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Acumulação como violência, violência como acumulação: o Estado e o capitalismo dependente

Accumulation as violence, violence as accumulation: the state and the dependent capitalism

Resumos

Resumo

Este ensaio teórico tem como objetivo discutir o recurso à violência estatal no capitalismo dependente. Discute-se como a violência é necessária para a autorreprodução do capital e para a manutenção da contradição capital-trabalho. Tal necessidade se coloca em decorrência das debilidades estruturais impostas pela relação imperialismo e dependência, como a transferência de valor, a superexploração da força de trabalho, o agravamento das expressões da “questão social”, o racismo e a subsoberania. Para tanto, o artigo tem dois pontos centrais: a relação imperialismo e dependência e a amálgama entre Estado dependente e violência. Com a discussão, apreende-se que a manutenção do Estado dependente faz uso da violência para: a) superexploração da força de trabalho; b) realizar e/ou apoiar as expropriações; c) garantir as condições políticas de reprodução do capital; d) controlar as possibilidades de revolta e revolução, realizando a mediação da luta de classes através da violência.

Palavras-chave:
Violência Estatal; Capitalismo Dependente; Estado Dependente


Abstract

This theoretical essay aims to discuss the use of state violence in dependent capitalism. It discusses how violence is necessary for the self-reproduction of capital and for maintaining the capital-labor contradiction. This need arises as a result of the structural weaknesses imposed by the relationship between imperialism and dependence, such as the transfer of value, the overexploitation of the workforce, the worsening expressions of the “social question”, racism and subsovereignty. To this end, the article has two central points: the relationship between imperialism and dependence and the amalgamation between dependent state and violence. With the discussion, it is apprehended that the maintenance of the dependent State makes use of violence for: a) overexploitation of the workforce; b) carry out and/or support expropriations; c) guarantee the political conditions for the reproduction of capital; d) control the possibilities of revolt and revolution, mediating the class struggle through violence.

Keywords:
State Violence; Dependent Capitalism; Dependent State


Introdução

Questões como os processos de criminalização, encarceramento e violência estatal são latentes atualmente. De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), por exemplo, ao final de 2019 eram 11,7 milhões de pessoas presas mundialmente, com um incremento de 25% em relação ao ano de 2000 (UNODC, 2021). O Brasil, no mesmo intervalo de tempo, multiplicou cerca de três vezes sua população carcerária, chegando hoje ao quantitativo de aproximadamente 830.000 pessoas privadas de liberdade, segundo o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (BNMP/CNJ) (CNJ, 2023).

Em que pese a situação atual ser de maximização das formas de violência estatal, tais manifestações da estatalidade capitalista não são novas, sobretudo em regiões periferizadas do mundo. No caso brasileiro, desde sua gênese colonial são experienciadas situações de criminalização e violência, sobretudo destinadas à parcela mais precarizada da classe trabalhadora, como o povo negro e os povos originários. Este trabalho tem como objetivo contribuir ao debate sobre tais temas, principalmente discutir o recurso à violência estatal no capitalismo dependente como uma expressão da relação capital-trabalho mediada pelo Estado, marcado sobremaneira pelas relações entre imperialismo e dependência.

Existem múltiplas mediações para a compreensão de tais temas, que se apresentam como um complexo de complexos, para usar expressão lukacsiana (LUKÁCS, 2012LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.). Nossa análise se concentra em um destes complexos, com primazia ontológica no desenvolvimento do capitalismo dependente: a conformação do Estado dependente e a utilização da violência estatal no âmbito da luta de classes e da reprodução do capital.

O trabalho é de inspiração marxiana, tomando o Materialismo Histórico-Dialético como meio de apreensão do real em suas múltiplas determinações. Trata-se de um trabalho do tipo ensaio teórico, em que se busca, a partir do pensamento social crítico, em especial da Teoria Marxista da Dependência, trazer contribuições analíticas acerca da realidade latino-americana, com enfoque na constante violência que assola a classe trabalhadora, em toda a sua diversidade. Este artigo se divide em duas partes além da introdução e das considerações finais: na primeira, é discutida a relação entre imperialismo e dependência e, na segunda, onde se localiza a tese aqui defendida, se debate a amálgama entre Estado dependente e violência.

Imperialismo, dependência e a forma do capital na América Latina

A relação entre imperialismo e dependência, se apreendida como uma relação de exterioridade, leva a equívocos analíticos que se materializam nas possibilidades de superação de tal relação (GOUVÊA, 2020GOUVÊA, M. M. Gênese e estrutura de “Imperialismo, fase superior do capitalismo” de Lênin. Germinal, v. 12, n. 2, p. 21-34, out. 2020.). Uma análise materialista, portanto, deve a compreender como duas faces de uma mesma moeda que não chega aos bolsos da classe trabalhadora dos países dependentes, justamente porque compõe a acumulação de capital da burguesia imperialista. Ou seja, tratar de imperialismo é tratar mutuamente de dependência e vice-versa, ainda que sejam categorias distintas.

