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Editorial

Editorial

Cada novo número da Educar em Revista apresentado ao público é um momento de reflexão sobre os desafios da democratização da escola brasileira, no sentido mais amplo que essa expressão pode conter. Essa reflexão revela-se nas grandes temáticas a que se dedicam os dossiês da revista, assim como nas preocupações de cada pesquisador que divide com a comunidade científica seus esforços em compreender o fenômeno educativo a partir de temáticas singulares reveladas nos artigos de demanda contínua.

Este número da Educar vem a público num semestre que pode ser considerado festivo. Depois de um ano de preparação, finalmente realizamos a 1ª Conferência Nacional de Educação, no período que foi de 28 de março até 1º de abril, em Brasília, com aproximadamente três mil delegados de diferentes setores/segmentos da educação nacional.

Luiz Antonio Cunha nos lembra que a história da educação brasileira é marcada por um padrão "verticalista e centralista" (CUNHA, 1981, p. 6) de produção da legislação e consequentemente da política educacional. Ainda assim, isso não impediu que ao longo do século XX os educadores e os movimentos organizados da sociedade civil construíssem treze Conferências Nacionais de educação, entre 1927 e 1967. E, depois dos anos de silêncio forçados pela ditadura militar, voltamos a realizar cinco Conferências Brasileiras de Educação para discussão do capítulo da Educação na Constituição de 1988 e do texto original da LDB, e, finalmente fechamos o século XX com a realização de 4 Congressos Nacionais (CONEDs) para construção do Plano Nacional de Educação. Bem, frente a esse histórico tão fecundo de debates, por que a CONAE 2010 é um motivo de comemoração? Novamente cabe recorrer às reflexões de Cunha "as conferências de educação constituem um momento do processo de organização do campo educacional: o momento da consciência da especialidade da educação, em particular da educação escolar" (CUNHA, 1981, p. 6).

O longo histórico de articulação da sociedade civil em torno de conferências, ainda que tenha conseguido influenciar a política educacional, como espaço de afirmação do campo educacional e como espaço de fortalecimento dos setores ligados à escola pública que pressionaram e pressionam o Estado na defesa da expansão do direito à educação, resultaram sempre em conferências livres, ou seja, o Estado Nacional não estava obrigado a comprometer-se com as deliberações, pois ele não era oficialmente participe do processo.

Essa é a novidade da CONAE: pela primeira vez os diferentes segmentos ligados à educação nacional reuniram-se com uma convocação oficial do Ministério, ainda que esse tenha democraticamente constituído uma comissão de entidades para coordenar todo o processo. Assim, as deliberações desta Conferência de 2010 ganham legitimidade e força para pautar o debate da política educacional na próxima década.

O tema central da conferência foi o fortalecimento de um Sistema Nacional Articulado de Educação (SNAE), para isso alguns elementos importantes foram aprovados. Entre eles podemos destacar a constituição de um Fórum Nacional de Educação, com uma composição que refletirá a participação dos segmentos na CONAE e deverá acompanhar a tramitação do novo PNE (2011-2020) no Congresso Nacional; incidir pela implementação das diretrizes e deliberações tomadas nesta e nas demais edições da CONAE, além de coordenar as próximas edições da CONAE. Essa é uma proposição que havia ficado perdida durante a tramitação da LDB e que pode ser um instrumento importante para que a superemos uma política educacional planejada apenas "a partir do núcleo do Estado, nunca da periferia" (CUNHA, 1981, p. 6).

Outro tema fundamental no fortalecimento do SNAE foi o financiamento da educação. A necessidade de ampliação dos investimentos do país para a superação das desigualdades de acesso e qualidade que marcam o sistema educacional brasileiro foi consenso entre os delegados, o que levou a aprovação da meta de ampliar os investimentos em educação para 10% do PIB brasileiro. Para isso aprovou-se a ampliação dos esforços dos entes federativos na destinação de recursos e a necessidade de melhorar o uso dos recursos garantindo o repasse de verbas públicas exclusivamente para as escolas públicas. Nesse último ponto certamente não houve consenso, posto que, entre os seguimentos presentes na CONAE estavam as instituições privadas puras e aquelas de seguimentos comunitários e filantrópicos, ainda assim a aprovação de verbas públicas para escolas públicas foi aprovada com maioria absoluta e, com prazo para a cessação dos conveniamentos.

