga, o usuário é acompanhado até o CAPSij III pelo CAPSij II, responsável pelo transporte do usuário, assim como pelas pactuações realizadas com aquele equipamento no acolhimento inicial do usuário. Espera-se que o usuário em acolhimento noturno no CAPSij III possa manter seu PTS no CAPSij II de referência, garantindo assim a manutenção dos vínculos com o serviço, o território e suas atividades cotidianas.

Ainda que esse recurso esteja alinhado aos princípios da saúde mental comunitária, observa-se nos resultados deste estudo que muitas vezes seu uso pelas equipes é impossibilitado pela limitação de vagas e dificuldades no acesso, devido à indisponibilidade de carros nos serviços para a realização do transporte dos usuários.

Observa-se nos resultados apresentados que o Hospital Geral é indicado pelas equipes na mesma frequência que os CAPSij III. Apesar de as equipes encaminharem usuários para o Pronto-Socorro e para internação em leitos de atenção integral à saúde mental em Hospitais Gerais2 2 Os leitos de atenção integral em saúde mental correspondem ao componente de atenção hospitalar da RAPS, no qual hospitais gerais, maternidades e hospitais de pediatria são habilitados para oferta de leitos de saúde mental. Este ponto de atenção tem o objetivo de oferecer cuidado hospitalar, avaliações para discriminação diagnóstica de questões clínicas ou psiquiátricas, manejo de situações de crise e/ou de vulnerabilidade extrema que apresente risco de vida para o usuário. As internações devem ser de curta duração, superando a lógica asilar presente nos hospitais psiquiátricos. (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 148, de 31 de janeiro de 2012. Define as normas de funcionamento e habilitação do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, do componente hospitalar da Rede de Atenção Psicossocial, e institui incentivos financeiros de investimento e de custeio. Ministério da Saúde, Brasília, 2012.) e não para hospitais psiquiátricos, ainda assim esse resultado revela um possível paradoxo no cuidado ofertado pelas equipes. Os CAPSij são os equipamentos da RAPS responsáveis pela atenção à crise de crianças e adolescentes e se encontram fundamentados na lógica psicossocial, diferentemente dos Hospitais Gerais, que ainda operam numa lógica médico centrada.

A presença do CAPSij III e do Hospital Geral como os principais equipamentos acionados nas situações de crise pode revelar o processo de transição paradigmática vivenciado por esses serviços. Amarante (2007AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.) discute que a Reforma Psiquiátrica é um processo social complexo que se constitui na transformação das seguintes dimensões: a teórico-conceitual, a técnico-assistencial, a jurídico-legal e a sociocultural. Compreender que as transformações dessas dimensões ocorrem de forma processual elucida a presença de algumas contradições reveladas neste estudo, pela coexistência de dois paradigmas presentes nas equipes, o psiquiátrico e o psicossocial.

É a tomada de responsabilidade pelos CAPSij que favorecerá o deslocamento do cuidado à crise do paradigma psiquiátrico, inserindo-a no paradigma psicossocial. Ao assumir seu compromisso ético e político, os serviços reafirmam que o cuidado à crise deve ser realizado no território com todos seus recursos e ferramentas de inserção real na vida das pessoas e em sua rede de relações, possibilitando a transformação do olhar para o fenômeno da crise e suas estratégias de cuidado, considerando todas as esferas que a compõem, singular, familiar, comunitária, social e cultural.

Vale reconhecer que, além da tomada de responsabilidade pelos serviços, é necessário o investimento do poder público tanto nas políticas de saúde mental quanto na estrutura e disponibilidade de recursos para os CAPSij, assim como em todos os equipamentos da rede, a fim de viabilizar a garantia de uma atenção à crise que opere na lógica do território.

Para que essas transformações ocorram, é determinante um real comprometimento por parte de gestores federais, estaduais e municipais com as políticas públicas de saúde mental, para que os obstáculos vivenciados possam ser transpostos. Complementarmente, também é essencial que os CAPSij se afirmem como protagonistas desse cuidado, mobilizando ações comunitárias e em rede que problematizem o lugar social da loucura e do hospital, apostando que é possível sustentar esse cuidado no território com estratégias que respeitem as singularidades, fortaleçam vínculos e preservem de rupturas o cotidiano de crianças e adolescentes.

