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Representações sócio-históricas de uma doença: um estudo sobre cartazes de campanhas para o combate à hanseníase na segunda metade do século XX

Resumo

Este artigo analisa o uso de fontes iconográficas no contexto das campanhas educativas para o combate à hanseníase numa perspectiva sócio-histórica em quatro momentos: décadas de 1950, 1960, 1980 e 1990. São analisados quatro cartazes para identificar os elementos (textuais, visuais ou gráficos) utilizados para elaborar um discurso sobre a doença e os doentes; suas transformações discursivas e permanências, além de verificar como se tornaram parte de uma narrativa de memória institucional ligada à saúde pública paulista. As fontes estudadas fazem parte da coleção Cartazes de Campanhas de Saúde, cujos itens foram produzidos por diversas instituições ligadas à saúde pública e integram o acervo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas.

Campanhas sanitárias; Representações sociais; Lepra; História da saúde pública; Análise de imagens

Abstract

This article analyzes the use of iconographic sources in the context of educational campaigns to combat Hansen’s disease from a socio-historical perspective at four points in time: the 1950s, 1960s, 1980s, and 1990s. Four posters are analyzed to identify the elements (textual, visual or graphic) used to develop discourse on this disease and those it affected and transformations and permanences in this discourse, as well as to verify how they became part of a narrative of institutional memory linked to public health in the state of São Paulo. These were produced by various public health institutions and are part of the Health Campaign Poster Collection held by the Emílio Ribas Public Health Museum.

Health campaigns; Social representations; Leprosy; History of public health; Image analysis

Entre história social e história da saúde pública: uma introdução

Neste artigo, propõe-se um estudo sobre a representação social da lepra (atualmente hanseníase), considerando uma perspectiva histórica sobre as práticas e representações da doença e do doente no campo da saúde pública. Parte dessa análise foi iniciada durante a pesquisa de doutorado de uma das autoras e será ampliada neste estudo, adotando como ponto de partida o nome atual da doença. Como objeto de pesquisa histórica, a mudança de lepra para hanseníase assinala uma mudança de regime de historicidade ( Hartog, 2014HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. ), no qual foram atribuídos novos significados 1 1 Caso da lei n.9.010, de 29 de março de 1995, que determina que a terminologia adotada para lepra e “termos derivados”, como leproso, leprosário, entre outros, sejam substituídos por hanseníase e seus derivados como hansenologia no lugar de leprologia hospital de dermatologia no lugar de leprosário etc. Apesar disso, o governo federal só adotaria definitivamente a expressão hanseníase em seus documentos oficiais a partir da lei n.9.010, de 29 de março de 1995. Neste artigo, será adotado lepra ou hanseníase conforme o contexto a ser mencionado, para evitar anacronismos. para as narrativas ligadas ao tema, aos doentes, à doença, propriamente, e, também, à prática médica, vista como prática social.

Tais abordagens fazem parte de um processo histórico, no qual está inserida uma série de disputas simbólicas e/ou políticas pelo direito a uma narrativa oficial, em diferentes contextos. Ao considerar uma delas para a análise das fontes selecionadas, pode-se observar como a doença era vista pelas instituições paulistas ligadas à saúde pública, pelo Estado e, ainda, como (deveria ser vista) pelo restante da população. A mudança do nome da doença ocorrida na década de 1960 assinala a necessidade, naquele momento, de mudar a visão que se tinha sobre ela. Nesse contexto, o médico Abraão Rotberg (2002)ROTBERG, Abraão. Abraão Rotberg. [Entrevista de história oral concedida ao projeto Memória e história da hanseníase no Brasil através de seus depoentes (1960-2000)]. Entrevistadores: Laurinda Rosa Maciel e Maria Leide W. de Oliveira, Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 3 maio 2002. 4 fitas cassete e 4 CDs (3h56min). teve um papel relevante, quando propôs o novo nome, numa tentativa de apagar o que ele definiu como um “leprostigma”. Com isso, acreditava-se que, diferentemente da lepra e de todo o imaginário criado em seu entorno, a hanseníase seria “uma doença como qualquer outra”, com tratamento e controle, desde que seu diagnóstico fosse efetuado a tempo. Mais do que a troca do nome da doença e palavras correlatas (leproso, leprosário, leprologista etc.), também fica evidente o alcance social desses debates, que resultariam no decreto federal n.76.078, de 1975 ( Neris, 2014NERIS, Cidinalva Silva C. Estigma e isolamento social: lepra, saber médico e políticas públicas no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial; São Luís: Edufma, 2014. , p.127), e no desenvolvimento de outras bases para seu tratamento no futuro (Bonfim, Bastos, 2009, p.190).

Também é pertinente investigar sobre a discussão, por parte da comunidade médica, a respeito da profilaxia adotada com relação à endemia (e suas disputas internas e externas ao campo), bem como o desenvolvimento e produção de novos medicamentos, mas também sua regulamentação e execução, por meio de leis e portarias. Além dessas abordagens, é possível, ainda, uma reflexão sobre o papel da ciência como legitimadora de práticas e discursos, sinalizando, como observa Massako Iyda (1994)IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. , uma falta de autonomia intelectual da comunidade médica em relação ao Estado. Este, por sua vez, lançava mão da visão social construída em torno de um saber científico de cunho eugenista, baseado na “fatualidade, neutralidade e universalidade” ( Stepan, 2005STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. (Coleção História e Saúde). , p.16-17), para justificar medidas profiláticas extremamente violentas. Nessa mesma perspectiva, Ivan Ducatti (2007DUCATTI, Ivan. Discurso científico e legitimação política: hanseníase e isolamento compulsório: Brasil, século XX. Projeto História, n.34, p.303-315, 2007. , p.309-310) reitera que

a ciência pode se tornar também legitimadora de interesses ideológicos da classe burguesa, uma vez que esta consegue multiplicar seus quadros pensantes e impor, em vários domínios e instâncias da sociedade, seu pensamento. Essa é a mais eficaz das maneiras pelas quais os compromissos de valor são apresentados com a pretensão de neutralidade e incontestável objetividade, o apelo à autoridade da ciência, em cujo nome a adoção de certas medidas e cursos de ação é recomendada.

E no caso da lepra/hanseníase, vista como parte de um processo histórico social, não seria diferente. Os estudos historiográficos sobre o tema tiveram, na tese de Yara Monteiro (1995)MONTEIRO, Yara N. Da maldição divina à exclusão social: um estudo da hanseníase em São Paulo. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. , um de seus principais marcadores ao abordar o estigma ligado à doença, assim como: o funcionamento das instituições de isolamento; os discursos sobre a ciência e a legislação da época sobre o tema; o papel da imprensa na divulgação dessas medidas; mas também as intricadas relações de poder entre o governo paulista e as instituições e entre estas e seus internos. Desse modo, Monteiro abriu espaço para pesquisas posteriores, propiciando um novo regime de historicidade, no qual outros agentes históricos seriam inclusos, caso dos doentes institucionalizados à força e, por isso, marginalizados e invisibilizados socialmente, atrás dos muros dos leprosários, denominados asilos-colônia, localizados no interior paulista.

Para levar essa discussão adiante, novas abordagens, periodizações, fontes e metodologias têm sido empregadas, diversificando a produção do conhecimento científico e seu papel social. Isso permite estabelecer relações entre um acontecimento determinado, no caso, as campanhas sanitárias para combate à hanseníase, e a conjuntura mais ampla do país. Por isso, não devem ser vistos como elementos opostos dentro do processo histórico, mas complementares, um “jogo de escalas” entre a chamada micro e a macro-história ( Revel, 1998REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998. ).