A democracia na gestão do sistema e a ampliação de recursos são eixos estruturantes da política nacional, entretanto a CONAE dedicou-se também a estabelecer metas para a organização da educação nacional considerando a necessidade de democratizar a escola, por isso aprovou-se a eleição direta para diretores das instituições; a necessidade de valorizar os profissionais da educação, assim reafirmou-se a necessidade da efetivação do Piso Salarial Profissional Nacional para o magistério, assim como a profissionalização dos demais profissionais que atuam nas escolas; deliberou sobre o fortalecimento da formação de professores e a necessária expansão do acesso ao ensino superior, tanto como estratégia para a melhoria da qualidade da educação básica, fortalecendo as licenciaturas, quanto melhorando a formação dos demais profissionais necessários ao desenvolvimento do país; reafirmou a necessidade da ampliação das políticas inclusivas no sistema educacional que permitam a superação de desigualdades étnico-raciais, de gênero ou de renda.

A realização desta Conferência marca um momento fecundo de debate democrático na educação brasileira, mas não permite que os educadores baixem a guarda, pois todas estas deliberações precisam tornar-se lei (algumas inclusive demandam emendas constitucionais) e isto exigirá ainda muito esforço e negociação no Congresso Nacional. Certamente é hora dos legisladores dialogarem democraticamente com os segmentos e superarem as iniciativas pontuais e voluntaristas que descaracterizam os esforços nacionais de definição de um projeto educacional consistente e democrático.

Nesse cenário o dossiê "Dimensões formativas do ensino superior no século XXI: o sentido democrático na formação inicial e continuada dos profissionais da escola básica" organizado pela professora Cleusa Gabardo é absolutamente pertinente para alimentar o debate sobre a necessidade de articularmos ensino superior e educação básica. As contribuições singulares da segunda parte da revista dedicada aos artigos de demanda contínua, também remetem a temas pertinentes.

O primeiro artigo de Antonio Simplício Almeida Neto, intitulado Relatos da Caixa Preta: representações como elemento da cultura escolar apresenta relatos de professores de história e reflete sobre as representações desses profissionais sobre a sua própria prática. A partir da apresentação envolvente de depoimentos dos professores o autor reflete sobre a construção dos objetivos do ensino de história em propostas oficiais ou alternativas, em que as ideias de cidadania, crítica, patriotismo precisam ser enfrentadas e, muitas vezes, reelaboradas pelos professores. O texto expressa de maneira muito intensa os desafios da educação básica a partir do olhar de um agente central do processo, o professor que revela "desejos de mudança, mas também [...] frustração diante da tão propalada crise da educação" (ALMEIDA NETO).

O segundo artigo de Adão José de Souza, A produção de raios x contextualizada por meio do enfoque em CTS em sala de Aula no Ensino Médio, nos remete ao universo da prática de ensino de física e à necessidade da escola dialogar com o conhecimento científico mais atualizado, assim o autor analisa as possibilidades do ensino da Física Moderna Contemporânea a partir do estudo de raio x, argumentando que esta não deve ser apenas um apêndice do estudo dos conceitos da física clássica, mas uma possibilidade dos alunos colocarem-se a pensar sobre temas"invisíveis aos olhos" para usar a expressão do autor.

O terceiro artigo de Carlos Alberto Ferreira, Práticas de Regulação das Aprendizagens de estagiários do 1º ciclo do ensino básico de Portugal, apresenta uma análise de práticas de avaliação da aprendizagem realizadas por estagiários da Licenciatura em Ensino Básico da Universidade de Trás-os Montes e Alto Douro, Portugal. A partir de pesquisa qualitativa sobre a prática escolar e apoiado no conceito de regulação da aprendizagem, o autor revisita a questão da avaliação formativa, argumentando a favor de que este processo seja efetivamente de "diálogo entre os vários intervenientes e de reflexão sobre o referido processo" (FERREIRA). É muito bem-vindo que possamos no mesmo número da Educar pensar a relação da universidade com a formação de professores no Brasil e contar com uma reflexão sobre o processo de formação de licenciados em Portugal.

