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BIBLIOTECONOMIA INDÍGENA: TRAMAS ENCANTADAS PELA TERRA VIVA

Indigenous librarianship: Wefts enchanted by the living earth

RESUMO

Objetivo:

(Re)situar a Biblioteconomia e as bibliotecas para além das fronteiras desencantadas do Ocidente e das suas “unidades de conteúdo”, a partir de duas proposições de origem indígena: i) o conhecimento vivo do mundo é o plano epistêmico de orientação da Biblioteconomia indígena (Indigenous Librarianship) e, ii) a terra é a biblioteca dos povos indígenas.

Método:

o equívoco controlado é o método do texto. Ele está articulado com a agenda metodológica indígena de pesquisa e os pressupostos do perspectivismo ameríndio e do multinaturalismo indígena, elos configuradores do cogito canibal e da autodeterminação dos povos originários.

Resultado:

A gramática transformacional dos povos indígenas, encantada pela terra, desconcerta e altera os planos de configuração da teoria clássica da Biblioteconomia e do imaginário objetivista e desencantado dos saberes ocidentais. O conhecimento vivo e ancestral da terra, corpos e línguas se apresenta como um feixe contemporâneo capaz de reencantar o mundo biblioteconômico através de um resgate historiográfico de longa duração das práticas “bibliotecárias” dos povos indígenas.

Conclusões:

A vida é o néctar do pensamento indígena. Instalar-se no espaço do equívoco entre os nativos e nós, e encaracolar-se, é a tarefa tradutora e conclusiva deste texto. Traduzir não para silenciar o outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última entre o que ele e nós estamos dizendo, mas, ao avesso, trata-se de fazer morada no pensamento indígena biblioteconômico para que ele enquanto língua originária deforme, descolonize, subverta e transforme os destinos e as geografias conceituais da nossa língua bibliotecária, documentária, informacional e além.

PALAVRAS-CHAVE:
Biblioteconomia Indígena; Pensamento indígena; Conhecimento vivo; Encantamento do mundo; Organização do Conhecimento Indígena

ABSTRACT

Objective:

(Re)situating Librarianship and Libraries beyond the disenchanted borders of the West and its “content units”, based on two propositions of indigenous origin: i) the living knowledge of the world is the epistemic plan of orientation of indigenous Librarianship and, ii) the land is the library of indigenous peoples.

Methods:

controlled equivocation is the method of the text. It is articulated with the indigenous methodological research agenda and the assumptions of Amerindian perspectivism and indigenous multinaturalism, configuring links of the cannibal cogito and the self-determination of indigenous peoples.

Results:

The transformational grammar of indigenous peoples, enchanted by the land, disconcerts and alters the configuration plans of the classical theory of Librarianship and the objectivist and disenchanted imaginary of Western knowledge. The living and ancestral knowledge of the land, bodies and languages presents itself as a contemporary bundle capable of re-enchanting the librarianship world through a long-term historiographic rescue of the “library” practices of indigenous peoples.

Conclusions:

Life is the nectar of indigenous thought. Installing itself in the space of ambiguity between the natives and us, and curling up, is the translating and concluding task of this text. Translating does not aim to silence the other by presuming an original univocity and an ultimate redundancy between what he and we are saying, but, on the contrary, it is a matter of making a home in library indigenous thought so that it, as an original language, deforms, decolonizes, subverts and transform the destinations and conceptual geographies of our library, documentary, informational language and beyond.

KEYWORDS:
Indigenous Librarianship; Indigenous thought; Living knowledge; Enchantment of the world; Indigenous Knowledge Organization

1 INTRODUÇÃO: BIBLIOTECONOMIA INDÍGENA, UMA GRAMÁTICA TRANSFORMACIONAL ENCANTADA PELA FALA DA TERRA

Em 2012, organizei um encontro internacional sobre Conhecimentos Indígenas como parte de minha função como Presidenta da Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA). [...] Lá ouvimos de um jovem membro da comunidade Nuxalk que a terra é sua biblioteca.

Ingrid Parent, Knowledge Systems for All

(2015, p. 704-705, tradução e grifo nosso).