Em que pese a dimensão globalizante e totalizadora do capital (MÉSZÁROS, 2011MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.), é preciso compreender que a relação concreta entre capital e trabalho — mediada pela dimensão política da estatalidade — se conforma como particularidades histórico-concretas, como formações sociais que filtram as determinações gerais do modo de produção capitalista (MPC), assim como as compõem (BEHRING, 2008BEHRING, E. A formação do capitalismo brasileiro: interpretações do passado e do presente. In: BEHRING, E. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2008. p. 77-123.). Por sua complexidade, as formações sociais e estatais não podem ser reduzidas à determinação geral, mas, ao mesmo tempo, não se pode perder de vista essa determinação geral do MPC, redundando assim, de um modo ou de outro, em uma análise unilateral que não tem como norte a apreensão da totalidade.

Enquanto tendência do desenvolvimento das relações sociais capitalistas, a subsunção do trabalho ao capital, já menciona Marx (2017, pMARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.. 808), é uma subsunção predominantemente econômica, ou seja, pela “coerção muda exercida pelas relações econômicas”. Tal forma econômica se dá pelas “leis naturais da produção” (MARX, 2017, pMARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.. 808) que com o desenvolvimento do capitalismo submeteram o trabalho ao capital pelas próprias condições de produção. Nas palavras de Marx

[...] não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro como pessoas que não tem nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o trabalhador às “leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições de produção e que por elas é garantida e perpetuada. (MARX, 2017, pMARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.. 808-809, grifo nosso).

Como é possível observar, Marx (2017)MARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017. aproxima a discussão sobre os imperativos econômicos quase como naturais no processo de produção capitalista à discussão sobre como fazer com que o trabalho se subordine ao capital ou, em outras palavras, como o(a) trabalhador(a) se subordine à venda da sua força de trabalho. Ao fazer isso, o autor distancia esse processo do que chama de violência extraeconômica. São, então, formas de violência econômica que no curso da história submetem o trabalho ao capital.

Entretanto, ainda que por “leis naturais”, resta claro que são necessárias mediações políticas que possibilitem tal subsunção do trabalho ao capital. Como ressalta Sartori (2021), aSARTORI, V. B. Notas sobre a função do Estado no Livro I de O Capital. Trabalho & Educação, v. 30, n. 1, p. 11-35, jan./abr. 2021. política desempenhada, por excelência, pelo Estado, assume papel no desenvolvimento da classe que, pelas mediações citadas por Marx (educação, tradição e hábito), venderá sua força de trabalho, quebrando assim as resistências da relação capital-trabalho. Nesse sentido, ainda que a violência direta extraeconômica, a qual nos voltaremos posteriormente, tendencialmente não seja necessária no desenvolver das relações de produção, a função política assumida pelo Estado na reprodução da força de trabalho mantém-se como mola propulsora da acumulação ampliada de capital.

É preciso considerar que tal tendência se metamorfoseia justamente pelas necessidades autorreprodutivas do capital. O Estado, parte fundante do sociometabolismo do capital, guia o modo de reprodução social e, ao mesmo tempo, é guiado pelas necessidades históricas da reprodutibilidade capitalista. Portanto, se seu conteúdo está diretamente vinculado à necessidade de controle social, sua forma é maleável, assumindo a função corretiva necessária à orientação expansionista e acumulativa do sistema do capital, com uma inseparabilidade real, mesmo que com certa separação formal, entre econômico e extraeconômico na sustentação autorreprodutiva do metabolismo social (MÉSZÁROS, 2011MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011., 2021MÉSZÁROS, I. Para além do leviatã: crítica do Estado. São Paulo: Boitempo, 2021.).

A tese aqui defendida, portanto, é a de que na economia política da América Latina, região dependente e em relação heteronômica com os países centrais, há uma tendência à ampliação da utilização da violência extraeconômica para a reprodução do capital baseada, sobretudo, na forma de violência estatal. Faz-se assim, em nossa região, da violência forma de acumulação de capital tanto para a burguesia nacional quanto para a imperialista, amplificando o papel coercitivo e de controle extraeconômico do Estado diante de suas debilidades estruturais.

