Resumos
A anemia hemolítica autoimune (AHAI) é uma doença na qual são produzidos anticorpos diretamente contra as glicoproteínas adsorvidas na superfície da membrana dos eritrócitos. Algumas medicações e outras associações têm sido implicadas. Descrevemos e discutimos um caso de livedo reticular associado à AHAI tratado com transplante de células-tronco de sangue periférico (TCTSP) e que entrou em total remissão por 10 anos. Após esse período, a paciente apresentou recaída, foi tratada com anticorpo anti-CD20 (rituximabe), e atualmente encontra-se em total remissão. O papel do TCTSP e o uso de rituximabe no tratamento de AHAI serão discutidos neste relato de caso
transplante celular; anemia hemolítica autoimune; livedo reticular
Autoimmune hemolytic anemia (AIHA) is a disease where patients produce antibodies against erythrocytes directed towards membrane glycoproteins adsorbed onto the erythrocyte surface. Drugs and other associations have been implicated. It is described and discussed a case of livedo reticularis associated with AIHA treated with peripheral blood stem cell transplantation (PBSCT) that went into full remission for 10 years. After that period the patient relapsed and was treated with antibody anti-CD20, rituximab, and is now in full remission. The role of PBSCT and rituximab in the treatment of AIHA will be discussed
cell transplantation; autoimmune hemolytic anemia; livedo reticularis
RELATO DE CASO
Livedo reticular associado com Anemia Hemolítica Autoimune: remissão prolongada induzida pelo Transplante de Células-Tronco do Sangue Periférico com recaída após 10 anos e restauração dos níveis de hemoglobina por rituximabe
Eurípedes FerreiraI; Andrezza FeitosaI; Nelson Hamerschlak; PhDI; Morton Aaron Scheinberg; PhDII
IHematologista, Hospital Israelita Albert Einstein
IIReumatologista e Internista, Hospital Israelita Albert Einstein
Correspondência para Correspondência para: Morton Aaron Scheinberg Av. Albert Einstein, 627/ 701 - Morumbi CEP: 05652-000. São Paulo, SP, Brasil E-mail: morton@osite.com.br
RESUMO
A anemia hemolítica autoimune (AHAI) é uma doença na qual são produzidos anticorpos diretamente contra as glicoproteínas adsorvidas na superfície da membrana dos eritrócitos. Algumas medicações e outras associações têm sido implicadas. Descrevemos e discutimos um caso de livedo reticular associado à AHAI tratado com transplante de células-tronco de sangue periférico (TCTSP) e que entrou em total remissão por 10 anos. Após esse período, a paciente apresentou recaída, foi tratada com anticorpo anti-CD20 (rituximabe), e atualmente encontra-se em total remissão. O papel do TCTSP e o uso de rituximabe no tratamento de AHAI serão discutidos neste relato de caso.
Palavras-chave: transplante celular, anemia hemolítica autoimune, livedo reticular.
INTRODUÇÃO
A anemia hemolítica autoimune (AHAI) é uma doença na qual os pacientes produzem anticorpos antieritrócitos direcionados para as glicoproteínas de membrana adsorvidas na superfície dos eritrócitos. Sua etiopatologia ainda não foi completamente esclarecida. Medicamentos, infecções virais e associação com outras doenças autoimunes têm sido implicados. Os esteroides são o tratamento de primeira escolha, seguidos pela imunoglobulina intravenosa, em casos em que não há resposta e que o controle apenas pode ser obtido pela manutenção com corticosteroides em altas doses. Danazol, medicamentos citotóxicos e esplenectomia também já foram utilizados como tratamento alternativo.1,2
Descrevemos e discutimos um caso de livedo reticular associado com AHAI que foi tratado com transplante de células-tronco de sangue periférico (TCTSP) e entrou em completa remissão durante 10 anos. Depois desse período, houve recaída da paciente, que foi então tratada com o anticorpo anti-CD20 rituximabe, encontrando-se atualmente em completa remissão. A seguir serão discutidos os papéis do TCTSP e do rituximabe no tratamento da AHAI.