A fala do bibliotecário indígena, membro da comunidade Nuxalk das primeiras nações da Colúmbia Britânica do Canadá, assinala para uma transformação do conceito ocidental, institucional e humanista de biblioteca, mas não apenas, visto que esta transformação impacta na ordem dos saberes biblioteconômicos nutridos pelo ponto de vista indígena em seu modo terrano1 1 “Terranos, isto é, a todos os existentes enquanto partes do mundo, aqueles inumeráveis pontos de vista cujo entrecruzamento constitui o mundo, e que são, enquanto tais (se é que é possível pensá-los ‘enquanto tais’), expressões monadológicas discordantes de um Mundo que não tem antônimo ou antagonista, porque não é um Objeto a espera de um Sujeito, de um ponto de vista transcendente. O mundo ‘sem o Homem’ desse Antropoceno vivido sob o modo da resistência se encontraria assim com o mundo ‘feito de gente’ das cosmogonias ameríndias: a transcendência definitiva de Gaia se torna indistinguível da imanência antropogeomórfica originária postulada pelos ‘povos de Pachamama’”. (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 146) - não-ocidental e não-humanístico - de perspectivar o mundo. Para o pensamento ocidental de tradição greco-latina, o conceito é um modo de controlar as significações primitivas das palavras em sua ordem natural. A biblioteca como terra é um deslimite do conceito, um modo indígena de transver conceitualmente o modelo ocidental de atribuição de sentido às coisas do mundo. Fora do humanismo colonial do Ocidente, o bibliotecário Nuxalk anuncia uma perspectiva informe e terrana de biblioteca, alheia aos paradigmas tradicionais (fisicalistas e sistêmicos), alternativos (cognitivistas e individualistas) e, parcialmente distinto, dos paradigmas sociais dos estudos informacionais do Ocidente, que projetam no outro, o modelo da relação social de si mesmo. A fala do bibliotecário Nuxalk apresenta de modo conciso e monádico, o campo da Biblioteconomia Indígena como uma gramática transformacional encantada pela fala da terra. Transformacional (alterante), encantada (viva) e terrana (coexistente), a Biblioteconomia Indígena é regida pela imanência da vida. Parafraseando uma das teses do antropólogo Tim Ingold (2015INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. São Paulo: Vozes, 2015.) a respeito do pensamento indígena, a Biblioteconomia Indígena é um território de saberes cujos objetos de pesquisa têm “gente dentro”.

O conceito de transformação é central nos mundos ameríndios. Nas “mitológicas”, tetralogia escrita por Lévi-Strauss (2004, 2005, 2006, 2011) acerca do pensamento ameríndio, a transformação salta como elemento seminal da ordem simbólica nativa. Diferente de uma ação imperiosa e transcendental que “dá a forma a algo” no mundo material, como nas ontologias informacionais do Ocidente (CAPURRO, 1992CAPURRO, Rafael. What is Information Science for? a philosophical reflection. In: VAKKARI, P.; CRONIN, B. (Eds.). Conceptions of Library and Information Science: historical, empirical and theoretical perspectives. London: Taylor Graham,1992. p. 82-96.; CORNELIUS, 2004CORNELIUS, Ian. Information and Its Philosophy. Library Trends, [S.l.], v. 52, n. 3, p. 377-386, 2004.; MENEZES, 2021aMENEZES, Vinícios Souza de Menezes. Da representação à perspectivação de(s)colonial do conhecimento: a ontologia informacional sob a tez ameríndia. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 1-25, 2021a.), os modos como os povos ameríndios informam e dão sentido aos seus diferentes mundos passam pela condição informe (MENEZES, 2021a) e transformativa de toda forma ontológica, epistemológica e expressiva (VIVEIROS DE CASTRO, 2018aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: n-1 edições, 2018a.). Nos mundos ameríndios, todo existente é vivo e se define exaustivamente como variação de um outro. Terra, corpo e língua estão sempre em transformação, pois partem do “princípio de que o objeto de toda transformação é sempre uma outra transformação, e não alguma substância sociocultural preexistente.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 162) A transformação indígena não é nem espacialmente hierárquica, nem temporalmente finalizada, ela é o nome do jogo (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 159), a insígnia antropofágica do ser e do mundo, sempre e a cada vez outro, como no mote cunhado pelos europeus ao chegarem em Canibalia2 2 A partir das designações etno-cartográficas da Conquista do Novo Mundo, Carlos Jáuregui (2008) chama de Canibalia, a conformação palimpséstica das diferenças culturais da América. Em suas palavras, “la Canibalia es entonces resultado de una mirada cartográfica al Outro; mirada panóptica que autoriza epistemologicamente al colonialismo y que incluye no solamente los numerosos mapas en los que el signo del canibal representa y señala a América como lugar del deseo y lugar de dominación, sino también los trabajos etnográficos que organizaron un sistema de representación de la Otredad sobre el eje de los sacrifícios humanos y el canibalismo. Estas etno-cartografías asientan - mediante el tropo caníbal - el lugar espacial, moral y político del colonizado, y su tempo salvaje o asincronía respecto de la hora de la civilización (salvajismo, niñez, inferioridade).” (JÁUREGUI, 2008, p. 27-28) , o lugar onde as almas são inconstantes como os corpos: “il selvaggio è mobile” (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 185). Em Canibalia, a terra é uma paisagem tecida pelos olhares perspectivos. Terra, corpo e língua fabricam o idioma simbólico ameríndio a partir da condição amplificada de suas humanidades (VIVEIROS DE CASTRO, 2018a, 2017).

