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Poder de decreto e accountability horizontal: dinâmica institucional dos três poderes e medidas provisórias no Brasil pós-1988

The power to decree laws and horizontal accountability: the institutional dynamics of the three powers and temporary acts in Brazil in the post-1988 period

Pouvoir de décret et accountability horizontal: diynamisme institutionnel des trois pouvoirs et mesures provisóires au Brésil après 1988

Resumos

O presente artigo pretende articular os estudos sobre as relações entre os poderes Executivo e Legislativo com a bibliografia referente à chamada judicialização da política, de modo a melhor compreender como processam-se os controles horizontais (horizontal accountability) no que diz respeito ao poder de decreto do Presidente brasileiro, no contexto recente de democracia. Para tanto, realiza-se breve apanhado da bibliografia recente, em Ciência Política brasileira, sobre o papel das medidas provisórias, cotejando-se com análises tanto quantitativas como qualitativas dos fenômenos observados. Conclui-se pela concordância com a tese de acordo com a qual as medidas provisórias facilitam o controle da agenda pelo poder Executivo, havendo pequena obstrução a essa prática tanto pelo Congresso Nacional como pelo Supremo Tribunal Federal. As modificações introduzidas pela promulgação da Emenda Constitucional n. 32/2001 permitem observar, ao contrário do que se poderia pensar, a continuidade desse cenário, em vez de maior controle sobre a atividade legislativa da Presidência da República. Explica-se isso com recurso à observação da dinâmica levada a cabo pelos três poderes do Estado no período anterior à referida emenda, quando já vinham firmando-se os parâmetros que vieram a ser incorporados no adendo à Constituição de 1988, realizado em 2001. A observação dos dados coletados permite essa conclusão, quando não aquela que afirma a diminuição do controle sobre os decretos executivos, em especial no que se refere à concessão de liminares pelo Supremo Tribunal Federal, diminuída após a promulgação da emenda.

medidas provisórias; relações Executivo-Legislativo; judicialização da política; accountability horizontal; Brasil pós-1988


This article articulates studies on the relationship between Executive and Legislative powers with bibliography on what has been called the "judicialization of politics" in order to promote a better understanding of how horizontal accountability unfolds with specific regard to the issue of the Brazilian president's power to decree bills within the current context of democracy. For these purposes, we present a brief overview of recent bibliography in Brazilian Political Science on the role of "medidas provisórias" ("temporary acts") holding it up against the light of quantitative and qualititative analysis of observed phenomena. We conclude in agreement with the thesis that these measures enable Executive control over the political agenda in which the Supreme Court and the Congress tend not to interfere. The changes introduced through the promulgation of Constitutional Amendment n. 32/2001 allows us to note, contrary to what it would be possible to assume, the continuity that characterized this scenario, rather than greater controls over presidential legislating activities. This can be explained by looking at the dynamics of the three State powers during the period that precedes 2001, in which the parameters that were incorporated into the Constitution through the above-mentioned amendment were taking shape. Furthermore, the data collected support our argument on the diminishing control over Executive decrees, particularly with regard to Supreme Court concession of injunctions which was reduced after the amendment's promulgation.

temporary acts; Executive-Legislative relations; judicialization of politcs; horizontal accountability; post-1988 Brazil


Cet article articule les études sur les relations entre les pouvoirs exécutif et législatif avec la bibliographie concernant la "judicialisation de la politique", afin de mieux comprendre comment se produisent les contrôles horizontaux (horizontal accountability) en ce qui concerne le pouvoir du Président brésilien de rendre des décrets, dans le contexte de la récente démocratie. A cet effet, nous avons mené un rapide relevé de la bibliographie récente de la Science Politique brésilienne sur le rôle des mesures provisoires, en le comparant aux analyses quantitatives et qualitatives des phénomènes observés. Notre conclusion va de pair avec la thèse selon laquelle les mesures provisoires facilitent le contrôle des événements par le pouvoir exécutif, et qu'il existe très peu d'obstructions à cela aussi bien par le Congrès National que par la Cour Suprême. Les modifications introduites par la promulgation de l'Amendement Constitutionnel n. 32/2001 permettent d'observer, contrairement à ce que l'on prévoyait, la continuité de ce scénario, au lieu d'un plus grand contrôle sur l'activité législative de la Présidence de la République. Cela est mieux saisi si l'on se reporte au fonctionnementdes trois pouvoirs de l'État au long de la période antérieure à 2001, quand se consolidaient progressivement des paramètres qui se sont incorporés à la Constitution sous la forme de cet amendement. En outre, les données collectées nous ont permis d'affirmer que la réduction du contrôle sur les décrets exécutifs, surtout ceux qui concernent la concession de liminaires par la Cour Suprême, a eu lieu après la promulgation de l'amendement.

mesures provisoires; relations exécutif-législatif; judicialisation de la politique; accountability horizontal; Brésil après 1988


ARTIGOS

Poder de decreto e accountability horizontal: dinâmica institucional dos três poderes e medidas provisórias no Brasil pós-19881 1 O autor agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio financeiro recebido, ao Prof. Dr. André Marenco dos Santos, estimulador da publicação destas idéias, e aos dois pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política, pelas sugestões para a formatação final do artigo.

The power to decree laws and horizontal accountability: the institutional dynamics of the three powers and temporary acts in Brazil in the post-1988 period

Pouvoir de décret et accountability horizontal: diynamisme institutionnel des trois pouvoirs et mesures provisóires au Brésil après 1988

Luciano Da Ros

RESUMO

O presente artigo pretende articular os estudos sobre as relações entre os poderes Executivo e Legislativo com a bibliografia referente à chamada judicialização da política, de modo a melhor compreender como processam-se os controles horizontais (horizontal accountability) no que diz respeito ao poder de decreto do Presidente brasileiro, no contexto recente de democracia. Para tanto, realiza-se breve apanhado da bibliografia recente, em Ciência Política brasileira, sobre o papel das medidas provisórias, cotejando-se com análises tanto quantitativas como qualitativas dos fenômenos observados. Conclui-se pela concordância com a tese de acordo com a qual as medidas provisórias facilitam o controle da agenda pelo poder Executivo, havendo pequena obstrução a essa prática tanto pelo Congresso Nacional como pelo Supremo Tribunal Federal. As modificações introduzidas pela promulgação da Emenda Constitucional n. 32/2001 permitem observar, ao contrário do que se poderia pensar, a continuidade desse cenário, em vez de maior controle sobre a atividade legislativa da Presidência da República. Explica-se isso com recurso à observação da dinâmica levada a cabo pelos três poderes do Estado no período anterior à referida emenda, quando já vinham firmando-se os parâmetros que vieram a ser incorporados no adendo à Constituição de 1988, realizado em 2001. A observação dos dados coletados permite essa conclusão, quando não aquela que afirma a diminuição do controle sobre os decretos executivos, em especial no que se refere à concessão de liminares pelo Supremo Tribunal Federal, diminuída após a promulgação da emenda.

Palavras-chave: medidas provisórias; relações Executivo-Legislativo; judicialização da política; accountability horizontal; Brasil pós-1988.

ABSTRACT

This article articulates studies on the relationship between Executive and Legislative powers with bibliography on what has been called the "judicialization of politics" in order to promote a better understanding of how horizontal accountability unfolds with specific regard to the issue of the Brazilian president's power to decree bills within the current context of democracy. For these purposes, we present a brief overview of recent bibliography in Brazilian Political Science on the role of "medidas provisórias" ("temporary acts") holding it up against the light of quantitative and qualititative analysis of observed phenomena. We conclude in agreement with the thesis that these measures enable Executive control over the political agenda in which the Supreme Court and the Congress tend not to interfere. The changes introduced through the promulgation of Constitutional Amendment n. 32/2001 allows us to note, contrary to what it would be possible to assume, the continuity that characterized this scenario, rather than greater controls over presidential legislating activities. This can be explained by looking at the dynamics of the three State powers during the period that precedes 2001, in which the parameters that were incorporated into the Constitution through the above-mentioned amendment were taking shape. Furthermore, the data collected support our argument on the diminishing control over Executive decrees, particularly with regard to Supreme Court concession of injunctions which was reduced after the amendment's promulgation

Keywords: temporary acts; Executive-Legislative relations; judicialization of politcs; horizontal accountability; post-1988 Brazil.

