POR UMA PROPOSTA DE AVALIAÇÃO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM A PARTIR DE THOMAS KUHN

RESUMO

Objetivo:

apresentar a teoria de Thomas Kuhn e a sua aplicabilidade para a avaliação epistemológica do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem.

Método:

análise reflexiva tendo a questão norteadora: como a teoria de Thomas Kuhn pode contribuir para a avaliação epistemológica do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem?

Resultados:

a Ciência da Enfermagem em seu processo histórico de realização vem se deparando com inúmeros desafios que se impõem ao conhecimento científico, dentre eles: ter base filosófica precisa e robusta que justifique e legitime o conhecimento da área para dar apoio às suas assertivas; deter-se no objeto de sua ciência; ter claro o campo da disciplina e sua relação com as ciências afins, estabelecendo o diálogo interdisciplinar. Assentar a produção científica em objetos próprios à enfermagem, buscar métodos apropriados para abordá-los sem que se desprezem o conhecimento das experiências e realizações das enfermeiras pode ser o fio condutor que possibilite a Ciência da Enfermagem a ligar-se à pragmática da profissão e da saúde. Esse tem sido o desafio para a comunidade científica da Enfermagem.

Conclusão:

o corpus doutrinae da profissão exige a autoavaliação qualitativa de natureza epistemológica. O pensamento de Thomas Kuhn pode subsidiar essa avaliação.

DESCRITORES:
Enfermagem; Conhecimento; Filosofia; Pesquisa; Ciência

ABSTRACT

Objective:

to present Thomas Kuhn's theory and its applicability for epistemological evaluation of the Nursing Graduate Program.

Method:

reflective analysis with a guiding question: How can Thomas Kuhn's theory contribute to an epistemological evaluation of the Graduate Nursing Program?

Results:

the Nursing Science in its historical process of realization has been facing numerous challenges that impose themselves to scientific knowledge: having an accurate and robust philosophical basis that justifies and legitimizes the knowledge of the area to support its assertions; dwell on the object of his science; have clear the field of discipline and its relationship with the related sciences, establishing interdisciplinary dialogue. To base scientific production on objects proper to nursing, to seek appropriate methods to approach them without disregarding the knowledge of nurses' experiences and accomplishments may be the guiding thread that enables Nursing Science to be linked to the pragmatics of the profession and Cheers. This has been the challenge for the nursing scientific community. The elements of Kuhnian theory are presented: pre-science, normal science, crisis and revolution; points out a hypothesis to be tested by the researchers of the program. If the hypothesis is true, Nursing Science approaches the paradigmatic level and will manifest itself in pragmatics through the scientific nursing discipline. If rejected, there will be a new classification for the area.

Conclusion:

the corpus doutrinae of the profession requires qualitative self-assessment of an epistemological nature. Thomas Kuhn's thinking can support this assessment.

DESCRIPTORS:
Nursing; Knowledge; Philosophy; Search; Science

RESUMEN

Objetivo:

presentar la teoría de Thomas Kuhn y su aplicabilidad para la evaluación epistemológica del Programa de Postgrado en Enfermería.

Método

análisis reflexivo con la pregunta guía: ¿Cómo puede contribuir la teoría de Thomas Kuhn a la evaluación epistemológica del Programa de Postgrado en Enfermería

Resultados:

la Ciencia de Enfermería en su proceso histórico de realización se ha enfrentado a numerosos desafíos que se imponen al conocimiento científico, entre ellos: tener una base filosófica precisa y sólida que justifique y legitime el conocimiento del área para apoyar sus afirmaciones; detenerse en el objeto de su ciencia; tener claro el campo de disciplina y su relación con las ciencias relacionadas, estableciendo un diálogo interdisciplinario. Basar la producción científica en objetos propios de la enfermería, buscar métodos apropiados para abordarlos sin ignorar el conocimiento de las experiencias y logros de las enfermeras puede ser el hilo conductor que permita que la ciencia de enfermería se vincule con la pragmática de la profesión y salud Este ha sido el desafío para la comunidad científica de enfermería. Se presentan elementos de la teoría de KUHNIANA: la ciencia, la ciencia normal, la crisis y la revolución apuntan a una hipótesis para ser probada por investigadores del programa. Si la hipótesis es cierta, la ciencia de enfermería se aproxima al nivel paradigmático y se manifestará en pragmática a través de la disciplina científica de enfermería. Si se rechaza, habrá una nueva clasificación para el área.