Para a demonstração de tal tese nos parece fundamental analisar o desenvolvimento da região a partir de sua relação com outras regiões, em especial o continente europeu e o subcontinente norte-americano. De antemão, considera-se importante destacar que é, como refere Paulo Netto (2013), justamente tal relação com as demais regiões que enlaça a América Latina numa unidade-diversa, marcada por uma relação de heteronomia, sob o jugo e exploração do capital-imperialismo. Tal desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção na região se lastreiam no âmbito da divisão internacional do trabalho. Por isso, a análise da dependência se baseia na apreensão da posição tomada por essa economia na cadeia de transferências de valor no mercado mundial e na maneira como essa posição afeta as relações internas dos países da região; bem como nos aspectos sociológicos, políticos e culturais que acompanham determinantes econômicos e que, em conjunto, não podem ser superados no seio da sociabilidade capitalista (CORRÊA; CARCANHOLO, 2018CORRÊA, H. F.; CARCANHOLO, M. D. A dialética do mercado mundial e o colonialismo interno sob a ótica da teoria marxista da dependência. Kallaikia, v. 5, p. 74-102, 2018.).

Marini (2005)MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180. afirma que o desenvolvimento latino-americano conforma um capitalismo sui generis, fundamentado na forma de integração da região ao sistema do capital global. O autor ressalta que é a forma de integração ao mercado mundial que, por um lado, alavanca o desenvolvimento industrial nos países centrais e, por outro, consolida a situação econômica, social e política dos países da América Latina. Trata-se de uma troca desigual entre nações formalmente independentes que tem, fruto da divisão internacional e desigual do trabalho, uma transferência de valor entre países dependentes e imperialistas.

O que explica então que essa transferência de valor não seja um desestímulo à transação comercial entre centro e periferia? Marini (2005)MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180. responde a essa pergunta apontando que as nações e a burguesia nas periferias operam mecanismos de compensação. Se a inserção desigual dos países periféricos na economia mundial significa necessariamente uma transferência de valor e, por isso, a diminuição da taxa de mais-valor acumulada pelos capitalistas desses países, o mecanismo que satisfaz a necessidade acumulativa da burguesia periférica não pode ser outro que não tentar equilibrar essa taxa. Por isso, o mecanismo de compensação de que fala Marini (2005)MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180. é a superexploração da força de trabalho no plano da economia interna. Qualificando essa categoria, ressalta Carcanholo que:

[...] a (super)exploração da força de trabalho, antes de ser uma ideia exclusiva do plano subjetivo, teórico e conceitual, é uma determinação real da forma como o modo de produção capitalista se desenvolve; não é uma manifestação objetiva de um conceito idealizado, e que faz sentido dentro de um sistema puramente lógico, mas uma determinação da lógica objetiva do capitalismo. (2013, p. 76, grifo do autor).

Superexploração da força de trabalho significa, então, um mecanismo de compensação, na relação capital-trabalho, da transferência de valor imposta às transações comerciais entre países dependentes e países imperialistas. Ou seja, um mecanismo compensatório da perda de valor, que se expressa de diferentes formas, como o aumento da intensidade do trabalho; a prolongação da jornada de trabalho; e a redução do consumo do(a) trabalhador(a) em relação às suas necessidades reprodutivas. Esse quadro conforma, então, uma remuneração da força de trabalho abaixo do valor socialmente necessário para a sua reprodução, em que esta última está submetida às determinações da lei geral da acumulação capitalista atravessada pelas particularidades da reprodução do capital na economia dependente (LUCE, 2018LUCE, M. S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.; MARINI, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180.).

A transferência de valor e a superexploração da força de trabalho, ainda que não sejam as únicas determinações econômico-políticas da relação entre imperialismo e dependência, nos parece ter primazia na conformação da forma estatal dos países dependentes — assim como dos países imperialistas, mas esta questão, para seguir a linha argumentativa, não poderá ser aprofundada aqui. Com essa retomada de alguns dos princípios categoriais apreendidos pela Teoria Marxista da Dependência é possível avançar na compreensão da questão de que versa este artigo.

A violência na formação do Estado Dependente

A relação capital-trabalho no capitalismo sui generis latino-americano tem, como corolário, um incremento das expressões da “questão social”1, dentre elas o pauperismo e a amplificação do exército (industrial) de reserva. Ainda que não se possa tomar como sinônimo superexploração da força de trabalho e pobreza relativa, o ciclo de reprodução do capital nas economias dependentes agudiza a compressão do consumo e provoca o divórcio entre a esfera produtiva e as necessidades reprodutivas da classe trabalhadora (LUCE, 2018LUCE, M. S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.), o que incrementa as expressões da “questão social” na região (PAULO NETTO, 2013).

Além da superexploração da força de trabalho, a transferência de valor e, de maneira mais ampla, a forma de integração da região ao sistema do capital global, trazem consigo corolários também políticos. O Estado, como forma política do capital, não se concretiza como um Estado “geral”, mas um conjunto de Estados nacionais, particulares do capital. Esses, por sua vez, não são homogêneos, mas se dispõem de forma hierárquica, assim como o próprio capital, que se expande, concentra e centraliza para além das fronteiras nacionais na forma de monopólios. Sendo assim, o que temos é um conjunto de Estados nacionais hierarquizados (MÉSZÁROS, 2011MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.).