RÉSUMÉS

Cet article articule les études sur les relations entre les pouvoirs exécutif et législatif avec la bibliographie concernant la "judicialisation de la politique", afin de mieux comprendre comment se produisent les contrôles horizontaux (horizontal accountability) en ce qui concerne le pouvoir du Président brésilien de rendre des décrets, dans le contexte de la récente démocratie. A cet effet, nous avons mené un rapide relevé de la bibliographie récente de la Science Politique brésilienne sur le rôle des mesures provisoires, en le comparant aux analyses quantitatives et qualitatives des phénomènes observés. Notre conclusion va de pair avec la thèse selon laquelle les mesures provisoires facilitent le contrôle des événements par le pouvoir exécutif, et qu'il existe très peu d'obstructions à cela aussi bien par le Congrès National que par la Cour Suprême. Les modifications introduites par la promulgation de l'Amendement Constitutionnel n. 32/2001 permettent d'observer, contrairement à ce que l'on prévoyait, la continuité de ce scénario, au lieu d'un plus grand contrôle sur l'activité législative de la Présidence de la République. Cela est mieux saisi si l'on se reporte au fonctionnementdes trois pouvoirs de l'État au long de la période antérieure à 2001, quand se consolidaient progressivement des paramètres qui se sont incorporés à la Constitution sous la forme de cet amendement. En outre, les données collectées nous ont permis d'affirmer que la réduction du contrôle sur les décrets exécutifs, surtout ceux qui concernent la concession de liminaires par la Cour Suprême, a eu lieu après la promulgation de l'amendement.

Mots-clés: mesures provisoires; relations exécutif-législatif; judicialisation de la politique; accountability horizontal; Brésil après 1988.

I. INTRODUÇÃO

O poder de decreto de que dispõe o Presidente certamente é um dos institutos mais polêmicos da atual democracia brasileira. Descendente direta do decreto-lei, instrumento de mesma função durante o período autoritário, a medida provisória (MP) - nome do referido poder de decreto - logo tornou-se peça-chave para compreender a realidade política brasileira contemporânea. Ora vista como instrumento que permite ao poder Executivo impor unilateralmente sua vontade, ora vista como instrumento de governabilidade deste mesmo poder do Estado, a verdade é que a discussão quase sempre remete às considerações sobre a dinâmica mais ampla do sistema político do país: se governável ou ingovernável, se com poderes concentrados ou dispersos (PALERMO, 2000, p. 521).

Aqueles que vêem no sistema político brasileiro uma multiplicidade de agentes políticos com poder de veto (veto players), tendem a julgá-lo ingovernável, considerando as medidas provisórias um dos poucos instrumentos capazes de garantir a governabilidade. Aqueles que, por outro lado, vêem o sistema político brasileiro como composto por um grande pólo de atratividade - o poder Executivo - tendem a considerar as medidas provisórias um instrumento de supressão do debate legislativo, capaz mesmo de amesquinhar a participação do poder Legislativo na elaboração de políticas públicas (policy-making). Travado nesses termos, entretanto, o debate adquire um cunho um tanto maniqueísta, reduzindo-se sua capacidade analítica.

O propósito do presente trabalho é, portanto, empreender um estudo mais acurado da relação entre o instituto da medida provisória e o sistema de freios e contrapesos da realidade brasileira atual. Para tanto, pretende-se mapear de modo integrado a atuação de cada um dos três poderes do Estado quanto ao poder de decreto do Presidente brasileiro no contexto da democracia recente, o que possibilitará fugir de certos rótulos inapropriados. Isso significa não apenas compreender as relações Executivo-Legislativo no Brasil atual, mas também incorporar o poder Judiciário a essa análise. Deste modo, ter-se-á de traçar uma ponte de comunicação entre os estudos sobre as relações entre os poderes Executivo e Legislativo e os estudos sobre a chamada judicialização da política no Brasil. Isso significa realizar um esforço ainda rasamente empreendido, qual seja, o de trazer o poder Judiciário para dentro da análise do sistema político, buscando relacioná-lo com a realidade política dos demais poderes do Estado2 2 Os trabalhos de Matthew MacLeod Taylor (2004; 2006) certamente incluem-se entre os poucos que se propõem a realizar esse empreendimento. . Tal esforço provavelmente possibilitará traçar um quadro mais fiel com respeito à maneira como vem sendo realmente desempenhada a accountability horizontal no Brasil3 3 Emprega-se aqui a distinção entre accountability vertical e horizontal, tal como proposta por Guillermo O'Donnell (1998). A primeira refere-se ao controle eleitoral estabelecido entre representantes e representados, especialmente por meio do voto retrospectivo (PRZEWORSKI, 1998; ARATO, 2002). A segunda refere-se ao controle exercido entre os poderes do Estado e sua mútua fiscalização cotidiana. 4 Somente a partir de 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da nova Constituição. 5 Até 11 de setembro de 2001, quando da aprovação da Emenda Constitucional n. 032/2001. . A idéia é, portanto, verificar como tem ocorrido o controle entre as diversas agências do Estado sobre o poder de decreto do Presidente brasileiro. Essa tarefa será empreendida reconstituindo-se a atuação de cada uma dos ramos do poder do Estado no que se refere a essa temática, iniciando-se pelo ano que marca o novo ordenamento jurídico-político brasileiro, 1988, com a promulgação da nova Constituição.

Primeiramente, pretende-se observar a atuação do poder Executivo, que rapidamente passa a empregar as medidas provisórias como atos de governo. Ao afastar-se do caráter emergencial de utilização do instituto, o Presidente da República fez com que as medidas provisórias fossem freqüentemente empregadas como instrumento ordinário de alteração do statu quo. A maior parte dos conflitos em torno da utilização do instituto desembocará no Supremo Tribunal Federal, especialmente por meio do instituto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, que teve seus contornos redefinidos na Constituição de 1988. Nesse momento, pode-se observar o comportamento adotado por aquela corte, inclusive a alteração de sua jurisprudência quanto aos quesitos de relevância e urgência para edição de MP's, que passam a ser entendidos como passíveis de controle de constitucionalidade jurisdicional. Mais recentemente, observou-se a movimentação do Congresso Nacional quanto ao tema, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 32/2001, que, de acordo com a impressão majoritária, buscou controlar mais fortemente a prática legislativa do Presidente brasileiro. Analisar as possíveis causas e os efeitos dessa alteração institucional também ocuparão as reflexões a seguir.

II. DE LEGISLAÇÃO EMERGENCIAL A ATO DE GOVERNO: O USO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PELO PODER EXECUTIVO

Já foi suficientemente demonstrada a continuidade legal entre a Constituição de 1967 e a Constituição de 1988 no que se refere às normas que regem as relações entre os poderes Executivo e Legislativo no Brasil (FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999; SANTOS, 2003). Especificamente no que se refere ao poder de decreto do Presidente brasileiro, pode-se falar em uma continuidade bastante acentuada, tal qual se observa no Quadro 1, logo abaixo, que apresenta a regulamentação constitucional do decreto-lei na Constituição de 1967 e das medidas provisórias na Constituição de 1988. Esta última aparece ali em sua versão original, ou seja, sem as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional n. 32/2001. Isso ocorre porque os efeitos dessa emenda serão objeto de análise ulterior.