RELATO DE CASO
LKS, mulher, 67 anos, apresentou-se com livedo reticular bilateral nos membros inferiores e com anemia crônica. Em maio de 1994 foi estabelecido diagnóstico de anemia hemolítica imune reativa ao frio, realizado por métodos convencionais (bioquímica, testes imunológicos e avaliação da medula óssea). A paciente foi tratada com dexametasona 8 mg/dia por três meses consecutivos, seguido de prednisona 1 mg/kgde peso corporal. As lesões cutâneas desapareceram, e seus níveis de hemoglobina estabilizaram em torno de 10,0 g/dL. Devido à presença de efeitos colaterais graves, mudou-se para clorambucil (0,2 mg/kg/peso - 61 kg) em dezembro de 1994 até junho de 1995. Naquela ocasião, aumentou-se a dose de clorambucil para 12 mg/dia. Em setembro de 1995 a paciente foi internada em nosso hospital com pancitopenia significativa (talvez relacionada ao uso de clorambucil). A medula estava hipoplásica, com sinais morfológicos maculados de displasia. A paciente foi tratada com fator granulocítico e transfusões, com recuperação das séries leucocitária e plaquetária. No entanto, a hemoglobina permaneceu baixa, com sinais de hemólise ativa e presença de aglutininas frias. Realizou-se transplante de células-tronco autólogas por meio de mobilização com fator estimulador de colônias granulocitárias (G-CSF) e condicionamento com ciclofosfamida em alta dose (750 mg/m2 a cada 12 horas durante quatro dias - dose total 6 g/m2). Também foram realizadas sessões simultâneas de plasmaférese. A paciente recebeu alta dois meses depois do procedimento, e entre meados de 1996 e agosto de 2007 recebeu transfusões de sangue intermitentes. Essas transfusões podem refletir um cenário de remissão clínica tardia. A paciente retornou em agosto de 2007 apresentando sinais e sintomas de recaída com anemia, presença de aglutinina fria, artralgias e livedo reticular. O Coombs direto foi positivo, com presença de proteína monoclonal da classe de imunoglobulina G (IgG) na eletroforese. A tomografia computadorizada (TC) de tórax e abdome estava normal, sem que fosse detectada presença de linfadenopatia periférica. A biópsia de medula resultou negativa para infiltração de linfócitos.
Em agosto de 2007 foi iniciada terapêutica com rituximabe, quatro injeções semanais (375 mg/m2), tendo a paciente entrado em remissão. Em março de 2008 ela sofreu outra recidiva, recebeu novo curso de rituximabe e, subsequentemente, mais três ciclos utilizando o mesmo esquema prévio.
Depois da recaída, optou-se pelo uso de rituximabe em vez de iniciar a rotação antes da terapia com corticosteroides, imunoglobulina intravenosa (IGIV), tendo em vista o insucesso anterior. Um eventual fracasso de rituximabe poderia abrir a possibilidade de um segundo transplante de células-tronco, o que não foi descrito como necessário.
DISCUSSÃO
Desde 1996, foram publicados dados sugerindo que o TCTSP é uma opção para o tratamento de pacientes com doença autoimune grave que não obtiveram sucesso com a terapia convencional. Em 1999, Tyndall et al.3 publicaram os primeiros resultados de um estudo prospectivo multicêntrico que recrutou 74 pacientes adultos consecutivos com doença autoimune grave tratados com TCTSP. Dos 60 pacientes disponíveis para avaliação depois do transplante, 40 exibiam evidente melhora da doença.4 Uma publicação subsequente do mesmo autor, 10 anos depois, descreve 700 pacientes padecendo de doença autoimune grave. Nessa série, 11 pacientes tinham AHAI, mas os resultados não foram relatados. Estudos posteriores do National Institutes of Health e registros do European Group for Blood and Bone Marrow Transplantation informaram dados sobre citopenias autoimunes refratárias. O grupo americano teve 57% de resposta e nenhuma morte prematura. No grupo europeu houve sete casos; dois não eram TCTSP, mas alogênicos. Esses últimos entraram em remissão, enquanto no grupo de TCTSP apenas um paciente teve resposta transitória. Resumindo, os dados publicados até a presente data demonstram que aproximadamente metade dos pacientes obteve resposta completa, e o restante ficou dividido entre respostas parciais, ausência de resposta ou eventos adversos graves, inclusive morte.5 Ao que parece, nosso caso apresenta o maior período de acompanhamento já informado, e com base em nossas revisões, a remissão de um dos pacientes prolongou-se por mais de quatro anos. Desaparecimento, remissão e reaparecimento do livedo reticular com crioaglutinina indicam que, em vez de outras causas de livedo reticular (como úlceras isquêmicas ou acrocianose), aparentemente há uma relação com a presença de autoanticorpo.