Conclusión:

la corpus doutrinae de la profesión requiere una autoevaluación cualitativa de naturaleza epistemológica. El pensamiento de Thomas Kuhn puede apoyar esta evaluación.

DESCRIPTORES:
Enfermería; Conocimiento; Filosofía; Búsqueda; Ciencia

INTRODUÇÃO

A Ciência da Enfermagem é uma ciência nascente, cujo processo de desenvolvimento histórico tem se revelado promissor. Entretanto, representantes da área apontam para a necessidade de se proceder a crítica desse processo em curso a partir dos seguintes aspectos, a saber: base filosófica, objeto de pesquisa, campo disciplinar e interdisciplinaridade. Sobre a base filosófica: propõe-se que essa deva estabelecer de modo preciso e robusto a capacidade de justificar e legitimar o conhecimento produzido para dar apoio às suas assertivas; objeto de pesquisa de sua ciência: toda ciência tem objeto que lhe é singular e a ele deve se ater; campo disciplinar: nesse quesito, advoga-se que as pesquisadoras devam ter claro o campo da disciplina e sua relação com as ciências afins; interdisciplinaridade: diante da complexidade que funda o agir humano, não é razoável que a Ciência da Enfermagem se desenvolva de maneira isolacionista. O diálogo interdisciplinar revela-se útil, pois possibilita a produção do conhecimento científico para a compreensão do ser humano nos diversos ciclos da vida, isto é, da concepção à morte, perante a assistência de enfermagem, permitindo situar suas práticas diante do contexto social, político e filosófico que marca a existência humana na coletividade. A incorporação da interdisciplinaridade pela área propicia, ainda, a construção do saber resultante da integração do conhecimento de todas as áreas afins da saúde.1^-2

Sabe-se que o objeto próprio de pesquisa de uma ciência é instrumental para a especificidade do saber científico construído, pois esse delimita o campo e estabelece a sua fronteira enquanto disciplina. Cabe, portanto, a Ciência da Enfermagem estabelecê-lo a fim de garantir a especificidade do conhecimento científico produzido. Esse objeto deve emergir da prática, pois é no fazer da enfermeira que radica a essência da profissão. Assim, a produção científica da enfermagem precisa refletir as experiências e realizações das enfermeiras, pode ser o fio condutor que possibilite a Ciência da Enfermagem ligar-se à pragmática da profissão e da saúde.1^-2

Para o desempenho da Ciência da Enfermagem, as pesquisadoras se unem em torno de princípios e valores epistêmicos fundando uma comunidade científica. É por meio dela que medeiam o crescimento e o desenvolvimento do conhecimento da área. É fático que no mundo da cultura - e a ciência nele se insere - não há ambiente neutro, isto é, desprovido de interesse econômico, político, ideológico e de disputa de poder. Por isso, é possível que o interesse da indústria de produção de medicamento, de equipamento hospitalar e o modelo de ciência experimental que fundamenta a prática das carreiras da saúde possa estar agindo sobre a comunidade científica, impondo a sua agenda e tomada de compromisso em detrimento de estudo que fomente a investigação sobre as práticas de cuidado. Essa situação mostra-se desafiadora para a comunidade científica da Enfermagem, pois não é razoável deixar de considerar a possibilidade dessa influência sobre o crescimento e desenvolvimento de sua ciência.3

No contexto brasileiro é exequível identificar cinco períodos geracionais para a edificação da Ciência da Enfermagem. A primeira geração foi a das pioneiras. Ela despontou nos anos de 1950 e muitas dessas pesquisadoras realizaram cursos de especialização no exterior e elaboraram os primeiros produtos científicos da área. A segunda geração surgiu nas décadas de 1960 e 1970, foi a das autodidatas e teve como legado para a educação das enfermeiras no cenário nacional o empenho em prover, a partir de concurso público, a titulação de doutor e livre-docente para a área, possibilitando a formação de recursos humanos para a abertura de cursos de pós-graduação. A terceira geração foi a das acadêmicas, e ela apareceu nas décadas de 1970 e 1980 e, por seu intermédio, deu-se início a pós-graduação stricto sensu.