No campo da saúde pública são estudados o planejamento e a regulamentação de ações sanitárias, campanhas educativas, entre outras medidas de combate às endemias e epidemias ao longo do tempo. Se “a doença possibilita o conhecimento sobre estruturas e mudanças sociais”, ela também requer a “constituição de campos de saber e disciplinas” (Hochman, Armus, 2004, p.13-14). Nesse sentido, as observações de Mota e Marques (2018)MOTA, André; MARQUES, Maria Cristina da C. História do tempo presente e a democracia oligárquica no Brasil. In: Mota, André; Marques, Maria Cristina da C. (org.). História, saúde coletiva e medicina. São Paulo: Hucitec, 2018. p.14-47. acerca da história do tempo presente reiteram a relevância da aproximação entre história social e o campo da saúde coletiva, cujas bases foram sedimentadas a partir de dois conceitos: a determinação social das doenças e o processo de trabalho em saúde. Há que se levar em conta, ainda, sua dimensão política, uma vez que a saúde é considerada, desde a Constituição de 1988, um direito constitucional (Mota, Marques, 2018, p.25). Direito que é resultado dos esforços para superação das perdas causadas pelos regimes autoritários vigentes no país em diferentes momentos do século XX, particularmente com o golpe militar iniciado em 1964. Posteriormente, serão retomados alguns aspectos conjunturais da saúde pública (e da saúde coletiva) para auxiliar na compreensão da análise aqui proposta. Por ora, será apresentada uma breve, mas necessária, contextualização acerca da doença e das ações adotadas para seu enfrentamento no estado paulista.

Nas primeiras décadas do século passado, o governo de São Paulo adotou o isolamento compulsório numa tentativa de conter seu avanço rumo ao interior. Para receber essas pessoas foi criada uma rede de cinco asilos-colônia (localizados nas cidades paulistas de Bauru, Casa Branca, Guarulhos, Itu e Mogi das Cruzes). Essa estrutura serviu de base para outros estados e ficou conhecida como “modelo paulista”, que abrangia três procedimentos: aviso compulsório no caso de contágio de doenças infectocontagiosas, internação obrigatória dos enfermos e o encaminhamento de seus filhos aos chamados preventórios ( Monteiro, 1995MONTEIRO, Yara N. Da maldição divina à exclusão social: um estudo da hanseníase em São Paulo. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. , p.217). Com a finalidade de implantá-lo, uma série de estratégias e ações foi pensada, projetada e executada, a partir da influência dos debates sobre o pensamento eugenista, em voga no início do século XX. A partir das ideias de regeneração e melhoramento das populações no país, criou-se uma narrativa particular sobre a lepra: a de uma ameaça ao futuro.

Além do isolamento obrigatório desses doentes (e do consequente desmonte familiar), discutiu-se a possibilidade de esterilizá-los para que não transmitissem a enfermidade aos seus filhos, por exemplo. Segundo Quevedo, Serres e Santos (2013, p.346), as razões para a esterilização seriam “eugênicas” (para livrar as gerações futuras da doença, mesmo não sendo hereditária), “profiláticas” (separação de pessoas adoentadas e sãs) e “sociais” (evitar despesas com os filhos de hansenianos que seriam separados de seus pais). Embora não tivesse sido posta em prática, por causa de questões religiosas e/ou morais, a existência de um debate a respeito já evidencia o alcance da eugenia junto à comunidade intelectual ligada à saúde, particularmente médicos e sanitaristas.

A partir de então, a eugenia tocou ou influenciou a história da medicina, da família, da maternidade, da população, da criminologia, da saúde pública e do bem-estar social. ... A eugenia foi importante porque ocupou o espaço cultural no qual se deu a interpretação social, e porque articulou novas e poderosas imagens da saúde como questão de hereditariedade e raça ( Stepan, 2005STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. (Coleção História e Saúde). , p.15).

No caso brasileiro, a eugenia serviu de ferramenta importante para dar andamento ao projeto político de nação moderna e próspera – e, para isso, era preciso uma população saudável e apta a oferecer sua força de trabalho –, segundo ideais europeus, mesmo sem ter os mesmos recursos e características populacionais. De outra parte, essas instituições (leprosários, preventórios e dispensários) “poderiam reverter em vantagens eleitorais”, evidenciando feições populistas ao governo de então, “demonstrando uma preocupação do Estado com uma coletividade marginalizada” (Quevedo, Serres, Santos, 2013, p.346).

Massako Iyda (1994IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. , p.15-16) tece algumas considerações sobre a saúde pública, por uma perspectiva de caráter regulador sobre a população, sem de fato, enfrentar os graves problemas sanitários existentes. Para isso, foi elaborado um mecanismo de persuasão e de legitimação, junto à comunidade, de modo que esse exercício de poder não fosse questionado, constituindo um braço de atuação do Estado, cuja estrutura deveria lhe conferir mais do que legitimidade de ação, mas, sobretudo, “autoridade”. Mesmo com o (pretenso) discurso de neutralidade e de rigor científico, a saúde pública fora, até meados do século XX, essencialmente um instrumento político de governos totalitaristas.

Nesse contexto, a educação sanitária e o cuidado de proteção à infância passaram a ser um novo veículo dessa estrutura de controle social, ampliada e fortalecida a partir de meados dos anos 1920 ( Iyda, 1994IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. , p.50-51). As reformas ocorridas naquele momento incluíram uma Inspetoria de Educação Sanitária e de Centros de Saúde, cuja atuação tinha um viés de policiamento sanitário, haja vista a obrigatoriedade de comunicação de algumas doenças, caso da lepra, bem como o modus operandi da Inspetoria de Profilaxia da Lepra. Transformada em departamento dez anos mais tarde, tornar-se-ia conhecida pela abordagem, muitas vezes truculenta, aos enfermos e a seus familiares. Assim, o Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) tinha uma estrutura burocrática e física, cujas ações “visavam mais a um aumento de poder do que à melhoria de condições de vida da população” (p.52). Ao lidar com aspectos socioeconômicos ligados à saúde das comunidades como algo meramente “técnico”, o DPL ampliou gradativamente seu poder institucional, de modo que

as ações sanitárias nunca foram prioritárias, a não ser em momentos específicos e conjunturais da sociedade brasileira. Este fato não decorre de fatores orçamentários, mas resulta de fatores econômicos e políticos (inclusive internacionais, como se verá), sendo aqueles mera consequência. A falta de prioridade decorre, essencialmente, do caráter estrutural da Saúde Pública ... ( Iyda, 1994IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. , p.70).

Esse cenário seria modificado gradativamente com o surgimento de medicamentos que pudessem combater ou, ao menos, estabilizar os danos causados pela doença, retomando o debate sobre a eficácia da profilaxia adotada até então. Na ordem do discurso (e, portanto, da construção de significados), outras ações e estratégias de comunicação foram empregadas, como a produção de publicações técnicas, panfletos e filmes educativos, 2 2 No artigo “Modernidade e trabalho no filme de divulgação asilo-colônia Aimorés – 1944” ( Porto, 2014 ) foram analisados aspectos discursivos presentes em filmes educativos produzidos para divulgar as ações de combate à lepra, caso do filme sobre o asilo-colônia Aimorés, localizado na cidade paulista de Bauru. Também foram apresentadas as especificidades desses registros visuais, cuja diversidade de suportes e de linguagens evidencia não somente a importância dada a essas ações, mas também como o Estado foi representado junto à opinião pública naquele momento. palestras em programas de rádio transmitidas nos anos 1940, por exemplo. A Secretaria de Educação e Saúde Pública (Sesp) passaria, em 1947, a formar parcerias e incorporar ações ligadas à assistência social, passando a atuar como Secretaria de Saúde Pública e Assistência Social (SSPAS). No caso da lepra, o aprimoramento de medicamentos para seu tratamento e as discussões dentro da comunidade médica levaram a um questionamento sobre a real eficácia do modelo paulista, uma vez que o isolamento obrigatório dos doentes não conseguiu reduzir o número de casos, além de onerar os cofres públicos.