Perante as metafísicas relacionais e transformativas dos povos indígenas, a mecânica sistemática de estruturação e ordenação do mundo ocidental, a partir da divisão lógica entre um polo de variação e um polo de estagnação designados ontologicamente pela classificação entre ser e ente, epistemologicamente pela diferença entre sujeito e objeto, e socialmente pelas distâncias entre cultura (civilização) e natureza (barbárie), entra em colapso, visto que “a ‘coisa’ é sempre uma variação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Transformação” na Antropologia, transformação da “Antropologia”. Mana, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 151-171, 2012., p. 162) e a identidade não é mais do que uma das possibilidades da diferença. Nesses mundos não-coloniais, não há diferença ontológica - todo ente é vivo e possui uma agência perspectiva, logo é um ser. Reforçando o argumento de Marilyn Strathern (2014STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014.), nos mundos indígenas, todo objeto de interpretação é entendido como outra pessoa, isto é, o próprio ato da interpretação pressupõe a condição de pessoa do que está sendo interpretado, portanto, todo objeto é também sujeito. Os atributos da alma (antiguidade), do espírito (modernidade) e do trabalho intelectual (contemporaneidade), propriedades por excelência da cultura civilizada dos campos da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação (CAPURRO, 1992CAPURRO, Rafael. What is Information Science for? a philosophical reflection. In: VAKKARI, P.; CRONIN, B. (Eds.). Conceptions of Library and Information Science: historical, empirical and theoretical perspectives. London: Taylor Graham,1992. p. 82-96.; EGAN; SHERA, 1952EGAN, Margaret; SHERA, Jesse. Foundations of a theory of bibliography. Library Quarterly, [S.l.], v. 22, n. 2, p. 125-137, 1952.; OTLET, 2018OTLET, Paul. Tratado de documentação: o livro sobre o livro: teoria e prática. Brasília: Briquet de Lemos, 2018.; SHERA, 1970), para as sociedades indígenas não são elementos de distinção entre o humano (cultura) e o animal (natureza), pois, a humanidade é disseminada entre todos os existentes terranos e não uma condição exclusiva e especista do homo sapiens. Tudo é cultural, já que humano, ao seu modo. Nas variações do corpo selvagem, o diverso é a natureza. Sob essa geografia conceitual ameríndia, Eduardo Viveiros de Castro (1996) e Tânia Stolze Lima (1996LIMA, Tânia Stolze. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia Tupi. Mana, v. 2, n. 2, p. 21-47, 1996.) propuseram que ao invés de falarmos em multiculturalismo entre os povos indígenas, especialmente os da América, deveríamos falar em um multinaturalismo - eis a “grande transformação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 168) capaz de descolonizar o pensamento ocidental. Indigenização da modernidade é como se convencionou chamar estas transformações ameríndias. Desde um ponto de vista da teoria crítica, não se trata de “emancipar o nativo”, mas de nos emanciparmos da nossa própria história através da “vacina antropofágica” do nativo: “o nativo nos emancipará de nós mesmos.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 163)

A transformação provocada pela Biblioteconomia Indígena é encantada pela desobediência, transgressão, invenção e reconexão com a fala da terra. O encantamento é um princípio de integração e coexistência entre as alteridades da vida (SIMAS; RUFINO, 2020SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020., p. 5). Diferente do paradigma acumulativo da Biblioteca de Alexandria que fundou a gramática da civilização ocidental a partir das colonizações alexandrinas (BARATIN, 2000BARATIN, Marc. Da biblioteca à gramática: o paradigma da acumulação. In: BARATIN, Marc; JACOB, Christian (org.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no ocidente. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000. p. 227-233.), no mundo ameríndio, a acumulação dos saberes encontra-se disseminada na escuta dos diferentes modos de existência da terra, em corpo e língua.