A quarta geração surgiu a partir de 1990, a de líderes de grupo de pesquisa. Sua principal característica foi o desenvolvimento de produção científica na área de forma sistemática e coletiva. Críticos apontam que nesse período surgiu o problema da dispersão temática, o que moveu a área a buscar delimitar o campo investigativo, temendo a fragilização do PPGENF pela falta de continuidade e consistência. A quinta geração ou atual é composta por pesquisadoras com significativa contribuição para a produção científica e expertise na orientação de mestres e doutores, tendo reconhecida capacidade de liderança fundamentada na meritocracia acadêmica e com acentuado movimento para a internacionalização, notadamente, por duas vias: a produção científica e o intercâmbio do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGENF) com universidades e instituições de pesquisas no exterior.4

Todo esse movimento histórico, a partir da fundação da comunidade científica da Enfermagem, permite reconhecer a relevância de cada geração e o elo que une as pesquisadoras. Deste modo, passados 46 anos de implantação do PPGENF no cenário nacional, possa comemorar o seu crescimento e desenvolvimento mediante a titulação de mestres e doutores. Tal fato mostra-se relevante na qualificação de recursos humanos para a assistência, a pesquisa e o ensino. Pode-se exemplificar essa assertiva a partir do quantitativo de títulos acadêmicos conferidos pela pós-graduação stricto sensu no último quadriênio. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES - foram titulados pelos 76 PPGENFs, 3.446 mestres acadêmicos, 631 mestres profissionais e 1.309 doutores, revelando o esforço da comunidade científica da Enfermagem para a construção de sua ciência.5^-6

A Ciência da Enfermagem se manifesta a partir das dissertações, teses, artigos, dentre outros, desenvolvidos pelas pesquisadoras nos PPGENFs, movendo a elaboração e (re)construção de seu saber científico. Assim, a Ciência da Enfermagem viabiliza o surgimento de teorias, métodos, tecnologias e inovações para a pragmática da área, quer seja no ensino, na pesquisa, na assistência ou na organização. No cenário nacional essa realidade tem sido a força motriz para a elaboração de políticas que oportunizam novas conquistas, robustecem e propiciam atualizações e geram impactos na formação de recursos humanos da área, na esfera da produção de conhecimento científico, podendo produzir novas tecnologias para a Enfermagem e a área da Saúde. Ademais, sabe-se que a área tem na graduação e pós-graduação a fonte de profissionais para a assistência, de pesquisadoras e o local de sustentáculo da ciência, entretanto, é no espaço da prática, quer seja na assistência, na organização, na pesquisa e no ensino, a sua razão de ser enquanto carreira da saúde. Tendo esse mote, depreende-se que é na lida assumida pela enfermeira que se dá a experimentação e a aplicação do conhecimento produzido pela Ciência da Enfermagem.1^-3^,5

A comunidade científica internacional da área, por meio do International Network for Doctoral Education in Nursing (INDEN), tem expressado essa preocupação; fato constatado a partir da elaboração de critérios e normas para os cursos de doutorado, indicando que esses devem se dirigir à Ciência da Enfermagem, destacando-se dois eixos fundamentais, a saber: (1) os conteúdos devem estar voltados para o desenvolvimento teórico-filosófico, metodológico e ético das pesquisas; (2) as investigações devem responder aos fenômenos da profissão e, assim, possibilitar a eventual transformação da prática de enfermagem. Do que está posto, se depreende que o foco de interesse do INDEN está voltado para uma atitude pragmática da pesquisa da Ciência da Enfermagem, fazendo com que ela, enquanto uma ciência-em-vias-de-se-fazer, empreenda esforços na produção de conhecimentos sobre a sua prática, principalmente, aqueles que atendam o interesse de desvelar os fundamentos epistemológicos do cuidado de enfermagem, permitindo assim explicitar o domínio de conhecimento da carreira.5

Por isso, deve-se dar a preocupação tangível ao alcance da verdade do conhecimento de que trata a epistemologia, pondo sob crítica o corpus científico advindo dos constructos acadêmicos do PPGENF, movimento que é atribuição da pesquisadora, pois no curso histórico da construção da Ciência da Enfermagem eventuais desvios podem ocorrer, afastando as pesquisadoras do mote da investigação da área. Destaca-se que esse movimento de crítica epistemológica do PPGENF é salutar, pois o seu fulcro é ajuizar a pertinência da produção científica para o crescimento e desenvolvimento do saber da enfermagem e sua utilização na prática assistencial, organização, pesquisa e no ensino.7^-8