Com o final da Segunda Guerra Mundial, as ideias eugênicas perderam força e passaram a ser malvistas por causa dos crimes cometidos contra a humanidade, originando, assim, um novo regime de historicidade. Um dos desdobramentos dessa mudança pode ser observado com a alteração dos nomes das instituições de isolamento, em 1949. Os asilos-colônia deixavam de asilar, recolher (ou esconder) para ser “sanatórios”, ou seja, lugar de tratamento, de “sanar” um mal ( Porto, 2018PORTO, Carla L. Memórias da exclusão: narrativas de ex-portadores do Mal de Hansen na cidade de Bauru (1945-1969). Jundiaí: Paco Editorial, 2018. , p.16). Esse processo de mudanças discursivas e das práticas médicas e sanitárias culminaria no decreto 968/1962, que determinava a extinção (legal) do isolamento compulsório, e na troca do nome “lepra” para “hanseníase”, ocorrida na mesma década.

É importante investigar, além do impacto da doença junto à população, suas possíveis causas (e, também, seu quadro epidemiológico e área de incidência), as conjunturas sócio-históricas em que esses e outros elementos estão inseridos, para aprofundar a compreensão sobre as epidemias ou endemias. Numa outra perspectiva, é possível verificar, além das condições de saúde do paciente, como as instituições ligadas à saúde e aos governos o observa. Esse movimento pode revelar vestígios importantes sobre as transformações sociais causadas pelas epidemias, mas também pelas más condições de vida de parte da população, motivadas pela carência de saneamento básico, por exemplo. O corpo adoecido também revela o impacto das diferenças sociais (Revel, Peter, 1995), ou seja, a maneira de dele cuidar ou de o negligenciar, representar ou ignorar também é um sintoma relevante das desigualdades existentes no Brasil.

Esses mecanismos de produção de discurso (e de silenciamento de seus opositores) também podem ser observados durante o período da ditadura militar, ocorrida entre 1964 e 1985, quando alguns dos cartazes da coleção em estudo neste artigo foram produzidos. É desejável identificar as demandas atendidas, para alinhar e manter sua representatividade no campo da saúde pública, dentro de um projeto de poder, no qual a saúde pública seria um “meio”, e não um fim. Um vestígio dessa mentalidade autoritária pode ser notado desde o uso de expressões ligadas ao contexto militar para representar a doença (e o doente) como “inimigo a ser combatido”, e não como resultado da falta de acesso a equipamentos de saneamento básico. Atribuía-se ao indivíduo a responsabilidade de ter adoecido, “deslocando-se o problema, assim, do eixo social” ( Ducatti, 2007DUCATTI, Ivan. Discurso científico e legitimação política: hanseníase e isolamento compulsório: Brasil, século XX. Projeto História, n.34, p.303-315, 2007. , p.312). Esses elementos reproduzem marcas de um pensamento orientado por uma base eugenista presentes nas campanhas de combate à lepra/hanseníase.

Com as novas possibilidades de tratamento vieram as alterações de discurso, 3 3 Nesse sentido, Ivan Ducatti (2007) analisa os usos ideológicos da ciência e da medicina para legitimar a exclusão social de portadores de lepra causada pelo isolamento compulsório, mesmo que houvesse um tratamento disponível naquele momento. numa tentativa de realinhar projetos políticos e ideológicos. Importava, naquele momento, mudar a visão que se tinha de uma “maldição bíblica”, que resultava no isolamento e exclusão social de quem era por ela atingido, para ser encarada como algo tratável. Assim, o capital político e simbólico exercido pelo Departamento de Profilaxia da Lepra seria mantido, com o investimento em campanhas de educação sanitária, de modo a estabelecer “associação entre um projeto de medicalização da sociedade e o desenvolvimento de leis de proteção social” ( Neris, 2014NERIS, Cidinalva Silva C. Estigma e isolamento social: lepra, saber médico e políticas públicas no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial; São Luís: Edufma, 2014. , p.124), esforço que conduziria a uma nova perspectiva sobre a saúde nas décadas seguintes.

Conhecendo as fontes e suas especificidades: um olhar para (e sobre) as campanhas educativas e sanitárias

Os estudos no campo da história da saúde com fontes iconográficas, apesar de não triviais, não são inéditos. Myriam Bahia Lopes (2000LOPES, Myriam Bahia. O Rio em movimento: quadros médicos e(m) história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. , p.21) busca responder, a partir da análise de diferentes imagens, “como as questões relacionadas à saúde dos cariocas se transformam”. Para isso, analisa “imagens estandarte das campanhas sanitárias e da remodelação da capital do Brasil – incorporadas sem críticas pela recente historiografia” (p.21). Mais recentes, trabalhos sobre as campanhas de enfrentamento da poliomielite (Silva, Pôrto, 2010) e sobre a questão antimanicomial (Espírito Santo, Araújo, Amarante, 2016), a partir de cartazes de divulgação, auxiliam no crescimento do número de estudos sobre as ações de educação sanitária. Nesse sentido, pensar numa historiografia sobre as campanhas educativas sobre a hanseníase, considerando esse tipo de documento, é relevante para o campo da história social, mas também da história da saúde, particularmente, da saúde pública paulista.

Mais do que informar a população, os cartazes apresentam elementos temporais e discursivos, evidenciando vestígios sobre sua circulação e possíveis significados. Importa observar, ainda, seus diversos suportes e formatos (cartazes, panfletos, filmes publicitários etc.) como ferramentas de legitimação de discursos que estavam em conformidade com um projeto, fosse ele político e/ou ideológico, em diferentes momentos e conjunturas ( Ducatti, 2007DUCATTI, Ivan. Discurso científico e legitimação política: hanseníase e isolamento compulsório: Brasil, século XX. Projeto História, n.34, p.303-315, 2007. ; Iyda, 1994IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. ). Particularmente na conjuntura de institucionalização e regulamentação de ações sanitárias durante o governo de Getúlio Vargas, para quem a saúde pública foi uma base importante de política social.

O uso de imagens como estratégia de divulgação de informações sobre prevenção e cuidados com relação às doenças é uma prática adotada desde a estruturação de políticas públicas no estado paulista, ocorrida no início do século passado. Trata-se de um instrumento essencial das campanhas educativas, como no caso da Campanha Nacional de Combate à Lepra (CNCL), cujo objetivo era “modificar a estratégia de controle da doença e, assim, eliminar o isolamento em leprosários da realidade médica brasileira” ( Maciel, 2007MACIEL, Laurinda Rosa. Em proveito dos sãos, perde o lázaro a liberdade: uma história das políticas públicas de combate à lepra no Brasil (1941-1962). Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. , p.256). A implantação de uma campanha epidemiológica pelo Serviço Nacional de Lepra (SNL) possibilitou a manutenção de diretrizes para seu enfrentamento, apesar da necessidade de mudanças quanto à profilaxia adotada até então. O intuito era uniformizar as ações sanitárias, seguindo um princípio centralizador e hierarquizado, bem como da redefinição das áreas atendidas durante a etapa-piloto, 4 4 A CNCL teve sua fase-piloto implantada, primeiramente, no Rio de Janeiro, em 1954, por meio de um convênio assinado entre a Secretaria de Saúde e Assistência do Estado do Rio de Janeiro e o Serviço Nacional da Lepra, em 1954. A partir dele, foi estabelecido um plano de trabalho para identificar as demandas sanitárias e profiláticas das regiões atendidas na então capital federal. Ver Maciel (2007) . realizada no Rio de Janeiro, para ser estendida ao restante do país, em 1959. Segundo a definição de Laurinda Rosa Maciel (2007MACIEL, Laurinda Rosa. Em proveito dos sãos, perde o lázaro a liberdade: uma história das políticas públicas de combate à lepra no Brasil (1941-1962). Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. , p.257), as campanhas seguiam

uma estratégia de concepção militar, ... se estrutura temporariamente, como é próprio das organizações autônomas, mas que têm atividades específicas e muito bem definidas. No cotidiano das práticas, ela se torna um serviço especializado e de natureza centralizadora, com suas ações direcionadas no sentido da eliminação ou erradicação de uma doença específica que se tenha constituído como um problema social ou econômico, em uma determinada sociedade.