Comentando o esquema de classificação indígena do bibliotecário Tionerahtoken (Mohawk) Brian Deer, Alissa Cherry e Keshav Mukunda (2015CHERRY, Alissa; MUKUNDA, Keshav. A case study in Indigenous Classification: Revisiting and Reviving the Brian Deer Scheme. Cataloging & Classification Quarterly, [S.l.], v. 53, n. 5-6, p. 548-567, 2015., p. 550, tradução nossa) afirmam que para as sociedades indígenas, os seus conhecimentos e estruturas tradicionais de pensamento não podem ser separados da terra: “a terra é a biblioteca de nossa língua, cultura, história, modo de vida e crenças”. Segundo Cherry e Mukunda (2015), a União dos Chefes Indígenas da Colúmbia Britânica - Union of British Columbia Indian Chiefs (UBCIC) -, região do “jovem bibliotecário Nuxalk da epígrafe da primeira seção”, entende a terra como a cultura dos povos indígenas. Brian Deer, desenvolvedor do esquema de classificação indígena Brian Deer Classification System (BDC), na abertura do seu plano de classificação argumenta que o BDC foi desenvolvido em 1974 para o National Indian Brotherhood (atual Assembleia das Primeiras Nações - Assembly of First Nations), com o intuito de organizar o material informacional indígena e apoiar a pesquisa sobre os direitos à terra dos povos originários. Diferente da “lógica do assunto” fundada pelo ponto de vista aristotélico da classificação, Deer elege a disposição etno-cartográfica dos territórios indígenas no mapa como a condição de organização lógica e física dos conhecimentos indígenas. As estantes do National Indian Brotherhood foram ordenadas como um retrato cartográfico das terras indígenas norte-americanas, sendo a lógica territorial, e não a temática, o critério de vizinhança - princípio de colocação - entre os diferentes materiais indígenas.

Deborah Lee (2011LEE, Deborah. Indigenous Knowledge Organization: a Study of Concepts, Terminology, Structure and (Mostly) Indigenous Voices. Partnership: the Canadian Journal of Library and Information Practice and Research, [S.l.], v. 6, n. 1, p. 1-33, 2011.), uma das principais pesquisadoras da Organização do Conhecimento Indígena (OCI) - Indigenous Knowledge Organization (IKO) - em seu texto seminal Indigenous Knowledge Organization: a Study of Concepts, Terminology, Structure and (Mostly) Indigenous Voices, a partir das vozes indígenas entrevistadas, assinala dois pontos cruciais ao pensamento indígena nos campos da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação: o primeiro, feito um conselho, diz, “comece a partir da terra, ou seja, de uma matriz geográfica” (LEE, 2011LEE, Deborah. Indigenous Knowledge Organization: a Study of Concepts, Terminology, Structure and (Mostly) Indigenous Voices. Partnership: the Canadian Journal of Library and Information Practice and Research, [S.l.], v. 6, n. 1, p. 1-33, 2011., p. 17, tradução nossa) e, o segundo afirma que as questões ontológicas, epistêmicas e sociais dos povos indígenas estão “enraizadas na terra” (LEE, 2011, p. 17, tradução nossa). Na vivacidade da terra é onde se encontra o néctar do pensamento indígena: “pensar se faz antes na relação entre o território e a terra” (DELEUZE; GUATTARI 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. São Paulo: Ed. 34, 1992., p. 103). Entre os indígenas, a leitura da terra em sua palavramundo “se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”, como nos ensina Paulo Freire (1989FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez Editora, 1989., p. 9). A terra é a gramática dos mundos indígenas e a biblioteca que fundamenta os atos biblioteconômicos dessa pesquisa-texto.

