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SALDO NÃO LIQUIDADO DO LEGADO TRANSGERACIONAL: O PROCESSO DE SEPARAÇÃO-INDIVIDUAÇÃO NA GÊNESE PRECOCE DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

Unpaid balance of the transgenerational legacy: the separation-individuation process involved in the early genesis of eating disorders

RESUMO:

Este estudo investigou a experiência de maternagem em mulheres cujas filhas foram diagnosticadas com anorexia nervosa ou bulimia nervosa, buscando identificar aspectos do vínculo precoce mãe-filha que guardam relação com os sintomas psicopatológicos. Partimos da suposição de que sintomas graves na esfera alimentar expressam elementos específicos da dinâmica relacional precoce com a figura materna. Na perspectiva da teoria da transmissão psíquica transgeracional, conjecturamos que a constituição do sintoma tem como elemento articulador um vínculo fusional e involucra uma tentativa malograda de colocar um traço de separação e proteção da filha contra intrusões e excessos maternos. São estabelecidas relações com conteúdos transgeracionais.

Palavras-chave:
transtornos alimentares; relações mãe-criança; separação-individuação; transgeracionalidade; mental health services

Abstract:

This study investigated the experience of mothering in women whose daughters were diagnosed with anorexia nervosa or bulimia nervosa, seeking to identify aspects of the early mother-daughter bond that are related to psychopathological symptoms. We started from the assumption that severe symptoms in the eating sphere express specific elements of the early relational dynamics with the mother figure. Considering the theory of transgenerational psychic transmission, we conjecture that the constitution of the symptom has as an articulating element a fusional bond and involves an unsuccessful attempt to place a trace of separation and protection of the daughter against maternal intrusions and excesses. Relationships with transgenerational contents are established.

Keywords:
eating disorders; mother-child relations; separation individuation; transgenerationality; serviços de saúde mental

[...] sou filha e sou mãe. E tenho em mim o vírus de cruel violência e dulcíssimo amor

Clarice Lispector (1978LISPECTOR, C. Um sopro de vida: pulsações (1978) (3. ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999., p. 97)

1 INTRODUÇÃO

O marco do nascimento biológico do ser humano não coincide com o momento de seu nascimento psicológico. Este último mobiliza intenso trabalho intrapsíquico, que se desenrola lentamente durante o desenvolvimento e, em última instância, atravessa todo o ciclo vital. Do ponto de vista psíquico, nascer não acontece simultaneamente ao corte real do cordão umbilical e, algumas vezes, é um processo que persiste por toda a vida. A definição dos contornos identitários é tributária do processo de separação-individuação que se dá tardiamente, ou seja, diz respeito à possibilidade de estabelecimento de limites egoicos nítidos, com a aquisição de um senso de separação em relação ao mundo compartilhado. No entanto, as bases psíquicas da constituição da subjetividade se estabelecem precocemente, nos primeiros anos de vida. Nos bebês e crianças pequenas, o mundo se resume, inicialmente, ao primeiro objeto de amor - a mãe (MAHLER; PINE; BERGMAN, 2002MAHLER, M. S. et al. The psychological birth of the human infant: symbiosis and individuation (1987) . Londres: Karnac, 2002. ).

Uma mãe e um pai nascem simultaneamente ao nascimento de uma criança. Na concepção de desenvolvimento emocional de Margareth Mahler, o processo de separação-individuação tem início por volta do quarto mês de vida do bebê, momento em que a dupla mãe-bebê pode começar a se recuperar da relação indiferenciada e simbiótica na qual estão imersos (MAHLER, 1974MAHLER, M. S. Symbiosis and individuation: the psychological birth of the human infant. The Psychoanalytic Study of the Child, v. 29, n. 1, p. 89-106, 1974. ). Nessa fase, o bebê passa a ser continuamente confrontado com graduais frustrações e sutis ameaças de perda do objeto, experiências fundantes do psiquismo que são parte inerente de todo o processo de amadurecimento. Trata-se, portanto, de um complexo processo vital que acontece em um contexto modulado pela saúde emocional da figura materna, que idealmente se sente preparada e aufere prazer - ainda que vivencie dores e agruras - em favorecer ativamente o primeiro esboço de funcionamento psíquico independente de seu bebê (MAHLER et al., 2002MAHLER, M. S. et al. The psychological birth of the human infant: symbiosis and individuation (1987) . Londres: Karnac, 2002. ).1 1 Vale ressaltar que separação e individuação são dois conceitos desenvolvimentais complementares. O primeiro diz respeito à condição do bebê de adquirir habilidades psicomotoras - tais como segurar objetos, engatinhar, andar, entre tantas outras - que dão início à conquista da autonomia e prenunciam a futura separação física e objetiva da mãe. O conceito de individuação compreende todas as conquistas da criança que marcam a assunção de suas características individuais e engloba sua capacidade de emergir do estado fusional que mantinha com a mãe desde o nascimento biológico. Ainda que separação e individuação sejam processos solidários, que se desenrolam de maneira interligada, observa-se na prática clínica que nem sempre acontece dessa maneira ideal, especialmente nas condições em que o ambiente - aqui entendido como inicialmente indiscernível da figura materna - interfere no esforço inato envidado pela criança para se individuar, mesmo sob condições emocionais e psicomotoras propícias. Ou seja, Mahler et al. (2002) propõem que mães que tendem a infantilizar indefinidamente seus filhos ou a tomá-los como extensão narcísica de si mesmas (LEONIDAS; SANTOS, 2020; RIBEIRO, 2011), sufocando desde cedo seus incipientes esforços emancipatórios, apresentam forte tendência a inibir o processo de individuação da criança. Isso resulta em dificuldade de encorajar seus movimentos rumo à independência e de deixá-la seguir adiante nos momentos evolutivos apropriados. Assim, a criança encontrará maiores obstáculos para aprender com as próprias experiências e pensar com seus próprios pensamentos.

