Resumos
A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF), mais comum em mulheres, manifesta-se clinicamente como trombose e/ou abortamentos de repetição. Anemia hemolítica autoimune e manifestações neurológicas, cardíacas e cutâneas são comuns. Relata-se o caso de um paciente do gênero masculino cuja manifestação inicial da doença foi gangrena em pavilhão auricular, e o diagnóstico de SAF se deu por meio de biópsia de pele do membro inferior, que mostrava vasculopatia trombótica, sem evidência de vasculite. Esse resultado é um dos dois critérios maiores que, associados a um critério menor, fecham o diagnóstico dessa doença. Discutem-se neste caso os possíveis diagnósticos diferenciais e como eles se diferenciam da doença em foco, além da importância que a biópsia teve no diagnóstico de SAF nesse indivíduo.
anticorpos antifosfolípides; trombose; anticorpos anticardiolipina; lúpus eritematoso sistêmico
Antiphospholipid syndrome (APS), more common in females, manifests clinically as thrombosis and/or recurrent fetal loss. Hemolytic autoimmune anemia and neurological, cardiac and cutaneous manifestations are common. This is the case report of a male patient whose first manifestation of the disease was gangrene of the auricle. The diagnosis of APS was established by biopsy of the lower limb skin, which showed thrombotic vasculopathy with no evidence of vasculitis. This is one of the two major criteria, which, along with a minor criterion, establishes the diagnosis of APS. Possible differential diagnoses are discussed. The importance of the biopsy in the APS diagnosis of this male patient is emphasized.
antiphospholipid antibodies; thrombosis; anticardiolipin antibodies; systemic lupus erythematosus
RELATO DE CASO
Gangrena de pavilhão auricular como primeira manifestação de síndrome do anticorpo antifosfolípide
Erika Bettini de SáI; Adson da Silva PassosII; Mariana CecconiII; Maria Lourdes Peris BarboIII; José Eduardo MartinezIV; Gilberto Santos NovaesIV
IResidente em Reumatologia
IIResidente em Clínica Médica (R1) pela PUC-SP
IIIProfessora-Associada do Departamento de Morfologia e Patologia da PUC-SP
IVProfessor Titular do Departamento de Medicina da PUC-SP
Correspondência para Correspondência para: Erika Bettini de Sá. Praça Dr. José Ermírio de Moraes, 290 - Jardim Vergueiro. CEP: 18030-095. Sorocaba, SP, Brasil. E-mail: erikabettini@hotmail.com
RESUMO
A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF), mais comum em mulheres, manifesta-se clinicamente como trombose e/ou abortamentos de repetição. Anemia hemolítica autoimune e manifestações neurológicas, cardíacas e cutâneas são comuns. Relata-se o caso de um paciente do gênero masculino cuja manifestação inicial da doença foi gangrena em pavilhão auricular, e o diagnóstico de SAF se deu por meio de biópsia de pele do membro inferior, que mostrava vasculopatia trombótica, sem evidência de vasculite. Esse resultado é um dos dois critérios maiores que, associados a um critério menor, fecham o diagnóstico dessa doença. Discutem-se neste caso os possíveis diagnósticos diferenciais e como eles se diferenciam da doença em foco, além da importância que a biópsia teve no diagnóstico de SAF nesse indivíduo.
Palavras-chave: anticorpos antifosfolípides, trombose, anticorpos anticardiolipina, lúpus eritematoso sistêmico.
INTRODUÇÃO
A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF) é a trombofilia adquirida mais comum. As manifestações clínicas são heterogêneas e refletem a presença de trombose em vasos arteriais ou venosos de qualquer calibre e em qualquer órgão ou sistema, desenvolvendo-se abrupta ou insidiosamente.
O diagnóstico é realizado por meio de um critério clínico associado a um critério laboratorial. Os critérios clínicos são trombose (arterial, venosa ou vasculopatia) ou história de morbidade ou mortalidade obstétrica (três ou mais perdas fetais no primeiro trimestre, uma ou mais mortes fetais ou parto prematuro por insuficiência placentária). Os critérios laboratoriais são anticoagulante lúpico positivo, títulos moderados a altos para anticardiolipina IgG ou IgM e títulos moderados a altos de β2-glicoproteína I.1,2
O quadro clínico é diverso, podendo ocorrer alterações hematológicas, renais, neurológicas, cardiológicas e dermatológicas, e até um quadro de pior prognóstico - SAF catastrófica.2,3 É mais comum no gênero feminino e associada a doenças autoimunes. Neste relato apresentaremos um caso de SAF primária com sintoma inicial de gangrena auricular.
