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Como reinventar a gestão e o funcionamento dos sistemas públicos e organizações estatais?

How to reinvent the management and functioning of public systems and organisms of the state?

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Como reinventar a gestão e o funcionamento dos sistemas públicos e organizações estatais?

How to reinvent the management and functioning of public systems and organisms of the state?

Gastão Wagner de Sousa Campos

Departamento de Medicina Preventiva e Social, FCM/ UNICAMP. gastao@fcm.unicamp.br

O artigo Política Pública de Saúde: encruzilhada, buscas e escolhas de rumo, de autoria do professor Nelson Rodrigues dos Santos, faz um diagnóstico preciso: o Sistema Único de Saúde (SUS) estaria em um impasse. Ele detecta o esgotamento dos expedientes até agora utilizados para sustentação do projeto brasileiro de reforma na saúde. Ou melhor dizendo, seu texto diagnostica uma tendência na história do SUS de conciliação com interesses privados - financeiros, patrimonialistas ou corporativos -, que, se por um lado nos permitiu criar o SUS, por outro tem impedido a cabal construção de um sistema nacional de saúde. De seus argumentos, fica-nos uma pergunta dolorosa: haveria possibilidade de sairmos deste pântano da meia reforma, do meio financiamento, da implementação parcial e errática de um programa de atenção básica, da incompleta e insuficiente regionalização, da lastimável gestão de pessoal, para chegarmos até alguma planície em acordo à tradição de políticas públicas de saúde experimentadas por outros países? E ainda: quem seriam os sujeitos coletivos capazes de fazer avançar esta reforma incompleta?

A depender da "escolha de rumo", a depender de nossa capacidade política, aponta o professor Nelson, a saúde brasileira cumprirá destinos diferentes. A sociedade e seus governantes estariam diante de uma escolha de suma importância. Conforme a direção imprimada à política pública, teremos a consolidação do SUS universal (ampliado, estaria ótimo) conforme o definido em lei ou teremos a cristalização de um anti-sistema público, algo tosco e distante do almejado pela reforma sanitária, com o conseqüente predomínio de um modo liberal de atenção à saúde (a volta do que nunca foi superado?).

Para chegar a esta conclusão, o professor valeu-se de evidências concretas, dados indicativos do esgotamento de um certo modo de fazer-se política pública e gestão no Brasil. Para além do apontamento de evidências, Nelsão utilizou uma metodologia dinâmica, dialética, para estudar o modo como o SUS vem sendo construído. E foi exatamente esta percepção processual que o autorizou ao uso da metáfora da "encruzilhada". A conclusão, que se repete com um mantra trágico ao longo de todo o seu artigo, é clara e precisa: a continuarmos presos ao modo insuficiente e incompleto como viemos construindo o SUS, correremos o risco de vê-lo reduzido a um conjunto de ações programáticas voltadas para parcelas empobrecidas do povo brasileiro.

Observe, caro leitor, que o professor Nelson Rodrigues dos Santos tem se caracterizado pelo entusiasmo e dedicação à reforma sanitária. Sempre foi um otimista quando se referia à criatividade, resistência e iniciativa dos trabalhadores de saúde, gestores e usuários. Eu o conheço há décadas. Ensinou-me sobre a possibilidade de conservar-se a coerência política e a integridade ética em qualquer circunstância. Mestre da saúde pública, sempre soube combinar a luta legislativa, normativa e no aparelho de Estado com o esforço insano para levar-se à prática as diretrizes do SUS. Nelsão coordenou, em Campinas/SP, ainda nos anos oitenta, a criação de uma das maiores redes de Atenção Primária do Brasil. Foi ainda em sua gestão, como secretário municipal, que se organizou o primeiro Centro de Referência em Saúde do Trabalhador com co-gestão paritária entre representantes dos trabalhadores e do sistema de saúde. Nessa ocasião, conseguiu que o antigo INAMPS investisse recurso orçamentário nessas experiências. Para isto, participou tanto do esforço nacional, macropolítico, pela criação do projeto das Ações Integradas de Saúde, que tornou possível esse tipo de repasse financeiro, quanto, ao mesmo tempo, cuidou de produzir efeito demonstração na ponta. Pois bem, este é o Nelsão que, agora, nos alerta sobre a gravidade do momento. Situação delicada em que gestos habituais, alianças tradicionais, não funcionam mais e em que estaremos obrigados a inventar outro modo para fazer política e gestão em saúde.