Dada a semelhança entre ambos, pode-se afirmar que a medida provisória descende diretamente do padrão já consagrado em 1967: um instrumento normativo a cargo do poder Executivo destinado, ao menos do ponto de vista formal, a situações emergenciais. Figueiredo e Limongi (1999) demonstraram, a partir dos debates realizados na Assembléia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-88, que as medidas provisórias haviam sido, em princípio, aceitas pelos constituintes para serem empregadas em situações excepcionais. A idéia era buscar reduzir a acentuada participação do poder Executivo no policy-making brasileiro, tentando-se reverter, ou pelo menos controlar, um processo que se iniciara ainda em 1964. Contudo, grande parcela dos parlamentares defendeu a existência do instituto. Como bem afirmam os autores:

"A maioria dos constituintes defendeu a idéia de que dotar o Executivo de poderes legislativos emergenciais e extraordinários era simplesmente responder aos reclamos dos tempos atuais. Em outras palavras. Segundo a opinião dos constituintes a se expressar sobre o tema, executivos em sociedades modernas precisam e são dotados de instrumentos desse tipo" (FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999, p. 132).

Quer dizer, definiu-se que haveria um instrumento destinado à legislação emergencial e que este ficaria adstrito ao poder Executivo. A idéia que norteava essas orientações, portanto, é de que a existência de tal instrumento estaria condicionada a sua utilização somente em situações propriamente urgentes e inadiáveis. Um exemplo disso é a modificação da conseqüência do decurso do prazo que diferencia o instituto de 1988 daquele de 1967. Antes, com o decreto-lei, este era considerado aprovado na ausência de manifestação por parte do poder Legislativo em sessenta dias. Com a Constituição de 1988, caso em trinta dias não houvesse manifestação por parte do Congresso Nacional, restaria sem efeitos a medida provisória editada. Como bem afirmam Argelina Figueiredo e Fernando Limongi:

"A inversão do decurso de prazo visava garantir a participação efetiva do Legislativo na produção legal e, ao mesmo tempo, inibir o recurso do Executivo à sua prerrogativa de emitir decretos. Dado o limitado prazo de vigência do decreto, ao emiti-lo o Executivo precisaria calcular as chances de vê-lo aprovado dentro desse mesmo prazo. Emitir um grande número de decretos poderia prejudicar a própria chance de vê-los aprovados. Com isso, o recurso à prerrogativa seria reservado para medidas efetivamente extraordinárias e para cuja aprovação o Executivo estivesse relativamente certo de contar com apoio político" (FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999, p. 132-133).

Uma vez promulgada a Constituição de 1988, o que se deu foi que esse instrumento emergencial, inicialmente destinado a situações próprias desse nome, passou a ser usado como se instrumento de legislação ordinária fosse. Houve uma modificação nas finalidades e situações nas quais seria empregado o instituto. Em poucas palavras: a política do poder Executivo pautou-se por transformar as medidas provisórias, de instrumentos de legislação emergencial, em atos ordinários de governo. A Tabela 1, logo abaixo, pode auxiliar na compreensão dessa dinâmica. Observa-se desde o início, com o governo Sarney, uma política de forte ativismo legislativo da Presidência da República, editando-se em média pouco mais de sete medidas provisória por mês. Muitas delas são convertidas, mas outras, além de não serem nem sequer analisadas pelo Congresso Nacional, passam a ser reeditadas, contando com o consentimento tácito do poder Legislativo.

Observa-se, também, ao longo do tempo, um incremento substantivo no número de medidas provisórias reiteradamente reeditadas, especialmente a partir do governo Itamar Franco e com colaboração expressiva dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Essas reedições, contanto, não podem ser consideradas unicamente alterações unilaterais do statu quo. Isso porque muitas delas simplesmente repetem sistematicamente o conteúdo de outras medidas provisórias anteriormente editadas, as quais não foram analisadas pelo poder Legislativo. Elas integram, portanto, o rol daquelas medidas que contam com a indiferença do Congresso Nacional, implicando no já referido consentimento tácito. Trata-se de medidas provisórias que nem sequer entraram na pauta da casa legislativa. Ressalte-se, entretanto, como observaram Octávio Amorim Neto e Paulo Tafner (2002) que algumas dessas reedições de medidas provisórias representavam alterações unilaterais do statu quo, posto que continham modificações no texto, se comparado com o original. Na visão dos autores, trata-se de modificações que respondem ao que denominam ser mecanismos de alarme de incêndio, isto é, alterações unilaterais em razão da ação supervisora do Congresso Nacional, em especial da base de sustentação do governo, que ajustaria ex post a medida provisória ao seu sabor.

Em sentido oposto, argumentam justamente Argelina Figueiredo e Fernando Limongi (2006). Para eles, a alteração unilateral - seja pela edição de uma MP original, seja pela reedição com modificação - antes de ser um mecanismo de oitiva dos reclamos da base do governo, seria um instrumento de proteção desta. Isso porque evitaria a ela ter de manifestar-se sobre medidas polêmicas, que eventualmente contrariariam parte de seu eleitorado.

A despeito dessa discussão, o que se observa é que muito embora haja um elevado número de reedições, deve-se observar também que há um elevado contingente de medidas provisórias convertidas em lei, havendo ainda um número bastante discreto de medidas provisórias que não tenham logrado viger (rejeitadas, sem eficácia etc.).

Um modo mais direto de analisar-se os resultados apresentados na Tabela 1 talvez seja construir índices agregados, capazes de verificar a força do poder Executivo em implementar sua agenda de governo por meio da utilização de medidas provisórias. O sucesso do poder Executivo pode ser mais bem apreendido na depuração dos dados, constante da Tabela 2, abaixo. Nela, são empregadas as idéias de sucesso e fracasso presidencial na implementação da agenda do poder Executivo6 6 Mesmo ciente da controvérsia referente às dificuldades de medir-se o sucesso e o fracasso legislativo do poder Executivo, a partir das taxas de aprovação e rejeição de seus projetos enviados ao Congresso Nacional, como consta do excelente artigo de Simone Diniz (2005), o presente trabalho os adotará como uma aproximação capaz de fornecer um indicador razoavelmente seguro com respeito ao que se pretende expor. . Os índices são construídos da seguinte maneira. Sucesso presidencial representa a soma de todas as medidas provisórias que vieram a ter vigência, não tendo sido obstaculizadas pelo poder Legislativo. Seu cálculo é realizado por exclusão: são todas as medidas provisórias originárias que não foram rejeitadas, declaradas prejudicadas, declaradas sem eficácia ou vetadas. Dentre as que se incluem na categoria de sucesso presidencial estão aquelas convertidas (que implicam em consentimento explícito do Congresso Nacional), mas não se incluem as reeditadas, porque, em sua grande maioria, os temas tratados nelas repetem o conteúdo daquelas que lhes deram origem, majoritariamente não alterando o statu quo, portanto. Por sua vez, fracasso presidencial representa a soma de todas as medidas provisórias que não chegaram a ter vigência. São elas: revogadas, rejeitadas, declaradas prejudicadas ou declaradas sem eficácia.

A probabilidade de uma medida provisória vir a ter vigência plena, sem restrições parlamentares, é bastante elevada. Ressalte-se que o índice de 86,4% é muito próximo daquele da aprovação das leis de iniciativa do poder Executivo, no processo legislativo comum (FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999). Esse mesmo índice, aliado às taxas mensais de edição, comprova o uso freqüente do poder Executivo em alterar o statu quo, a partir de medidas provisórias. Isto é, as referidas taxas comprovam a tese anteriormente esboçada segundo a qual o poder Executivo haveria transformado as medidas provisórias, de legislação emergencial, em ato de governo.

Um importante fato a salientar, e que explica em grande medida o comportamento, adotado pelo poder Legislativo, de anuir com tantas dessas medidas, é que as medidas provisórias vigoram desde sua edição. Tal quadro cria uma posição de caráter reativo por parte do Congresso Nacional, uma vez que, ao analisar uma medida provisória, o poder Legislativo não opta entre o statu quo vigente e aquele a ser produzido pela medida, mas opta sim entre a situação decorrente da edição da medida e uma hipotética situação de rejeição dessa medida após ela ter surtido efeitos práticos (FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999, p. 26; SANTOS, 2003, p. 22).