2 BIBLIOTECONOMIA INDÍGENA: ANCESTRAIS CONTEMPORÂNEOS

Com flores, Doador da Vida, \ com cantos dás cor, \ com cantos sombreias \ aos que hão de viver na terra. \ Depois porás fim a águias e jaguares. \ Só em teu livro de pinturas vivemos \ aqui sobre a terra. \ Com tinta negra apagarás \ o que foi a irmandade, \ a comunidade, a nobreza. \ Tu sombreia aos que hão de viver na terra. \ Só em teu livro de pintura vivemos, \ aqui sobre a terra.

Miguel León-Portilla citando um bibliotecário-escriba forjador de cantos nahuatl em “Códices: os antigos livros do Novo Mundo” (2012a, p. 87).

A Biblioteconomia Indígena é ancestral, ou seja, é fruto de um saber bibliotecário passado, que não cessa de passar e acontecer nas tramas do presente e das presenças. Este saber está fundamentado sob as bases do conhecimento vivo (living knowledge) (GOSART, 2021GOSART, Ulia. Indigenous librarianship: Theory, practices, and means of social action. International Federation of Library Associations and Institutions, Haia, v. 47, n. 3, p. 293-304, 2021.). As relações ancestrais entre os fios vitais das diferentes existências tecem as redes que estruturam o conhecimento indígena. No campo da Library and Information Science, por exemplo, o pensamento indígena Maori concebe o processo de construção e organização do conhecimento como um trabalho ancestral e conjunto (kotahitanga) de fortalecer as conexões (whakawhanaungatanga) e as relações (kotahitanga) entre as múltiplas presenças portadoras de distintos saberes, fabricando desta maneira “cestas de conhecimento” (kete mātauranga) que estruturam o ponto de vista relacional dos saberes indígenas. Dizem os Maori: com a estrutura certa, tecemos uma cesta forte (ki te tika te hanga, ka pakari te kete) (BARDENHEIER; WILKINSON; DALE, 2015BARDENHEIER, Penelope; WILKINSON, Elizabeth H.; DALE, Hēmi (Te Rarawa, Te Aupōuri). Ki te Tika te Hanga, Ka Pakari te Kete: with the right Structure we weave a strong basket. Cataloging & Classification Quarterly, [S.l.], v. 53, n. 5-6, p. 496-519, 2015.; LILLEY, 2015LILLEY, Spencer C. Ka Pō, Ka Ao, Ka Awatea: The Interface between Epistemology and Māori Subject Headings. Cataloging & Classification Quarterly, [S.l.], v. 53, n. 5-6, p. 479-495, 2015.). Sob este sentido ancestral e contemporâneo, a Biblioteconomia Indígena semeou, semeia e semeará a vivacidade das palavras, ou, como nas palavras floridas dos astecas: “Renuente a desaparecer después de haber entregado su significado, la palabra buscaba vivir eternamente en su forma. El decir no moría en lo dicho, ni el sentir, en lo comprendido.” (JOHANSSON, 2004JOHANSSON, Patrick. Retórica náhuatl o la teatralidad del verbo. In: BERISTÁIN, Helena; RAMIREZ VIDAL, Gerardo (orgs.). La palabra florida: la tradición retórica indígena y novohispana. Ciudad de México: UNAM, 2004. p. 57-72., p. 72)

