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Obstáculos aos programas de promoção da saúde e prevenção dos danos da violência entre os adolescentes

Obstacles hampering health promotion programs and schemes for preventing harm caused by violence among adolescents

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Obstáculos aos programas de promoção da saúde e prevenção dos danos da violência entre os adolescentes

Obstacles hampering health promotion programs and schemes for preventing harm caused by violence among adolescents

Hélcio Fernandes Mattos

Instituto de Saúde da Comunidade, UFF. hmattos11@gmail.com

Introdução

A diretriz do acesso universal deve ser considerada em dois planos: a demanda do paciente e a resposta da rede. A primeira pode ser múltipla, porém a resposta da rede apenas uma: acolher o sofrimento do paciente.

O Acolhimento é um espaço de transição, marcando a etapa entre o primeiro contato e seu engajamento no tratamento. Na lógica do SUS, é impensável livrar-se do paciente indicando outro lugar sem que se tenham informações de que o mesmo poderá ser benéfico. No trabalho em rede, a recepção, a acessibilidade e o acolhimento são referências de uma concepção teórico-administrativa e não estruturas concretas.

A diversidade de fatores de risco configura um cenário de grande amplitude, dificultando de modo significativo, no plano político-administrativo, a estruturação de programas de cuidados capaz de reduzir os danos determinados pela violência.

Os adolescentes ficam sem a proteção de mecanismos sociais, havendo um incremento da manifestação da vulnerabilidade à violência.

A ausência de um dispositivo apropriado limitado apenas à intervenção jurídica, na qual predominam os modelos repressivos, reforça unicamente a lógica social de eliminar a violência pela violência legal do Estado. Se escapam ficam condenados à exclusão absoluta, sendo freqüentemente assassinados. As propostas jurídicas e a situação do abandono vivido nas ruas marcam situações extremas regidas por uma lógica semelhante: a "lei" do mais forte, entendida como a negação do sentido jurídico de Lei e da constituição de um Estado de Direito. São cenários nos quais a ação do Estado é marcada por um vazio no qual o respeito aos Direitos Humanos mínimos está banido.

A ausência de um dispositivo de intervenção impede o aumento da densidade das reflexões, excluindo a formação permanente de equipes multidisciplinares, capazes de debater a interação dos seus membros e a comparação com outras propostas teóricas. Essa grave lacuna decorre da falta de dois elementos: fundamentação conceitual apropriada e capacidade administrativa para sustentar uma intervenção adequada.

Da droga à violência

Considerando os fatores de risco, podemos conceber um dispositivo que não se reduza a eliminar o sintoma. Deve ser lembrado que os CAPS últimos tentam superar os problemas decorrentes da lógica do modelo asilar. A proposta nasceu das exigências conceituais e administrativas do SUS ao priorizar duas diretrizes: acesso universal e integralidade. A universalidade do acesso procura fazer respeitar um princípio da justiça eqüitativa: direito de atendimento a todo cidadão. Hoje, a rede tem uma abrangência capaz de garantir esse direito; porém, não é suficiente para garantir a qualidade necessária. Garantir o acesso modificou a lógica entre o profissional de saúde e o cidadão que busca um atendimento.

A relação dual presa aos critérios pessoais ficou subordinada a uma abstração conceitual-administrativa. Essa operacionalização introduz uma representação ética, sendo a condição capaz de instituir as exigências da preservação dos Direitos Humanos naquele que está colocado no espaço de poder: o membro da equipe. Essa modificação permite que, ao lado da viabilização administrativa da Integralidade, se efetue melhoras na qualidade do atendimento, ultrapassando as queixas sintomáticas para se deparar com a condição do sujeito. A mudança de registro do meramente biológico para a constituição de representações nos leva além das leis da natureza à construção de um modelo cultural.

Essa mudança é um eixo da lógica do SUS, que, ao criar as condições de perceber além da dor do usuário, introduz a dimensão do pathos (psicopatológico) como sofrimento, permitindo ao técnico se colocar também na sua condição de sujeito. A dimensão instrumental, adstrita à função técnica, de apenas resolver o problema, é ampliada e mostra que a intervenção precisa chegar ao entendimento da condição humana e, mesmo, à ação política. Na medida em que, ao deixar o registro da correção disciplinar do sintoma, vamos além da causalidade única, entendendo a multiplicidade das causas, deveremos considerar os fatores de ordem social, inclusive a dinâmica da relação político-administrativa com a construção de práticas operantes.

A composição "universalidade do acesso e integralidade" precisa de outro operador, a concepção de rede de apoio, pois cada vez que há uma demanda da comunidade esta não pode ser descartada, devendo ser construído um acolhimento capaz de responder, até mesmo, às demandas não formuladas explicitamente. Não haverá sempre o equilíbrio entre o acolhimento e a possibilidade de resolução. Surgem, então, duas alternativas. Encaminhar para outro serviço capaz de responder com eficiência ou improvisar uma solução que venha a se estruturar.

Para o primeiro caso surge a necessidade de articulação. Para preservar as exigências básicas, a rede não deve ser tomada no sentido concreto de territorialidade, no qual a idéia de poder sempre esteve associada ao território com base nos recursos existentes fisicamente. Devemos pensar em uma construção simbólica entendida como a produção de uma cartografia na qual o poder está associado às conexões efetuadas entre os diferentes segmentos no intuito de que os recursos disponíveis na rede respondam às necessidades da comunidade. Surgem, então, alguns princípios: 1- nenhuma demanda é destituída de sentido e deve ser respondida. Descartá-la colocaria a comunidade como uma categoria menor, abaixo dos executores, incapazes de identificar o seu sofrimento. A demanda da comunidade não pode ficar restrita às prioridades do poder executivo. 2- a demanda não deve se acolhida apenas se for explicitada. Os técnicos devem ter formação suficiente para perceber, através de construções conceituais, os problemas que não são visíveis. Portanto, o sofrimento deve ser percebido mesmo quando não se manifesta. Daí deriva a necessidade de a equipe ser capaz de produzir conexões, tendo a comunidade como uma parte integrante do serviço. 3- essas condições só podem ser executadas se não se confundir as prioridades do poder executivo municipal, uma construção político-administrativa, como as únicas a serem acolhidas. A centralização é uma decorrência da necessidade em atender a demandada comunidade.

