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Resenha: FERDINAND, Malcom. 2022. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.

Resenha: FERDINAND, Malcom. . Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.

O livro Uma ecologia decolonial (2022)FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p. materializa o pensamento de uma ecologia pensada a partir do mundo caribenho.

O autor martinicano Malcom Ferdinand é a continuidade de uma longa tradição de autores que partem da realidade caribenha para pensar questões ligadas à configuração do mundo, as suas desigualdades contemporâneas e continuidades com o regime colonial e da plantation. O escritor cubano Antonio Benítez-Rojo, a jamaicana Sylvia Wynter, o antropólogo Michel-Rolph Trouilliot, nascido no Haiti, e o trinitário-tobagense Eric Williams são notórios representantes da potência caribenha para os campos acadêmico e literário e os estudos do colonialismo, do capitalismo e da plantation.

A estrutura do livro de Ferdinand possui uma escolha literária que inicia e dá a tônica de cada capítulo com um navio e suas histórias marcantes à dominação colonial do mundo e à escravização dos pretos africanos trazidos à força às Américas e submetidos ao trabalho nas plantations. No texto, a imagem colonial do mundo metaforiza os navios negreiros cruzando o Atlântico com pretos africanos escravizados por europeus brancos e por eles relegados ao porão, ao trabalho ou aos tubarões. Em contrapartida a essa política, que Ferdinand denomina de a política do porão, estruturante do colonialismo, ele propõe uma ecologia decolonial à imagem de um navio-mundo com um convés da justiça.

O que o autor chama de a dupla fratura da modernidade é crucial ao argumento do livro. A ideia é um desdobramento da clássica separação moderna entre natureza e cultura, que coloca o Homem (Wynter 1971WYNTER, Sylvia. Novel and history, plot and plantation. Savacou, v. 5, n. 1, p. 95-102, 1971.) em posição ontológica de superioridade em relação à natureza e à paisagem da qual faz parte. Tal fratura central à ontologia moderna resultou em uma histórica separação e em uma falta de comunicação entre os movimentos pós-coloniais e antirracistas e os movimentos ambientalistas. Para Ferdinand, a dupla fratura colonial e ambiental da modernidade é o principal problema da crise ecológica. Um exemplo da dupla fratura é o fato de a palavra antirracismo não ter feito parte do vocabulário dos movimentos ecologistas durante muito tempo. Como pensar a necessidade de lutas ecológicas sem considerar a máquina colonial responsável por esse modelo de mundo? A obviedade dessa relação se ilumina depois da leitura de Uma ecologia decolonialFERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p..

Por não ter sido sempre uma relação assim tão óbvia, a dupla fratura da modernidade criou a metáfora da arca de Noé como política adequada à Terra diante da tempestade ecológica “trancando no fundo do porão da modernidade os gritos de apelo por um mundo” (Ferdinand 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.: 32). O navio-mundo com seu convés da justiça, como proposto pela ecologia decolonial oferecida no livro de Ferdinand, por sua vez, faz um deslocamento epistêmico dos pensamentos do mundo e da Terra, e Malcom Ferdinand faz, a partir do mundo caribenho, uma ecologia decolonial. Uma ecologia que muda o centro de produção desses saberes e se constrói a partir de antirracismo, antiespecismo e feminismo como questões fundantes das suas lutas, seguindo o convite de Aimé Césaire para alcançar o centro da tempestade.

Para Malcom Ferdinand, a tempestade ecológica em curso, a qual Uma ecologia decolonialFERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.persegue o seu centro, revela problemas e danos que são próprios de uma determinada maneira de habitar a Terra: o habitar colonial. As violências constituintes do mundo colonial e da sua forma de habitar - da engenharia global de transformação das paisagens em plantations - impuseram rupturas de relações que teciam outros mundos: outras maneiras de habitar a Terra. Modos ameríndios que conceberam a Terra como mãe nutriz, não como insumo ou meras terras a serem exploradas. Junto ao genocídio ameríndio houve um matricídio praticado pelo habitar colonial, uma mudança referencial da Terra para o que Ferdinand denomina de uma Terra sem manman e humanos sem Mãe Terra. Essa recusa de mundo aos povos ameríndios se complementou com a política do porão, dispositivo fundador do mundo moderno que exclui os pretos da dignidade de uma existência, de um mundo, da Terra. À força retirados de terras africanas, levados às Américas e tendo sua qualidade de outro negada mesmo com o desembarque nas plantations, o escravizado preto, por não poder ser o outro, torna-se, portanto, o fora. Fora do mundo comum do habitar colonial.

Para pensar uma ecologia a partir do Caribe, Ferdinand elucida a narrativa mítica que é própria do arquipélago, não redutível a remanescências da África, da Europa ou das Américas. Um imaginário fundado em meio ao tráfico negreiro transatlântico e à escravidão colonial. “Como começo, o navio negreiro representa os inícios, a cena primordial do mundo crioulo” (Ferdinand 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.: 155). Os navios negreiros foram máquinas que produziram o Negro como categoria sociopolítica de seres escravizados coloniais. Ferdinand denomina política do desembarque as disposições e engenharias sociais e políticas engendradas pelo navio negreiro, produtoras de uma relação de alienação com os corpos, com a Terra e com o Mundo. Corpos perdidos, aculturados, destituídos de seus pertencimentos e práticas culturais por meio dos quais faziam parte de uma relação com a Terra habitada por humanos e não humanos. O Negro é produto do navio negreiro.