Ainda que a atenção à crise deva se dar prioritariamente nos CAPSij, o DSC 6, a seguir, revela que os familiares buscam os Hospitais Gerais nas situações de crise, o que reforça a necessidade de que sejam concretizadas estratégias que favoreçam a implementação da atenção psicossocial no cuidado à crise em todos os equipamentos da RAPS.

Porque sempre quando dá essas crises, eu já estou longe, quase nunca dá aqui [CAPSij]. Quando vem dá, é na minha casa ou no meio da rua. Sempre é mais a noite e tá fechado também. A gente vai conseguir em casa mesmo ou já procuro recurso em outros hospitais. Aí os médicos já conversam e comunicam aqui, eles respondem pra mim: - Aqui não é serviço da gente é serviço do CAPS. - Aí eu passo pro CAPS o que aconteceu com ele. (DSC 6)

O DSC 6 apresenta a dificuldade de cuidado enfrentada pelos familiares nos momentos em que o CAPSij se encontra fechado, revelando a importância da ampliação dos CAPSij III, que apresentam funcionamento 24 horas. Este DSC também ilustra a importância da tomada de responsabilidade dos CAPSij para as situações de crise de crianças e adolescentes, observada nas ocasiões em que a família procura diretamente os hospitais e na fala dos profissionais dos hospitais ao reforçarem que o cuidado à crise deve ser realizado no CAPSij.

Esse apontamento revela a importância do exercício do duplo mandato, clínico e gestor, pelos CAPSij, ao se responsabilizarem pelas demandas de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico, incorporando tanto ações terapêuticas quanto gestoras, que impliquem o território e a rede de forma articulada e colaborativa (COUTO; DELGADO, 2015COUTO, M. C.; DELGADO, P. G. G. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 27, n.1, p. 17-40, 2015.).

No DSC 7, a seguir, as famílias apontam importantes fragilidades no cuidado ofertado pelos Hospitais Gerais a crianças e adolescentes em situações de crise, além de sinalizarem falta de recursos para um acolhimento efetivo à crise nos próprios CAPSij.

Assim, quando a criança tivesse em crise que eles [CAPSij] tivessem um acolhimento melhor. [...] Aí, você fica perdida porque você não sabe onde leva a criança e outra, você não acha socorro de lado nenhum. Igual o meu neto, ele teve uma crise muito forte, a moça ficou correndo com ele em vários hospitais e ninguém aceitava, entendeu? Aí foi umas três horas da manhã um único hospital que ficou com dó ainda, segurou ele lá, mas depois mandaram ele vir para o CAPS porque o CAPS é que tinha que dar assistência para ele, mas eles não têm como dar assistência. Porque se uma criança ficar ruim aqui, eles não têm como, não tem ambulância, não tem nada, não tem um médico de plantão 24 horas para atender. [...] Também, se você vai para o hospital a maioria que tem aí é tudo adulto. Eles não atendem crianças. Aí fica difícil. Ele ficou indo em vários hospitais e tudo longe [...] e a criança vai ficando mais agitada ainda. [...] É terrível. Eles jogam tudo misturado. Eu acho que o CAPS tinha que ter um lugar próprio para receber essas crianças. (DSC 7)

O DSC 7 levanta a necessidade de que alguns recursos internos e externos estejam disponíveis às equipes de CAPSij, a fim de garantir uma melhor estrutura para que esse equipamento acolha de forma resolutiva as situações de crise de crianças e adolescentes de seu território. Revela também a necessidade dos pontos de atenção de urgência e emergência, representados aqui pelos Prontos-Socorros oferecerem um acolhimento adequado às demandas e necessidades de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso, considerando as especificidades de cuidado a essa população.

Uma discussão importante, levantada pelos resultados do presente estudo, refere-se à função do CAPSij III na atenção à crise de crianças e adolescentes. O CAPS III atende prioritariamente pessoas em intenso sofrimento psíquico e proporciona atenção contínua, com funcionamento 24 horas, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno a outros serviços de saúde mental do território (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 336 de 19, de fevereiro de 2002. Regulamenta as modalidades de Centro de Atenção Psicossocial e estabelece normas de funcionamento e composição de equipe. Ministério da Saúde, Brasília, 2002.; 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Ministério da Saúde, Brasília, 2011.). Ainda que os CAPSij III não sejam citados nas portarias ou nos documentos ministeriais, a partir dos resultados do presente estudo, é possível revelar sua importância no acolhimento à crise de crianças e adolescentes, mostrando-se uma potente estratégia que possibilita intervenções mais humanizadas e evita as internações.