Em famílias nas quais um dos membros desenvolveu algum tipo de transtorno alimentar, os vínculos entre pais e filhas(os) acometidas(os) tendem a ser frágeis, permeados por conflitos mal resolvidos, sentimentos ambivalentes e dificuldades de comunicação (GANDER; SEVECKE; BUCHHEIM, 2015GANDER, M.; SEVECKE, K.; BUCHHEIM, A. Eating disorders in adolescence: Attachment issues from a developmental perspective. Frontiers in Psychology, v. 6, p. 1136-1148, 2015. doi: 10.3389/fpsyg.2015.01136
https://doi.org/10.3389/fpsyg.2015.01136...
; LEONIDAS; SANTOS, 2015LEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Family relations in eating disorders: the Genogram as instrument of assessment. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 5, p. 1435-1447, 2015a. doi: 10.1590/1413-81232015205.07802014
https://doi.org/10.1590/1413-81232015205...
; SIQUEIRA; SANTOS; LEONIDAS, 2016SIQUEIRA, A. B. R.; SANTOS, M. A.; LEONIDAS, C. Confluências das relações familiares e transtornos alimentares: revisão integrativa da literatura. Psicologia Clínica, v. 32, n. 1, p. 123-149, 2020. doi: 10.33208/PC1980-5438v0032n01A06
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v003...
; SOUZA; SANTOS, 2010SOUZA, A. P. L.; VALDANHA-ORNELAS, É. D.; SANTOS, M. A.; PESSA, R. P. Significados do abandono do tratamento para pacientes com transtornos alimentares. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 39, e188749, p. 1-16, 2019. doi: 10.1590/1982-3703003188749
https://doi.org/10.1590/1982-37030031887...
, 2012SOUZA, L. V.; SANTOS, M. A. Famílias de pessoas diagnosticadas com transtornos alimentares: participação em atendimento grupal. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 28, n. 3, p. 325-334, 2012. doi: 10.1590/S0102-37722012000300008
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). A literatura científica é consistente ao apontar a recorrência de vínculo fusional que enlaça mãe e filha como elemento central que articula o funcionamento psicodinâmico nessas famílias, especialmente quando a influência de experiências infantis adversas vivenciadas pelas mães é uma característica proeminente (LEONIDAS; SANTOS, 2020bLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Eating disorders and female sexuality: current evidence-base and future implications. Psico-USF ,v. 25, n. 1, p. 101-113, 2020b. doi: 10.1590/1413-82712020250109
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, 2020cLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Percepção do apoio social e configuração sintomática na Anorexia Nervosa. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 40, p. 1-14, 2020c. doi: 10.1590/1982-3703003207693
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). Sofrimentos que permanecem no plano do irrepresentável vão repercutir em prejuízos na capacidade de responder sensivelmente às necessidades dos filhos, contribuindo para a transmissão transgeracional de conteúdos psíquicos não elaborados (ATTILI; DI PENTIMA; TONI; ROAZZI, 2018ATTILI, G.; DI PENTIMA, L.; TONI, A.; ROAZZI, A. High anxiety attachment in eating disorders: intergenerational transmission by mothers and fathers. Paidéia (Ribeirão Preto), v. 28, e2813, 2018. doi: 10.1590/1982-4327e2813
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; VALDANHA-ORNELAS; SQUIRES; BARBIERI; SANTOS, 2021VALDANHA-ORNELAS, E. D.; SQUIRES, C.; BARBIERI, V.; SANTOS, M. A. (2021). Family relationships in bulimia nervosa. Psicologia em Estudo (Maringá), v. 26, e47361. doi: 10.4025/psicolestud.v26i0.47361
https://doi.org/10.4025/psicolestud.v26i...
). No intuito de perscrutar as vivências de maternagem de mães de filhas com diagnóstico de transtornos alimentares, exploramos neste estudo possíveis relações dos conteúdos transgeracionais com os sintomas que caracterizam o quadro psicopatólógico das filhas.

Neste estudo, compartilhamos os resultados obtidos por uma investigação psicanalítica desenvolvida no cenário de um serviço clínico especializado no acompanhamento de adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade, e de suas mães e pais. Essas pessoas têm em comum o fato de apresentarem um sofrimento que vai encontrar uma determinada inteligibilidade quando é acolhido pelo discurso biomédico, ao ser capturado por um aparato classificatório que se formaliza em um diagnóstico psiquiátrico. O corpus da pesquisa foi organizado a partir da escuta de sete mães, cuidadoras e acompanhantes das filhas nos atendimentos clínicos. As participantes tinham idades entre 42 e 66 anos e eram mães de mulheres jovens e adultas que se encontravam em seguimento ambulatorial. A pesquisadora responsável pelo estudo é psicoterapeuta integrada à equipe interdisciplinar do serviço há 14 anos. O corpus foi constituído pela experiência de suporte semanal de escuta de todas as mães que frequentaram o referido serviço durante um período de seis meses consecutivos. O material foi complementado pela realização de entrevistas individuais e enriquecido pelas anotações extraídas do diário de campo da pesquisadora.2 2 A pesquisa em nível de pós-doutorado foi desenvolvida pela primeira autora (CL) sob supervisão do segundo autor (MAS), e investigou as condições psíquicas de vulnerabilidade envolvidas na gênese precoce dos transtornos alimentares. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, instituição a qual os pesquisadores estavam vinculados (processo número 3.744.57, CAAE: 21789519.4.0000.5407). O estudo seguiu as diretrizes da Resolução nº 466/12 e da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos (BRASIL, 2012). Os nomes atribuídos às mulheres são fictícios e foram escolhidos pelas próprias participantes.

2 A CLÍNICA DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES E AS EXPERIÊNCIAS PRECOCES DE MATERNAGEM

Há um corpo consistente de conhecimento já estabelecido que reforça a conexão entre transtornos alimentares e dinâmica relacional mãe-filha. Alimentar e ser alimentado são atividades que transcendem a dimensão física da corporalidade, uma vez que é sobre a experiência de gratificação das necessidades básicas da criança que se alicerçam as dimensões pulsionais do vínculo (LAWRENCE, 1991LAWRENCE, M. A experiência anoréxica. São Paulo: Summus, 1991.). Nesse sentido, o presente estudo parte do pressuposto de que o cortejo sintomatológico da anorexia nervosa e da bulimia nervosa configuram uma expressão de sofrimento que, sob a ótica da teoria do desenvolvimento emocional de Mahler, têm como núcleo psicopatológico uma problemática central situada na constituição da relação precoce mãe-filha. Ambas se mantêm fixadas em etapas pré-genitais, nas quais predomina um tipo de vínculo marcado pela indiferenciação/simbiose (LEONIDAS; SANTOS, 2020aLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 84-93, 2020a. doi: 10.1590/1809-44142020001010
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; MIRANDA, 2011; MOURA; SANTOS; RIBEIRO, 2015MOURA, F. E. G. A.; SANTOS, M. A.; RIBEIRO, R. P. P. A constituição da relação mãe-filha e o desenvolvimento dos transtornos alimentares. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 32, n. 2, p. 233-247, 2015. doi: 10.1590/0103-166X2015000200008
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; VALDANHA-ORNELAS; SANTOS, 2016aVALDANHA-ORNELAS, E. D.; SANTOS, M. A. Family psychic transmission and anorexia nervosa. Psico-USF, v. 21, n. 3, p. 635-649, 2016a. doi: 10.1590/1413-82712016210316
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).