Em que pese a avaliação institucional do PPGENF, os cursos ofertados no Brasil são avaliados pela CAPES a cada quadriênio. O órgão nomeia uma comissão de especialistas da área que atribui conceitos que variam de 1 a 7 ao programa. O conceito acima de 5 é atribuído ao programa de excelência acadêmica que atenda os quesitos específicos nas áreas de Solidariedade, Nucleação, Liderança e Internacionalização. A avaliação proposta pela CAPES tem por objetivo estabelecer os parâmetros que norteiam o PPGENF, permitindo-lhe sua efetividade nacional e internacionalização. A área tem-se empenhado na crítica de sua ciência por meio da avaliação sistemática, promovendo o enlace entre elementos quantitativos e qualitativos. Entretanto, uma avaliação de natureza qualitativa a partir de uma base teórico-filosófico aguarda a sua gênese.2^-6

A presente reflexão justifica-se devido a que a Ciência da Enfermagem, como ciência-em-vias-de-se-fazer, necessita avaliar criticamente as bases epistemológicas que a delimitam. Para esta avaliação epistemológica do PPGENF, faz-se necessário assumir um referencial teórico que possa subsidiá-la. No curso histórico da filosofia da ciência, várias concepções surgiram, assim, o campo teórico atual é vasto e expressa diferentes matizes. Cada filósofo justifica e legitima um dado conceito de ciência, expressa uma mundividência e suas reflexões epistêmicas possuem vicissitudes e limitações. Nesse caso, faz-se necessário às pesquisadoras que atuam no PPGENF, de maneira democrática e consensual, assumirem uma determinada perspectiva teórica e, sob a sua égide, proceder à crítica epistemológica. Em virtude de a área propor seu alinhamento ao parâmetro e indicador da Física ou da Biologia, ciências ditas maduras, pensa-se ser legítimo que se valha dos teóricos usados por essas áreas para proceder a sua autocrítica. Nesse ensaio, elenca-se o teórico Thomas Kuhn.9^-10

Tomado esse epistemólogo como referencial, formula-se a seguinte pergunta norteadora, a saber: como a teoria de Thomas Kuhn pode contribuir para a avaliação epistemológica do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem?

OBJETIVO

Apresentar a teoria de Thomas Kuhn a partir da obra, “A Estrutura das Revoluções Científicas” e a sua aplicabilidade para a avaliação epistemológica do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem.

REFLEXÃO

Estudo de reflexão organizada em duas seções. Na primeira, apresentam-se os elementos basilares da teoria de Thomas Kuhn e, na segunda, aponta-se a aplicabilidade dessa teoria para a avaliação epistemológica do PPGENF. A posição epistemológica assumida pelo teórico é oposta ao ceticismo, ao dogmatismo e o falibilismo. Seu interesse radica-se na análise socio-histórica da construção da ciência.7^-10

A Estrutura das Revoluções Científicas e seus elementos basilares

Thomas Kuhn, no ano de 1962, publicou A Estrutura das Revoluções Científicas. Ele estabeleceu conceitos antes não contemplados, dentre eles, o de que fazer ciência é montar um ‘quebra-cabeça’, e trouxe ainda a ideia de se pensar na transitoriedade de paradigmas. Uma ciência pode passar por diferentes fases, sumarizadas em: pré-ciência, normal, crise e revolução. Na fase de pré-ciência, existe vários paradigmas rivais e não há regras ou princípios metodológicos capazes de guiar todos os membros da comunidade e, com isso, conceitos, teorias e os próprios fenômenos a serem investigados, deixam de ter a anuência da comunidade. Em geral, nesta fase, o pesquisador precisa investir seu tempo justificando conceitos, métodos, técnicas e realizar experimentos ou, ainda, resolvendo problemas. Tais pulverizações de ações acabam comprometendo o crescimento e desenvolvimento científico.8^-10

Por sua vez, a falta de consenso em uma determinada área de conhecimento produz, dentre outras consequências, uma carência para o surgimento de uma comunidade científica coesa e fragiliza o sentimento de pertencimento do pesquisador a ela. As desavenças de natureza epistemológicas compartilhadas entre os pesquisadores irão se materializar em três elementos, a saber: (a) na escolha dos fenômenos que devem ser estudados; (b) nos princípios metodológicos e fundamentos teóricos que devem ser empregados; (c) na tipificação dos fenômenos a serem explicados. Em resumo, no período pré-científico os vários paradigmas estão em disputa, gerando uma atividade desorganizada e sem estabelecer o fenômeno singular de pesquisa da área. É um período marcado pela competição entre escolas em igualdade de condições.10