O quarto artigo nos remete as práticas escolares numa perspectiva histórica, Dorval do Nascimento em Relações Interétnicas em uma Escola Pública do Sul do Brasil (1951-1964) discute processos de constituição de identidades étnicas a partir de pesquisa em uma escola pública de Criciúma, Santa Catarina. A partir da análise de registros escolares e de depoimentos de ex-alunos o autor faz emergir tensões entre brasileiros e imigrantes, moradores da zona urbana e zona rural que permite reflexões sobre "as estratégias de pertencimento colocadas em funcionamento pelos grupos sociais na escola" (NASCIMENTO); tal reflexão singular sobre a imigração europeia no sul do país articula-se de modo mais geral à necessidade de construção de uma escola mais inclusiva em que a tolerância esteja presente como fundamento da vida coletiva.

O quinto artigo, novamente na chave da história da educação, provoca a discussão de outro elemento fundamental na construção de um projeto de escola atualmente, qual seja a relação entre Estado e Igreja e os efeitos desta relação na educação. O artigo de Névio de Campos analisa "a trajetória, os debates e os projetos dos intelectuais católicos leigos em torno da temática educacional" (CAMPOS) no contexto paranaense. O autor reconstrói a trajetória de organização da Igreja Católica no início do século XX no Paraná e apresenta como a organização de uma imprensa católica servia ao projeto de reação ao laicismo crescente no Brasil e, em consequência, disseminava os princípios do catolicismo.

O sexto artigo Comunidade e escola: reflexões sobre uma integração necessária os autores Zedeki Fiel Bezerra, Fernanda Alves Sena, Osmarina dos Santos Dantas, Aldem Rodrigues Cavalcante, Luiza Nakayama e Andréa Ribeiro de Santana problematizam as relações entre escola e comunidade de forma comparativa entre uma instituição pública e uma instituição conveniada. A partir de entrevistas com informantes privilegiados de duas escolas de Belém os autores refletem sobre a necessidade de a escola aproximar-se e articular-se de forma mais efetiva com a comunidade escolar.

O sétimo artigo de Edson Francisco de Andrade intitulado Instâncias de participação na gestão do Sistema Municipal de Ensino: possibilidade e perplexidades nos remete novamente ao debate da democratização da gestão da educação no país. Analisando a experiência do Sistema Municipal de Ensino do Recife em que se encontram instâncias de participação importantes como os conselhos escolares e a Conferência Municipal de Educação, o autor avalia os desafios ainda presentes na cultura política brasileira, em que, a decisão não tem empoderado suficientemente os cidadãos, mesmo em contexto em que as instâncias participativas estão em funcionamento. A partir da ideia de que "participar significa que todos podem contribuir, com igualdade de oportunidades, nos processos de formação discursiva da vontade, ou seja, participar consiste em ajudar a construir comunicativamente o consenso quanto a um plano de ação coletivo" (ANDRADE) o autor apresenta reflexões fundamentais para a compreensão da política educacional no âmbito dos sistemas municipais de educação.

Finalmente, a resenha elaborada por Roberto Rafael Dias da Silva e Eli Teresinha Henn Fabris convida à leitura do livro de Richard Sennett e a uma reflexão sobre os contornos atuais do capitalismo.

Entregamos, portanto, mais um número da Educar em Revista e convidamos todos a ler, discutir, discordar!

Andréa Barbosa Gouveia

Paulo Vinicius B. da Silva

  • CUNHA, L. A. A organização do campo educacional: as conferências de educação. Educação e Sociedade, n. 9, p. 5-48, maio de 1981.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Maio 2010
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