O vínculo simbiótico, por definição, envolve emoções ambivalentes e antagônicas, que fazem com que mãe e filha permaneçam mutuamente dependentes e sintam ao mesmo tempo medo e horror das consequências da indiferenciação perpetuada pela codependência (HALBERSTADT-FREUD, 2001HALBERSTADT-FREUD, H. C. Electra cativa: Sobre a simbiose e a ilusão simbiótica entre mãe e filha e as consequências para o complexo de Édipo. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 35, n. 1, p. 143-168, 2001.; MAHLER et al., 2002MAHLER, M. S. et al. The psychological birth of the human infant: symbiosis and individuation (1987) . Londres: Karnac, 2002. ). A insatisfação permanente e a marcada ambivalência afetiva resultam na busca incessante por completude de vazios que, paradoxalmente, parecem ficar cada vez mais amplos e impossíveis de serem preenchidos (LEONIDAS; SANTOS, 2020aLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 84-93, 2020a. doi: 10.1590/1809-44142020001010
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; MIRANDA, 2011).

Uma das consequências das fronteiras difusas e borradas é o comprometimento do desenvolvimento psicossexual da filha. A presença maciça - concreta e simbólica - da figura materna torna-se opressiva e impede a entrada do terceiro na relação. Desse modo, obstrui os processos desenvolvimentais de separação e individuação. A presença excessiva do objeto materno oblitera a construção da alteridade e o reconhecimento de um outro, elemento psíquico que permitiria uma saída simbólica alternativa à subjugação pelo objeto e sua exigência de servidão mortificante. Vale ressaltar que a literatura científica que trata do tema do funcionamento psicodinâmico familiar no contexto dos transtornos alimentares (LEONIDAS; SANTOS, 2014LEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Social support networks and eating disorders: an integrative review of the literature. Neuropsychiatric Disease and Treatment, v. 10, p. 915-927, 2014. doi: 10.2147/NDT.S6073
https://doi.org/10.2147/NDT.S6073...
; 2015aLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Family relations in eating disorders: the Genogram as instrument of assessment. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 5, p. 1435-1447, 2015a. doi: 10.1590/1413-81232015205.07802014
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; 2015bLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Relacionamentos afetivo-familiares em mulheres com anorexia e bulimia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 31, n. 2, p. 181-191, 2015b. doi: 10.1590/0102-37722015021711181191
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; LEONIDAS; NAZAR; MUNGUÍA; SANTOS, 2019 LEONIDAS NAZAR, B. P.; MUNGUÍA, L.; SANTOS, M. A. How do we target the factors that maintain anorexia nervosa? A behaviour change taxonomical analysis. International Review of Psychiatry, v. 31, n. 4, p. 403-410, 2019. doi: 10.1080/09540261.2019.1624509
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; PILECKI; JÒZEFIK; KÓSCIELNIAK, 2015PILECKI, M. W.; JÓZEFIK, B.; KOŚCIELNIAK, M. The perception of relations in the family of origin of patients with eating disorders and the perception of relations in families of origin of their parents. Psychiatria Polska, v. 49, n. 4, p. 731-746, 2015. doi: 10.12740/PP/32796
https://doi.org/10.12740/PP/32796...
; SANTOS; LEONIDAS; COSTA, 2016SANTOS, M.; LEONIDAS, C.; COSTA, L. R. S. Grupo multifamiliar no contexto dos transtornos alimentares: a experiência compartilhada. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 68, n. 3, p. 43-58, 2016.) sugere marcas de distanciamento emocional da figura paterna na relação com as filhas acometidas. Nessas configurações familiares, o pai aparece como responsável apenas pelo provimento material e financeiro, o que pode ampliar o espaço para que as relações mãe-filha mantenham-se na franja da indiferenciação simbiótica (MAHLER et al., 2002MAHLER, M. S. et al. The psychological birth of the human infant: symbiosis and individuation (1987) . Londres: Karnac, 2002. ; SANTOS; COSTA-DALPINO, 2019SANTOS, M.; LEONIDAS, C.; COSTA, L. R. S. Grupo multifamiliar no contexto dos transtornos alimentares: a experiência compartilhada. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 68, n. 3, p. 43-58, 2016.; SIMÕES; SANTOS, 2021SIMÕES, M. M.; SANTOS, M. A. Paternity and parenting in the context of eating disorders: an integrative literature review. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 37, 2021. doi: 10.1590/0102.3772e37459
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).

Segundo Leonidas e Santos (2020aLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 84-93, 2020a. doi: 10.1590/1809-44142020001010
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), a predisposição e o desencadeamento de sintomas graves na esfera oroalimentar têm como elemento central relações pré-edípicas conflituosas e mal resolvidas, que determinam uma fixação no primeiro objeto de amor e ausência ou baixo investimento da figura paterna. A travessia edípica exige o exercício da paternidade ativa, que possibilita que a filha localize seu lugar na família em referência ao casal parental e, assim, tenha a possibilidade de constituir sua própria identidade a partir das complexas identificações que ela estabelece na situação triangular, o que propicia que ela se sinta segura e encorajada a buscar outros objetos de afeto. As falhas paternas favorecem a permanência da filha na posição de objeto alvo dos excessos maternos, tornando-se presa fácil para ser capturada como extensão narcísica da mãe (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, M. (2011). De mãe em filha: a transmissão da feminilidade. São Paulo: Escuta.), impossibilitando que ela integre o objeto no registro da genitalidade e estabeleça, na continuidade de seu processo de amadurecimento pessoal, vínculos afetivos maduros e não-incestuosos (GASPAR, 2010GASPAR, F. L. Anorexia e violência psíquica. Curitiba: Juruá, 2010.).

No presente estudo, as mães relataram acontecimentos que remetem à dificuldade de vislumbrar as filhas como dotadas de individualidade, com desejos, “ritmos” e contornos próprios.

A gente já bateu muito de frente, de opiniões. Ela sempre foi uma pessoa muito... Eu sempre fui uma pessoa muito rápida. Eu estou aqui, e eu estou ali, eu estou ali, eu estou ali... Ela não anda no meu ritmo, ela não consegue. Meu filho é igual a mim, mas ela não anda no meu ritmo (Elizabete, mãe de uma jovem com anorexia nervosa).

Como às vezes eu resolvo comer no serviço, quando chego em casa não tenho fome, aí ela fala: “Se você não comer, eu não vou comer”. Eu acabo comendo pra ela comer um pouco. Pra ela não ficar sozinha (Maria Sandra, mãe de uma mulher adulta com bulimia nervosa).

Porque você gera um ser, mas ele é outra pessoa, ele não vai fazer o que você quer [...]. Ser mãe é deixar ir, mas querendo que estivesse do seu lado (Maria Magda, mãe de uma jovem com bulimia nervosa).