Tal alienação do mundo aos pretos não significou, entretanto, que não impusessem resistência criando práticas emancipadoras do mundo colonial. Suas ações tensionaram o projeto colonial em diversos pontos, com sofisticadas formas de sabotagem e também no cotidiano da realidade das plantations. A necessidade de alimentos, por exemplo, inicia a concessão de lotes para cultivo pelos escravizados. Essa experiência de jardins (roças como chamaríamos no Brasil) se tornou “uma primeira forma de apropriação e de construção do território pelos escravizados” (Benoît 2000BENOÎT, Catherine. Corps, jardins, mémoires. Paris: CNRS Éditions & Maisons des Sciences de l’Homme, 2000. citado em Ferdinand 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.:76).

Modelos de construção do território criados pelos pretos escravizados fizeram raízes se aterrando nas Américas. “Diante de um habitar colonial devorador de mundo, os quilombolas colocaram em prática outra maneira de viver junto e de se relacionar com a Terra” (Ferdinand 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.:168).

O livro explicita o aquilombamento1 1 No livro os termos “marron” e seus derivados foram traduzidos por “quilombola” e seus derivados na língua portuguesa. “Aquilombamento” na versão brasileira corresponde à “marronage” caribenha. No entanto, o autor enfatiza que, independente de onde tenham ocorridos tais processos, eles são a corporificação do princípio de oposição à escravidão em uma perspectiva coletiva e transnacional. como uma das formas mais potentes de resistência ao habitar colonial e à servidão. Nessa maneira de estabelecer mundos para além da dominação das plantations há uma nova forma de liberdade habitando essas terras das Américas em contraposição ao habitar colonial. Essa nova forma de habitar relaciona antiescravismo e construção da paisagem. A vida fora do mundo colonial seria uma ilusão, portanto, a prática de fuga não permite escapar dele, segundo Ferdinand, mas possibilita outras maneiras de habitar a Terra: outro mundo. Quilombolas em suas fugas trilharam caminhos com seus jardins crioulos que, como o autor bem coloca, teceram à mão um cordão umbilical nas terras das Américas seguindo rastros deixados nas florestas pelos ameríndios. Essa matrigênese traduz a metamorfose crioula que cria um corpo novo, um eu a partir de um nós, em uma nova relação com o corpo, com a Terra e com sua participação em uma vida coletiva. A prática ecologista do quilombola é condição de sua emancipação e a Terra sem manman, na matrigênese do aquilombamento, se torna Mãe Terra.

A ecologia decolonial proposta por Malcom Ferdinand por meio da metáfora do navio negreiro é uma saída do porão do mundo moderno. Ela busca se distanciar de um ambientalismo à imagem do que ele denomina de arca de Noé. A arca de Noé, com suas políticas do embarque, representa, para o autor, uma metáfora política sobre os pensamentos clássicos da ecologia e suas teorias de enfrentamento à crise ecológica. Esse tipo de ambientalismo possui o que Ferdinand chama de disposições e engenharias do embarque, as quais atuam pela lógica da sobrevivência à catástrofe legitimando uma seleção violenta do embarque, mantendo, assim, a dupla fratura ambiental e colonial do pensamento moderno. A ecologia decolonial, por sua vez, questiona o habitar colonial da Terra e propõe desconstruir os agenciamentos políticos que mantêm o porão da modernidade. “Dékalé2 2 Segundo o livro (Ferdinand 2022: 210), “dékale” significa “destruição”, é uma palavra crioula para a francesa “décaler”. o Antropoceno abre a possibilidade de outro mundo, de outra construção do viver-junto, de um navio sem porão (Ferdinand 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.: 210).

A imagem trazida pelo livro como proposta de uma ecologia decolonial representa a construção de um navio-mundo a partir de um encontro capaz de superar a dupla fratura ambiental e colonial do pensamento moderno em uma nova postura ecológica em relação a habitar a Terra. Um outro (navio-)mundo sem porão, onde seja possível aos companheiros de bordo habitarem juntos o convés da justiça para enfrentar a tempestade em curso. O livro Uma ecologia decolonialFERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.é um passo nesse sentido.

Referências

  • BENOÎT, Catherine. Corps, jardins, mémoires Paris: CNRS Éditions & Maisons des Sciences de l’Homme, 2000.
  • FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.
  • WYNTER, Sylvia. Novel and history, plot and plantation. Savacou, v. 5, n. 1, p. 95-102, 1971.
  • 1
    No livro os termos “marron” e seus derivados foram traduzidos por “quilombola” e seus derivados na língua portuguesa. “Aquilombamento” na versão brasileira corresponde à “marronage” caribenha. No entanto, o autor enfatiza que, independente de onde tenham ocorridos tais processos, eles são a corporificação do princípio de oposição à escravidão em uma perspectiva coletiva e transnacional.
  • 2
    Segundo o livro (Ferdinand 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.: 210), “dékale” significa “destruição”, é uma palavra crioula para a francesa “décaler”.

Editado por

Editora-chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2022
  • Aceito
    07 Mar 2023
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