RELATO DE CASO
PRF, gênero masculino, 28 anos de idade, portador de doença de Graves e em uso de propiltiouracil há três anos, mantendo-se estável. Chegou ao pronto-socorro com queixa de cianose e dor em nariz e pavilhões auriculares há um dia. Ao exame físico apresentava petéquias em língua, palato e membros, acompanhadas de cianose nasal e em orelha externa. Após 12 horas, as áreas cianóticas evoluíram para gangrena (Figura 1). O paciente manteve-se normotenso e sem alterações neurológicas. Excluídas as hipóteses de meningococcemia e endocardite, foi suspenso o propiltiouracil e iniciada a pulsoterapia com metilprednisolona 1 g/dia por três dias consecutivos, com estabilização das lesões cutâneas. Na sequência, foram mantidas prednisona 60 mg/dia via oral e solução de lugol tópica.
Foram realizados hemograma (Hb 11,5; Ht 33,9; leucócitos 4.500, plaquetas 44.000), urina I (proteinúria negativa, leucócitos 1.000, hemácias 1.000), sorologia para hepatite B, hepatite C e HIV negativa; ALT, AST, fibrinogênio, C3, C4 e CH50 dentro da normalidade; C-ANCA e P-ANCA negativos, crioglobulinas negativas; anti-Ro negativo; fator antinúcleo e fator reumatoide negativos. Devido à dificuldade diagnóstica, foi realizada biópsia de pele em área de máculas eritematosas em membro inferior direito, com o resultado de vasculopatia trombótica, achado este sugestivo de SAF (Figura 2).
A hipótese diagnóstica de SAF teve sua confirmação com os resultados positivos para anticardiolipina IgM (55 MPL UI/mL), anticardiolipina IgG negativa e anticoagulante lúpico positivo. Feito o diagnóstico, foram introduzidos difosfato de cloroquina 4 mg/kg/dia, heparina de baixo peso molecular em dose anticoagulante, via subcutânea, e AAS 100 mg/dia, via oral.
O paciente apresentou melhora da lesão cutânea do nariz e pavilhão auricular esquerdo. Porém, persistiu pequena área de gangrena em pavilhão auricular direito, com perda parcial da cartilagem (Figura 1).
DISCUSSÃO
Durante a internação, foram aventadas várias hipóteses diagnósticas, dentre as quais: vasculite induzida por propiltiouracil, granulomatose de Wegener, policondrite recidivante e síndrome do anticorpo antifosfolípide.
A vasculite induzida pelo propiltiouracil pode ocorrer a qualquer tempo durante seu uso.4 É descrita como lesões de pele, até alterações renais e pulmonares.5 A maioria dos casos de vasculite induzida por propiltiouracil apresenta ANCA positivo.5 É sugerido que o acúmulo de metabólitos do propiltiouracil em neutrófilos possa tornar a mieloperoxidase imunogênica, como também outras enzimas presentes nos grânulos dos neutrófilos. A partir daí, ocorreria a ativação de outros neu trófilos, provocando a liberação de enzimas e a produção de radicais livres e citocinas, resultando em dano vascular.6,7
A granulomatose de Wegener é definida como uma vasculite com formação de granulomas inflamatórios e necrose de vasos de médio e pequeno calibres.8 A forma completa atinge face, pulmões e rins.4 Apresenta C-ANCA positivo em 80% a 90% dos casos. A histopatologia mostra vasculite leucocitoclástica com necrose e granuloma inflamatório perivascular.
O quadro clínico apresenta perfuração de septo nasal, nariz em sela, perda auditiva, estenose subglótica, pseudotumor ocular, esclerite, episclerite e uveíte. Nos pulmões, infiltrado nodular ou lesão cavitada, que pode levar à hemoptise.8 Os rins são acometidos por glomerulonefrite rapidamente progressiva. Mais de 75% dos pacientes terão lesão renal durante o curso da doença, que inicialmente se manifesta por proteinúria e hematúria.4 Na pele pode haver nódulos, púrpura palpável, lesões vesicobolhosas, pápulas, úlceras e infartos digitais.8
A policondrite recidivante é uma doença mediada pelo sistema imune associada à inflamação de estruturas cartilaginosas e de outros tecidos conjuntivos como orelha, nariz, articulação, trato respiratório etc. O quadro clínico pode incluir condrite auricular, audição reduzida, condrite nasal, deformidades do nariz, acometimento laringotraqueal, inflamação ocular, artrite, acometimento de pele e vasculites. Não existe alteração laboratorial específica. O diagnóstico é feito pelo quadro clínico, e raramente é necessária biópsia tecidual. O tratamento é realizado com corticoides, podendo-se associar metotrexato.9
A SAF, também conhecida como síndrome de Hughes, foi definida no final da década de 1980.4 Ocorre em 1% a 6% da população. A trombose é a principal manifestação e pode ocorrer mesmo em pacientes com trombocitopenia (40%-50% dos pacientes). As tromboses tendem a ocorrer principalmente na circulação venosa dos membros inferiores e na circulação arterial cerebral.
