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Bioética clínica: cuidando de pessoas

Clinical bioethics: caring for people

PAUSA ENTRE CONSULTAS BETWEEN APPOINTMENTS

Bioética clínica – cuidando de pessoas

Clinical bioethics – caring for people

José Marques Filho

Conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e membro da Comissão de Ética e Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) e Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Silva Jardim, 343, Centro CEP 16010-340, Araçatuba, SP e-mail: filho.jmebol.com.br

"(...) busca-se o médico com quem nos sentimos à vontade quando descrevemos nossas queixas, sem receio de sermos submetidos por isso a numerosos procedimentos; o médico para quem o paciente nunca é uma estatística (...) e, acima de tudo, um semelhante, um ser humano, cuja preocupação pelo paciente é avivada pela alegria de servir."

Bernard Lown

Bernard Lown, discípulo de Samuel Levine e um dos mais destacados cardiologistas do século XX, argumenta, lastreado em sua longa experiência como professor de medicina e médico-assistente, que os médicos desaprenderam a arte de curar.

Nunca a medicina avançou tanto no diagnóstico e no tratamento como nas últimas cinco décadas, e nunca o ser humano enfermo foi tão malcuidado.

Lown, professor emérito de Harvard, em seu livro "A arte perdida de curar"(1) deplorara a exagerada ênfase que as escolas médicas empregam na formação técnica de profissionais que serão "oficiais maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas", desconsiderando a genuína arte de ser médico. Aponta como verdadeira "sabedoria médica" a capacidade de compreender um problema clínico não em um órgão, mas em um ser humano integral. Para ele, a causa dessa situação é a medicina ter perdido o rumo, se não a alma. Partiu-se o pacto implícito existente entre o médico e o paciente, consagrado durante milênios.

Persegue-se a idéia que todo mal que aflige o paciente pode ser identificado pela tecnologia. Avançamos de maneira extraordinária no conhecimento das doenças, mas esquecemo-nos do ser humano enfermo e, equivocadamente, passamos a tratar doenças de pessoas e não pessoas que circunstancialmente estão doentes(2).

Se na época de estudante de Lown (década de 40 do século passado), a cardiologia era a especialidade médica mais eminentemente clínica, e se algumas décadas depois foi a nefrologia, hoje, sem nenhuma dúvida, é a reumatologia.

Na maior parte, nossas enfermidades são diagnosticadas por meio de uma história clínica bem feita e um minucioso exame físico. Além disso, grande parte das enfermidades reumatológicas tem curso crônico, algumas com sérias limitações funcionais, obrigando uma assistência médica competente e com completo envolvimento, na qual a relação médico –paciente deve ser exercida em toda a sua plenitude.

A bioética clínica, cuja prática teve início no começo da década de 70 do século passado na Universidade de Georgetown, em Washington (Estados Unidos), pode ser um dos caminhos para que a medicina resgate seu prestígio, retorne à rota perdida e volte a ter a alma e o carisma clamados por Lown.

Hellegers, obstetra de origem holandesa, fundou o Instituto Kennedy de Ética e passou a discutir aspectos da prática médica que apresentavam dilemas éticos, utilizando-se os referenciais do novo campo de conhecimento, a bioética(3).

Esse neologismo foi criado por Van Rensselaer Potter(4),que inicialmente referiu-se à bioética com um sentido ambiental e evolucionista, aspirando a criação de um meio ambiente ótimo para, dentro dele, o ser humano poder adaptar-se e desenvolver-se.

Com os extraordinários avanços tecnocientíficos das últimas décadas, cada vez mais têm ocorrido dilemas éticos na prática médica e, se antes esses conflitos eram exceções, tornaram-se rapidamente rotina, que devem ser percebidos e enfrentados por todos os profissionais que se dedicam à prática da arte médica.

Esses dilemas e conflitos éticos foram enfrentados por meio da criação de comitês de ética nas instituições, tendo por escopo discutir e deliberar condutas práticas para a orientação de profissionais da área da saúde e de pesquisa. Inicialmente, os comitês eram acionados somente para a discussão e deliberação de questões complexas, mas, progressivamente, passaram a discutir conflitos éticos da prática diária da atenção à saúde e pesquisas, principalmente ensaios clínicos.

Para Diego Gracia(5), um comitê de ética é um órgão de deliberação. Portanto, não se trata de informar a outros suas próprias idéias nem de convencê-los, nem de trocar seus sistemas de crenças e valores. A função de um comitê é distinta, é deliberar a fim de tomar decisões sobre situações que podem ter complexidade variável. O membro de um comitê tem de partir sempre do princípio que ninguém é dono da verdade, que no processo de deliberação podem surgir novos dados e perspectivas que podem levar à mudança de posição. Se assim não ocorrer, a troca de opiniões dentro de um comitê é pura fantasia, uma autêntica representação teatral, na qual não se pode acreditar.

Gracia define deliberação como um processo racional de análise das razões que se colocam a favor e contra em problemas e assuntos que são objetos de opinião e escolha e, portanto, uns vêem de uma maneira e outros de outra. Essa deliberação se realiza lastreada em argumentos, a fim de se tomar uma decisão que se não pode ser nunca completamente certa, deve ser sempre prudente. A prudência caracteriza-se por tomada de decisões racionais em condições de incertezas. Por isso, as decisões prudentes são sempre retificáveis.