Nota-se que tanto a separação - mãe e filha têm fome em horários diferentes, mas ainda assim não podem se alimentar separadamente, cada uma em seu próprio tempo - quanto a individuação - “[o ser que a mãe gera] é outra pessoa”, “ela não anda no meu ritmo” - são aspectos do desenvolvimento das filhas que se mostram intoleráveis para as mães. A angústia e o ressentimento em relação a esses processos se fazem bastante presentes nos relatos, corroborando as suposições psicanalíticas a respeito da dificuldade das mães em tolerar a separação e a individuação inerentes ao desenvolvimento psicossexual das filhas (LAWRENCE, 1991LAWRENCE, M. A experiência anoréxica. São Paulo: Summus, 1991.; LEONIDAS; SANTOS, 2020aLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 84-93, 2020a. doi: 10.1590/1809-44142020001010
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; MIRANDA, 2011; RIBEIRO, 2011RIBEIRO, M. (2011). De mãe em filha: a transmissão da feminilidade. São Paulo: Escuta.). A percepção da filha como um ser humano diferenciado emerge como uma ferida narcísica insuportável (GASPAR, 2010GASPAR, F. L. Anorexia e violência psíquica. Curitiba: Juruá, 2010.) desde o momento do parto:

Parece que [o parto] é uma sensação de alívio, mas ao mesmo tempo você não quer que tire ela de dentro da barriga, não é? Parece que a gente quer que fique aqui, guardadinho (Maria Sandra).

Os relatos maternos sugerem que, ainda que o corte do cordão umbilical tenha sido realizado em alguma medida que vai além da concretude, os entraves na tolerância à separação evidenciam o malogro da operação psíquica que deveria instaurar a cesura no psiquismo materno. No curso evolutivo da relação com as filhas, as mães repudiam os movimentos de gradual busca de independência, o que as impede de apoiarem as necessidades de crescimento e autonomia das filhas. Ao não atribuírem juízo de existência à cicatriz da cesura, dimensão simbólica inconsciente que possibilitaria o reconhecimento dos contornos de uma vida psíquica própria, as mães se oferecem como o único objeto capaz de aplacar as demandas das filhas. A relação fica retida no plano da visceralidade e o seio nutridor não tolera a possibilidade de inscrever-se como falta. O parto/nascimento psíquico é obstruído ou indefinidamente adiado.

Ela foi pra escola com uns dois anos, porque quando ela tinha dois anos eu tive depressão. Então eu não deixava ela sair na calçada, ela não brincava com as outras crianças. Eu não sei por que eu pus na cabeça - acho que porque teve um surto de meningite na nossa cidade - que ela ia pegar meningite. A [nome da filha] levou muito tempo pra brincar com os amigos e tudo, porque eu não deixei, né? [...] Sempre estudou em escola particular, eu levava, eu buscava, eu levava na catequese, levava na natação, levava no sapateado. TU-DO (Maria Sandra).

Eu não deixava ela com ninguém. Só quando eu tinha necessidade mesmo de ir no médico, alguma coisa assim, que eu deixava ela às vezes com a minha mãe ou com uma vizinha muito querida, que tinha umas meninas que gostavam muito dela. Mas ela ficava o tempo todo comigo mesmo (Flávia, mãe de uma jovem com anorexia nervosa).

Nota-se o empenho das mães de serem “tudo” para suas filhas, como explicitou Maria Sandra em seu relato, o que a faz tentar preencher todos os “vazios” e obliterar até mesmo um mínimo intervalo entre elas. Em Luto e melancolia (1917/1996), Freud propõe que o luto consiste em uma reação à perda de uma pessoa querida ou de uma figura que ocupa um lugar de importância para o sujeito. Representa, portanto, um estado adequado à situação de perda e que normalmente é superado depois de algum tempo, sem configurar um estado psíquico patológico. Já a melancolia envolve uma vivência patológica de dor em relação a uma perda que não é propriamente do objeto, e sim do próprio eu. No luto, com o desaparecimento do objeto “[...] o mundo se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu” (FREUD, 1917/1996FREUD, S. Luto e melancolia (1917). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras de psicológicas completas de Sigmund Freud, 14, p. 249-263), p. 251).

Segundo Rivera (2012RIVERA, T. Entre dor e deleite. Novos Estudos CEBRAP, v. 94, p. 231-237, 2012. doi: 10.1590/S0101-33002012000300016
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), uma das principais contribuições desse texto seminal é o fato de que o desaparecimento do objeto não é suficiente para que haja separação. Faz-se necessário um árduo trabalho psíquico em torno da perda do objeto - trabalho do luto, que implica na renúncia gradual e dolorosa ao objeto, para promover o desligamento pulsional. É possível compreender os relatos das mães de filhas com anorexia ou bulimia como emblemáticos da impossibilidade do trabalho de luto, o que impede a simbolização da vivência de perda inerente ao parto biológico das filhas. Essas mães são lançadas, assim, na melancolia, ao se sentirem esvaziadas no ato do parto. Nesse sentido, o convite à indiferenciação com a filha seria uma defesa inconsciente engendrada para tamponar o insuportável peso da melancolia e o sentimento devastador de perder-se de si mesma.

A dificuldade de tolerar a separação da filha, mesmo que por breves momentos, foi nomeada por três mães deste estudo como comportamento superprotetor. Hipotetizamos que a aludida “superproteção” está relacionada à angústia que decorre do fato de não permitir que a filha possa experimentar sua existência própria e que crescesse por sua conta e risco, mantendo a provisão e a supervisão maternas apenas na justa medida das demandas progressivas de autonomia da filha.

Uma das fontes de precaução materna estava relacionada a fantasias persecutórias de ameaça de que algo catastrófico poderia ocorrer às filhas ao menor descuido das mães. Reconhecer as necessidades gradativas de autonomia das filhas implicaria em suportar sua eventual vinculação a pessoas que não fazem parte do círculo familiar, o que comprometeria o pacto de lealdade inconsciente mãe-filha. O ambiente externo é visto como ameaça à unidade simbiótica. Com isso, os relacionamentos estabelecidos fora do circuito familiar ficam empobrecidos. A angústia materna também parece estar relacionada à fissura narcísica e à dor sentida ao se dar conta de que não se pode ser tudo para o outro, nem mesmo para a própria filha, aceitando seu devir de ser em falta.

Ser mãe, eu tentei... Eu achei que eu tinha que abraçar, tinha que dar tudo, eu tentei dar tudo. A minha perspectiva, a minha dor, a minha maior dor de mãe é que você não pode dar tudo pra ela. E eu queria. Eu queria poder abraçar e dar tudo (Maria Magda).

Se tem que ter alguma amiga, é comigo mesma. Assim, sabe? [...] Até hoje eu tenho essa briga comigo mesma. Eu tenho dias que eu não quero viver, muitos deles... Então eu vivo pela [filha] (Mônica, mãe de uma jovem com anorexia nervosa).