Nesse contexto, os cartazes educativos tiveram a função de orientar a população para que pudesse identificar sintomas e fatores de risco e, se fosse preciso, buscar os serviços de saúde. Esse conjunto de ações permite entrever o interesse do governo em disseminar esses discursos com relação à profilaxia para o enfrentamento da endemia, mas também seu próprio papel. Ao mesmo tempo, esses dispositivos ajudavam a consolidar outras representações sociais do estar doente. Peças importantes para compreender essas narrativas (textuais e visuais), as imagens, particularmente os cartazes, requerem cuidados especiais em sua análise. Afinal, elas não são uma representação exata da realidade, mas um “veículo” que ressalta algum aspecto dela, representando-a para que seja (res)significada. É um registro que só tem significado em relação ao contexto de sua produção.

O que uma imagem pode dizer?

Martine Joly (2005)JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem . São Paulo: Papirus, 2005. se propôs a definir e discutir o papel das imagens como ferramenta de divulgação de um discurso que, por sua vez, encontra uma série de contradiscursos, estabelecendo, com frequência, uma relação de poder. A autora lançou mão de subsídios da semiótica e da análise do discurso para teorizar a respeito, posto que permitem “não só reconciliar os múltiplos empregos do termo ‘imagem’, como também abordar a complexidade de sua natureza, entre imitação, traço e convenção” (p.11). Há, portanto, uma “complementaridade”, e não uma oposição entre imagem e linguagem. As imagens são, portanto, carregadas de “significação” (ou seja, de um sentido construído, de uma interpretação), e, por isso, estão a serviço de um projeto de poder, que é estruturado por meio da relação entre significante, referente e significado, ou seja, aquilo que é percebido, aquilo que é representado e o significado pretendido (p.35). Esse sentido também pode ser percebido em sua “materialidade” (como tamanho e tipo de papel, por exemplo) e “plasticidade” (como o uso de cores e proporções, tamanho de fonte e efeitos – itálico, negrito, maiúsculas, minúsculas, entre outros recursos gráficos), mas também em sua circulação e no público destinatário.

Assim como consideramos o papel da fotografia [e das imagens] como fonte histórica e seu valor documental, em especial na área da saúde pública, há que se considerar aqui, para estruturar nossa análise, o papel da comunicação. A comunicação da informação, como já foi salientado por vários autores, é algo vital para a gestão da saúde; e a capacidade de entendimento da mensagem por diferentes públicos é essencial para se alcançar os resultados desejados (Silva, Pôrto, 2010, p.149).

Esse processo acontece por meio da enunciação (contexto) e enunciado (interpretação do sujeito), possibilitando identificar sua finalidade. Tão importante quanto o contexto de produção é seu “lugar social de origem”; no caso, as instituições de saúde pública (Espírito Santo, Araújo, Amarante, 2016, p.458). Por isso, as imagens não podem ser vistas como meras ilustrações, porque “são revestidas de sentido”, e contêm as marcas sociais (políticas e institucionais) de quem as produziu (seu “emissor”), de modo a legitimá-lo entre os demais, até pela maneira que pretende ser visto e como escolhe e vê o destinatário ( Orlandi, 2008ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 2008. , p.460). O mesmo acontece com os elementos gráficos, uma vez que ajudam a organizar os “aspectos formais, incluindo imagem, texto, diagramação, escolha do meio de comunicação, formato do material e das formas de circulação, partes dos dispositivos de enunciação” (Espírito Santo, Araújo, Amarante, 2016, p.460).

Os documentos iconográficos selecionados para este artigo pertencem à coleção “Cartazes de Campanhas de Saúde” e integram o acervo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas (Musper), importante lugar de memória para a história da saúde pública paulista e de sua salvaguarda. Criado em 1965 (então chamado Museu Histórico Emílio Ribas), tinha como finalidade preservar a memória do médico homenageado. Em 1979, houve uma ressignificação de seu acervo, de modo a abranger a memória das instituições paulistas ligadas à saúde pública e de seus usuários, por meio de seu acervo documental e expositivo (Fernandes, De Senne, Machado, 2012). Pode-se considerar, ainda, a própria materialidade da edificação como um aspecto significativo de sua importância como lugar de memória, presente no espaço público.

A coleção “Cartazes de Campanha de Saúde” é composta por 6.370 itens, dos quais foram consultados cerca de quarenta cartazes relacionados à hanseníase, abrangendo diferentes momentos das campanhas de educação sanitária para seu enfrentamento. Apesar da diversidade e relevância dessas fontes, o estudo restringiu-se a um conjunto de quatro cartazes, para atender às diretrizes editoriais deste periódico, particularmente sobre o limite estabelecido para o número de imagens nos artigos. Os itens do conjunto analisado foram produzidos por diferentes instituições ligadas à área da saúde pública, com o objetivo de auxiliar na educação sanitária sobre o mal de Hansen, em diferentes momentos. Foram considerados para a análise das fontes os elementos visuais e gráficos (suas medidas, uso de cores, traços e letras em destaque), bem como sua proveniência (instituições, parceiros e patrocinadores das campanhas), ou seja, os emissores desses discursos.

O critério de seleção adotado foi a identificação 5 5 No caso específico dos governos federais, as marcas visuais e respectivos slogans encontrados nos cartazes auxiliaram na identificação temporal, como, por exemplo, “Governo do Brasil – tudo pelo social”, identificado como relativo ao mandato de José Sarney (1985-1990), ou “Governo Federal – trabalhando em todo o Brasil”, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), ou, ainda, “Brasil: um país de todos – Governo Federal” correspondente aos dois mandatos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011). de alterações de elementos discursivos gráficos e textuais, em períodos distintos (décadas de 1950, 1960, 1990 e o ano de 1984), evidenciando mudanças quanto às representações sociais da hanseníase e dos hansenianos, ao longo dos anos. Abre-se uma exceção para o cartaz da Figura 4 – trata-se de um registro comemorativo –, cuja especificidade será retomada posteriormente. Observa-se que, apesar da quantidade de documentos iconográficos ligados à hanseníase na coleção estudada, é digna de nota a dificuldade de localizar cartazes produzidos e divulgados na década de 1970, tendo em vista a ausência de indícios que permitam identificar com clareza sua datação. Essa ausência pode ser vista, entre outras hipóteses, como uma estratégia de silenciamento da doença, por se tratar do período mais severo da ditadura militar e da censura. Embora, ainda hoje, haja campanhas educativas para o enfrentamento da hanseníase, o silenciamento sobre os dados epidemiológicos no país permanece e é preocupante. 6 6 A Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da resolução da 44ª Assembleia Mundial, realizada em 1991, definiu que, para considerar a eliminação da hanseníase, é necessário um registro de menos de um caso em cada dez mil habitantes. Dos 219 mil novos casos registrados no mundo, em 2012, o Brasil é responsável por 16%, atrás somente da Índia (58%), segundo dados da OMS.

Figura 4
: Cartaz de exposição do Arquivo de Hanseníase do Estado de São Paulo (60 anos..., s.d.)