A ciência normal surge quando a disputa entre os paradigmas se encerra e a comunidade de pesquisadores adere apenas a um paradigma para a área de pesquisa. O teórico usou o termo ‘paradigma’ em sentido polissêmico em seu texto, o que alimentou diversas críticas. Posteriormente, ao elaborar o posfácio da obra, ele assumiu o significado de paradigma como o de uma matriz disciplinar.10

Na fase da ciência normal, o paradigma vencedor se estabelece e as divergências entre os praticantes de uma área de pesquisa são reduzidas, dando origem a uma comunidade científica que passa a ser constituída por um conjunto de pesquisadores que se relacionam entre si e têm objetivos comuns. Nela, os fenômenos investigados são interpretados de modo igual, pois os cientistas compartilham de uma mesma mundividência. Assim, os métodos, instrumentos, princípios, conceitos e teorias são definidos, estabelecidos e praticados por todos. Ao que parece, os membros participantes desta comunidade científica nascente acreditam que possuem o conhecimento de como o mundo é. Cabe, salientar que, na ciência normal, é inerente ao paradigma deixar problemas para serem resolvidos, a semelhança de um jogo de ‘quebra-cabeça’. São esses problemas que medem a desenvoltura do cientista para encontrar uma solução, passando a exigir a elaboração de soluções simples e eficientes.8^,10

O desafio do pesquisador é obter a resolução de ‘quebra-cabeças’ e, para o teórico, tal situação se constitui parte importante da motivação do cientista para o trabalho de pesquisa, visto que demanda dele capacidade de criação, pois é despertado o seu espírito científico, promovendo o surgimento de novos métodos, técnicas e elaborações de conceitos para a resolução do problema. O pesquisador assume compromissos tácitos diante do paradigma para a sua conservação e manutenção, o que implica que ele não tem como mote a busca pela elaboração de novos conceitos ou fenômenos. Apesar do despertar do espírito científico isso não impõe ao pesquisador o imperativo de buscá-los.10

É observado no curso da história da ciência normal que parte dos fenômenos observados se mostra repetidas vezes e de forma consistente, fazendo com que o resultado esperado, a partir da fidelidade ao paradigma, tenha sua inadequação, impedindo a solução do ‘quebra-cabeças’. Esse fenômeno é descrito pelo teórico como sendo uma anomalia. Seu efeito positivo é ser, em potência, capaz de gerar novas descobertas dentro do paradigma, o que pode fortalecê-lo, permitindo a descoberta de novas peças para a solução do ‘quebra-cabeça’. Esse fato fortalece a comunidade científica em torno do paradigma. No entanto, na medida em que o tempo vai transcorrendo, as anomalias podem ganhar força epistemológica contraditória, levando o paradigma à crise. Esta é solo fértil para o florescimento de uma revolução científica.9^-10

A crise em uma área de pesquisa eclode quando os pesquisadores começam a suspeitar da capacidade do paradigma dominante em solucionar os diversos problemas que passam a se acumular no âmbito da ciência normal. Esse sentimento é crescente no seio da comunidade científica e irá propiciar o surgimento de novas alternativas a partir da assunção de um novo paradigma. A desconfiança crescerá até generalizar-se, fazendo com que o pesquisador não mais visualize no paradigma sua capacidade para prever, resolver, elucidar, explicar o fenômeno observado. Para o teórico, a substituição de um paradigma por outro envolve fatores cognitivos, objetivos, elementos psicológicos, mudança na cosmovisão e fatores extracognitivos, como a insegurança do pesquisador perante o paradigma vigente. É a somatória de todos esses elementos que movem os pesquisadores, paulatinamente, a se afastarem do paradigma dominante.5^,9^-10

Por intermédio da crise, o pesquisador será testado em sua capacidade de resiliência objetivando a busca por uma acomodação entre a anomalia e o paradigma. Ao pressentir o seu insucesso, o pesquisador torna-se um crítico de sua própria atividade e, agora, inicia o processo de convencimento de novos insatisfeitos a fim de dar cabo ao abandono do paradigma. Do ponto de vista psicológico, há por parte dos pesquisadores o sentimento de funcionamento defeituoso do paradigma e constitui-se em um pré-requisito para a revolução científica. Em geral, o abandono de um paradigma é efetivado quando o pesquisador se depara com outro paradigma capaz de trazer de volta a esperança perdida na resolução do ‘quebra-cabeças’, a esse intrincado processo de conversão, o teórico denomina de revolução. Para o epistemólogo, a revolução científica é episódio de desenvolvimento não acumulativo, caracterizado pela substituição do paradigma anterior pelo novo. No entanto, na comunidade científica será possível contemplar pesquisadores que mesmo diante do incômodo gerado pela não acomodação jamais abandonam o paradigma anterior.9^-10