Os trechos das respostas dos gestores, apresentados a seguir, reforçam a potência desse equipamento.

Trata-se de um poderoso recurso para lidar com situações de crise, prevenindo internações hospitalares, possibilitando intervenções mais humanizadas, uma vez que o acolhimento à demanda de sofrimento apresentada pelo sujeito pode ocorrer fora do período comum aos CAPSij II que são das 07:00 às 19:00 de segunda a sexta-feira. (Gestor A)

O CAPSij III apresenta-se como mais um valioso recurso para o enfrentamento do sofrimento psíquico e na luta pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Um ponto muito importante na compreensão deste dispositivo é a distinção entre acolhimento noturno e o processo de internação. Na internação o sujeito é apartado do convívio social com o objetivo da atenuação dos sintomas. Já no acolhimento noturno, os pressupostos da clínica comunitária levam em consideração a permanência do sujeito o mais próximo possível de seu território e das pessoas de sua convivência, mantendo a autonomia do sujeito, respeitando seus desejos e fragilidades e construindo seu projeto terapêutico singular com corresponsabilidade. (Gestor B)

A partir dos resultados aqui apresentados, verifica-se que as equipes refletem sobre a diferença de cuidado proporcionada por um acolhimento noturno e por uma internação hospitalar. Tal perspectiva também foi apresentada por Dell’Acqua e Mezzina (1991), ao apontarem que a internação furta a pessoa do seu contexto e a subordina a regras institucionais baseadas em uma abordagem medicalizante, incompatível com a vida integral do usuário.

De acordo com Dell’Acqua e Mezzina DELL’ACQUA, G.; MEZZINA, R. Resposta à crise. In: DELGADO, J. (Org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Autor, 1991, p. 53-79.(1991), quando a intervenção à crise se desenvolve em um serviço comunitário, por meio da hospitalidade 24 horas, o usuário continua a manter contato com seus familiares, amigos e seu território, constatando, deste modo, que não perdeu sua autonomia e liberdade. Os autores apontam que, desta forma, o serviço assume uma conotação simbólica de lugar de relações, e não de rupturas e segregação. Não obstante os autores abordem a crise em adultos, considera-se que os pressupostos aqui destacados são também pertinentes a crianças e adolescentes.

Outro serviço acionado pelas equipes de CAPSij nas situações de crise é o SAMU. Muito embora o SAMU faça parte da Rede de Atenção Psicossocial, como um dos pontos de atenção de urgência e emergência, e seja responsável pelo acolhimento, classificação de risco e cuidado às pessoas em fase aguda do transtorno mental (BRASIL, 2011), verifica-se no quadro 2, que as equipes apontam que os casos de saúde mental não estão entre as prioridades desse serviço e raramente são atendidos. A dificuldade com este equipamento também foi apresentada pelas famílias, conforme apresenta o DSC 8, a seguir.

Na primeira crise ele ficou nervoso e já saiu batendo nas coisas. Aí ficou andando pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. E daí a pouco foi quando ele veio pra cima de mim com tudo, meu outro menino tentou tirar ele, pois ele estava me sufocando e ele não conseguia tirar o irmão de mim, [...] aí, o meu filho pegou ele e saiu arrastando ele lá pra trás, eu ajudando, e ele se debatendo e xingando a gente. A gente empurrou ele pra dentro do quarto e fechamos a porta. Aí ele ficou batendo na porta, batendo em tudo, jogando tudo, acabando com tudo. Aí, eu corri e liguei para o SAMU fiquei esperando o SAMU chegar, aí nisso foi quase 1 hora e uns 20 minutos de crise. Ele quebrou tudo lá no quarto. Tudo! E o SAMU não chegava! e eu desesperada. Aí daqui a pouco a gente começou a escutar o silêncio. Quando a gente escutou o silêncio, estava ele sentado, tudo quebrado e um pouco machucado. (DSC 8)

As famílias também revelam situações vivenciadas em outros pontos de atenção de urgência e emergência, como é o caso dos Prontos-Socorros, acionados pelos familiares nos momentos de crise.