É nessa relação hierárquica que se aprofunda a dependência e as desigualdades entre Estados que, por sua vez, buscam corrigir, entre outros elementos, parte das consequências econômicas, políticas e sociais da situação de dependência. Portanto, além das circunstâncias históricas, a própria cadeia de produção, circulação e consumo de mercadorias dita o modo de ser do Estado nacional. É com base nisso que se pode dizer em um “Estado dependente” nos países de capitalismo dependente.

Como ressalta Mauriel (2018, pMAURIEL, A. P. Estado e expropriações no capitalismo dependente: In: BOSCHETTI, I. (org.). Expropriação e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2018. p. 233-264.. 251), “a forma dependente do Estado possui as características presentes nos Estado capitalistas somadas a elementos particulares da formação dependente”. Por isso, as formas de assegurar as condições de subsunção do trabalho ao capital no Estado dependente são marcadas pela forma de integração ao mercado mundial, além de suas dimensões políticas, sociais, étnico-raciais, patriarcais etc. Tais Estados padecem “da posição a eles atribuída pela relação de forças em vigor [...] na ordem de poder do capital global” (MÉSZÁROS, 2011, pMÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.. 111). Esse padecimento, como aponta Osorio (2019, pOSORIO, J. O Estado no capitalismo dependente. In: OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019. p. 205-238.. 206-207), conforma “uma condensação das relações de poder e dominação” marcada por relações restritas de soberania - em verdade, de subsoberania. Ou seja, as relações se conformam como de subordinação ao capital e de associação às classes dominantes dos países imperialistas, além da subordinação a outros poderes estatais (OSORIO, 2017OSORIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. Temporalis, v. 17, n. 34, p. 25-51, jul./dez. 2017., 2019OSORIO, J. O Estado no capitalismo dependente. In: OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019. p. 205-238.).

Ainda que os limiares da subsoberania não sejam homogêneos nos diferentes períodos históricos e ciclos de reprodução do capital, a situação de dependência conforma, em maior ou menor grau, a submissão ao imperialismo e às classes dominantes imperialistas. Por isso, tanto a burguesia dependente como o Estado dependente são marcados por “debilidades estruturais” que precisam ser compensadas “pelo peso das dimensões autoritárias do Estado e do governo, mesmo sob feições democráticas” (OSORIO, 2019, pOSORIO, J. O Estado no capitalismo dependente. In: OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019. p. 205-238.. 207). Tais debilidades dizem respeito à própria forma de integração ao mercado mundial, na esfera econômica com fragilidades produtivas frente à divisão internacional do trabalho e na esfera política da burguesia local, impossibilitada que é de construir um projeto autônomo de desenvolvimento (MARINI, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180.; OSORIO, 2019OSORIO, J. O Estado no capitalismo dependente. In: OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019. p. 205-238.).

Portanto, a condição de subsoberania é um dos determinantes para a compreensão da particularidade autoritária do Estado dependente. Além da subsoberania, outro fator que cria, de acordo com Osorio (2017OSORIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. Temporalis, v. 17, n. 34, p. 25-51, jul./dez. 2017., 2019OSORIO, J. O Estado no capitalismo dependente. In: OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019. p. 205-238.), a necessidade da compensação autoritária do Estado dependente é a própria superexploração da força de trabalho. Embora superexploração não seja sinônimo de pauperismo, pode incidir em alta concentração de riqueza e agravamento das expressões da “questão social”. Incide, também, na expansão do exército de reserva que, de tão maximizado, “a morte [e a violência] para uma parcela dele se tornava funcional à manutenção da ordem” (COSTA; MENDES, 2021, pCOSTA, P. H. A.; MENDES, K. T. A morte como força produtiva no capitalismo brasileiro. Fim do Mundo, V. 4, p. 87-109, jan./abr. 2021.. 97).

Diante disso é que Osorio (2019, pOSORIO, J. O Estado no capitalismo dependente. In: OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019. p. 205-238.. 209) argumenta que as dimensões da barbárie prevalecem no capitalismo dependente e, por isso, “a ordem social se torna possível sobre a base de um exercício férreo do poder político, o que requer um Estado no qual os mecanismos coercitivos operam de forma recorrente”. Como ressalta o autor,

[...] esta é uma das principais razões pelas quais, na história política dos Estados latino-americanos, se verifique a tendência ao predomínio de diversas formas autoritárias, bem como a dificuldade destes Estados em assentar-se de maneira mais duradoura em formas democráticas. Não é falta de desenvolvimento político a explicação para isso, mas é expressão das formas particulares de reprodução do capitalismo dependente. (OSORIO, 2017, pOSORIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. Temporalis, v. 17, n. 34, p. 25-51, jul./dez. 2017.. 48).