Elaborados para ser expostos em locais acessíveis à população atendida nos postos de saúde, o tamanho dos cartazes corresponde, aproximadamente ao formato A2 (420mm x 594mm) – exceto o do cartaz da Figura 4 –, geralmente empregado para esse tipo de impresso, por permitir uma rápida visualização de seu conteúdo. Além disso, foram utilizados diversos recursos visuais e gráficos (ilustrações e fotografias) para reforçar o significado e o sentido pretendidos: a importância de identificar sintomas e a busca por tratamento junto a um órgão público. Embora não tenham datação precisa – para que pudessem ser expostos em diferentes situações –, é possível estimá-la, uma vez que os cartazes indicam as instituições responsáveis e parcerias nas esferas municipal, estadual ou federal. Alguns exemplos são: o já mencionado Departamento de Profilaxia da Lepra, o SNL, Serviço Nacional de Educação Sanitária ou, ainda, o Ministério da Saúde, a Secretaria da Saúde, ou, mais recentemente, o Sistema Único de Saúde (SUS). Assim como a designação da doença possui historicidade, a alteração (ou inclusão) de instituições também, uma vez que sinalizam mudanças de governos, de políticas públicas e parcerias, de gestão no atendimento, entre outras possibilidades.

Os cartazes produzidos pelo SNL e pelo DPL, ao longo dos anos 1950, permitem identificar algumas das pautas ligadas ao tema naquela conjuntura, tais como a discriminação de filhos de pacientes e a identificação de sintomas para detecção de novos casos. Nota-se que havia, naquele contexto, a necessidade de “reiterar” a importância da estrutura hospitalar como aliada no enfrentamento à endemia. Com isso, o sentido se desloca: da “batalha contra o inimigo” para aquele de uma luta de toda a sociedade, a ser travada no campo da saúde pública ( Porto, 2018PORTO, Carla L. Memórias da exclusão: narrativas de ex-portadores do Mal de Hansen na cidade de Bauru (1945-1969). Jundiaí: Paco Editorial, 2018. , p.74).

Os elementos gráficos contidos no cartaz da Figura 1 (colorido, ilustrado, 622mm x 454mm), produzido pelo Serviço Nacional de Educação Sanitária, na década de 1950, ajudam a orientar a leitura das informações, como na frase “A lepra não é hereditária” em letras maiúsculas, com destaque em vermelho, no canto superior esquerdo, sinalizando a informação mais importante e, por isso, a que deve ser vista/lida primeiro. Logo abaixo, a ilustração das três garotas brincando na praia, ou seja, um local público, indica que não é necessário preocupar-se com a presença delas, uma vez que a frase “Os filhos dos doentes de lepra são crianças perfeitamente sadias” reforça esse discurso ( Porto, 2018PORTO, Carla L. Memórias da exclusão: narrativas de ex-portadores do Mal de Hansen na cidade de Bauru (1945-1969). Jundiaí: Paco Editorial, 2018. , p.75-76). Essa mudança de elementos discursivos sinaliza um aspecto importante com relação à representação social dessas crianças, embora não seja mencionado o afastamento forçado de seus familiares pelo Estado. Uma evidência da influência da eugenia sobre uma mentalidade sanitarista de controle social, naquele período, pode ser observada no trecho a seguir:

Figura 1
: Cartaz “A lepra não é hereditária”, de campanha do Serviço Nacional de Educação Sanitária (A lepra..., s.d.).

O fim do período de auge da eugenia no Brasil coincidiria, em São Paulo, com o término da gestão Salles Gomes no DPL, considerada como a mais autoritária e cruel para com os pacientes (Lemos, 1945). A melhoria das condições dos pacientes nos asilos decorrente do desligamento do diretor do DPL reforçou a tese de que os ideais higienistas e eugenistas permearam a política sanitária paulista até meados da década de 1940 (Gorgulho, Barata, 2013, p.194-195).

O autoritarismo seria mantido durante a ditatura militar, de modo que, como analisa Priscila Pais (2017PAIS, Priscila Vitalino. Considerações históricas sobre os intentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977. In: Mota, André; Marinho, Maria Gabriela S.M.C.; Nemi, Ana (org.). Medicina e contextos de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: CD. G Casa de Soluções e Editora, 2017. p.141-186. (Coleção Medicina, Saúde & História, 9). , p.147-148), “a função social do setor esteve intimamente relacionada aos projetos de desenvolvimento do país e à superação da pobreza, servindo de suporte à economia”. Nessa conjuntura, constituiu-se uma estrutura “altamente burocrática, autoritária e repressiva”, na qual a saúde pública deveria executar seu papel no projeto desenvolvimentista de Estado. Ao apresentar dados “positivos” (que, na verdade, eram ruins porque mal interpretados ou descontextualizados, quando não eram omitidos ou censurados), o governo militar consolidava seu discurso de melhorias obtidas sob sua gestão (p.162). Havia um esforço em mostrar que a situação da saúde estava sob controle, mesmo com os graves surtos de meningite na primeira metade da década – ostensivamente censurados –, até que a situação fugisse de controle até o início da década seguinte. Com essa estratégia desastrosa, ficou evidente que

a epidemia deixou expostos os problemas estruturais do sistema de atendimento em saúde de São Paulo, insuficiências já existentes tempos antes de a meningite se espraiar pela cidade, devido à forma pela qual os serviços de atendimento médico foram historicamente sistematizados: desorganização, falta de hierarquia, de acessibilidade, de regionalização e comunicação entre as agências etc. ao mesmo tempo, a moléstia aprofundava esses problemas ao demandar mais esforços de uma estrutura já exaurida e desorganizada, tal como qualquer outra doença que se deflagrasse com essa potência teria feito ( Pais, 2017PAIS, Priscila Vitalino. Considerações históricas sobre os intentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977. In: Mota, André; Marinho, Maria Gabriela S.M.C.; Nemi, Ana (org.). Medicina e contextos de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: CD. G Casa de Soluções e Editora, 2017. p.141-186. (Coleção Medicina, Saúde & História, 9). , p.167).

O mesmo procedimento pode ser visto com relação ao atendimento de pacientes de hanseníase: o ocultamento das sequelas emocionais, sociais e físicas sofridas por aqueles que viveram nos leprosários ou preventórios, além da falta de políticas públicas para a reinserção social dessas pessoas.

Numa tentativa de enfrentar tantos problemas silenciados, surgiram os primeiros Movimentos Populares de Saúde, formados por usuários que reivindicavam atendimento digno juntamente com os Movimentos Sanitários, numa tentativa de implantar ações preventivas em saúde, surgidos no final dos anos 1960 ( Pais, 2017PAIS, Priscila Vitalino. Considerações históricas sobre os intentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977. In: Mota, André; Marinho, Maria Gabriela S.M.C.; Nemi, Ana (org.). Medicina e contextos de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: CD. G Casa de Soluções e Editora, 2017. p.141-186. (Coleção Medicina, Saúde & História, 9). , p.164-169).

O cartaz da Figura 2 (colorido, ilustrado, 455mm x 619mm), produzido pela Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e pelo Departamento de Dermatologia Sanitária, na década de 1960, evidencia a influência do modelo paulista sobre outros estados da Federação, até em seu discurso. Também reforça a “ameaça” de transmissão aos familiares, caso não seja procurado o tratamento com presteza. É o único cartaz que faz menção direta à sulfona, primeiro medicamento usado no tratamento. As ilustrações reiteram a importância de identificar os sintomas para buscar tratamento (simples, com medicamento) e onde o conseguir. Ou seja, o discurso da ameaça persiste, ainda que menos incisivo. Vale salientar que, em outros cartazes contemporâneos a este pertencentes à coleção, o termo “hanseníase” aparece, sinalizando mudanças significativas em meados dos anos 1960, quando da extinção do DPL pelo então secretário da Saúde doutor Walter Leser, também responsável pelas bases da Reforma da Secretaria de Saúde. Ocorrida entre 1967 e 1971 (Bonfim, Bastos, 2009, p.309), essa reestruturação visava atender aos seguintes objetivos prioritários do governo paulista naquele momento:

Figura 2
: Cartaz de campanha contra a lepra do Serviço Nacional de Educação Sanitária (Campanha..., s.d.)