Antes da invasão da Terra Viva (Abya Yala) pelos europeus, já havia aqui, por exemplo, entre os povos Nahuas (ancestrais dos astecas), livros (amoxtli), bibliotecas (amoxcalli) e bibliotecários (amoxcalmatini) disseminando um saber multidimensional, contido nas “palavras antigas” (huehuehtlahtolli) ensinadas pela retórica indígena nas escolas (calmecac) (BERISTÁIN; RAMIREZ VIDAL, 2004BERISTÁIN, Helena; RAMIREZ VIDAL, Gerardo (orgs.). La palabra florida: la tradición retórica indígena y novohispana. Ciudad de México: UNAM, 2004.; BROTHERSTON, 1997BROTHERSTON, Gordon. La América Indígena en su literatura: los libros del cuarto mundo. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1997.; LEÓN-PORTILLA, 2012aLEÓN-PORTILLA, Miguel. Códices: os antigos livros do Novo Mundo. Florianópolis: Ed. UFSC, 2012a.; JOHANSSON, 1993JOHANSSON, Patrick. La palabra de los aztecas. Ciudad de México: Trillas, 1993.). Este lugar encantado por uma Biblioteconomia terrana era denominado de Amoxtlalpan, Terra dos Livros, e os seus operadores eram chamados de tlahcuilo. O tlahcuilo3 3 Os pintores escribas eram chamados pelos Mayas de dz’ibob (assim como os livros), os Mixtecos denominavam ah ts’ib, os Quiché atribuem a palavra vuh (ou wuj) para livro e os Yucateco chamavam de huun, o papel amate - feito com fibra de figueira - e o livro. (pintor escriba) fazia-se tlamatini (sábio) a partir das tintas negras e vermelhas (tlilli, tlapalli) dos livros (amoxtli)4 4 “Cuida de la tinta negra y roja, los libros, las pinturas, colócate, junto y al lado del que es prudente, del que es sabio. [...] El sabio: una luz, una tea, una gruesa tea que no ahuma. Un espejo horadado, un espejo agujerado por ambos lados. Suya es la tinta negra y roja, de él son los códices, de él son los códices. Él mismo es escritura y sabiduría.” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 146-148) : “Él mismo es escritura y sabiduría.” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 148) Os sábios bibliotecários (amoxcalmatini) de Abya Yala, a terra dos livros vivos, atuavam como tlayoltehuiani, um “endiosador de las cosas” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 147). Endeusar as coisas é atribuir a elas agência e alma através da ancestralidade das pinturas-escritas. Portador de um “corazón endiosado”, o tlahcuilo dialoga com “o coração das coisas” e desperta, através das tintas negras e vermelhas, a alma que habita neste livro comum de pinturas que é a terra para os Nahuas. O bibliotecário terrano “en sí mismo es como un libro de pinturas.” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 148).

Perante a dizimação epistemicida praticada pelos colonizadores e materializada, em um dos seus múltiplos modos, através da queima dos livros indígenas5 5 “Os índios antigos esconderam esses papéis para que não lhes tirassem os espanhóis, quando entraram na cidade e nas terras e ficaram perdidos [os livros], pela morte dos que os esconderam, ou porque os religiosos e o bispo primeiro, Don Juan de Zumárraga, os queimaram, com outros muitos, de muita importância para saber as coisas antigas desta terra, porque como todas elas [as pinturas] eram figuras e caracteres que representavam animais racionais ou irracionais, ervas, árvores, pedras, montes, água, serras e outras coisas desse tom, entenderam que era demonstração de superstição idolátrica; e assim queimaram quantos puderam ter nas mãos que, se não tivessem sido diligentes alguns índios curiosos em esconder parte desses papéis e histórias, não teria, agora, deles ainda a informação que temos.” (TORQUEMADA, 1975 apud LEÓN-PORTILLA, 2012a, p. 65) “Faltam suas pinturas, nas que tinham suas histórias, porque, no tempo em que o Marquês do Vale, Dom Hernando Cortés, com os demais conquistadores entraram por primeira vez nela [em Tezcoco], as queimaram nas casas reais de Nezahualpilli, em um grande aposento que era o arquivo geral de seus papéis, no qual estavam pintadas todas as suas coisas antigas, pelo que, hoje em dia, choram seus descendentes, com muito sentimento, por terem ficado às escuras, sem notícia nem memória dos fatos de seus antepassados. [...] E os [livros] que tinham ficado em poder de alguns principais, uns de uma coisa e outros de outra, os queimaram por temor a Dom fre Juan de Zumárraga, primeiro arcebispo do México, para que não lhes atribuísse coisas de idolatria, porque, naquela ocasião, estava acusado por idólatra, depois de ter sido batizado, Dom Carlos Ometochtzin, filho de Nezahualpilli.” (POMAR, 1964, p. 153) , apenas alguns desses exemplares resistiram: Xiuhámatl: Livros dos anos, Tonalámatl: Livros dos dias e dos destinos, Temicámatl: Livros dos sonhos, Cuicámatl: Livros dos cantos ancestrais, Tlacamecayoámatl: Livros genealógicos, Tlalámatl: Livros de terras, Huehuehtlahtolli: Livros das antigas palavras, Teoamatl: Livros dos deuses, Titici: Livros médicos, Amoxmachiotl: Livros sobre livros (bibliografias), dentre outros, que possuem uma característica expressiva mista - elementos indígenas e coloniais (europeus) - posterior aos primeiros anos de colonização.