Ademais, o cenário de maximização da barbárie e de maior exposição das contradições da relação capital-trabalho gera, para Osorio (2017)OSORIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. Temporalis, v. 17, n. 34, p. 25-51, jul./dez. 2017., um senso de necessidade, possibilidade e atualidade da revolução. Isso nos ajuda a compreender porque “toda a história política da sociedade brasileira é uma larga história da contrarrevolução burguesa”, fazendo de “toda a história do relacionamento do Estado com a sociedade [...] uma história de opressão e exploração”, em que o Estado assume papel predominante (IANNI, 2019, pIANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019.. 319). Como afirma Osorio (2017, pOSORIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. Temporalis, v. 17, n. 34, p. 25-51, jul./dez. 2017.. 49),

a agudização dos conflitos sociais no capitalismo dependente e da superexploração trazem consequências sobre o Estado de direito e o peso da lei os quais são minados e aplicados discricionariamente. As leis não escritas têm um peso significativo na vida social. As instituições do Estado, por sua vez, manifestam fragilidade, não por imaturidade, senão pela particularidade que apresenta a imbricação do econômico com o político. Tudo o que foi dito é necessário para sustentar a condição de subsoberania no sistema interestatal, as particulares formas de exploração no plano local e as transferências de valor (OSORIO, 2017, pOSORIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. Temporalis, v. 17, n. 34, p. 25-51, jul./dez. 2017.. 49).

Pensar o Estado e, particularmente, o Estado dependente, é pensar, então, a utilização de mecanismos de garantia das condições de acumulação ampliada do capital, não somente pela superexploração da força de trabalho e pelos contínuos processos de expropriação, mas também pela utilização da violência como potência econômica.

Frantz Fanon, ao falar do mundo colonizado, aponta que “nas colônias o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado”. A mediação política é, como coloca o referido autor, “uma linguagem de pura violência”, estando, então, o uso da violência em profunda cumplicidade com a forma do capitalismo na sociedade colonial (FANON, 1968, pFANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.. 28). Ainda que em contexto diverso do experienciado na América Latina, na argumentação fanoniana parece interessante compreender como nessas regiões, desde a acumulação originária até o presente, a subsunção do trabalho ao capital se dá ancorada no uso da força. Quer dizer, o controle da classe trabalhadora, sobretudo sua parcela racializada como não-branca e mais precarizada, é realizada, segundo Fontes (2010, pFONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.. 223) “com um viés coercitivo pronunciado, traduzido num monopólio seletivo da violência”.

Uma das principais expressões da utilização da violência extraeconômica para fins econômicos no Brasil foi a Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985). Como ressalta Ianni (2019), aIANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019. violência estatal, na Ditadura, se transformou em força produtiva porque o emprego da repressão pelas forças militares e policiais, bem como o uso da prisão e da tortura, favoreceram a extração de sobretrabalho e a implementação de um projeto de desenvolvimento nacional econômico. Quer dizer, ao incidir no controle da classe trabalhadora como força produtiva e nas relações de produção, a violência estatal visou e visa a “garantir e reforçar a subordinação econômica e política da classe operária e do campesinato” (IANNI, 2019, pIANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019.. 85). Isso posto, a violência estatal é condição e, ao mesmo tempo, produto das relações de produção. Segue o autor:

à taxa regular de produção de mais-valia, que a classe operária era induzida a conseguir sob as condições político-econômicas da democracia populista, o aparelho estatal pôde agregar uma taxa extraordinária, já que a classe operária foi amplamente submetida ao despotismo do capital, à repressão. O planejamento e a violência estatais fizeram com que a classe operária produzisse um volume muito maior de mais-valia do que estava produzindo sob as condições políticas e econômicas da democracia burguesa, de cunho populista, vigente antes de 1964. (IANNI, 2019, pIANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019.. 146-147).

Para Ianni (2019)IANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019. a repressão e a violência estatal contribuem para o favorecimento, a orientação e a dinamização da acumulação de capital. Ao controlar violentamente a força produtiva e as relações de produção, o Estado possibilita a quebra de barreiras ao desenvolvimento pela conformação das condições político-econômicas para a superexploração da força de trabalho. Ou seja, “as mesmas relações e estruturas de apropriação econômica, determinadas pela reprodução do capital, desenvolviam e apoiavam-se nas relações e estruturas de dominação política” (IANNI, 2019, pIANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019.. 54).