Considerando que a ambivalência afetiva, inerente ao vínculo simbiótico (MAHLER et al., 2002MAHLER, M. S. et al. The psychological birth of the human infant: symbiosis and individuation (1987) . Londres: Karnac, 2002. ), pode ser vivenciada por ambas, mãe e filha, podemos conjecturar que o ódio que as filhas sentem de suas mães, segundo Lawrence (1991LAWRENCE, M. A experiência anoréxica. São Paulo: Summus, 1991.), pode estar relacionado ao que as mães, nossas interlocutoras, nomearam como “superproteção”. Lawrence propõe que as filhas se sentem invadidas por um objeto materno mau, intrusivo e devorador, que exerce efeitos devastadores sobre o psiquismo, uma vez que impede a introjeção de um objeto bom, total e íntegro, capaz de aplacar a angústia e o sentimento de aniquilamento do eu. O enraizamento do objeto bom no eu pode ser considerado como único meio de proteção contra os potentes impulsos destrutivos do bebê (CINTRA; FIGUEIREDO, 2010CINTRA, E. M. U.; FIGUEIREDO, L. C. Melanie Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2010.).

A literatura científica dedicada à maternagem (BADINTER, 1985BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985., 2011BADINTER, E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record, 2011. ; RIBEIRO, 2011RIBEIRO, M. (2011). De mãe em filha: a transmissão da feminilidade. São Paulo: Escuta.; SOIFER, 1980SOIFER, R. Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Porto Alegre: Artes Médicas, 1980.; WELLDON, 2004WELLDON, E. V. Mother, madonna, whore: the idealization and denigration of motherhood. Londres: Karnac, 2004.) é consistente no que diz respeito às experiências ambivalentes que atravessam a dupla mãe-bebê, uma vez que a maternidade envolve um processo de transformação intenso e doloroso, mesmo quando desejada, o que pode reverberar no psiquismo incipiente do bebê, fincando as raízes para o desenvolvimento de complicações do vínculo materno. Quando a perda do objeto não pode ser tolerada, a transformação é obstruída e a tendência é que se permaneça na repetição em detrimento da criatividade (ALMEIDA; ROMAGNOLI, 2017ALMEIDA, E.; ROMAGNOLI, R. C. Assim como nossos pais? Conjugalidade: repetição, transformação e criatividade. Psicologia Clínica, v. 29, n. 2, p. 229-251, 2017. ; SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2016SANTOS, M. A.; COSTA-DALPINO, L. R. S. (2019). Relação pai-filha e transtornos alimentares: revisando a produção científica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 35, spe, p. 1-11, doi: 10.1590/0102.3772e35nspe3
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).

Como já pontuado anteriormente, o processo de desenvolvimento segue sua marcha rumo à separação gradativa da díade e à consolidação do processo de individuação da criança, que precisa ser tolerado e estimulado continuamente pela mãe (MAHLER et al., 2002MAHLER, M. S. et al. The psychological birth of the human infant: symbiosis and individuation (1987) . Londres: Karnac, 2002. ). No entanto, enquanto parte das crianças consegue estruturar melhores defesas, o que lhes permite sair do visgo pegajoso da relação dual e imaginária que pode impedir a construção da individualidade, a clínica dos transtornos alimentares demonstra que algumas díades permanecem fixadas e enredadas na trama vincular. Nesse caso, mães e filhas se autodevoram e permanecem grudadas em um amálgama indiferenciado. A construção do sintoma anoréxico ou bulímico pode ser vista como uma tentativa malograda de operar a cesura pela via da fixação à doença, ao mesmo tempo em que atesta o fracasso na constituição saudável da separação. Um dos ganhos secundários do adoecimento é que os sintomas permitem que mãe e filha se reaproximem em uma relação de cuidado na qual a vida está sempre por um fio e a um passo da ruptura.

Nesse pacto regressivo, a constituição do sintoma alimentar pode ser vista como uma tentativa malsucedida de romper com o estado de indiferenciação mortífera que caracteriza a relação mãe-filha (MAHLER et al., 2002MAHLER, M. S. et al. The psychological birth of the human infant: symbiosis and individuation (1987) . Londres: Karnac, 2002. ; VALDANHA-ORNELAS; SANTOS, 2016SANTOS, M.; LEONIDAS, C.; COSTA, L. R. S. Grupo multifamiliar no contexto dos transtornos alimentares: a experiência compartilhada. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 68, n. 3, p. 43-58, 2016.b). É possível que o sintoma resulte de uma formação de compromisso, que advém do esforço de aplacar angústias primitivas e inominadas de aniquilamento, na tentativa de conter a iminência de colapso do eu. Uma vez gravemente adoecida, a debilidade física e psíquica faz com que a filha desnutrida permaneça excessivamente dependente dos cuidados maternos para sua subsistência. Porém, como constatamos facilmente na clínica, o que está em jogo é a sobrevivência psíquica tanto da mãe quanto da filha. O estado de imaturidade favorece a perpetuação do quadro clínico da filha, com seu cortejo de sintomas desconcertantes. Para a mãe, o ganho secreto é manter a filha permanentemente na tela de seu radar e, portanto, maleável ao seu controle.

Os ataques maciços que se expressam no nível do comportamento alimentar da filha também podem ser interpretados como uma tentativa inconsciente de barrar o crescimento do objeto mau e intrusivo introjetado, ao mesmo tempo em que atestam a subjugação do eu, aprisionado a um estado de servidão voluntária (LEONIDAS; SANTOS, 2020aLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 84-93, 2020a. doi: 10.1590/1809-44142020001010
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; SANTOS, 2016SANTOS, M.; LEONIDAS, C.; COSTA, L. R. S. Grupo multifamiliar no contexto dos transtornos alimentares: a experiência compartilhada. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 68, n. 3, p. 43-58, 2016.; VALDANHA-ORNELAS; SANTOS, 2016SANTOS, M.; LEONIDAS, C.; COSTA, L. R. S. Grupo multifamiliar no contexto dos transtornos alimentares: a experiência compartilhada. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 68, n. 3, p. 43-58, 2016.a). As mães, por sua vez, sentem-se escravizadas à relação: vivem para responder às demandas de suas filhas exigentes, doam-se até o limite da exaustão e da autoanulação, negligenciam seus interesses pessoais e renunciam ao próprio crescimento.

É possível pensar que, por meio de seus sintomas, a filha reage ao excesso de preenchimento e à falta de existência subjetiva. A heterogeneidade é implacavelmente suprimida. O objeto aplacador de necessidades não pode ceder seu lugar ao objeto de desejo. A filha se vê impedida de desejar o alimento (recusa anoréxica, vômito bulímico), mas dele necessita (MANOCHIO; SANTOS; VALDANHA-ORNELAS; SANTOS; DRESSLER; PESSA, 2020MANOCHIO, M. G.; SANTOS, M. A.; VALDANHA-ORNELAS, É. D.; SANTOS, J. E.; DRESSLER, W.; PESSA, R. P. (2020). Significados atribuídos ao alimento por pacientes com Anorexia Nervosa e por mulheres jovens eutróficas. Fractal: Revista de Psicologia, v. 32, n. 2, p. 120-131. doi: 10.22409/1984-0292/v32i2/5626
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). Obtura o desejo pelo outro, mas depende dele e, por isso, repudia o afastamento do objeto. Não tolera ficar longe da mãe e a mantém ao seu alcance, também sob o jugo de sua necessidade de exercer controle onipotente sobre o objeto cativo. Necessita da proximidade física da mãe para se tranquilizar, embora mantenha a barreira do distanciamento afetivo que a impede de absorver seu calor.