A aplicabilidade da teoria de Thomas Kuhn para a avaliação qualitativa do PPGENF

Para ilustrar a aplicabilidade da teoria kuhniana, arbitrariamente, formula-se neste ensaio uma hipótese, tendo-a como ponto arquimediano, a saber: a Ciência da Enfermagem está na fase da ciência normal, possui uma matriz disciplinar e tem objeto de pesquisa. Seu teste se dará pelas pesquisadoras por meio do confronto entre a hipótese e os dados da observação empírica (dissertações e teses), posição esposada em Popper, obtendo o resultado de confirmação (verdadeiro) e rejeição (falso). Se verdadeira, a Ciência da Enfermagem se aproxima do patamar paradigmático e se manifestará na pragmática através da disciplina científica Enfermagem. Se for rejeitada, haverá uma nova classificação para a área, dentre as alternativas, a saber: fase de pré-ciência, crise ou revolução. Esse fato trará implicações epistêmicas significativas. Entretanto, esse desdobramento foge ao escopo dessa reflexão. Agora, torna-se necessário elucidar as implicações kuhnianas da hipótese para a disciplina científica Enfermagem, matriz disciplinar e objeto de pesquisa.1^,2^,8^,10

A disciplina científica Enfermagem deve responder pela diversidade do campo científico da área e tem como fulcro instituir a divisão e a especialização do trabalho. É cultural e historicamente delimitada por fenômenos e saberes da prática profissional. A disciplina científica Enfermagem possuirá relativa estabilidade do objeto de pesquisa e técnicas, o que possibilita a produção do conhecimento dentro da perspectiva assumida pela comunidade científica. Ela poderá se exaurir e não mais responder as questões advindas da pragmática profissional e, com isso, iniciar o processo de sua desestruturação.3^,8^,10^-15

Sobre a matriz disciplinar, sabe-se que ela é constituída por pressupostos teóricos e metodológicos com a finalidade de estabelecer normas procedimentais a partir da observância de leis e princípios que passam a orientar os pesquisadores; possui uma agenda científica que indica os problemas a serem estudados pela comunidade de pesquisadoras e fornece soluções padronizadas para uma dada ciência.10^-20

A matriz disciplinar contém, ainda, elementos axiológicos, isto é, possui valores epistêmicos de exatidão, consistência, alcance, fecundidade e simplicidade. Torna-se necessário, a fim de dirimir eventuais dúvidas, apontar a significação kuhniana desses valores, pois eles são elementos não cognitivos e que influenciam a decisão do cientista. Assim, por exatidão entende-se a verificação do resultado obtido a partir da crítica ao método empregado; por seu intermédio a pesquisadora busca revisitar o resultado, criticando-o à luz do método empregado, quer seja quantitativo, qualitativo ou misto; buscando remover suas incongruências; consistência: por meio desse valor, o conhecimento científico ao ser submetido à crítica epistemológica evidencia capacidade de resistir aos argumentos contrários, revelando-se robusto e ordenado logicamente. Seu propósito visa à elaboração de um conhecimento com profundidade e explicações mais adequadas; alcance: por esse valor, o estudo mostra-se capaz de produzir resultados que são empregados pela comunidade científica. Seu mote é permitir a inovação e a transformação do conhecimento existente; a fecundidade é a qualidade valorativa presente no estudo em propor novas perguntas para serem investigadas pela comunidade científica.

Assim, permite o despertar de novas atividades de pesquisa ligada ao conteúdo e, com isso, previne-se a cópia e favorece a criatividade. Logo, o espírito científico deve explorar todas as potencialidades imagináveis e elabora caminhos para a construção do saber científico; simplicidade: esse valor aponta uma visão realista do fenômeno de pesquisa, desvelando aspectos controversos no paradigma com rigor e clareza, tornando-o compreensível. Esses valores estão amalgamados na ciência e foram constatados pelo teórico. Para ele, a ciência normal é erigida sob esses valores que lhe conferem sentido e significado, dando-lhe robustez e coerência. É possível contemplá-los no curso da história da Física. Ressalta-se, entretanto, que caberá às pesquisadoras identificar e estabelecer os valores epistêmicos que julgam apropriados para comporem a sua matriz disciplinar, extraindo-os das dissertações e teses do PPGENF.2^,3^,10^-20