Ele tinha 4 para 5 anos, ele acordou e disse que tinha um monte de bicho no corpo, ele rolava no chão, arrancou a roupa todinha e a gente não podia tocar nele que ele gritava. E dava ânsia e ele falava que estava cheio de bicho na garganta dele, ele entrou em pânico. A primeira coisa que eu me lembrei foi de enrolar ele num lençol e levar para o hospital. O médico disse que ele estava tendo uma crise de esquizofrenia, eles deram uma injeção de calmante que não fez efeito e ele ficou a noite inteira gritando. Aí deram mais um medicamento foi aí que ele ficou grogue e ele conseguiu dormir. Eu trouxe ele embora pra casa dormindo. No outro dia foi tudo a mesma coisa. (DSC 9)

Embora os familiares busquem os serviços que compõem os pontos de atenção de urgência e emergência, nem sempre recebem o cuidado esperado, exemplificado pelo SAMU, que não atende ao chamado, e pelo Pronto-Socorro, que apenas administra a medicação e na sequência libera o usuário para casa.

O uso da medicação, como principal recurso ofertado pelos serviços de urgência e emergência, também foi apontado por outros estudos que focalizaram os profissionais do SAMU (ALMEIDA et al., 2014ALMEIDA, A. B. et al. Intervenção nas situações de crise psíquica: dificuldades e sugestões de uma equipe de atenção pré-hospitalar. Revista Brasileira de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 67, n. 5, p. 708-14, 2014.; JARDIM; DIMENSTEIN, 2008JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. A crise na rede: o SAMU no contexto da reforma psiquiátrica. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 32, n. 78-79-80, p. 150-160, 2008.). Em estudo que focalizou os itinerários terapêuticos e as narrativas de vida de adolescentes em crise, a centralidade da medicação também foi apresentada no cuidado ofertado pelo Hospital Geral (PEREIRA; SÁ; MIRANDA, 2014PEREIRA, M. O.; SÁ, M. C.; MIRANDA, L. Um olhar da atenção psicossocial à adolescentes em crise a partir de seus itinerários terapêuticos. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 10, p. 2145-2154, 2014.).

Os serviços de urgência e emergência compõem a RAPS e têm importância substancial na Reforma Psiquiátrica. Serviços de emergências psiquiátricas, bem estruturados, são capazes de promover a estabilização clínica, oferecer suporte psicossocial e encaminhar para os serviços assistenciais adequados (BARROS; TUNG; MARI, 2010BARROS, R. E. M.; TUNG, T. C.; MARI, J. J. Serviços de emergência psiquiátrica e suas relações com a rede de saúde mental brasileira. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 32, supl. 2, p. 71-77, 2010. ).

Já os serviços de urgência móvel, como o SAMU, apresentam como preceitos de sua prática assistencial a agilidade, a funcionalidade e a objetividade, ocupando posição estratégica como articuladores de serviços assistenciais, além de propiciar uma acessibilidade geográfica e assistencial, a fim de que as pessoas sejam atendidas nos territórios onde vivem (BRITO; BONFADA; GUIMARÃES, 2015BRITO, A. A. C.; BONFADA. D.; GUIMARÃES, J. Onde a reforma ainda não chegou: ecos da assistência às urgências psiquiátricas. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1293-1312, 2015.; HIRDES, 2009HIRDES, A. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re)visão. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 297-395, 2009.).

Apesar do valor que os serviços de urgência e emergência têm para a atenção à crise em saúde mental, os DSCs apresentados revelam uma realidade de desassistência e negligência desses serviços nas situações de crise de crianças e adolescentes. Expõem, também, que quando acessados, esses serviços utilizam apenas o recurso da medicação, o que é apontado pelas famílias como insuficiente para responder às demandas apresentadas.

Já as UBS são acionadas pelas equipes de CAPSij nos momentos de pós-crise, para aqueles usuários que não acessam esses equipamentos. Vale ressaltar, no entanto, que as UBS, com sua capacidade de capilarização nos territórios e seu acompanhamento longitudinal das famílias, possuem importantes recursos que favorecem a ampliação do olhar e das estratégias de cuidado nas situações de crise. É vital que esses equipamentos estejam envolvidos nesse momento, pois a crise como uma complexa situação existencial demanda a participação de todos atores sociais envolvidos, auxiliando na recomposição da história, das relações e nas possibilidades de transformação dos cenários que constituem as crises.

Esses resultados reforçam a necessidade de investimentos em todos os pontos da RAPS, a fim de garantir melhorias na atenção à crise de crianças e adolescentes, sendo de extrema urgência a problematização dessas questões nas políticas públicas de saúde mental a essa população.