Por outro lado, provavelmente um dos mais bem desenvolvidos argumentos capazes de explicar como deu-se essa transformação da natureza das medidas provisórias é aquele desenvolvido por Figueiredo e Limongi (1999), a partir das considerações de John Carey e Matthew Shugart (1998) sobre o poder de decreto em poliarquias recentes. Segundo essa visão, o uso de medidas provisórias não pode ser entendido como um jogo de soma-zero entre os poderes Legislativo e Executivo. Pelo contrário, não haveria como se falar em uma abdicação de poderes por parte do poder Legislativo. Isso porque, de acordo com os autores, essa relação seria melhor compreendida dentro de um código delegativo, ainda que não necessariamente explícito. Os parlamentares não teriam de arcar com os eventuais custos de responsabilizar-se pelo desempenho do governo, deixando essa atividadeinteiramente a cargo do poder Executivo. É por essa razão também que o instituto da delegação legislativa, presente na mesma Constituição, não recebeu as preferências no policy-making brasileiro da atualidade. Isso porque ele implicaria em o Congresso Nacional ter de imiscuir-se com a atividade de governo e, assim, eventualmente, ter de aparecer como responsável direto por medidas eventualmente impopulares, capazes inclusive de contrariar boa parcela do eleitorado7 7 Argumentação semelhante pode ser encontrada na influente obra de John Huber (1996), no que se refere ao uso de procedimentos restritivos pelo governo francês no período da V República. .

III. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: CONTINUIDADE OU MUDANÇA?

Há uma sabida dificuldade na identificação de casos paradigmáticos (leading cases) em meio à vasta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ROCHA, 2006). Entre outros fatores, eventualmente referentes à falta de clareza nos posicionamentos daquela corte, o desenho institucional - especialmente processual e recursal - influencia decisivamente nesse sentido. A sobrecarga considerável de processos e recursos a que o STF é submetido anualmente supera em muito a quantidade de julgamentos realizados por outros tribunais de mesma envergadura no mundo, criando um padrão de produção jurisprudencial fragmentado e dificultando a localização de casos paradigmáticos. Assim, para se contornar semelhante obstáculo e poder examinar o desempenho do tribunal quanto ao que aqui é estudado, o presente trabalho optou por analisar sob dois ângulos complementares o modo como o STF vem atuando no que se refere ao poder de decreto do Presidente brasileiro.

Por um lado, e mesmo tendo-se ciência do que já foi dito, buscou-se verificar casos aos quais a corte recorria com freqüência para embasar seus próprios julgamentos, identificando-se neles aqueles que poderiam ser leading cases referentes à dinâmica das medidas provisórias do Presidente brasileiro. Para se ter certeza quanto à importância desses casos na jurisprudência do STF, buscou-se cotejá-los com a doutrina de Direito Constitucional brasileiro, que realiza esse mesmo tipo de estudo. Por sua característica essencial, pode-se dizer que essa é uma análise qualitativa dos julgamentos empreendidos pelo STF. Por outro lado, realizou-se uma pesquisa que enfatiza a análise quantitativa dos julgamentos, sejam eles de mérito das ações propostas, sejam eles de pedidos de liminar, buscando-se identificar quais as restrições que aquele tribunal vem opondo às medidas provisórias. Essa análise realiza o escrutínio de todas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns) propostas contra MPs, desde o advento da Constituição de 1988. Aqui, tal qual se realizou na seção imediatamente anterior, também serão empregadas as categorias de sucesso e fracasso presidencial. Entretanto, precisa-se realizar um complemento: muitas ações ou pedidos de liminares são julgados parcialmente procedentes ou parcialmente improcedentes. Trata-se de uma situação dúbia, que não necessariamente denota derrota ou vitória do Presidente da República. Tais situações serão aqui intituladas semi-sucesso/fracasso presidencial. Assim, portanto, a partir da confluência desses dois exames (qualitativo e quantitativo), espera-se delinear um quadro capaz de identificar o desempenho do referido tribunal no que se refere ao poder de decreto do poder Executivo no Brasil.

Passa-se, então, de imediato, ao primeiro exame. Para isso, entretanto, será necessário recorrer àquela que foi provavelmente a primeira manifestação da corte sobre o poder de decreto do Presidente brasileiro. Isso se deu ainda sob a vigência da Constituição de 1967, em pleno autoritarismo, e de certo modo firmou os termos do debate. Trata-se da discussão em torno daquilo que pode ser designado controle procedimental, isto é, o controle sobre os requisitos formais para a edição do decreto e não exatamente o controle sobre o teor da nova legislação, que se poderia chamar de controle substantivo8 8 Importante observar que John Ferejohn e Barry Weingast (1992) consideram a manifestação sobre preferências procedimentais ( procedural preferences) a maneira por excelência através da qual o poder Judiciário intervém no sistema político. .

No ano de 1967, o Supremo Tribunal Federal deparou-se com o Recurso Extraordinário nº 62.739 e nele teve que decidir sobre a possibilidade de controle jurídico dos requisitos para a edição de decretos com força de lei pelo poder Executivo de então9 9 Observe-se que o referido Recurso Extraordinário não foi interposto, ao menos aparentemente, com o fito oposicionista de barrar-se a atividade legislativa do Presidente da República, mas antes como uma estratégia processual empregada pelos advogados na tentativa de melhor defender os interesses de seus clientes, que pouco ou nenhum interesse possuíam de imiscuir-se no jogo propriamente político. . Informava a Constituição daquele ano, como visto anteriormente, que em casos de "urgência" ou de "interesse público relevante", poderia o Presidente da República expedir tais decretos. A questão que então se colocou ao tribunal era saber se haveria possibilidade de determinação e de controle jurídico dos requisitos constitucionais (urgência e/ou interesse público relevante) para edição de tais decretos. Naquela oportunidade, o tribunal manifestou-se de maneira peremptória. O julgamento, realizado pelo Tribunal Pleno, contou com o Ministro Aliomar Baleeiro como relator e determinou, por maioria de votos, que a apreciação de tais requisitos assume caráter político, estando entregue ao juízo de discricionariedade do Presidente da República, ressalvada apreciação contrária do Congresso Nacional. Dessa maneira, o tribunal retirava-se da função de apreciar os atos do poder Executivo, entregando a tarefa inteiramente ao poder Legislativo, que se encontrava, como é sabido, significativamente enfraquecido, dado o autoritarismo de então10 10 Vale ressaltar que comportamento idêntico pôde ser verificado na Argentina durante seu último período autoritário. Observa-se também lá a lógica segunda a qual a Suprema Corte daquele país retirava-se da arena política quanto ao controle dos requisitos constitucionais de "necessidade" e "emergência" para a edição dos atos executivos pela Junta Militar (GROISMAN, 1985). .

Assim, os decretos-lei foram amplamente utilizados pelo Presidente na aprovação de sua agenda, com reduzidíssima atuação do Congresso Nacional, como demonstra o excelente trabalho de Charles Pessanha (2002). O padrão estabelecido com o julgamento daquele recurso firmou uma jurisprudência cuja possibilidade de transplantação para o regime democrático não seria pequena. Isso porque, para a edição de medidas provisórias, a Constituição de 1988 fala em requisitos constitucionais muitos semelhantes aos da constituição que a precedeu. Uma vez que há clara continuidade nas regras que regem as relações entre os poderes Executivo e Legislativo entre um período e outro (FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999, p. 11), isso poderia reforçar a inércia jurisprudencial, optando o tribunal por não se imiscuir na atividade legislativa da presidência da República. Não foi isso, entretanto, o que ocorreu, ao menos considerando o julgamento que iniciou os debates sobre o tema, no STF, após a promulgação da nova carta constitucional. Trata-se do julgamento do pedido de liminar da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 162-1, movida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra a medida provisória n. 111, de 1989, que versava sobre legislação processual penal. Naquela ocasião, o tribunal manifestou-se, ao contrário da primeira, de maneira reticente. Quer dizer, com certa timidez, mas não se retirando completamente da arena política. Dessa maneira, o tribunal não determinava de modo suficientemente claro como poderia vir a intervir na atividade legislativa da presidência. Tampouco dava sinais de que pretendia agir muito fortemente nesse sentido. Observou-se, portanto, apenas uma leve inflexão em relação ao padrão já delineado durante o autoritarismo, muito embora os termos do debate tenham se fixado novamente em torno dos requisitos constitucionais de "relevância e urgência" para a edição de medidas provisórias.