A bulímica, incorporadora voraz, se empanturra do objeto para depois expeli-lo violentamente sob a forma de jatos de vômito autoinduzido ou fezes liquefeitas, diarreia autoprovocada com auxílio de laxantes. A anoréxica, que prima pelo ascetismo, blinda-se na tentativa de fortificar seus limites e erguer uma barreira para manter-se impermeável à penetração. Em ambos os tipos de funcionamento, observa-se que o esvaziamento e consequente empobrecimento do eu são o resultado mais notável. Esse estado de inanição leva a uma espécie de morte em vida, na medida em que se suprime a singularidade para sustentar o pacto simbiótico com seus efeitos nefastos. A mãe se mostra avessa às transformações porque preza pela permanência da jovem em uma posição infantil. A separação é impensável, logo, não pode ser elaborada e simbolizada, e se preserva uma fantasia ativa de deter o trabalho transformador do luto porque a díade mãe-filha não pode tolerar a perda do objeto.

A fixação libidinal em etapas precoces do desenvolvimento psicossexual e a consequente impossibilidade de operar uma transição adequada de uma etapa para a outra repercutem nas dificuldades de vivenciar a maternidade como uma experiência gratificante. Tais dificuldades estão intrinsecamente relacionadas às experiências enquanto filhas e à qualidade da relação estabelecida com suas próprias mães.

A seguir, serão analisados alguns aspectos dinâmicos da transmissão psíquica transgeracional das participantes e seus desdobramentos na geração mais nova.

3 TRANSMISSÃO DE UM MODO SINGULAR DE EXPRESSAR E COMUNICAR AFETOS: ECOS E REMINISCÊNCIAS DAS RELAÇÕES TRANSGERACIONAIS

A maternidade e a paternidade são experiências vividas a partir de um campo relacional, marcadas pela maneira como o indivíduo integra à sua subjetividade os cuidados que recebeu dos pais, e estes últimos de seus próprios pais, e assim sucessivamente na cadeia geracional (PEREIRA; FREITAS, 2020PEREIRA, C. V. G.; FREITAS, M. C. A. Transmissão psíquica geracional vinculada com as dimensões de repetição e transformação. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 103-110, 2020. doi: 10.1590/1809-44142020001012
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; VALDANHA-ORNELAS; SANTOS, 2016SANTOS, M.; LEONIDAS, C.; COSTA, L. R. S. Grupo multifamiliar no contexto dos transtornos alimentares: a experiência compartilhada. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 68, n. 3, p. 43-58, 2016.a). Segundo Soifer (1980SOIFER, R. Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Porto Alegre: Artes Médicas, 1980.) e Welldon (2004WELLDON, E. V. Mother, madonna, whore: the idealization and denigration of motherhood. Londres: Karnac, 2004.), a experiência da maternidade depende da qualidade da relação que foi estabelecida pela mãe (na posição de filha) com sua própria mãe nos primórdios de seu desenvolvimento psíquico. A maternidade pode ser vivida como uma experiência gratificante e prazerosa se a figura materna foi introjetada como um objeto bom e nutridor. Quando a mulher internaliza uma figura materna má, pode encontrar maiores desafios no exercício da maternidade, o que vai repercutir na fragilização das funções parentais, podendo comprometer o desenvolvimento ulterior dos filhos. A forma como a mulher irá experienciar a maternidade depende da relação que ela estabelece com o objeto materno introjetado, a “mãe interna” (KLEIN, 1934/1981KLEIN, M. Contribuições à psicanálise (1934). São Paulo: Mestre Jou, 1981.), fundamental para a organização de suas experiências, sentimentos e atitudes que desenvolverá no desempenho da função materna.

Welldon (2004WELLDON, E. V. Mother, madonna, whore: the idealization and denigration of motherhood. Londres: Karnac, 2004.) afirma que, na prática, o exercício da maternagem encontra um importante entrave: o fato de que as mães também são (ou foram um dia) filhas e, portanto, carregam infinidades de experiências primitivas, por vezes traumáticas, que dificultam (quando não impossibilitam) que as mulheres exerçam a maternidade de maneira saudável, satisfazendo e frustrando seus bebês conforme a necessidade.

As mães de jovens e adultas com transtornos alimentares que participaram de nosso estudo compartilharam relatos que sugerem a exposição a experiências infantis adversas, traumas e segredos familiares de várias ordens e matizes, que remontavam a pelo menos três gerações de suas famílias de origem.

Minha mãe era noiva... E eu não sei muito bem, porque ela tem vergonha de contar, e eu até entendo ela ter vergonha de contar essa história. O que a minha vó conta é que minha mãe era noiva de um fazendeiro na época, minha mãe era uma das mulheres lindíssimas lá da fazenda em que eles trabalhavam, e aí... ela conheceu meu pai, acabou se envolvendo com meu pai e engravidou de mim. Então foi uma coisa meio traumatizante, tanto que meu avô não fa... Aí minha mãe casou rapidamente, meu avô nem apareceu no casamento (Mônica).

É muito duro, uma criança, um ser humano, esconder faca a vida inteira... Por que ele [pai] falava que ia matar ela [mãe], entendeu? Então eu escondia todas as facas.... Aliás, a gente saía com medo de que ele ia matar ela (Maria Magda).

Mônica e Maria Magda confidenciaram histórias de negligência e abusos (sexual, físico e psicológico) intrafamiliar no início da adolescência. A experiência traumática se repetiria com suas filhas, perpetuando o ciclo de violência, sugerindo os efeitos inerciais dos legados não transformados que se perpetuam pela transmissão transgeracional. Além do trauma sexual, Mônica vivenciou a morte de sua primeira filha durante o parto, o que alimentou um medo paralisante de que a próxima filha também poderia estar fadada a vir ao mundo natimorta. Dalva, por sua vez, escondeu do conhecimento da filha o nome do pai durante 20 anos, alegando que era uma figura pública conhecida e ela não queria que a filha tomasse conhecimento de sua identidade. No entanto, quando questionada sobre o que ela dizia à filha a respeito do pai, a participante relatou que ela nunca perguntava do pai. Diante dessa contradição, é possível pensarmos o quanto “aquele assunto” era indigesto, favorecendo um conluio inconsciente entre mãe e filha. Ao evitarem tocar nessa questão espinhosa, a díade sela um pacto de silêncio mantenedor dos laços de lealdade invisível. Somando-se ao recalcamento da origem e da identidade paternas, podemos indagar: qual a disponibilidade da mãe para perceber a necessidade da filha de ter acesso ao nome do pai? O nome se converte em tabu. Como vimos no relato de Mônica sobre a gravidez da mãe, “foi uma coisa meio traumatizante, tanto que meu avô não fa...” Essa mãe secciona o verbo falar, pronunciando apenas a primeira sílaba, indicando no nível da própria fala a cisão em torno da experiência emocional soterrada na origem de sua concepção como filha, fruto de uma relação sexual inaceitável para os padrões morais da época. Há uma sílaba solta na cesura da experiência inassimilável pelo psiquismo, como um grito que permanece incompleto, fendido, pairando no ar.