Estimulado pela análise do professor, me perguntei: o que nos faltaria enfrentar para darmos prosseguimento à implementação de uma política pública generosa e com grande potencial para contribuir para o bem-estar social? O próprio texto do Nelson nos indica os temas maltratados ou, até mesmo, esquecidos pelos gestores, movimentos sociais e intelectuais da área da saúde. Ressaltarei alguns que me parecem fundamentais.

A reforma sanitária brasileira subestimou a gravidade da crise de legitimidade por que passam as políticas públicas e o funcionamento das organizações estatais. O século XX não nos indicou um modelo organizativo e métodos de gestão que ampliassem a eficácia e eficiências dos sistemas e organizações estatais. Acredito que parte do fracasso do socialismo real (comunismo) deveu-se ao desgoverno das organizações estatais. As experiências públicas em países capitalistas tampouco nos apontaram novas soluções; isto é, um funcionamento de instituições públicas que superasse o patrimonialismo, a burocratização, o corporativismo, enfim que limitasse a apropriação privada do bem público. O liberalismo conservador, ao longo dos últimos trinta anos, se fortaleceu criticando estes limites e esta debilidade em produzir justiça social a partir da produção de bens e serviços por organizações estatais. Sua receita era simplista: volta ao mercado. Entretanto, já se sabia que o mercado, desregulado e ordenado pela competição, produz barbárie, iniqüidade e exacerba os conflitos sociais.

Na Europa, no Brasil, quando se reconheceu a necessidade de manutenção de algumas políticas públicas e, portanto, da existência de organizações estatais, pensou-se em dinamizá-las levando para seu interior a lógica de mercado. As debilidades das organizações estatais seriam resolvidas desde que se aumentasse o poder dos gestores sobre a força de trabalho. Dos vários interesses privados que degradam a organização estatal, reconheceu-se apenas o corporativismo. O vilão seria os trabalhadores. Governo, partidos, gestores, empresas privadas, sobre estas influências manteve-se o véu. Velamento ideológico e, portanto, gerando soluções parciais e, em decorrência, simplistas. Assim, fortaleceu-se a onda da "avaliação" e nasceram a gestão com base em resultados, os contratos de gestão utilizados como meio para fortalecer os mais competentes; alguns autores têm denominado a esse movimento de "gerencialismo"1. No Brasil, a abortada reforma Bresser Pereira semi-realizada durante os anos noventa, bem como a criação de híbridos públicos privados (organização de saúde, fundações privadas, etc.) tem a mesma origem: o reconhecimento da falência da gestão estatal tradicional e o embotamento ideológico que dificulta inventar-se outras soluções que não descaracterizassem a função pública (redistributiva e solidária) destes sistemas e organizações.

Como organizar a produção de bens e serviços fora do controle imposto pela competição do mercado (mão virtual, ainda que concreta) e com ênfase no ser humano e no planeta, com base na solidariedade e busca da eqüidade? A denominada esquerda, os desenvolvimentistas, keynesianos - incluindo nestes gêneros o movimento de reforma sanitária brasileiro - se dividiram entre aqueles que simplesmente diziam "não" à privatização, sem produzir alternativa organizacional, e outros que de tanto importar instrumentos típicos da empresa privada e da regulação do mercado para dentro dos sistemas públicos2, terminaram por produzir híbridos, que muitas vezes inviabilizam tanto o funcionamento em rede (sistêmico) quanto o socorro aos mais necessitados. Este maniqueísmo tem nos paralisado.

A "encruzilhada"!

Ultrapassá-la é eleger um caminho. A turma do contra, da resistência à privatização, perderá todos os embates caso não apresente uma alternativa. Que método de gestão e que modelo organizacional proporemos para o sistema de saúde e para suas organizações (todas, não somente para os hospitais)? O século XX, o movimento sanitário brasileiro, todos aqueles a favor de sistemas públicos ainda devem resposta a este enigma. Infelizmente, parte importante dos defensores do SUS sequer reconhece este dilema, e ainda crê, depois dos desastres do século passado, que o SUS poderá constituir-se como uma imensa repartição pública, bastando um pouco de descentralização e de controle social para superação de todos os obstáculos estruturais.