Nas palavras do acórdão que decidiu a questão, o qual contou com o Ministro Moreira Alves como relator: "Os conceitos de relevância e urgência a que se refere o artigo 62 da Constituição, como pressupostos para a edição de Medidas Provisórias, decorrem, em princípio, do juízo discricionário de oportunidade e de valor do Presidente da República, mas admitem o controle judiciário quanto ao excesso do poder de legislar, o que, no caso, não se evidencia de pronto" (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006a, p. 48).

Depreende-se da leitura que o tribunal abriu-se à possibilidade de controlar atos legislativos do poder Executivo. Por outro lado, não apenas não o aplicou ao caso em questão, como também não definiu por meio de quais parâmetros partiria para identificar como e quanto atuaria no sentido de considerar esta ou aquela medida provisória abusiva. A introdução desse espaço de incerteza gerou basicamente dois padrões jurisprudenciais distintos: por um lado, certos acórdãos posteriores decidiram que os critérios de urgência e relevância estão sujeitos somente ao juízo do poder Executivo e que extrapolariam a competência do STF (idem, 2006b; 2006c); por outro lado, certas decisões voltaram à ADIn 162-1 e resgataram-lhe o sentido, afirmando que há possibilidade, ainda que residual, de controle judiciário sobre a edição de medidas provisórias (idem, 2006d; 2006e).

Esses padrões intercalam-se de modo intermitente e impedem, portanto, a criação de um parâmetro seguro, do ponto de qualitativo, sobre como o STF decide em matéria de medidas provisórias. Um ponto interessante a respeito do qual Oscar Vilhena Vieira (2002) chama a atenção é o julgamento proferido pelo STF sobre a possibilidade de reedição de medida provisória já expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional. Na ocasião, o então Presidente Fernando Collor tentou reeditar a medida provisória nº 185, rejeitada pelo Congresso Nacional, sob a forma de uma "nova" medida provisória, a de nº 190, que guardava óbvia semelhança com a primeira, com apenas poucos detalhes diferindo uma da outra. O assunto foi decidido na ADIn nº 293-7, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em uma situação na qual o tribunal desempenhou claramente o papel de árbitro do conflito entre os dois outros poderes (ARANTES, 1997, p. 194-196)11 11 Observe-se que a medida provisória n. 190 foi atacada no Supremo Tribunal Federal por amplo arco de forças políticas por meio de outras quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade que se somaram àquela primeira, proposta pela Procuradoria-Geral da República. São elas as de n. 294-5 (proposta pelo PDT), n. 298-8 (proposta pelo PSDB), n. 300-3 (proposta pelo PC do B) e a de n. 302-0 (proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil). . Sua decisão pendeu para o lado do poder Legislativo, rejeitando o que fora tentado pelo poder Executivo. Muito embora possa-se considerar essa decisão inovadora, posto que contrária ao interesses do poder Executivo, deve-se lembrar que o tribunal muito provavelmente só assim decidiu porque encontrou apoio político para sua decisão no âmbito do próprio poder Legislativo (HOWELL, 2003; IARYCZOWER; SPILLER & TOMMASI, 2006). Isso corrobora a dificuldade de classificar-se órgãos dessa natureza como instituições contra-majoritárias (KOOPMANS, 2003, p. 98-128), em especial em ambientes políticos com poderes concentrados (ANDREWS & MONTINOLA, 2004; COUSO, 2004).

Passando ao que antes chamou-se de análise quantitativa dos julgamentos do STF, pode-se observar que os índices de restrições impostas ao poder Executivo pelo órgão de cúpula do poder Judiciário brasileiro é bastante semelhante àquele apresentado pelo próprio Congresso Nacional. Veja-se a Tabela 3, logo abaixo.

Ainda que não se pretenda ficar adstrito a esse tema, importa ressaltar que o grande número de ações julgadas prejudicadas altera substancialmente o comportamento geral que se observa estatisticamente no Supremo Tribunal Federal, influindo na ordem de 20% em favor do poder Executivo (DA ROS, 2007). Muitas ações tendem a ser julgadas nesse sentido a partir de uma conjunção de basicamente dois fatores. Em primeiro lugar, a processualística diferenciada do instituto da medida provisória, que, por si só, dada sua celeridade, dificulta sobremaneira o controle pelo STF (WERNECK VIANNA et al., 1999, p. 143). Por outro lado, a quantidade bastante elevada de processos submetidos a julgamento naquele tribunal dificulta o foco em questões mais relevantes, desviando a atuação do órgão muitas vezes para temas pouco controversos e de envergadura mais reduzida (CASTRO, 1997).

Da confluência de um instrumento normativo extremamente célere na geração de efeitos concretos (medida provisória) com uma sobrecarga bastante elevada de processos a serem julgados, o STF vê muitos de seus julgamentos sobre o poder de decreto do Presidente brasileiro serem prejudicados por perda de objeto das ações. Isso se verifica especialmente nos casos em que há reedição ou conversão da medida em lei. Isso porque a medida provisória originária deixa de ter vigência quando qualquer desses dois eventos supervenientes se observa, no entendimento daquela corte. Daí deduz-se, portanto, que não há o que julgar sobre um instrumento normativo que não produz mais efeitos. Decidindo assim, o tribunal firmou sólida jurisprudência eximindo-se de examinar a constitucionalidade dos requisitos para a edição de diversas medidas provisórias (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006f; 2006g).

Pode-se verificar, portanto, que, embora o STF tenha se aberto a controlar o poder de decreto do Presidente brasileiro, isso não foi feito com o rigor esperado por muitos, em especial por parte da comunidade jurídica, da qual, ainda hoje, são projetadas severas críticas pelo modo como agiu e como vem agindo. Em verdade, o tribunal tendeu a restringir sua própria atuação, não obstaculizando severamente as ações empreendidas pelo Presidente. A atuação geral do órgão, entretanto, tornou claros alguns conflitos e gerou certos posicionamentos. Alguns desses, inclusive, acabaram por influir sobre a mudança institucional representada pela aprovação da Emenda Constitucional n. 32/2001, como passa-se a ver a seguir.

IV. DINÂMICA PARLAMENTAR E MUDANÇA INSTITUCIONAL: A APROVAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 32/2001 PELO CONGRESSO NACIONAL E SEUS EFEITOS SOBRE O SISTEMA POLÍTICO

A Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001, é fruto, ao que parece, de um raro momento em que o Congresso Nacional, por meio de um longo e demorado caminho, superou seus dilemas de ação coletiva e seus elevados custos de transação, agindo com motivações mais institucionais do que propriamente partidárias. Como forma de corroborar essa assertiva, pode-se recorrer às votações realizadas para a aprovação da referida emenda à Constituição. Em praticamente todas elas, há uma votação expressiva em seu favor, com margem restritíssima para a oposição, quase beirando a unanimidade; em praticamente todas as situações, os votos favoráveis ao projeto atingiram a casa dos 400, ao passo que os votos contrários não ultrapassaram um único dígito em nenhuma vez.

Apresentado através da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 472, em maio de 1997, o projeto da referida emenda tramitou na Câmara dos Deputados e no Senado Federal por mais de 50 meses, com significativos adiamentos de votação e de discussão, corroborando a tese de acordo com a qual os projetos de iniciativa do próprio legislativo tendem a ser de lento percurso até a sua aprovação final por ambas casas (AMORIM NETO & SANTOS, 2002; 2003). Em que pese essa demora, salta aos olhos a extensa regulação conferida pelo Congresso Nacional à nova redação do artigo 62, da Constituição Federal, que disciplina a matéria, como pode-se ver no Quadro 2, logo abaixo.