Considerações finais

Considerando a gravidade, intensidade e complexidade que as situações de crise impõem a crianças, adolescentes, familiares e seus contextos, promover a atenção à crise num serviço de saúde mental comunitário, como o CAPSij, é antes de tudo um compromisso ético e político em construir um cuidado digno e em liberdade para os que mais sofrem.

Os resultados do presente estudo apontam que as principais estratégias de cuidado ofertadas pelos CAPSij para atenção às situações de crise referem-se ao acolhimento imediato, cuidado intensivo, intervenção em equipe e articulação com a rede, o que indica um alinhamento com as diretrizes da atenção psicossocial de crianças e adolescentes.

Também foram apresentadas neste estudo algumas fragilidades e contradições presentes na atenção às situações de crise de crianças e adolescentes, como a baixa indicação de ações territoriais, a baixa participação das famílias nos espaços de cuidado e a citação do Hospital Geral como um dos principais equipamentos acionados pelas equipes, o que pode revelar a transição paradigmática em que esses serviços se encontram, pela concomitante presença de estratégias que remetem ao paradigma psicossocial e outras ao paradigma psiquiátrico.

Vale ressaltar que muitas das estratégias de cuidado citadas pelos gestores são comuns a todos os tipos de CAPS, porém considerando que crianças e adolescentes encontram-se em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, há especificidades que são importantes de serem pontuadas, como a necessidade de inclusão mais intensa das famílias e de outros atores da rede no processo de cuidado e a oferta de uma atenção que respeite seu lugar de sujeitos de direitos, evitando e lutando contra toda e qualquer forma de institucionalização e preservando seus direitos básicos de convivência familiar e comunitária, liberdade e dignidade, acesso à educação, cultura, lazer, entre outros.

Compreende-se que outra relevante contribuição deste trabalho se refere à apresentação do equipamento CAPSij III e sua importância no acolhimento à crise de crianças e adolescentes, mostrando-se uma potente estratégia que possibilita intervenções mais humanizadas e evita internações. Sugere-se que estudos futuros coloquem foco sobre esses equipamentos de forma a fornecer elementos para a ampliação do cuidado a crianças e adolescentes em situações de crise.

Acredita-se que este estudo oferece um aprofundamento no conhecimento deste campo e indica importantes elementos para que discussões e reflexões sobre a atenção à crise de crianças e adolescentes sejam realizadas pelas equipes de CAPSij em seus cotidianos de trabalho, além de contribuir para que avanços nas políticas públicas de saúde mental infantojuvenil sejam realizados.

Por fim, salienta-se que, na medida em que este estudo buscou compreender a perspectiva de gestores e familiares, sugere-se que estudos futuros sejam desenvolvidos considerando a perspectiva dos profissionais e o protagonismo das próprias crianças e adolescentes, usuários dos CAPSij.3 3 B. Moura: elaborou e executou a pesquisa, análise dos dados, redação do manuscrito. T. S. Matsukura: orientou o projeto de pesquisa, análise dos resultados, revisão da versão final do manuscrito.

Referências

  • ALMEIDA, A. B. et al Intervenção nas situações de crise psíquica: dificuldades e sugestões de uma equipe de atenção pré-hospitalar. Revista Brasileira de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 67, n. 5, p. 708-14, 2014.
  • AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
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Notas

  • 1
    Este estudo contou com financiamento da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e é parte integrante de pesquisa de mestrado da primeira autora, não apresentando conflito de interesses.
  • 2
    Os leitos de atenção integral em saúde mental correspondem ao componente de atenção hospitalar da RAPS, no qual hospitais gerais, maternidades e hospitais de pediatria são habilitados para oferta de leitos de saúde mental. Este ponto de atenção tem o objetivo de oferecer cuidado hospitalar, avaliações para discriminação diagnóstica de questões clínicas ou psiquiátricas, manejo de situações de crise e/ou de vulnerabilidade extrema que apresente risco de vida para o usuário. As internações devem ser de curta duração, superando a lógica asilar presente nos hospitais psiquiátricos.
  • 3
    B. Moura: elaborou e executou a pesquisa, análise dos dados, redação do manuscrito. T. S. Matsukura: orientou o projeto de pesquisa, análise dos resultados, revisão da versão final do manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2021
  • Revisado
    16 Abr 2021
  • Aceito
    12 Maio 2021
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