No presente ensaio, foi proposto a aproximação epistemológica das ciências ditas maduras e, por isso, ajuíza-se, a título de ilustração, legítimo considerar a aplicação de seus valores epistêmicos pela disciplina científica Enfermagem. Por conseguinte, as pesquisadoras do PPGENF ao proceder o escrutínio das dissertações e teses de enfermagem, deverão contemplar nelas os valores epistêmicos de exatidão, consistência, alcance, simplicidade e fecundidade. É fático que essas características axiológicas cooperam para o processo de especialização do conhecimento científico produzido, condição que na visão kuhniana indica o progresso científico de uma dada ciência. Os valores epistêmicos não funcionarão como normas matemáticas, mas como elementos norteadores que garantirão a objetividade e racionalidade da ciência, ainda que aplicados pelas pesquisadoras de forma subjetiva. Por isso, as pesquisadoras do PPGENF deverão assumi-los em potência, em sentido de vir-a-ser, a fim de que possam salvaguardar a objetividade e a racionalidade do conhecimento científico da área.2^,3^,9^-15

Outro aspecto a ser elucidado é o conceito kuhniano de objeto de pesquisa. O teórico afirma que a definição do objeto de pesquisa de uma ciência limita significativamente os fatos empíricos e teóricos a serem pesquisados pela comunidade científica. Ele estabelece acordo entre as questões fundamentais a serem investigadas, revela o paradigma aceito e promove o avanço na solução de problemas da área. Para o filósofo, o progresso da ciência é uma diferença específica dela ante as outras formas de conhecimento. Assim, é possível afirmar que o conhecimento científico, advindo do estudo do objeto de pesquisa da disciplina científica Enfermagem, deverá guardar estreita relação com a ideia de especialização do saber.3^,10^,14^,15^-20

Sobre o objeto de pesquisa da disciplina científica Enfermagem, sabe-se que ele é elemento de controvérsia conceitual entre muitas pesquisadoras da comunidade científica. Entretanto, será imperioso que, em termos kuhnianos, esse objeto seja inerente da área e preciso. Destaca-se que não se ignora a posição teórica assumida por alguns pares na comunidade científica da Enfermagem em esposar perspectivas filosóficas emergentes, o que não implica, obrigatoriamente, que haja múltiplos objetos de pesquisa na disciplina científica Enfermagem, mas diversidade de abordagem teórico-metodológica, de modo a valorar o metaparadigma da enfermagem, promovendo o enlace entre a objetividade e a subjetividade para a produção do conhecimento científico. Por isso, é possível o diálogo entre o filósofo em apreço e outros epistemólogos. Ratifica-se que o objeto de pesquisa é o elo que garante a unidade do paradigma e aponta a especificidade do conhecimento erigido pela comunidade científica, o que implica que os constructos acadêmicos do programa estarão ligados a ele.1^,6^,7^,10^-11^,15^-20

Para a ilustração da avaliação epistemológica do PPGENF, a partir da perspectiva kuhniana, faz-se necessário apontar - ainda que preliminarmente e sob o benefício da dúvida - o objeto de pesquisa para a disciplina científica Enfermagem, procurando demonstrar o quanto singular ele deve ser da área. Assim, julga-se legítimo partir-se da Enfermagem Moderna propugnada por Florence Nightingale. Seu objetivo era estabelecer novas bases para o cuidado de enfermagem a ser dispensado aos diversos grupos populacionais na Inglaterra e no mundo. Na perspectiva nightingaleana, cabe à enfermeira prover, a partir do cuidado de enfermagem, as condições para que a natureza possa atuar sobre as pessoas sem, contudo, desprezar o efeito do ambiente sobre o cuidado e a promoção da saúde delas. Tendo esse ponto de partida, a disciplina científica Enfermagem foi ganhando forma e, no curso do século XX, sistematizou o conhecimento científico, técnico e da arte da profissão, além de elaborar suas teorias. Assim, o cuidado de enfermagem foi sendo, paulatinamente, estabelecido como a essência e objeto da pragmática da enfermagem. Ainda não há consenso sobre o que é o cuidado e o processo de cuidar, pois as diversas teorias apontam para perspectivas distintas. Entretanto, o debate tem contribuído para que o cuidado de enfermagem seja reconhecido pelos pares como seu objeto epistemológico.3^-4^,7^,14^-20