Esse processo complicou-se ainda mais no Brasil em virtude da tradição patrimonialista; ou seja, de uma maneira de fazer-se política tendo o Estado como principal instrumento, um Estado excessivamente dependente de interesses de grupos privados. O modo de funcionamento da máquina pública nacional tem facilitado a apropriação e a utilização privada do recurso estatal. No Brasil se constrói governabilidade mediante a distribuição de cargos no aparelho de Estado entre aliados e, em conseqüência, facilita-se que estes agrupamentos tratem o orçamento público como uma espécie de botim. Ao contrário do que afirmam os amorais de "situação", o enfrentamento desse tema não é uma restauração do idealismo vazio da antiga UDN. Esforçar-se para que a legitimidade dos governantes dependa mais da eficácia e da competência com que governem a pólis, com que assegurem bem-estar e justiça social é condição sine qua non para a cidadania e para um futuro suportável. O Brasil melhorará muito quando ministros, secretários, gestores forem julgados pelo impacto de sua política e programas específicos. Este é um desafio que o SUS deverá compartilhar com o país; nosso limite como nação é também, agora, um limite para a saúde.

Governantes e demais segmentos sociais tiveram extrema dificuldade para enfrentar este dilema entre clientelismo e desempenho eficaz dos programas. Freqüentemente, sequer conseguimos nomear a falência do método tradicional de gestão das organizações estatais, quando menos temos conseguido interpretá-la ou indicar caminhos para superá-la. Pois bem, o professor Nelson, com sua polidez e delicadeza habitual, faz referência à impotência dos gestores em lidar com esse quadro, bem como com impasses no financiamento e na política de pessoal do SUS. Entra governo e sai governo e os impasses prosseguem intocados. Precisaríamos de estadistas para lidar com a complexidade desse polígono perverso de forças sociais. No entanto, este mesmo contexto produz e assegura viabilidade, principalmente, a gestores plásticos, camelões, gente que, no governo, esquece o que escreveu, o que pregou, anteriormente, quando vinculados à sociedade civil. As exceções confirmam este modo de produção de "dirigentes". Como superar esse paradoxo? O dicionário Aurélio define estadista como "pessoa de atuação notável nos negócios políticos e na administração de um país".

Valendo-me do conceito de co-produção social dos modos de ser, talvez pudéssemos compensar esta "debilidade constitucional" dos governantes com um razoável grau de controle social. O SUS vem experimentando este remédio. Análises indicam, contudo, que a pressão não tem sido suficiente3,4. Foi eficaz para nos levar até a "encruzilhada" descrita pelo professor Nelson, ou seja, chegamos ao SUS realmente existente, o que não é pouco, ao contrário. No entanto, de que novos recursos, de que antigas ou novas maneiras de fazer política, deveríamos nos socorrer para escolhermos o melhor caminho? O professor indica estarmos em um processo de privatização branca do SUS, um pouco como o que se passou com a educação pública, nos últimos vinte anos, no Brasil. Afinal, em 2007 o financiamento privado em assistência à saúde ultrapassou o estatal!

Pergunta alerta: o primeiro passo em um dos sentidos da "encruzilhada" já não haveria sido dado? Será?

  • 1. de Gaulejac V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social São Paulo: Idéias & Letras; 2007.
  • 2. Ferlie E, Asburner L, Fitzgerald L, Pettigrew A. A nova administração pública em ação Brasília: Universidade de Brasília/ENAP; 1999.
  • 3. Morita I, Guimarães J, Di Muzio B. A participação de conselheiros municipais de saúde: solução que se transformou em problema? Saúde soc. 2006;15(1):49-57.
  • 4. Guizardi FL, Pinheiro R, De Mattos RA, Santana AD, Da Matta G, Gomes MCPA. Participação da comunidade em espaços públicos de saúde: uma análise das conferências nacionais de saúde. Physis 2004;14(1):15-39.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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