A manifestação cutânea pode ser a primeira em 41% dos casos, e a lesão mais frequente é o livedo reticular. Este se apresenta de forma persistente, como uma lesão reticular ou mosqueada de coloração violácea, vermelha ou azulada. É irreversível com o reaquecimento, e pode envolver tronco, braços ou pernas.10 Outras lesões associadas a SAF são gangrena digital, úlceras de membros inferiores, pseudovasculite, necrose cutânea com lesões purpúricas dolorosas evoluindo para placas enegrecidas bolhosas localizadas em membros, cabeça (nariz, orelhas) ou nádegas.11
A vasculite livedoide é uma doença rara, descrita em 1967 por Bard e Winkelmann. Caracteriza-se por lesões purpúricas dolorosas localizadas em membros inferiores que, frequentemente, ulceram. As úlceras apresentam curso crônico e recorrente, com exacerbações no verão e no inverno. Podem deixar cicatrizes atróficas, brancas e irregulares, com telangiectasias e hiperpigmentação livedoide de hemossiderina perilesional. A patogênese ainda é desconhecida, mas em alguns casos apresenta associação a alteração da coagulação ou doenças inflamatórias.12
O diagnóstico da SAF é realizado pela presença de um critério clínico associado a um critério laboratorial.8 O tratamento envolve medidas profiláticas e anticoagulação. A anticoagulação pode ser feita com varfarina ou heparina, frequentemente associadas ao AAS.
Em pacientes com plaquetas abaixo de 50.000 é contraindicado o uso de AAS ou de anticoagulantes, podendo ser usadas prednisona ou imunoglobulinas, até a normalização da série plaquetária. A cloroquina e a hidroxicloroquina têm efeito antiplaquetário e antitrombótico comprovado em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico, com provável papel preventivo também em pacientes com SAF.4
Dentre os diagnósticos diferenciais apresentados, a policondrite recidivante foi descartada como hipótese diagnóstica devido ao quadro de gangrena auricular. A granulomatose de Wegener e a vasculite induzida pelo propiltiouracil foram desconsideradas como causadoras da vasculopatia, principalmente após o resultado da biópsia de pele, que não mostrou presença de vasculite e leucocitoclasia.
A evolução do paciente foi bastante inesperada, com dramática melhora das lesões cutâneas após pulso de metilprednisolona seguido de prednisona 60 mg/dia associada a difosfato de cloroquina e heparina. AAS não foi utilizado durante a fase inicial da internação devido à plaquetopenia. O propiltiouracil foi retirado, tendo sido feita programação para tireoidectomia.
CONCLUSÃO
A biópsia de pele foi fundamental para a realização do diagnóstico. Os achados clínicos e a vasculopatia trombótica encontrada no estudo anatomopatológico, associados a altos títulos de anticardiolipina e à presença de anticoagulante lúpico, selam o diagnóstico de SAF.
Recebido em 21/12/2010.
Aprovado, após revisão, em 30/8/2011.
Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP Sorocaba.
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2Souto LB, Daolio L, Chahade WH. Elementos básicos diagnósticos e de terapêutica da síndrome do anticorpo antifosfolípide. Temas de Reumatologia Clínica 2008;9(1):11-6.
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3Louzada-Junior P, Simon SM, Voltarelli JC, Donadi EA. Síndrome do anticorpo antifosfolípide. Medicina Ribeirão Preto 1998;31:305-15.
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4Carvalho MAP, Lanna CCD, Bertolo MB. Reumatologia Diagnóstico e Tratamento. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008.
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7Xiao H, Heeringa P, Hu P, LiuZ, Zhao M, Aratani Y et al Antineutrophil cytoplasmic autoantibodies specific for myeloperoxidase cause glomerulonephritis and vasculitis in mice. J Clin Invest 2002;110(7):955-63.
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8Klippel JH, Stone JH, Crofford LJ. Primer on the Rheumatic Diseases. 13.ed. Boston: Springer; 2008.
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9Imboden J, Hellmann D, Stone J. Current Reumatologia Diagnóstico e Tratamento. 2.ed. São Paulo: McGrawHill; 2008.
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10Miyakis S, Lockshin MD, Atsumi T, Branch DW, Brey RL, Cervera R et al International consensus statement on an update of classification criteria for definite antiphospholipid syndrome (APS). J Tromb Haemost 2006;4(2):295-306.
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11Francès C, Niang S, Laffitte E, Pelletier F, Costedoat N, Piette JC. Dermatologic manifestations of the antiphospholipid syndrome: two hundred consecutive cases. Arthritis Rheum 2005;52(6):1785-93.
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12Khenifer S, Thomas L, Balme B, Dalle S. Livedoid vasculopathy: thrombotic or inflammatory disease? Clin Exp Dermatol 2010;35(7):693-8. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1365-2230.2009.03732.x/abstract [Accessed at 02/08/11]
Correspondência para:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Nov 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2011
Histórico
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Recebido
21 Dez 2010 -
Aceito
30 Ago 2011