A possibilidade de eliminar clones de linfócitos B autorreativos com o anticorpo monoclonal quimérico rituximabe fez com que esse tratamento fosse considerado atrativo para doenças autoimunes mediadas por anticorpo. Seu uso em pacientes com AHAI gerou crescente interesse, e a incidência de respostas tem sido alta na maioria das séries, inclusive também para outras imunocitopenias.6-11 Ao ser estabelecido o diagnóstico, esse medicamento ainda não estava disponível - mas acreditamos que a resposta observada é a mais longa publicada na literatura. Praticamente todos os pacientes com citopenias imunes sofrem recaída depois de determinado período. Nossa paciente sofreu recaída depois de seis meses, quando então foi aplicado um novo curso de anti-CD20. Quando o transplante de células-tronco é bem-sucedido em tais casos, a remissão é, em geral, consideravelmente mais longa que após o uso de rituximabe. Vantagens e desvantagens dos dois procedimentos e comparações apropriadas poderiam advir de estudos comparativos diretos, que atualmente não estão disponíveis e provavelmente jamais estarão, levando em consideração o elevado índice de eventos adversos associados ao transplante.12-14
O local onde os clones autoimunes de linfócitos B podem se ocultar durante 12 anos, como em nosso caso, é objeto de intensa especulação. Dados muito recentes demonstram que com uma análise altamente sensível por citometria de fluxo é possível detectar linfócitos B clonais no sangue periférico até seis anos antes do surgimento da leucemia linfocítica crônica. É possível que técnicas similares em pacientes como a nossa possam chegar a resultados parecidos. Enquanto isso, permanece um mistério o local onde os linfócitos B autoimunes se ocultam (conforme foi recentemente sugerido por Vogt e Kyle).15
Recebido em 15/12/2010.
Aprovado, após revisão, em 02/11/2011.
Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.
Hospital Israelita Albert Einstein.
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1Genty I, Michel M, Hermine O, Schaeffer A, Godeau B, Rochant H. Characteristics of autoimmune hemolytic anemia in adults: retrospective analysis of 83 cases]. Rev Med Interne 2002;23(11):901-9.
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2van Laar JM, Tyndall A. Adult stem cells in the treatment of autoimmune diseases. Rheumatology (Oxford) 2006;45(10):1187-93.
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3Tyndall A, Millikan S. Bone marrow transplantation. Baillieres Best Pract Res Clin Rheumatol 1999;13(4):719-35.
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4Passweg J, Gratwohl A, Tyndall A. Hematopoietic stem cell transplantation for autoimmune disorders. Curr Opin Hematol 1999;6(6):400-5.
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5Seeliger S, Baumann M, Mohr M, Jürgens H, Frosch M, Vormoor J. Autologous peripheral blood stem cell transplantation and anti-B-cell directed immunotherapy for refractory auto-immune haemolytic anaemia. Eur J Pediatr 2001;160(8):492-6.
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6Gualandi F, Bruno B, Van Lint MT, Luchetti S, Uccelli A, Capello E et al Autologous stem cell transplantation for severe autoimmune diseases: a 10-year experience. Ann N Y Acad Sci 2007;1110:455-64.
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7Scheinberg M, Hamerschlak N, Kutner JM, Ribeiro AA, Ferreira E, Goldenberg J et al Rituximab in refractory autoimmune diseases: Brazilian experience with 29 patients (2002-2004). Clin Exp Rheumatol 2006;24(1):65-9.
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8Reale LD, Besa EC. Rituximab in autoimmune pancytopenia: a case report and review of literature. Ann Hematol 2007;86(12):913-6.
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9D'Arena G, Taylor RP, Cascavilla N, Lindorfer MA. Monoclonal antibodies: new therapeutic agents for autoimmune hemolytic anemia? Endocr Metab Immune Disord Drug Targets 2008;8(1):62-8.
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10Garvey B. Rituximab in the treatment of autoimmune haematological disorders. Br J Haematol 2008;141(2):149-69.
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11Bussone G, Ribeiro E, Dechartres A, Viallard JF, Bonnotte B, Fain O et al Efficacy and safety of rituximab in adults' warm antibody autoimmune haemolytic anemia: retrospective analysis of 27 cases. Am J Hematol 2008. [epub ahead of print]
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12Scheinberg P. Stem-cell transplantation for autoimmune diseases. Cytotherapy 2003;5(3):243-51.
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13Passweg JR. Haematopoietic stem cell transplantation for immune thrombopenia and other refractory autoimmune cytopenias. Best Pract Res Clin Haematol 2004;17(2):305-15.
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14Passweg JR, Rabusin M. Hematopoetic stem cell transplantation for immune thrombocytopenia and other refractory autoimmune cytopenias. Autoimmunity 2008;41(8):660-5.
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15Vogt RF Jr, Kyle RA. The secret lives of monoclonal B cells. New Engl J Med 2009;360(7):722-3.
Correspondência para:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Jan 2012 -
Data do Fascículo
Fev 2012
Histórico
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Recebido
15 Dez 2010 -
Aceito
02 Nov 2011