Como observa-se, pode-se afirmar que houve uma preocupação bastante acentuada em regular aqueles que, juridicamente, são designados os requisitos materiais de edição das medidas provisórias, isto é, os temas específicos sobre os quais elas podem ou não versar. Certos assuntos, assim, deixaram de ser passíveis de regulação via medidas provisórias. Entre eles, pode-se destacar: matéria orçamentária, Direito Penal, Direito Processual Penal, seqüestro de ativos financeiros, entre vários outros, como pode-se extrair da leitura do § 1º do referido artigo da Constituição. A hipótese é que tal regulação decorre diretamente da experiência vivida nas relações entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no período após a promulgação da Constituição de 1988. Isso porque muitos desses temas foram objeto de interações relevantes, tanto no âmbito do parlamento, como na esfera própria dos tribunais.

Três exemplos são especialmente interessantes para ilustrar o alegado:

1) consta na nova redação do art. 62, em seu § 1º, II, a proibição de seqüestro de ativos financeiros via medida provisória. Tal fato, obviamente, só pode ser compreendido se considerado o Plano Collor e todos os sérios conflitos que dele decorreram envolvendo tanto o poder Legislativo (FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999, p. 157-191) como o poder Judiciário, em especial, quanto ao último, no que se refere aos tribunais que se situam mais abaixo na estrutura hierárquica (ARANTES, 1997);

2) consta ainda na nova redação do art. 62, em seu § 1º, I, "b", a vedação de medida provisória que verse sobre Direito Penal e Processual Penal. Novamente, só pode se compreender essa vedação se for considerado o julgamento da ADIn nº 162-1, movida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra a medida provisória nº 111, de 1989, como demonstrado anteriormente, que versava sobre o instituto da prisão temporária. Foi a partir do julgamento dessa ADIn que o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência no tocante ao controle dos requisitos de urgência e relevância para edição de medidas provisórias, modificando o estabelecido na década de 1960;

3) a vedação de reedição de medida provisória expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional só pode ser adequadamente compreendida se for lembrada a ADIn 293-7, na qual o próprio STF já instituía tal restrição. Carlos Pereira, Timothy Power e Lúcio Rennó (PEREIRA; POWER & RENNÓ, 2006) referem-se a essa alteração como se ela fosse uma inteira novidade introduzida pela Emenda Constitucional n. 32/2001, o que justificaria uma expectativa por incremento no controle sobre as medidas provisórias pelo poder Legislativo, o que, de acordo com sua visão, não teria se verificado. Tal surpresa só pode ser entendida porque faltou aos autores atentarem à dinâmica jurisdicional, que já previa essa restrição desde o início dos anos 1990. Novamente, vale ressaltar a importância de agregar o poder Judiciário à análise das instituições políticas brasileiras se o que se pretende é obter um padrão mais acurado a respeito desta dinâmica.

Os exemplos arrolados acima ajudam a ilustrar, portanto, que grande parte das restrições materiais impostas ao poder Executivo com a promulgação da Emenda Constitucional n. 32/2001 decorreram da experiência vivida nos anos anteriores no que se refere às relações entre os três poderes do Estado. De certa maneira, pode-se dizer que a emenda tornou claros certos posicionamentos firmados ao longo dos anos, tanto no âmbito do poder Legislativo, como em sede jurisdicional. Desse modo, pode-se afirmar que a referida emenda, ao invés de estar promovendo alterações profundas no sistema político, estaria consolidando posições que já vêm solidificando-se ao longo dos anos. Caso contrário, como entender a falta de manifestações do poder Executivo com a aprovação da emenda?

A verdade, entretanto, é que a Emenda Constitucional n. 32/2001 não introduziu apenas alterações materiais, mas também procedimentais referentes ao processo legislativo diferenciado do instituto da medida provisória. Nesse particular, algumas modificações devem ser destacadas. Observe-se que a referida emenda não restringiu integralmente a possibilidade de reedição de medidas provisórias, o que ainda pode ser realizado por um período de limitado de tempo. Antes, as medidas provisórias deveriam ser apreciadas pelo Congresso Nacional em trinta dias, ou perderiam eficácia. Agora, o prazo estendeu-se para sessenta dias, prorrogáveis por mais sessenta, quando, então, a medida provisória ingressa automaticamente em votação no plenário, trancando a pauta até o momento de ser apreciada. São, portanto, cento e vinte dias possíveis de vigência sem a manifestação da casa legislativa, o que equivale a uma edição mais três reedições do período anterior (SAMPAIO, 2006, p. 11-12).

O principal ponto, entretanto, é que, com o trancamento de pauta, as medidas provisórias passam a ter necessariamente de passar pela apreciação do Congresso Nacional, extinguindo-se aquelas medidas provisórias que ganhavam vigência e continuavam reiteradamente a viger sem qualquer manifestação da casa legislativa. Dessa maneira, a obrigatoriedade da aprovação ou não dos decretos executivos pelo Congresso Nacional acabou por extinguir aqueles casos nos quais havia medidas provisórias que vigoravam sem que fossem convertidas em lei. Um efeito importante a ser mencionado, portanto, diz respeito a essa impossibilidade, ao menos do ponto de vista formal. Isso pode levar a crer que tenha ficado evidente o incremento de controle que pode ser exercido pelo poder Legislativo12 12 Ainda que haja certa dose de obviedade nessa assertiva, vale uma observação. Aqui está a empregar-se a expressão pode porque não se deduz, da mera existência de uma instituição, a sua constante ativação. Isto é: a existência de uma dada instituição ou instituto abre a possibilidade de seu uso, e não seu emprego necessário em todas as situações (SANTOS, 2006, p. 138). 13 Estão excluídas desse total 29 medidas provisórias que se encontravam em tramitação no Congresso Nacional no momento em que se realizou a presente pesquisa. 14 Foram excluídas dessa tabela as medidas provisórias reeditadas, uma vez que, majoritariamente, os temas tratados nelas repetem o conteúdo daquelas que lhes deram origem, não alterando, portanto, o statu quo. 15 Ao contrário da Tabela 4, foram incluídas nesse total 29 medidas provisórias que se encontravam em tramitação no Congresso Nacional no momento em que se realizou a presente pesquisa. Isso porque o que se está a comparar é a taxa mensal de apresentação das medidas provisórias. .

A reduzida parcela da literatura que se pronunciou a respeito da referida emenda, tendeu a vê-la como fator de fortalecimento do poder Legislativo, muito embora as análises que deram origem a essas opiniões não tenham sido exaustivas (PESSANHA, 2002; FIGUEIREDO & LIMONGI, 2003). Outra parcela da literatura (PEREIRA;POWER & RENNÓ, 2006), que estudou a emenda mais a fundo, esperava, pelo que dispõe o novo texto, maior controle e menos ativismo presidencial, tendo-se surpreendido com o que viu. Uma análise mais acurada, entretanto, ainda terá de esperar. Por ora, cumpre observar, no âmbito das alterações procedimentais, que houve a revogação da Resolução nº 01/1989, do Congresso Nacional, tendo sido substituída pela Resolução nº 01/2002. Muito embora não haja alterações substantivas, vale ressaltar que dobrou o número de parlamentares integrantes da Comissão Mista encarregada de emitir parecer sobre medidas provisórias. De 12 (seis senadores e seis deputados) passou-se a 24 (12 senadores e 12 deputados), o que, ao menos em tese, pode significar maior controle sobre a utilização do instituto, posto que possibilita a participação de uma maior número de partidos na referida Comissão Mista. Isso poderia significar, também, e novamente do ponto de vista especulativo, mais dificuldades do poder Executivo em fazer sua agenda ser aprovada através de medidas provisórias, posto que demandaria mais negociações decorrente dos dilemas de ação coletiva inerentes ao incremento do número de atores envolvidos.

A análise, entretanto, não pode se esgotar na mera leitura dos dispositivos constitucionais e regimentais. Para que se possa afirmar se houve ou não real fortalecimento do controle parlamentar sobre o uso do poder de decreto pelo poder Executivo deve-se comparar as taxas de sucesso e de insucesso presidencial dos períodos anterior e posterior à aprovação da emenda. O resultado encontra-se sintetizado na Tabela 4, abaixo, e aponta para a estabilidade no sucesso da Presidência em legislar através de MPs.