Colocar a máquina administrativa estadual à altura do desenvolvimento econômico, social e cultural já atingido pela comunidade paulista, porque, em verdade, vinha se acentuando cada vez mais o desnível entre as áreas pública e privada no campo da administração (Bonfim, Bastos, 2009, p.309).

Para isso, foram criadas quatro áreas de ação conjunta: área deliberativa (composta por secretário de Estado, Conselho Estadual de Saúde e Conselho Técnico-administrativo); área executiva (formada pelas quatro coordenadorias de saúde da comunidade, assistência médico-hospitalar; saúde mental e serviços técnicos especializados); área assistencial assessora (das atividades de informação e análise, planejamento, normas técnicas e de assessoria); área assistencial auxiliar (administração geral para execução das atividades). Essa reestruturação visava à integração de serviços em nível local, via Centro de Saúde, e a centralização normativa para atendimento à população, de modo a obter “melhor técnica de saúde pública, maior rendimento e custo mais baixo” (Bonfim, Bastos, 2009, p.310). No entanto, havia outras ações em vista, como a atuação de visitadoras e auxiliares de saneamento, de modo a executar medidas preventivas, uma vez que, “na integração de fatores como o organismo e o ambiente, é que residem as causas determinantes da doença” (p.310). Apesar de essa reestruturação acontecer em plena ditadura, havia uma percepção, por parte do então secretário, da relação direta entre saúde e condições de vida, ou melhor, de sua ausência com a carestia.

Como o salário-mínimo real traduz a capacidade aquisitiva da população, com maior expressão nas classes de renda mais baixa, é inevitável que com sua redução sejam prejudicadas, quantitativa e, principalmente, qualitativamente, as condições de alimentação. Por outro lado, é fato comprovado que a desnutrição, além de poder constituir causa direta de morte, representa fator predisponente e agravante de doenças infecciosas, aumentando substancialmente os coeficientes de morbidade e de fatalidade das mesmas (Leser citado em Bonfim, Bastos, 2009, p.329).

Na década de 1970, a estrutura hospitalar criada e mantida para receber e atender os pacientes e seus filhos – os asilos-colônia (posteriormente sanatórios e hospitais), o educandário e preventório, bem como os dispensários – passaria a ser subordinada à Coordenadoria de Assistência Hospitalar (CAH). Essas alterações estruturais e profiláticas tinham o intuito de acompanhar as recomendações internacionais, tendo em vista a possibilidade de um tratamento, substituindo (em tese) 7 7 Oficialmente, o isolamento compulsório foi extinto em 1962, pelo decreto n.968/1962, mas de acordo com entrevistas realizadas com antigos pacientes, essa prática se estendeu extraoficialmente até meados da década de 1980. Ver Porto (2018) . o isolamento compulsório pelos atendimentos feitos nos dispensários de dermatologia, ligados ao Departamento de Dermatologia Sanitária e à Secretaria de Saúde.

Nos anos seguintes à reestruturação da Secretaria de Saúde, alguns cartazes passaram a mostrar pessoas com lesões e deformidades, numa tentativa de chamar a atenção da população para a gravidade dos danos causados pela doença, caso negligenciada. Os doentes com sequelas mais severas eram vistos como párias sociais e, por isso, foram discriminados e perseguidos, reforçando seu estigma social. Posteriormente, essas imagens, tidas como “apelativas”, foram substituídas por outras mais “discretas”, mostrando sinais e marcas mais sutis, o que também contribuiria para modificar o modo como os doentes seriam vistos socialmente. Passariam a ser representados como portadores de uma enfermidade tratável e curável, apesar da dificuldade em a manter sob controle ainda hoje ( Porto, 2018PORTO, Carla L. Memórias da exclusão: narrativas de ex-portadores do Mal de Hansen na cidade de Bauru (1945-1969). Jundiaí: Paco Editorial, 2018. , p.79). Mesmo que, do ponto de vista epidemiológico, pouco houvesse mudado com relação ao crescente número de casos e aos poucos recursos destinados ao enfrentamento de maneira mais incisiva à epidemia.

No cartaz da Figura 3 (colorido, com fotografia, 448mm x 596mm), produzido na década de 1990, outros elementos gráficos podem ser observados, como o logotipo em amarelo para destacar a frase “Hanseníase tem cura”, além da participação e/ou apoio de outras instituições como o Movimento de Reintegração de Pessoas Acometidas pela Hanseníase (Morhan), a Secretaria de Estado da Saúde (SES), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), e entidades internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana de Saúde (Opas). O apoio institucional para amplificar esse discurso reitera a gravidade da endemia e a dificuldade, no país, de a controlar, uma vez que a hanseníase faz parte do conjunto das chamadas doenças negligenciadas. Segundo a definição da OMS, são aquelas causadas por agentes infeciosos ou parasitas, consideradas endêmicas em populações de baixa renda. Elas também “apresentam indicadores inaceitáveis e investimentos reduzidos em pesquisas, produção de medicamentos e em controle” ( Valverde, 2013VALVERDE, Ricardo. Doenças negligenciadas. Agência Fiocruz de notícias . Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/doen%C3%A7as-negligenciadas#:~:text=As%20doen%C3%A7as%20negligenciadas%20s%C3%A3o%20aquelas,medicamentos%20e%20em%20seu%20controle. Acesso em: 15 ago. 2019.
https://agencia.fiocruz.br/doen%C3%A7as-...
).

Figura 3
: Cartaz “Você diria que eu já tive hanseníase?”, da Coleção de Cartazes de Campanha de Saúde sobre hanseníase do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas (Você..., s.d.)

Aqui, observa-se uma abordagem diferente, ao fazer da doença algo (quase) “imperceptível”, de fácil solução. Essa premissa está presente na pergunta “Você diria que eu já tive hanseníase?”, acompanhada da fotografia de uma senhora sorridente. Entretanto, o aspecto mais importante está na ausência de sintomas, cicatrizes e sequelas. Nas outras peças dessa campanha, 8 8 No total, foram produzidos cinco cartazes especificamente para essa campanha, nos quais aparecem, além da senhora, um garoto, um rapaz, uma moça e uma menina. Com essa configuração, nota-se a ideia de que a hanseníase pode atingir qualquer indivíduo, independentemente de idade, raça ou gênero. e, posteriormente, em outras ligadas à doença, um novo elemento aparece: a parceria e/ou patrocínio da indústria farmacêutica, representada pela inclusão do logotipo de um laboratório. Essas evidências permitem observar quem são os enunciadores dos discursos sobre a doença, mas também quem ajuda a legitimá-los, considerando seus diversos interesses e, consequentemente, diferentes graus de negociação simbólica.

Os debates em torno das trocas de nomenclatura, procedimentos e abordagens, as discussões em torno do papel dos profissionais da saúde pública propiciaram o surgimento de um grupo de intelectuais que se propuseram a pensar em uma saúde coletiva como um direito que deve ser acessível a todos. De acordo com Marcelo J. Souza e Silva, Lilia B. Schraiber e André Mota (2019), o movimento coletivo da saúde coletiva tinha como objetivo “entrelaçar o campo científico com a política pela democratização do Estado durante a ditadura militar”. Como desdobramento, foram propostas a integração entre as reformas sanitárias e da medicina, de modo a alcançar o princípio de integralidade em saúde. Uma mentalidade elaborada e sedimentada a partir do “empréstimo” de ferramentas das ciências sociais e da chamada área das humanidades.