Assim, deve ficar bem definido que a função de um comitê de ética é ser uma instância de ajuda na tomada de decisões.

Esse cenário tem sofrido profundas mudanças nos últimos anos. Em virtude da experiência acumulada pelos comitês de ética, do rápido desenvolvimento teórico e prático da bioética clínica, do avanço tecnológico e, finalmente, do respeito cada vez maior à autonomia do paciente na prática médica, o processo de deliberação utilizado pelos comitês de ética passou a fazer, progressivamente, parte da prática diária nas decisões tomadas pelas equipes multidisciplinares.

Diego Gracia faz uma analogia didática entre o método utilizado para discutir casos em bioética e a coleta de uma história clínica, dizendo que a anamnese é uma excelente maneira de analisar e resolver problemas médicos, e que os procedimentos bioéticos nada mais são do que o prolongamento da estrutura da história clínica, servindo para a análise e a resolução dos problemas morais que os pacientes apresentam ou propõem.

A tomada de decisão deve ser um processo compartilhado, por intermédio da ativa participação e do respeito dos atores envolvidos. O médico ou a equipe contribuem com seu treinamento, seu conhecimento e sua habilidade para o diagnóstico da condição do doente e com as alternativas técnicas indicadas e disponíveis. O paciente e/ou seu representante contribuem com a exposição de seus legítimos valores e suas necessidades, por meio dos quais os riscos e benefícios de um determinado tratamento podem ser analisados(6).

Diversos métodos têm sido publicados nas últimas duas décadas para se discutir e tomar decisões na área da bioética clínica. Todos os modelos procuram desenvolver metodologias adequadas para discutir e tentar solucionar conflitos que surgem na prática assistencial. A questão fundamental é encontrar e utilizar métodos que possibilitem um estudo racional, sistemático e objetivo desses problemas, a fim de que a tomada de decisão se constitua em um ato prudente e seguro.

Os métodos mais utilizados para análise de um conflito são os de Thomasma(7), Drane(8), Jonsen(9) e Diego Gracia(10).

Como exemplo, citaremos o método de Thomasma, por se tratar de um dos primeiros publicados e ser relativamente simples para ser aplicado na prática.

David Thomasma(7) preparou um programa de ética clínica na Universidade do Tenessee, no Memphis, e seu método para a adoção de decisões de índole ética era similar aos utilizados para tomar decisões médicas. O método inicial foi sendo modificado nos anos seguintes, mas basicamente é composto por seis etapas:

1. Descrever todos os dados médicos do caso.

2. Descrever os valores (metas, interesses) de todas as partes envolvidas no caso: médicos, pacientes, membros da equipe.

3. Indicar qual o principal conflito de valores.

4. Determinar as possíveis medidas que poderiam proteger o maior número possível de valores no caso.

5. Escolher uma forma de atuar.

6. Defender a decisão tomada.

Para Diego Gracia(10), o objetivo principal de todos os métodos propostos em bioética é articular as dimensões técnicas e éticas do ato médico. Isso significa que, para discutir um problema ético, é necessário primeiro aclarar todas as dúvidas técnicas (juízos clínicos) para depois analisar os conflitos de valores. Gracia também sugere que, após utilizar um dos métodos de decisão, deve-se fazer um exercício como controle da consistência da decisão:

Teste da legalidade –É uma decisão legal?

Teste da mídia – Você estaria preparado para defender publicamente sua decisão?

Teste do tempo – Você tomaria a mesma decisão passadas algumas horas ou alguns dias?

Concluindo, podemos afirmar que a bioética clínica pode ser um dos caminhos para resgatarmos a arte de cuidar de pessoas e reencontrarmos "A arte perdida de curar" em tempos de predomínio da ciência e da tecnologia sobre o humanismo na prática médica diária.

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

  • 1
    Lown B: A arte perdida de curar. São Paulo: JSN, 1997.
  • 2
    Siqueira JE: A arte perdida de cuidar. Bioética 10: 89-106, 2002.
  • 3
    Urban CAU: Introdução à bioética. In: Urban CAU. Bioética clínica. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
  • 4
    Potter VR: Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1971.
  • 5
    Gracia D: Teorias e pratica de los comités de ética. Comités de bioética. Madri: Universidad Pontifícia Comillas, 2003.
  • 6
    Loch JA: Como analisar conflitos em Bioética Clínica. In: Urban CAU. Bioética clínica. Rio de Janeiro: Revinter, 2003.
  • 7
    Thomasma D: Training in medical ethics: an ethical work-up. Forum on Medicine 1: 36-40, 1978.
  • 8
    Drane JF: Ethical workup guides clinical decision making. Health Progress 69: 64-67, 1988.
  • 9
    Jonsen AR, Tolmin SE: The abuse of casuistry. Berkeley: University of Califórnia, 1988.
  • 10
    Gracia D: Procedimientos de dicisión em ética clínica. Madrid: Eudema, 1991.
  • Endereço para correspondência:
    Rua Silva Jardim, 343, Centro
    CEP 16010-340, Araçatuba, SP
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008
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