Uma observação deve ser realizada, contudo. No período posterior à promulgação da Emenda Constitucional n. 32/2001, chama a atenção a existência de uma medida provisória que tenha sido vetada, uma vez que parece pouco racional que o mesmo ator que propõe uma medida a rejeite. Poder-se-ia pensar, alternativamente, que se trataria de uma medida provisória que, ao passar pelo escrutínio do Congresso Nacional tenha sido completamente revertida em seu sentido, tornando-se desinteressante ao poder Executivo vê-la convertida em lei. Trata-se, contudo, de uma observação estatisticamente insignificante: do total de 324 medidas provisórias editadas após Emenda Constitucional n. 32/2001, apenas a medida provisória n. 82 foi vetada e isso ocorreu porque a medida foi editada em 7 de dezembro de 2002, ainda no mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, e vetada em 19 de maio de 2003, ou seja, já no mandato do sucessor, Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Como vê-se, trata-se de um veto decorrente das divergências entre o governo que saía e o que ingressava no comando do poder Executivo. Do ponto de vista metodológico, devido a possíveis divergências na classificação de uma situação como essa - seja como sucesso, seja como fracasso presidencial - preferiu-se excluir a referida emenda da soma de medidas provisórias analisadas segundo as categorias analíticas apresentadas.

Passando-se para outra análise de dados, na Tabela 5, é interessante observar que as taxas mensais de apresentação de medidas provisórias não foram reduzidas, ocorrendo justamente o inverso, fato para o qual já haviam atentado Pereira, Power e Rennó (2006).

Como já afirmado, a referida emenda deu nova sistemática à edição de medidas provisórias, restringindo a possibilidade da reedição do instituto e impedindo também que elas não passassem em momento algum pelo Congresso, de tal modo que não escapam aos poderes de agenda e de patronagem que o Palácio do Planalto concentra dentro do parlamento, que não são poucos. De qualquer forma, mesmo que se julgue haver ocorrido alguma redução na assimetria entre os dois poderes com o advento da emenda, não há como esconder-se que o perfil permanece fortemente assimétrico, tendente a centralizar a produção legislativa na Presidência da República. Cumpre observar que o procedimento de trancamento de pauta não é exclusivo da atual sistemática das medidas provisórias, mas que, ao contrário, já encontrava-se presente justamente em um outro instrumento que costumeiramente tem servido ao comando do processo legislativo pelo poder Executivo, isto é, os pedidos de urgência na tramitação de certos projetos, como faculta o art. 64, § 2º da Constituição de 1988.

Argelina Figueiredo e Fernando Limongi (1995) demonstraram que a Presidência da República apresenta elevada taxa de sucesso na aprovação de seus projetos por meio desse procedimento, pelo que se verifica certa aproximação entre os dois tipos de instrumentos emergenciais à disposição do poder Executivo. A diferença, entretanto, apesar da aproximação, permanece clara, posto que somente as medidas provisórias podem alterar unilateralmente o statu quo. De fato, o trancamento de pauta já havia sido corretamente empregado por Pereira, Power e Rennó (2006) como um dos elementos explicativos para o incremento da taxa de apresentação mensal de medidas provisórias. A razão para tal incremento, entretanto, parece residir na extinção da possibilidade de reeditarem-se medidas provisórias. O acréscimo mensal da edição de medidas provisórias, após a aprovação da EC nº 32/2001, pode ser explicado porque a impossibilidade de reedição terminou também com a possibilidade de introduzirem-se alterações unilaterais em medidas provisórias reeditadas. Pode-se deduzir, portanto, que aquelas alterações unilaterais, veiculadas por meio das mudanças em MPs reeditadas, foram direcionadas à única forma do poder Executivo promover alterações unilaterais do statu quo, isto é, às medidas provisórias que, com a EC n. 32/2001, passaram a ser somente as originárias.

Poder-se-ia aventar, assim, que a obrigatoriedade de passagem das medidas provisórias pelo Congresso Nacional teria incrementado o número de alterações que o poder Legislativo faria sobre o decreto do Executivo para que este fosse aprovado. A Tabela 6, abaixo, entretanto, comprova que isso não ocorreu. Verifica-se novamente a referida tendência à estabilidade na dinâmica entre os dois poderes do Estado.

Outro fato que eventualmente se aventaria sobre as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 32/2001 seria a possibilidade de que o incremento de apresentação de medidas provisórias fosse uma função de um novo governo, posto que a mudança na composição da elite política não foi pequena, em 2002, com a eleição do candidato do Partido dos Trabalhadores para a Presidência da República. Nessa visão, o uso de medidas provisórias seria uma estratégia para contornar os obstáculos que os demais atores políticos (institucionais e partidários) colocariam ao novo governo. Novamente, contudo, essa hipótese não se verifica. O trabalho de Pereira, Power e Rennó (2006) argutamente demonstrou que a média mensal de apresentação de medidas provisórias foi maior durante os anos de 2001 e 2002 (durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, portanto), do que no período posterior a 2003, quando assume a administração petista. A média mensal de apresentação de medidas provisórias, em verdade, foi bastante mais acentuada no período do governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso - 6,8 por mês, em média - do que durante o governo Lula, que apresentou média de 4,8 medidas provisórias por mês.

Enfim, pode-se afirmar que a aprovação da Emenda Constitucional nº 32/2001 não alterou substancialmente as relações entre os poderes Executivo e Legislativo. Lembre-se que, tanto antes quanto depois da Emenda Constitucional nº 32, a vigência da medida provisória dá-se de imediato, sem interferência do poder Legislativo, colocando em evidência a já aventada questão dos eventuais custos da rejeição da medida. Importa ver agora, entretanto, se a aprovação da referida emenda implicou alteração na dinâmica do Supremo Tribunal Federal. O resultado pode ser observado na Tabela 7, a seguir.

Pode-se observar que houve diminuição na concessão de liminares, por parte do Supremo Tribunal Federal, como efeito da Emenda Constitucional nº 32/2001, ao passo que os julgamentos de mérito permanecem basicamente estáveis, isto é, irrisórios. Houve, entretanto, incremento das ADIns julgadas em favor do poder Executivo por razão de vícios formais, mormente a perda de objeto da ação pela conversão posterior da medida provisória em lei.

Os efeitos gerais da Emenda Constitucional nº 32/2001 podem ser melhor apreendidos pelo Gráfico 1, logo abaixo, que agrupa as taxas de sucesso presidencial nos julgamentos de pedidos de liminar e nos julgamentos de mérito do Supremo Tribunal Federal (STF-mérito e STF-liminar, respectivamente), bem como o sucesso presidencial na aprovação de medidas provisórias no Congresso Nacional (CN), comparando os períodos anterior e posterior à aprovação da Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001.



Pode-se falar que a referida emenda, portanto, tendeu a dificultar a tarefa de controle de medidas provisórias por parte do STF. Por outro lado, há que se mencionar certa liberação da visibilidade que o STF até então tinha no controle desse instrumento normativo. Isso porque, após a aprovação da Emenda Constitucional n. 32/2001, com a obrigatoriedade da manifestação do Congresso Nacional, o STF deixa de servir como eventual lócus de arbitragem de conflitos entre os dois outros poderes, posto que a apreciação obrigatória do Congresso em matéria de MPs força-o a ter de posicionar-se, resolvendo ele mesmo qualquer eventual conflito com o poder Executivo. Viu-se que, antes da aprovação da emenda, o STF somente tendeu a ser realmente rigoroso com o poder Executivo quando contou com apoio do poder Legislativo, em situação de claro confronto entre os dois outros poderes. Após a emenda aqui trabalhada, esse conflito tende a resolver-se no âmbito do próprio Congresso Nacional.