Por isso, o autor compreende que a violência estatal, como modalidade principal de violência extraeconômica, é ao fundo violência econômica, já que cria as condições políticas para a exploração da força de trabalho e expropriação dos meios de produção e consumo da classe trabalhadora. A violência estatal, como ressalta, é organizada e concentrada “em conformidade com a violência da acumulação monopolística” (IANNI, 2019, pIANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019.. 72).

Mesmo que Ianni se detenha, nessa obra, a analisar o que chama de economia política da Ditadura, compreende-se que suas interpretações não são limitadas a esse período. Isso porque o autor não compreende a Ditadura como um fato isolado, mas como exigência e expressão da economia política do capital monopolista. Ainda que no período as mediações ideológicas e a autonomia relativa do Estado se dissipem, isso é um processo inerente à sociedade burguesa, sobretudo em momentos de crise.

O mais relevante aqui é compreender que a violência extraeconômica é meio, então, de desenvolvimento das forças produtivas, em especial a força de trabalho e relações de produção, “favorecendo ao máximo a agilização do ciclo reprodutivo do capital” (IANNI, 2019, pIANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019.. 128). Como ressalta Maíra Bichir (2018)BICHIR, M. M. Aportes de Ruy Mauro Marini ao debate sobre o Estado nos países dependentes. Caderno CRH, v. 31, n. 84, p. 535-553, set./dez. 2018., um Estado mais autoritário é uma expressão do grau de debilidade da classe dominante, portanto, com uma burguesia débil, o Estado precisa se utilizar mais do monopólio legítimo da coerção.

Por isso, compreendemos que no capitalismo dependente as “leis naturais da produção” (MARX, 2017, pMARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.. 808) tornam-se, por vezes, insuficientes. Como citado alhures, Marx (2017, pMARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.. 809) argumentava que no curso usual do MPC a violência extraeconômica é empregada, “mas apenas excepcionalmente”. O argumento continua correto e válido. Marx, ironizando as leis naturais, não pretendeu apontar “leis sociais”, mas tendências. Por isso entendemos que tal argumentação deve ser mediada. A realidade rebelde e a formação monstruosa das quais fala Marini (2005)MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 137-180., é a exceção de que fala Marx.

Considerar a violência extraeconômica uma categoria para a compreensão dos meios de subsunção do trabalho ao capital não visa apartá-la da categoria de violência econômica, mas compreendê-la, em conjugação com essa, na totalidade do ser social. É possível pensar essa categoria somente a partir da prioridade ontológica das categorias econômicas como meio de produção e reprodução da vida, sem, contudo, ignorar que econômico e extraeconômico e, particularmente violência econômica e extraeconômica estão, como expõe Lukács (2012, pLUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.. 310), “numa irrevogável relação recíproca”.

Violência econômica e violência extraeconômica são meios pelos quais a relação capital-trabalho continua se reproduzindo, ou seja, meios que estabelecem uma contínua separação entre produção, controle e consumo necessária à reprodução do capital (MÉSZÁROS, 2011MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.). Por isso, ambas são, em essência, violência econômica. A necessidade da violência extraeconômica, conjugada à violência econômica (como “leis naturais da produção”), responde às próprias necessidades do capital, em específico para a reprodução do capitalismo dependente.

Para uma melhor elucidação, então, da violência extraeconômica e como ela se entrelaça ao desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo dependente, pode-se destacar que a violência extraeconômica é (1) estrutural, (2) permanente, (3) é necessidade e produto, e (4) é desigual. Desenvolve-se tais pontos a seguir.

Mesmo que na sociabilidade capitalista como um todo a violência extraeconômica seja empregada, a situação da periferia do capitalismo torna o recurso à violência extraeconômica estrutural. Em consequência da situação de dependência e dos seus corolários (subsoberania, superexploração, expropriação massiva, opressão racial etc.), os meios econômicos de subsunção do trabalho ao capital são combinados com a violência extraeconômica.

Isso não quer dizer que aspectos econômicos possam se expressar sem os extraeconômicos. Aspectos extraeconômicos envolvem, por exemplo, toda e qualquer forma de Estado capitalista. O que está posto, indica-se, é um aspecto extraeconômico em específico: o recurso à violência. Esse recurso é estruturalmente necessário no capitalismo dependente, como forma de ‘ir sendo’ do capitalismo na região — o que não anula a possibilidade de sua utilização no centro do capitalismo.

Isso também não quer dizer que se trata de um aspecto puramente moral da burguesia dependente. Ainda que esse recurso à violência extraeconômica seja marcado pela barbarização das relações sociais e pela desumanização de indivíduos, grupos ou classes particulares, seu fundamento está posto na estrutura produtiva como elemento conformador da totalidade. São as relações sociais de produção, voltadas à acumulação de capital, que tornam não só possível, mas necessária, a violência extraeconômica.