Segundo Pereira e Freitas (2020PEREIRA, C. V. G.; FREITAS, M. C. A. Transmissão psíquica geracional vinculada com as dimensões de repetição e transformação. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 103-110, 2020. doi: 10.1590/1809-44142020001012
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), o segredo geralmente envolve histórias que não são contadas, mas que se insinuam nas entrelinhas e se fazem presentes na história familiar e na maneira como os membros da família se relacionam entre si. As histórias familiares permeadas por segredos e traumas são consideradas mais propensas a falhas no trabalho de transformação psíquica, o que favorece a transmissão entre as gerações de conteúdos não elaborados e episódios cujos afetos não puderam ser adequadamente expressos e integrados ao aparelho psíquico. O sintoma muitas vezes tem sua origem inconsciente nos segredos e traumas que são transmitidos (sem serem verbalizados) transgeracionalmente e que, por não serem passíveis de simbolização, não podem ser conversados, permanecendo fora das possibilidades de metabolização e integração. Nesse sentido, esses conteúdos transitam entre as gerações familiares em busca de representação, favorecendo o surgimento do sintoma como denúncia de um sofrimento inominável, um texto apócrifo e rejeitado que insiste em ser narrado e inscrito na história do sujeito.

Foram relatados inúmeros acontecimentos familiares com potencial traumatizante e que, de maneira geral, sugerem experiências emocionais de desamparo e solidão, que parecem ter fomentado nas participantes de nosso estudo um desejo de tomar reativamente a figura materna como modelo do que não deveriam ser e fazer como mães.

Eu procurei fazer, é... O contrário do que acontecia na minha casa (Elizabete).

Então, ser mãe eu acho que é dar tudo aquilo que eu não pude ter (Flávia).

Ah, eu procuro ser bem diferente. Abraçar, “eu te amo”, ligar todos os dias, “você precisa?”, você quer me ver? Às vezes até me pego assim... Às vezes eu até acho que eu abraço menos do que eu deveria, ou menos do que algumas mães abraçam seus filhos. Mas eu procuro fazer o inverso do que recebi. Com os três, sabe? Sempre participando, perguntando... (Maria Elisa, mãe de uma jovem com bulimia).

Os excertos apresentados oferecem indícios de relações intergeracionais entre mães e filhas permeadas pelo anseio consciente de realizar com as filhas aquilo que não foi possível alcançar na relação com suas próprias mães. Tratam-se de reatualizações regressivas de um padrão vincular anterior, com tentativas inconscientes de encontrar gratificação para as insatisfações narcísicas da mãe, atenuando os sentimentos de vazio (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, M. (2011). De mãe em filha: a transmissão da feminilidade. São Paulo: Escuta.). Nesse contexto, as filhas parecem ser tomadas como meras extensões alucinatórias de suas mães, ou seja, recebem a função de suprir as lacunas afetivas, privações, ressentimentos e tudo aquilo que permaneceu pendente na relação das mães com suas próprias mães. Abre-se um espaço para que se estabeleça a ilusão simbiótica (HALBERSTADT-FREUD, 2001HALBERSTADT-FREUD, H. C. Electra cativa: Sobre a simbiose e a ilusão simbiótica entre mãe e filha e as consequências para o complexo de Édipo. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 35, n. 1, p. 143-168, 2001.; LEONIDAS; SANTOS, 2020aLEONIDAS, C.; SANTOS, M. A. Symbiotic illusion and female identity construction in eating disorders: a psychoanalytical psychosomatics’ perspective. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v. 23, n. 1, p. 84-93, 2020a. doi: 10.1590/1809-44142020001010
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; RIBEIRO, 2011): “Simbiose, como ilusão, pressupõe que nem ódio, nem inveja, nem agressão - nem mesmo diferença de opinião - podem ser tolerados entre os dois membros do idílio” (HALBERSTADT-FREUD, 2001, p. 159). Há, portanto, um completo fracasso na efetivação da separação entre mãe e filha, cuja origem remonta à vivência de falhas no vínculo intergeracional com a própria mãe, e o estabelecimento de um padrão de relacionamento fusional com a filha como consequência. Caso a filha se recuse a ocupar o lugar de prolongamento narcísico da mãe, sua existência fora do idílio pode não ser reconhecida (RIBEIRO, 2011).

Quando eu olho pra ela, eu penso que eu não posso fracassar. Ser mãe é dificílimo, eu acho que é a função mais difícil que eu recebi nessa vida... foi de ser mãe. Então eu encaro a maternidade com isso. Então, cada choro, cada fracasso, cada dificuldade, cada lactopurga que ela toma, é pra me matar (Maria Magda).

Ao cravar que a filha “a mata” a cada recaída no sintoma, Maria Magda não mede as palavras para descrever a intensidade tóxica do enlace mortífero que mantém a díade unida na doença. Welldon afirma que “uma vez mais e de novo, a saúde mental da mãe emerge como crucial para o desenvolvimento de sua prole” (WELLDON, 2004WELLDON, E. V. Mother, madonna, whore: the idealization and denigration of motherhood. Londres: Karnac, 2004., p. 65).

A discussão teórica aqui apresentada, articulada com excertos das entrevistas realizadas com mães de mulheres jovens e adultas com transtornos alimentares, fornece subsídios para a identificação de estreita relação existente entre angústias e aflições arcaicas vivenciadas pelas mães na relação com suas próprias mães, que são anacronicamente projetadas em suas bebês. Isso pode favorecer marcas de vulnerabilidade na constituição subjetiva da criança, que por sua vez podem atuar na gênese precoce dos transtornos alimentares das filhas. Nessa configuração vincular, não é possível vislumbrar uma existência separada e diferenciada. A hostilidade, que em um contexto de saúde emocional funciona como recurso psíquico para impulsionar a diferenciação, serve aqui para aprisionar pelo ódio, transformando-se em uma espécie de prótese de separação entre mãe e filha.

Vistos dessa perspectiva, os sintomas alimentares das filhas podem ser lidos como expressão somática de um vínculo materno que não pôde encontrar expressão adequada para que possa ser transformado e que tenta ser resolvido pelo pacto da doença, na qual elas se comprometem a permanecerem, do nascimento ao final da vida, abraçadas “até que a morte as separe”, exaurindo-se em uma relação tantalizante. Esse tipo de vinculação insolúvel lembra o flagelo de Tântalo no sentido de que mãe e filha parecem atadas pela pulsão de morte e o tempo todo provocam sofrimento mútuo ao alimentarem a fantasia de regressão ao inanimado.