Curiosamente, pode-se aventar a possibilidade de que a EC n. 32/2001 produziu um efeito não antecipado (PIERSON, 2004, p. 115-119) e, mesmo, perverso (HIRSCHMAN, 1995, p. 18-41): com ela, o pouco controle que exercia o STF ficou ainda mais restrito, tendendo a dar-se cada vez mais somente no Congresso Nacional, o que pode trazer como resultado a restrição ao raio de atuação dos partidos de oposição, justamente aqueles que majoritariamente questionam as medidas provisórias por meio de ADIns junto ao STF. Se já não conseguiam contrapor-se aos interesses do poder Executivo, no âmbito do poder Legislativo, os partidos oposicionistas tiveram, com a EC nº 32/2001, suas possibilidades de atuação ainda mais tolhidas também no poder Judiciário. Operou-se, ainda que talvez de forma não esperada, uma concentração do pouco controle que existe sobre as MP's nas mãos dos partidos da base aliada do governo, em detrimento da oposição que buscava guarida sob o manto do STF.

Uma possibilidade alternativa a essa vê na aprovação da Emenda Constitucional nº 32/2001 uma estabilização no controle de medidas provisórias também no âmbito do STF. Sabe-se que muitos pedidos de liminar que o STF concedeu para sustar os efeitos de medidas provisórias acabaram sendo frustrados pela posterior reedição destas, evadindo-se o poder Executivo da sanção jurisdicional. Trata-se de um fato que a mera leitura das tabelas não permite apreender. Excluindo-se a possibilidade de reedição, isso também deixou de ocorrer, de tal modo que se pode ter reforçado concretamente o controle do STF sobre as MP's, ou, ao menos, tê-la mantido estável.

De qualquer maneira, o universo de casos em análise ainda é um tanto restrito e não permite afirmações mais conclusivas a respeito do tema. Somente o tempo poderá afirmar se houve incremento, estabilização ou decréscimo no controle das medidas provisórias pelo Supremo Tribunal Federal. Entretanto, as tendências apontadas neste estudo inclinam-se no sentido de afirmar a tendência à redução do controle do Supremo Tribunal Federal sobre medidas provisórias.

V. CONCLUSÕES

O presente artigo buscou mapear as posições adotadas por cada um dos poderes do Estado no que se refere ao poder de decreto do Presidente brasileiro, no contexto recente de democracia. Paralelamente, objetivou-se verificar como tem se dado o controle dos demais poderes sobre o poder Executivo, analisando-se o desempenho da estrutura de accountability horizontal no Brasil contemporâneo. Verificou-se que, embora haja movimentação tanto do poder Legislativo como do poder Judiciário, no sentido de introduzir mais controle sobre a atividade legislativa da Presidência da República, isso não tem refletido-se de maneira substantiva como incremento de controle à edição de medidas provisórias. Em verdade, tanto a atuação do poder Judiciário como a do poder Legislativo apresentam certa timidez e ambigüidade quanto às alterações introduzidas no curso dos anos. Por um lado, viu-se que a modificação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, embora tenha aberto a possibilidade de certo ativismo por parte daquela corte, não se refletiu em termos quantitativos. Por outro lado, a Emenda Constitucional nº 32/2001, obra de articulação institucional do Congresso Nacional, reforçou a regulação constitucional do instituto da medida provisória. A emenda, que é resultado em grande parte da experiência que se teve na utilização do instituto, desde 1988 - inclusive como resultado de posicionamentos firmados ao longo dos anos pelo próprio Supremo Tribunal Federal -, parece haver agregado poucas mudanças significativas à capacidade de controle tanto do Congresso Nacional como do Supremo Tribunal Federal. A trajetória realizada, desde a promulgação da Constituição de 1988, pelos poderes do Estado fixou certos parâmetros e consolidou muitas práticas, de tal modo que estas parecem estar reproduzindo-se ainda atualmente, não sendo substancialmente alteradas pela Emenda Constitucional nº 32/2001.

OUTRAS FONTES

Recebido em 23 de outubro de 2006.

}Aprovado em 16 de junho de 2007.

Luciano Da Ros (luciano_da_ros@yahoo.com.br) é Bacharel em Direito e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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  • ______. 2007. Disponível em : www.stf.gov.br Acesso em : 04.abr.2007.
    » link
  • 1
    O autor agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio financeiro recebido, ao Prof. Dr. André Marenco dos Santos, estimulador da publicação destas idéias, e aos dois pareceristas anônimos da
    Revista de Sociologia e Política, pelas sugestões para a formatação final do artigo.
  • 2
    Os trabalhos de Matthew MacLeod Taylor (2004; 2006) certamente incluem-se entre os poucos que se propõem a realizar esse empreendimento.
  • 3
    Emprega-se aqui a distinção entre
    accountability vertical e horizontal, tal como proposta por Guillermo O'Donnell (1998). A primeira refere-se ao controle eleitoral estabelecido entre representantes e representados, especialmente por meio do voto retrospectivo (PRZEWORSKI, 1998; ARATO, 2002). A segunda refere-se ao controle exercido entre os poderes do Estado e sua mútua fiscalização cotidiana.
    4 Somente a partir de 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da nova Constituição.
    5 Até 11 de setembro de 2001, quando da aprovação da Emenda Constitucional n. 032/2001.
  • 6
    Mesmo ciente da controvérsia referente às dificuldades de medir-se o sucesso e o fracasso legislativo do poder Executivo, a partir das taxas de aprovação e rejeição de seus projetos enviados ao Congresso Nacional, como consta do excelente artigo de Simone Diniz (2005), o presente trabalho os adotará como uma aproximação capaz de fornecer um indicador razoavelmente seguro com respeito ao que se pretende expor.
  • 7
    Argumentação semelhante pode ser encontrada na influente obra de John Huber (1996), no que se refere ao uso de procedimentos restritivos pelo governo francês no período da V República.
  • 8
    Importante observar que John Ferejohn e Barry Weingast (1992) consideram a manifestação sobre preferências procedimentais (
    procedural preferences) a maneira por excelência através da qual o poder Judiciário intervém no sistema político.
  • 9
    Observe-se que o referido Recurso Extraordinário não foi interposto, ao menos aparentemente, com o fito oposicionista de barrar-se a atividade legislativa do Presidente da República, mas antes como uma estratégia processual empregada pelos advogados na tentativa de melhor defender os interesses de seus clientes, que pouco ou nenhum interesse possuíam de imiscuir-se no jogo propriamente político.
  • 10
    Vale ressaltar que comportamento idêntico pôde ser verificado na Argentina durante seu último período autoritário. Observa-se também lá a lógica segunda a qual a Suprema Corte daquele país retirava-se da arena política quanto ao controle dos requisitos constitucionais de "necessidade" e "emergência" para a edição dos atos executivos pela Junta Militar (GROISMAN, 1985).
  • 11
    Observe-se que a medida provisória n. 190 foi atacada no Supremo Tribunal Federal por amplo arco de forças políticas por meio de outras quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade que se somaram àquela primeira, proposta pela Procuradoria-Geral da República. São elas as de n. 294-5 (proposta pelo PDT), n. 298-8 (proposta pelo PSDB), n. 300-3 (proposta pelo PC do B) e a de n. 302-0 (proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil).
  • 12
    Ainda que haja certa dose de obviedade nessa assertiva, vale uma observação. Aqui está a empregar-se a expressão
    pode porque não se deduz, da mera existência de uma instituição, a sua constante ativação. Isto é: a existência de uma dada instituição ou instituto abre a possibilidade de seu uso, e não seu emprego necessário em todas as situações (SANTOS, 2006, p. 138).
    13 Estão excluídas desse total 29 medidas provisórias que se encontravam em tramitação no Congresso Nacional no momento em que se realizou a presente pesquisa.
    14 Foram excluídas dessa tabela as medidas provisórias reeditadas, uma vez que, majoritariamente, os temas tratados nelas repetem o conteúdo daquelas que lhes deram origem, não alterando, portanto, o
    statu quo.
    15 Ao contrário da
    Tabela 4, foram
    incluídas nesse total 29 medidas provisórias que se encontravam em tramitação no Congresso Nacional no momento em que se realizou a presente pesquisa. Isso porque o que se está a comparar é a taxa mensal de apresentação das medidas provisórias.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Nov 2008

    Histórico

    • Recebido
      23 Out 2006
    • Aceito
      16 Jun 2007
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