Tal sorte de violência, no capitalismo dependente, diz da via colonial de desenvolvimento, mas não é uma reminiscência do passado. Embora tratando da transição entre modos de produção, Marx (2011)MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. traz um ponto que pode ajudar a elucidar a questão. Para o autor, as relações de produção se desenvolvem objetivadas a si mesmas, como forma de autorreprodução. Para isso, podem reproduzir as relações de produção anteriores ou negá-las, tendo em vista seu objetivo central — a acumulação de capital pela valorização do valor. No desenvolvimento capitalista brasileiro, segunda aponta Mazzeo (2015), aMAZZEO, A. C. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. São Paulo: Boitempo, 2015. síntese da formação social capitalista se deu pelo genocídio e escravização dos povos originários e dos povos sequestrados de África, como forma de negar as relações de produção anteriores (os modos de produção originários) e, ao mesmo tempo, criar as condições do desenvolvimento do modo de produção capitalista no país.

Mas isso não explica, em si, a permanência da reprodução da violência, a reprodução do genocídio e das opressões. Como discutido, o recurso à violência extraeconômica é uma necessidade sistêmica, portanto estrutural, do capitalismo dependente. A violência e o genocídio continuam não porque a situação colonial não foi superada, mas sim porque não foram superadas as relações sociais que permanecem fazendo da violência uma força produtiva. Assim como não há possibilidades de superar a situação de dependência pelo nacionalismo ou (neo)desenvolvimentismo, a violência, como seu corolário, também não pode ser superada estruturalmente sem a superação do sociometabolismo do capital.

Apontamos, ainda acima, que esse recurso à violência extraeconômica é estrutural e permanente porque é consequência da situação de dependência. Entretanto, a violência extraeconômica não é só produto, mas necessidade. Tratando sobre a morte (e a entendemos como expressão máxima da violência), Costa e Mendes (2021, pCOSTA, P. H. A.; MENDES, K. T. A morte como força produtiva no capitalismo brasileiro. Fim do Mundo, V. 4, p. 87-109, jan./abr. 2021.. 94) apontam “a produção das mortes — e não quaisquer mortes — como condição e resultante do desenvolvimento capitalista em nossa particularidade, desde nossa gênese colonial”.

É precisamente nesses termos que podemos compreender a violência extraeconômica como força produtiva. Ao ser utilizada como ação corretiva da relação capital-trabalho, a violência garante politicamente a reprodução do capital. Por isso, a violência produz e reproduz as condições às quais ela é consequência. Para Mészáros (2011)MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011. há uma sustentação recíproca entre a reprodução material e as estruturas políticas do capital.

Nesse sentido, a violência extraeconômica assume o papel de: a) submeter trabalhadores e trabalhadoras à venda da sua força de trabalho, superexplorando-a; b) realizar e/ou apoiar as expropriações de meios de vida e meios de produção, além de direitos, conhecimentos, técnicas e biodiversidade, reproduzindo em escala ampliada a separação entre controle, produção e consumo, transformando produtores(as) diretos(as) em vendedores(as) de força de trabalho; c) garantir as condições políticas de reprodução do capital, submetendo politicamente o conjunto da classe trabalhadora e controlando ao máximo a revolta de classe e; d) controlar as possibilidades de revolta e revolução, realizando a mediação da luta de classes através da violência direta.

Sendo a violência extraeconômica produtora e reprodutora do desenvolvimento capitalista é, também, produtora e reprodutora das desigualdades sociais. Ainda que atinja a classe trabalhadora como um todo, não é de forma homogênea, tendo em vista que a própria classe não o é. O conjunto da classe trabalhadora é cindido socialmente pela raça e pelo sexo/gênero, materializado, entre outras mediações, na divisão racial e sexual do trabalho.

Como aponta Farias (2017), aFARIAS, M. Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de classe e raça no Brasil. Ser Social, v. 19, n. 41, p. 398-413, jul./dez. 2017. precarização é marcada pela racialização da classe trabalhadora, conformando a condição salarial e de reivindicação, bem como os níveis de precarização. Por isso, o racismo torna-se alicerce da superexploração da força de trabalho. Da mesma forma, a opressão contra as mulheres que, conforme afirma Barroso (2018)BARROSO, M. F. Expropriação pela violência contra as mulheres: expressão da violência estrutural no capitalismo contemporâneo. BOSCHETTI, I. (org.). Expropriação e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2018. p. 311-339., é necessária ao capital na mercantilização das relações sociais, na produção de mais-valor e para a reprodução social.