Assim, o exercício de uma maternagem suficientemente boa encontra-se prejudicado pela não elaboração de conflitos maternos de ordem transgeracional. As heranças psíquicas não transformadas inibem o amadurecimento emocional das filhas e, por conseguinte, seu acesso à simbolização e ao viver criativo, que requerem a capacidade de suportar as vicissitudes da separação/individuação psíquica sem sucumbir à melancolia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hipótese que sustenta nosso estudo é a de que os sintomas de anorexia e de bulimia podem estar dinamicamente relacionados a dificuldades no estabelecimento dos vínculos primários. Esse pressuposto nos levou a dirigir nosso interesse para a escuta das narrativas maternas sobre as dimensões constitutivas da relação com as filhas que enfrentam grave comprometimento psíquico. Os resultados reforçam a importância de explorar o vínculo materno das pessoas com transtornos alimentares, para que se possa compreender as particularidades do funcionamento psíquico que sustentam os sintomas.

Retomando a epígrafe com a qual introduzimos nosso estudo e ampliando o recorte que fizemos: “Mas alguém me ouve? Então eu grito alto: mamãe, e sou filha. E tenho em mim o vírus de cruel violência e dulcíssimo amor. Meus filhos: eu vos amo com o meu pobre corpo e minha rica alma. E juro dizer a verdade e só a verdade. Envolvida pelo terror. Amém.” Podemos deduzir desse denso fragmento de Clarice Lispector o quanto há de horror - e, ao mesmo tempo, de sedução e fascínio - na experiência da maternidade. Quando se lança um olhar para as jovens que desenvolvem anorexia e bulimia, constatamos que esse par antitético (horror e fascínio) se articula de forma irresistível. Em nosso estudo, enfatizamos a perspectiva da constituição da subjetividade das mães e sua influência no estabelecimento do vínculo com as filhas, no qual se reescreve imaginariamente a relação pretérita com a própria mãe - “Sou filha e sou mãe” -, o que aponta para a indissolubilidade dessas posições relativas na estruturação edípica. Essa duplicidade reverbera de modo singular na construção da maternidade: de início, mãe-filha formam uma unidade. Se tudo correr bem, a unidade será gradualmente dissolvida, permitindo que ambas conquistem um estatuto de cidadania psíquica plena.

“Sou filha e sou mãe” também aponta para a dupla face de Jano: quando a mãe contempla o rosto e o corpo ainda sem contornos de sua bebê, enxerga a si própria em sua fragilidade constitutiva e tem uma experiência de horror, ao mesmo tempo que mergulha em uma vivência de fascínio e enlevo. Nesse momento de comoção, não é apenas uma mãe que olha para a filha; nesse ato fundante, ela se percebe também como filha de sua mãe e, portanto, sua mãe também “está” de algum modo ali, olhando para ambas. Se tudo correr bem, esse olhar mira o objeto de amor com compaixão. Certamente há consternação, mas também horror, com sua “cruel violência e dulcíssimo amor”. É uma experiência de dor e deleite.

Na precariedade da vida que ela aninha em seus braços, a mãe se dá conta de sua precariedade e dos recursos finitos de que dispõe para proteger a criatura que colocou no mundo e exercer a função materna: “meu pobre corpo e minha rica alma”. Ela jura dizer a verdade à filha, mas já pressentindo que nem tudo pode ser dito, uma vez que ela também está “envolvida pelo terror”. Enlaces e desenlaces: a identificação da mãe com as angústias impensáveis da filha pode gerar paralisação e embaraço, uma dor devastadora que dificulta sua tarefa de abrandar o terror e o desamparo da filha, oferecendo continência às primeiras experiências emocionais, uma vez que vislumbra também seu próprio estado primordial de incompletude e seu profundo desalento e solidão. A experiência da maternidade inscreve subjetivamente o ser materno no horizonte da finitude.

Na clínica dos transtornos alimentares é imprescindível que a função vitalizadora do psicanalista seja capaz de sustentar a potente singularidade de cada encontro, funcionando como sustentáculo de um suposto saber sobre o materno e as artes dos cuidados pela vida. Ao disponibilizar sua escuta para as mães, não é função do analista servir como esteio de esperanças infundadas quanto à possibilidade de restauração dos hábitos alimentares de suas filhas. A compreensão psicanalítica das experiências maternas contribui para o refinamento do conhecimento sobre a dimensão vincular envolvida nos sintomas alimentares e favorece o planejamento de intervenções que incluem a família, com foco voltado ao contexto relacional e ao saldo não liquidado das dívidas transgeracionais.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Vale ressaltar que separação e individuação são dois conceitos desenvolvimentais complementares. O primeiro diz respeito à condição do bebê de adquirir habilidades psicomotoras - tais como segurar objetos, engatinhar, andar, entre tantas outras - que dão início à conquista da autonomia e prenunciam a futura separação física e objetiva da mãe. O conceito de individuação compreende todas as conquistas da criança que marcam a assunção de suas características individuais e engloba sua capacidade de emergir do estado fusional que mantinha com a mãe desde o nascimento biológico. Ainda que separação e individuação sejam processos solidários, que se desenrolam de maneira interligada, observa-se na prática clínica que nem sempre acontece dessa maneira ideal, especialmente nas condições em que o ambiente - aqui entendido como inicialmente indiscernível da figura materna - interfere no esforço inato envidado pela criança para se individuar, mesmo sob condições emocionais e psicomotoras propícias. Ou seja, Mahler et al. (2002) propõem que mães que tendem a infantilizar indefinidamente seus filhos ou a tomá-los como extensão narcísica de si mesmas (LEONIDAS; SANTOS, 2020; RIBEIRO, 2011), sufocando desde cedo seus incipientes esforços emancipatórios, apresentam forte tendência a inibir o processo de individuação da criança. Isso resulta em dificuldade de encorajar seus movimentos rumo à independência e de deixá-la seguir adiante nos momentos evolutivos apropriados. Assim, a criança encontrará maiores obstáculos para aprender com as próprias experiências e pensar com seus próprios pensamentos.
  • 2
    A pesquisa em nível de pós-doutorado foi desenvolvida pela primeira autora (CL) sob supervisão do segundo autor (MAS), e investigou as condições psíquicas de vulnerabilidade envolvidas na gênese precoce dos transtornos alimentares. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, instituição a qual os pesquisadores estavam vinculados (processo número 3.744.57, CAAE: 21789519.4.0000.5407). O estudo seguiu as diretrizes da Resolução nº 466/12 e da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466 de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, 2012.). Os nomes atribuídos às mulheres são fictícios e foram escolhidos pelas próprias participantes.
  • Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, Bolsa de Produtividade em Pesquisa, categoria 1A.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2021
  • Aceito
    18 Set 2022
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