O poder político-administrativo deve ser concebido como "um espaço vazio" ocupado por aqueles que são capazes de melhor executar a demanda da comunidade. Não seria coerente limitar o processo de escolha dos governantes como a instância definitiva de afirmação da democracia. A garantia da preservação dos processos democráticos nasce cotidianamente do respeito ao método que garanta a execução das aspirações da comunidade e não da pessoa que foi empossada para executá-la. Assim, é o funcionamento dos conselhos municipais que garante o aperfeiçoamento do SUS. Mais do que ensinar a importância do "fazer redes", é importante que se criem condições para se produzir uma rede de qualidade enquanto cartografia da captação das demandas da comunidade. A rede não deve servir à divulgação do poder político.

O uso de drogas sempre foi percebido através de um véu que unifica os usuários, atribuindo-se uma identidade que torna homogênea uma diversidade heterogênea. Posteriormente, sugiram outras posturas com uma visão diferenciada, mas todas foram colocadas como um modelo anti-proibicionista, preservando o eixo da repressão.

O CAPSad deve a especificidade da sua ação em relação as causas das demandas. A postura binária mostra-se insuficiente na medida em que o considerado dependente químico não é o usuário e sim aquele que deseja parar e mesmo assim não consegue. Muitos adolescentes chegam a fazer uso, mas abandonam. Chegam aos serviços apenas os casos mais graves, em função da vulnerabilidade individual ou da intensidade dos fatores de risco.

Dado o reduzido sucesso das intervenções, há uma indicação em se estabelecer pareamentos entre os diferentes tipos de uso e procurar identificar os usuários que respondam melhor a um tipo intervenção do que a outro. Não basta o acolhimento do adolescente, é necessário que a intervenção seja pensada como um processo intersubjetivo. Os valores que presidem as decisões do CAPSad devem fazer prevalecer a lógica coletiva em detrimento do interesse pessoal. Esse tipo de procedimento procura ir além das ações instrumentais, promovendo a transmissão de trocas sociais de solidariedade para se colocar como alternativas às imposições da cultura da violência. Diferentes técnicas podem ser utilizadas, integrando as intervenções de vários modelos conceituais apoiados em um eixo comum: um projeto terapêutico singular.

Se os fatores de risco para a violência são os mesmos para o uso de drogas, a continuidade dos mesmos funciona como um fator de manutenção da dificuldade que tentamos superar. Realizar intervenções nos fatores de risco tem um alcance maior do que as ações dirigidas apenas para a eliminação da ação: o uso de drogas ou as práticas de violência. Sabemos que a freqüência de um tipo de prática aumenta os problemas produzidos pela mesma, tornando mais difícil a sua modificação. Assim, as intervenções precoces terão maiores chances de serem efetivas. Um dos obstáculos para isso é a falta de treinamento profissional. Programas nessa área treinariam, além da equipe de saúde, professores, conselheiros tutelares e outros atores. Sem treinamento, eles agirão restritos à experiência da própria formação pessoal.

Sem um programa de treinamento permanente, o funcionamento da rede será distorcido, ficando a proteção ao adolescente em segundo plano por falta de acolhimento na estrutura administrativa de uma compreensão da rede como uma construção capaz de manter as conexões entre os setores, sem se basear no poder territorial, que define que cada uma das unidades seja soberana no que decidir. A lógica da soberania é oposta à lógica das parcerias em rede.

Os impasses

A percepção do problema apenas no impacto para o coletivo limita a compreensão do problema. O sofrimento do adolescente não será identificado, ficando sem assistência. O adolescente será captado quando cometer uma infração. A solução imediata será a necessidade de eliminar o mal, como se isso pudesse ser feito por um tipo de intervenção simples. Entretanto, o maior dano desse tipo de raciocínio é não comportar a construção de uma visão fora do registro da percepção imediata. Há uma maior complexidade entre os danos sofridos pelos adolescentes no seu percurso de vida e os prejuízos que eles provocam.

Grande parte da nossa juventude não poderá entrar no mercado de trabalho com condições de desenvolver as novas tecnologias produzidas. Sem a formação necessária, não ocuparão o papel para o qual pretensamente deveriam ter sido preparados. Porém, não faltará vontade a esses jovens de ganhar dinheiro, ter uma família e ter uma vida tranqüila e feliz.

Os adolescentes serão seduzidos pelas ofertas de dinheiro fácil, realizando tarefas simples, sem que precisem mostrar conhecimentos técnicos. Sem formação cultural, sem formação especializada, sem esperanças, permanecendo excluídos, a criminalidade será o destino a seguir mesmo com o risco de ser preso ou morrer.

O grande impasse decorre das decisões políticas e administrativas incapazes de perceber a complexidade da espiral ascendente das causas da violência, que continuam usando um raciocínio limitado entre o bem e o mal, centrando todos os recursos na repressão.

Há uma necessidade urgente em se criar dispositivos para tentar salvar não apenas os adolescentes, mas a sociedade das conseqüências produzidas pela exclusão dos Direitos Humanos mínimos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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