Dessa forma, ainda que o conjunto da classe trabalhadora tenha sua força de trabalho superexplorada, a precarização como consequência dessa recai particularmente sobre o grupo alvo prioritário das opressões: o povo negro, povos originários, mulheres, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais (LGBTI) e outros grupos. Do mesmo modo a violência extraeconômica, que historicamente cumpre seu papel acima exposto garantindo as condições de exploração e expropriação e prevenindo e silenciando coercitivamente as revoltas de classe, de povos negros e originários, mulheres, LGBTI e das demais parcelas precarizadas da classe trabalhadora.

Considerações finais

Como dissemos anteriormente, questões como o encarceramento em massa e os variados processos de criminalização e violência perpetrados pelo Estado são, em diversos âmbitos, manifestações diretas da contradição capital-trabalho. Esses processos são exemplos da violência estatal no capitalismo dependente, que se conjugam, via de regra, com outras expressões como a ampliação da expropriação, embargos econômicos, ditaduras etc. Mirar tais questões demanda então compreender o processo produtivo de maneira abrangente, sem cair em economicismos ou politicismos abstratos, mas na análise histórico-concreta da reprodução ampliada do capital, que é inequivocamente mediada pela luta de classes. Nesse interregno, é fundamental uma apreensão da mediação entre o universal e o particular a partir, também, das relações entre centro e periferia, consignadas na relação imperialismo e dependência.

Para isso, torna-se fundamental a apreensão dos elementos econômicos, políticos, sociais e culturais que conformam, por um lado, a economia política imperialista e, por outro, a economia política dependente, como faces da mesma moeda da autorreprodução do capital. Se, de acordo com Marx (2017, pMARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.. 370), “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica”, na economia política da América Latina a violência gesta essa região e, na fusão entre passado e presente que compõe a história do subcontinente, a violência permanece, ela mesma, como mola propulsora.

Se a tese aqui apresentada é procedente, a violência teve, tem e terá um papel central no desenvolvimento capitalista e nas condições em que se constrói a luta de classes, ou seja, trata-se de uma forma de acumulação ampliada do capital, ao mesmo tempo em que garante a acumulação do capital e, contraditoriamente, a possibilidade de transformação social, rumo à uma transição anticapitalista. Tendo isso em vista, parece imprescindível apreender as particularidades do desenvolvimento dependente, como país e região latino-americana, que é atravessado pelas relações desiguais e hierárquicas com as potências imperialistas. A violência estatal tem sido, ao longo de séculos, a mola propulsora do desenvolvimento, seja pela via econômica, seja pela via extraeconômica conjugada. Superá-la é um desafio histórico da classe trabalhadora.

Tal superação demanda compreender como no desenvolvimento histórico-concreto do capitalismo de maneira geral, a relação imperialismo e dependência, pôde, até certo ponto, isolar, mesmo que não completamente, a violência extraeconômica e estatal na periferia capitalista. Não se quer com isso dizer que tal sorte de violência não se expresse no centro, mas sua maximização e suas novas formas particulares na periferia possibilitaram, inclusive, sua diminuição nos países imperialistas, o que guarda importantes conexões com outros atravessamentos na contradição capital-trabalho, a exemplo da possibilidade de reprodução social da classe trabalhadora. O mundo se encontra atualmente em um momento decisivo de esgotamento das possibilidades civilizatórios e de sustentabilidade da manutenção da vida diante de uma crise estrutural, em que até mesmo nos países considerados, mesmo por um viés eurocêntrico, democráticos, a violência tem sido mantenedora das relações sociais capitalistas. Identificá-la como central ao capitalismo dependente é essencial para identificar, também nessas regiões, a histórica luta dos povos oprimidos latino-americanos.

Entender que a violência extraeconômica, conjugada à violência econômica, está no seio da reprodução do capital na América Latina visa a denúncia das condições histórico-concretas de surgimento e desenvolvimento de uma região marcada pelas relações heteronômicas, pelo genocídio e pela subjugação. Mais do que um traço moral, individual ou conjectural, a violência está no solo da manutenção da luta de classes, fincada no ciclo do capital no sistema global e, neste, as relações entre dependência e imperialismo se aprofundam como relações não só desiguais, mas de completa exploração e expropriação. A violência tem sido, enfim, na história da região, o corolário da dependência e seu mantenedor, como causa e sintoma da contrarrevolução preventiva e permanente na região.

Agradecimentos

Agradecemos às contribuições de Ana Vládia Holanda Cruz pelos debates e contribuições dadas ao longo da pesquisa.

  • Nota

    1 “Questão social” é aqui apreendida como o conjunto das expressões da contradição entre capital e trabalho; como a manifestação das consequências sociais, econômicas, políticas e culturais da exploração da força de trabalho no seio do modo de produção capitalista (PAULO NETTO, 2009).
  • Agência financiadora O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
    Consentimento para publicação Os autores dão consentimento para a publicação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2023
  • Aceito
    29 Maio 2023
  • Revisado
    04 Jul 2023
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