A Saúde Coletiva pode ser definida como um campo de produção de conhecimentos voltados para a compreensão da saúde e explicação de seus determinantes sociais, bem como âmbito de práticas direcionadas prioritariamente para a sua promoção, além de direcionadas à prevenção e cuidado a agravos e doenças, tomando por objeto não apenas os indivíduos, mas, sobretudo, os grupos sociais, portanto, a coletividade (Vieira-da-Silva, Paim, Schraiber, 2014, p.3).

As reflexões desse grupo de intelectuais e profissionais voltam-se para a “centralidade do Estado na constituição dos objetos de estudo”, de maneira multidisciplinar, para pensar a doença para além de seus fatores biológicos, mas também em seus aspectos sócio-históricos. Há, também, um questionamento sobre seu papel junto à sociedade civil e sua “repercussão no processo saúde/doença das populações” (Pereira Neto, 2001, p.9). Surge, então, um novo regime de historicidade, cujo discurso contém um metadiscurso, de modo que o preconceito seria uma enfermidade social. Nesse sentido, a hanseníase deixava de ser encarada como maldição ou castigo, do qual o doente seria o responsável, para ser vista como resultado da dificuldade de acesso a medidas preventivas, fruto da desigualdade social sofrida pelos indivíduos mais pobres. Entretanto, o projeto coletivo para “acabar com a hanseníase” continua sem alcançar seus objetivos, tendo em vista sua (permanente) invisibilidade social, apesar dos preocupantes dados estatísticos atuais. Um sinal de que, mesmo com a mudança de nome, o preconceito permanece a ponto de serem necessárias outras campanhas educativas, com abordagens as mais diversas.

De um discurso a outro: um cartaz como lugar de memória

Diferentemente dos outros, o cartaz da Figura 4 (colorido, ilustrado, 287mm x 636mm) divulga a exposição comemorativa dos “60 anos do Arquivo de Hanseníase do Estado de São Paulo” e dos “100 anos de Saúde Pública”, ocorrida no então Instituto de Saúde, no segundo semestre de 1984. Além de seu aspecto rememorativo (60 anos de arquivos de Hanseníase do Estado de São Paulo e 100 anos de saúde pública, em destaque), observa-se a necessidade de manter sua importância política, histórica e simbólica perante a sociedade. Logo, os locais de memória buscam se tornar um instrumento de rememoração, mas que também intencionam renovar, ressignificar e reiterar seu poder simbólico, estabelecendo um debate sobre sua atuação e relevância entre os pares.

Essa coleção integra um acervo que faz parte de outro projeto, qual seja, a preservação da história e da memória da saúde pública paulista, cujos discursos ajudam a constituir uma narrativa própria. Ao mesmo tempo que os cartazes enunciam sentidos para as campanhas educativas, também o fazem com relação à memória e à história da saúde pública, quando passaram a fazer parte do acervo do Musper. O museu é, por definição, um lugar de memória e, como tal, também elabora uma narrativa, em torno da qual são tecidas várias disputas de narrativa histórica ( Nora, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História , n.10, p.7-28, 1993. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/12101. Acesso em: 2 dez. 2021.
https://revistas.pucsp.br/revph/article/...
), sedimentada num discurso oficial e/ou institucional. São espaços carregados de uma “vontade” de memória, ou seja, uma construção, uma representação de processos sociais, conflitos e seus diversos interesses e que agem sempre em conjunto. Estão diretamente ligados à formação de uma identidade e à ideia de pertencimento, e só existem enquanto sua importância for reconhecida e que, por isso, lutam por visibilidade, por meio de diferentes discursos e negociações simbólicas. Nesse sentido, o cartaz da Figura 4 pode ser visto com parte da memória da mobilização (e das disputas de narrativa e visibilidade) dos profissionais de saúde pública, considerando o contexto da hanseníase e da saúde pública em São Paulo.

Naquela conjuntura, os debates em torno de uma reformulação dos serviços de saúde se acentuaram e tinham como questão central as ações preventivas. Novos profissionais, técnicos e especialistas obtiveram formação numa perspectiva progressista, que vê a saúde como resultado de uma “série de políticas e ações oriundas da diversos setores da administração estatal, todas objetivando criar condições de vida salubre para a população” ( Pais, 2017PAIS, Priscila Vitalino. Considerações históricas sobre os intentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977. In: Mota, André; Marinho, Maria Gabriela S.M.C.; Nemi, Ana (org.). Medicina e contextos de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: CD. G Casa de Soluções e Editora, 2017. p.141-186. (Coleção Medicina, Saúde & História, 9). , p.178). Essa concepção foi consolidada gradativamente, mudando a percepção da função social da saúde, quando foi reforçada a importância de ações normativas de saneamento, moradia, educação, nutrição para obtenção e manutenção da saúde das populações. Dessas articulações, feitas por grupos de trabalho e estudo entre outras atividades, é que surgiria o projeto do que, atualmente, é o SUS, de modo a atender ao lema “Democracia é Saúde”, surgido na Conferência Nacional de Saúde de 1986, não por acaso, a primeira em que houve participação da sociedade civil para debater as necessidades dos usuários da saúde pública. De lá para cá, a saúde deixou de ser considerada um aparato economicista e legitimador do Estado para ser um direito de todo cidadão brasileiro, cuja forma de atendimento deve ser “priorizada pela função que desenvolve junto à vida cotidiana da população” ( Pais, 2017PAIS, Priscila Vitalino. Considerações históricas sobre os intentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977. In: Mota, André; Marinho, Maria Gabriela S.M.C.; Nemi, Ana (org.). Medicina e contextos de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: CD. G Casa de Soluções e Editora, 2017. p.141-186. (Coleção Medicina, Saúde & História, 9). , p.153).

Gustavo Tarelow (2018TARELOW, Gustavo Q. Biografias e saúde coletiva: dimensões históricas, tensões metodológicas. In: Mota, André; Marques, Maria Cristina da C. (org.). História, saúde coletiva e medicina. São Paulo: Hucitec, 2018. p.151-177. , p.157) ressalta que esse novo regime de historicidade também teve como base estudos históricos sobre a medicina e a saúde pública que propiciaram uma mudança nas discussões sobre a prática médica.

Nesse sentido, a História Social, ao propor um diálogo crítico com as abordagens memorialísticas, bem como com as teses advindas do estruturalismo e das análises de longa duração, pôde desenvolver abordagens que contribuíram para uma nova epistemologia das doenças e das práticas médicas ( Tarelow, 2018TARELOW, Gustavo Q. Biografias e saúde coletiva: dimensões históricas, tensões metodológicas. In: Mota, André; Marques, Maria Cristina da C. (org.). História, saúde coletiva e medicina. São Paulo: Hucitec, 2018. p.151-177. , p.157).

Desse modo, a partir dessa perspectiva da história social, os pesquisadores se voltaram para a investigação e reflexão sobre os indivíduos (incluídos os institucionalizados), suas particularidades, sua relação com o outro, com o tempo, com o corpo (sadio, adoecido ou invisibilizado socialmente), mas também com a coletividade e as instituições, as ligadas à saúde pública entre elas. A história de “grandes homens da medicina” ajudou a forjar um discurso de legitimação das ações adotadas na época em que essas pessoas viveram e atuaram profissionalmente. Entretanto, quando a narrativa se concentra em “grandes personagens”, perdem-se aspectos fundamentais de sua historicidade e complexidade (Hochman, Armus, 2004), além de invisibilizar outros indivíduos, principalmente os marginalizados. Não se trata de deslegitimar ou diminuir a importância desses profissionais na consolidação do campo da saúde pública no Brasil, mas de os observar a partir de outra perspectiva, mais inclusiva e, por isso, mais rica e capaz de instigar novas reflexões sobre esse campo do conhecimento. Cabe, portanto, aos historiadores identificar novos agentes históricos, mas também ruídos ou vozes dissonantes no interior dessa narrativa memorialística e histórica. Discursos diversos, plurais, repletos de significados a ser percebidos e integrados aos combates pela memória e pela história, incluindo a da (agora) saúde coletiva.