O cuidado se materializa no fazer da enfermeira por meio da pragmática assistencial com fins terapêuticos, de promoção e manutenção da ordenação biológica e fisiológica do corpo. Entretanto, a ele não se encerra, pois é de sua natureza admitir que o humano tem particularidade social, espiritual e está inserido na coletividade, por isso, a dimensão do cuidado extrapola o biológico, permitindo ofertar conforto e bem-estar. Na interação enfermeira-paciente, família e comunidade, diversas ações realizadas podem não se constituir em cuidado, irão depender do perceber sentimental daquele que o recebe, ou seja, para aquele que dele participa enquanto expressão de uma atitude solidária, isto é, simpática. Assim, para essa reflexão, identifica-se o cuidado de enfermagem, fundamentado na ciência e na arte, manifesto pela atitude solidária perante o paciente, família e a comunidade, como objeto de pesquisa para a disciplina científica Enfermagem.1^-5^,7^-11^-13^,20

Postas essas considerações, para a aplicação da hipótese, as pesquisadoras terão que assumir um papel político. Cabe destacar que a hipótese servirá de fio condutor para as análises dos constructos acadêmicos e das demais ações a serem empreendidas pelas pesquisadoras para avaliação do programa. O movimento inicial se dará com a formulação do conceito de Ciência da Enfermagem, valendo-se de ações democráticas e consensuais, com a finalidade de justificar e legitimar a prática de pesquisa que funda a disciplina científica; posteriormente, terão que definir a estratégia para análise das dissertações e teses, e estabelecer o período cronológico.

Sugere-se que se parta do último quadriênio avaliativo CAPES, a fim de se obter o momento atual da Ciência da Enfermagem. Só então, deverão retroceder a períodos anteriores e proceder a avaliação completa do programa. Em seguida, buscarão identificar a matriz disciplinar e o objeto de pesquisa dessa ciência, partindo do escrutínio das dissertações e teses; esses elementos são característicos da ciência normal. Ela é sinônimo de pesquisa especializada, sendo uma condição para o progresso científico. Admitida a identificação da matriz disciplinar e do objeto de pesquisa, poderá afirmar-se que a disciplina científica Enfermagem aproxima-se do patamar paradigmático.1^,3^,6^,10

CONCLUSÃO

Pode-se afirmar que as pesquisadoras que atuam no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem têm encontro marcado com a autoavaliação qualitativa de natureza epistemológica, partindo do escrutínio das dissertações e teses.

Apresenta-se a perspectiva de Thomas Kuhn e formula-se uma hipótese, a saber: a Ciência da Enfermagem está na fase da ciência normal, possui uma matriz disciplinar e tem objeto de pesquisa. Seu teste se dará pelas pesquisadoras por meio do confronto entre a hipótese e os dados da observação empírica, obtendo o resultado de confirmação (verdadeiro) e rejeição (falso). Se a hipótese for verdadeira, a Ciência da Enfermagem se aproxima do patamar paradigmático e se manifestará na pragmática através da disciplina científica Enfermagem. Se for rejeitada, haverá uma nova classificação para a área, dentre as alternativas, a saber: fase de pré-ciência, crise ou revolução.

É fato que o conhecimento da profissão exige esse encontro dialógico, pois o que está em questão é a solidez da base científica na qual a área se assenta. É inconteste para o êxito e a legitimidade de uma profissão que seu aprendizado deva estar alicerçado em fundamentos detentores de robustez e consistência a fim de que seu modus operandi na lida assistencial à saúde seja relevante e seguro. Por isso, a crítica epistemológica dos constructos acadêmicos é imperativa, pois será por seu intermédio que o conhecimento científico da área poderá ser ratificado ou retificado, permitindo assim elaborar o corpus doutrinae da profissão.

AGRADECIMENTO

Agradecimento ao Dr. Túlio Roberto Xavier de Aguiar, professor do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.

REFERENCES

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NOTAS

• ORIGEM DO ARTIGO

  Extraído do relatório pós doutoral - Thomas Kuhn e sua aplicabilidade avaliativa do Programa de Pós-graduação de Enfermagem, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2018.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  18 Maio 2020
• Data do Fascículo
  2020

Histórico

• Recebido
  05 Abr 2019
• Aceito
  10 Jul 2019