Considerações finais

As reflexões propostas neste artigo não pretendem ser definitivas, tampouco definidoras sobre o tema e as fontes aqui analisadas. É um exercício historiográfico em construção e que visa, principalmente, ampliar as discussões acerca da história da saúde e das doenças no Brasil. No que diz respeito à análise dessas fontes, é um estudo inicial que busca dialogar com outras pesquisas, para ampliar os conhecimentos acerca da temática e do campo da saúde pública, da saúde coletiva e da história social. Além de construir novos percursos historiográficos, busca, principalmente, aumentar a visibilidade dos estudos sobre os pacientes de hanseníase, doença que causa danos tão profundos na pele e na vida das pessoas por ela acometidas e que parece ainda ser invisível aos olhos do país.

AGRADECIMENTO

A pesquisa, realizada entre 2013 e 2017, foi desenvolvida com apoio e incentivo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo n.2013/16.028 – 1).

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  • ROTBERG, Abraão. Abraão Rotberg. [Entrevista de história oral concedida ao projeto Memória e história da hanseníase no Brasil através de seus depoentes (1960-2000)]. Entrevistadores: Laurinda Rosa Maciel e Maria Leide W. de Oliveira, Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 3 maio 2002. 4 fitas cassete e 4 CDs (3h56min).
  • SILVA, Maria de Lourdes V. da; PÔRTO, Ângela de A. Imagens da poliomielite nos cartazes da campanha de erradicação: reflexões sobre o discurso gráfico. In: Nascimento, Dilene R. do (org.). A história da poliomielite . Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p.147-158.
  • SOUZA E SILVA, Marcelo J.; SCHRAIBER, Lilia B.; MOTA, André. O conceito de saúde na saúde coletiva: contribuições a partir da crítica social e histórica da produção científica. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v.29, n.1, e290102, 2019.
  • STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. (Coleção História e Saúde).
  • TARELOW, Gustavo Q. Biografias e saúde coletiva: dimensões históricas, tensões metodológicas. In: Mota, André; Marques, Maria Cristina da C. (org.). História, saúde coletiva e medicina. São Paulo: Hucitec, 2018. p.151-177.
  • VALVERDE, Ricardo. Doenças negligenciadas. Agência Fiocruz de notícias . Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/doen%C3%A7as-negligenciadas#:~:text=As%20doen%C3%A7as%20negligenciadas%20s%C3%A3o%20aquelas,medicamentos%20e%20em%20seu%20controle Acesso em: 15 ago. 2019.
    » https://agencia.fiocruz.br/doen%C3%A7as-negligenciadas#:~:text=As%20doen%C3%A7as%20negligenciadas%20s%C3%A3o%20aquelas,medicamentos%20e%20em%20seu%20controle
  • VIEIRA-DA-SILVA, Lígia M.; PAIM, Jairnilson S.; SCHRAIBER, Lilia B. O que é saúde coletiva? In: Paim, Jairnilson Silva; Almeida-Filho, Naomar de (org.). Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014. p.3-12.
  • VOCÊ diria que eu já tive hanseníase? Imp. gráfico, cor. Coleção de Cartazes de Campanha de Saúde: hanseníase. (Instituto Butantan/Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, São Paulo). s.d.

NOTAS

  • 1
    Caso da lei n.9.010, de 29 de março de 1995, que determina que a terminologia adotada para lepra e “termos derivados”, como leproso, leprosário, entre outros, sejam substituídos por hanseníase e seus derivados como hansenologia no lugar de leprologia hospital de dermatologia no lugar de leprosário etc. Apesar disso, o governo federal só adotaria definitivamente a expressão hanseníase em seus documentos oficiais a partir da lei n.9.010, de 29 de março de 1995. Neste artigo, será adotado lepra ou hanseníase conforme o contexto a ser mencionado, para evitar anacronismos.
  • 2
    No artigo “Modernidade e trabalho no filme de divulgação asilo-colônia Aimorés – 1944” ( Porto, 2014PORTO, Carla L. Modernidade e trabalho no filme de divulgação asilo-colônia Aimorés, 1944. In: Encontro do Cedap: Culturas indígenas e identidades, 7., 2014, Assis. Anais..., Assis: Universidade Estadual Paulista, 2014. Disponível em: http://www2.assis.unesp.br/fcl/livro/anais_vii-encontro_cedap/files/assets/basic-html/page50.html. Acesso em: 30 nov. 2021.
    http://www2.assis.unesp.br/fcl/livro/ana...
    ) foram analisados aspectos discursivos presentes em filmes educativos produzidos para divulgar as ações de combate à lepra, caso do filme sobre o asilo-colônia Aimorés, localizado na cidade paulista de Bauru. Também foram apresentadas as especificidades desses registros visuais, cuja diversidade de suportes e de linguagens evidencia não somente a importância dada a essas ações, mas também como o Estado foi representado junto à opinião pública naquele momento.
  • 3
    Nesse sentido, Ivan Ducatti (2007)DUCATTI, Ivan. Discurso científico e legitimação política: hanseníase e isolamento compulsório: Brasil, século XX. Projeto História, n.34, p.303-315, 2007. analisa os usos ideológicos da ciência e da medicina para legitimar a exclusão social de portadores de lepra causada pelo isolamento compulsório, mesmo que houvesse um tratamento disponível naquele momento.
  • 4
    A CNCL teve sua fase-piloto implantada, primeiramente, no Rio de Janeiro, em 1954, por meio de um convênio assinado entre a Secretaria de Saúde e Assistência do Estado do Rio de Janeiro e o Serviço Nacional da Lepra, em 1954. A partir dele, foi estabelecido um plano de trabalho para identificar as demandas sanitárias e profiláticas das regiões atendidas na então capital federal. Ver Maciel (2007)MACIEL, Laurinda Rosa. Em proveito dos sãos, perde o lázaro a liberdade: uma história das políticas públicas de combate à lepra no Brasil (1941-1962). Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. .
  • 5
    No caso específico dos governos federais, as marcas visuais e respectivos slogans encontrados nos cartazes auxiliaram na identificação temporal, como, por exemplo, “Governo do Brasil – tudo pelo social”, identificado como relativo ao mandato de José Sarney (1985-1990), ou “Governo Federal – trabalhando em todo o Brasil”, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), ou, ainda, “Brasil: um país de todos – Governo Federal” correspondente aos dois mandatos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011).
  • 6
    A Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da resolução da 44ª Assembleia Mundial, realizada em 1991, definiu que, para considerar a eliminação da hanseníase, é necessário um registro de menos de um caso em cada dez mil habitantes. Dos 219 mil novos casos registrados no mundo, em 2012, o Brasil é responsável por 16%, atrás somente da Índia (58%), segundo dados da OMS.
  • 7
    Oficialmente, o isolamento compulsório foi extinto em 1962, pelo decreto n.968/1962, mas de acordo com entrevistas realizadas com antigos pacientes, essa prática se estendeu extraoficialmente até meados da década de 1980. Ver Porto (2018)PORTO, Carla L. Memórias da exclusão: narrativas de ex-portadores do Mal de Hansen na cidade de Bauru (1945-1969). Jundiaí: Paco Editorial, 2018. .
  • 8
    No total, foram produzidos cinco cartazes especificamente para essa campanha, nos quais aparecem, além da senhora, um garoto, um rapaz, uma moça e uma menina. Com essa configuração, nota-se a ideia de que a hanseníase pode atingir qualquer indivíduo, independentemente de idade, raça ou gênero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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