Para os indígenas da Terra Viva, o apocalipse foi endógeno, o mundo começou a ruir a partir do mau encontro com os europeus, e desde lá os saberes ancestrais dos povos originários sustentam a queda do céu. David Kopenawa e Bruce Albert (2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) em “A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami” mostram como os povos da mercadoria estão compromissados com o fim do mundo. Recorrendo à ideia Yanomami da queda do céu, Ailton Krenak (2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 27) argumenta que, desde um ponto de vista indígena, “sempre poder contar mais uma história” é um ato de suspensão e resistência do mundo ancestral e vindouro, em detrimento dos desencantamentos dos negadores da vida. Diferente dos povos da mercadoria, para os povos de Pachamama: “la palabra no se vende (ahmo tlacohualli in tlahtolli)”, como já afirmava uma nobre mulher náhuatl, antes da invasão dos espanhóis (LEÓN-PORTILLA, 2004, p. 39). Sustentar a queda do céu com estórias faz parte da ética ancestral indígena. Conectar as estórias da terra narradas pelas diferentes formas de vida é a tarefa ancestral e xamânica dos indígenas, que pode ser condensada na conduta expressa por um xamã rezador (romeya) do povo Marubo do Vale do Javari, na floresta amazônica: chinã ãtinãnãi, isto é, “ligar pensamento” é o saber dos anciões da terra (CESARINO, 2012CESARINO, Pedro de Niemeyer. A escrita e os corpos desenhados: transformações do conhecimento xamanístico entre os Marubo. Revista de Antropologia, [S.l.], v. 55, n. 1, p. 75-137, 2012., p. 78).

A Biblioteconomia Indígena contemporânea traz consigo esta ideia ancestral de comunidade e permanência em seus modos epistêmicos. Ao lado da Biblioteconomia Negra (Black Librarianship), a Biblioteconomia Indígena (Indigenous Librarianship) (re)nasce através do marco dos direitos civis em sua luta anticolonial contra segmentação racial e os discursos supremacistas (white dominant narratives) (LEUNG; LÓPEZ-MCKNIGHT, 2021LEUNG, Sofia Y.; LÓPEZ-MCKNIGHT, Jorge R. (eds.). Knowledge justice: disrupting library and information studies through critical race theory. Cambridge: The MIT Press, 2021.; WIEGAND; WIEGAND, 2018WIEGAND, Wayne A.; WIEGAND, Shirley A. The desegregation of public libraries in the Jim Crow South: civil rights and local activism. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2018.), além do combate aos apagamentos culturais presentes nos Processos e Sistemas de Organização do Conhecimento que classificam o conhecimento indígena de modo inadequado (discriminatório), homogêneo (a partir dos contextos ocidentais) e como relíquias de um passado selvagem, remoto e superado - não mais existente (GOSART, 2021GOSART, Ulia. Indigenous librarianship: Theory, practices, and means of social action. International Federation of Library Associations and Institutions, Haia, v. 47, n. 3, p. 293-304, 2021.).

Do ponto de vista da epistemologia histórica da Biblioteconomia Indígena, este território surge a partir dos questionamentos feitos pelo professor e bibliotecário de origem indígena Thomas Yen-Ran Yeh (1971YEH, Thomas Yen-Ran. The Treatment of the American Indian in the Library of Congress E-F Schedule. Library Resources & Technical Services, [S.l.], v. 15, n. 2, p. 122-126, 1971.) ao chefe da catalogação da Library of Congress, Eugene Frosio (1971FROSIO, Eugene T. Comments on the Thomas Yen-Ran Yeh Proposals. Library Resources & Technical Services, [S.l.], v. 15, n. 2, p. 128-131, 1971.). A crítica de Yeh dirigida a Frosio questionava a representação social e a condição de subalternidade dos indígenas americanos nos Cabeçalhos de Assuntos da Biblioteca do Congresso - Library of Congress Subject Headings (LCSH)6 6 “A literatura documenta as maneiras pelas quais os principais sistemas tendem a marginalizar, omitir ou deturpar os tópicos indígenas. Esses tipos de imprecisões ocorrem por meio da historicização, da falta de especificidade, da falta de relevância, da falta de reconhecimento das nações soberanas e da omissão das realidades históricas da colonização. A prática de catalogação para tópicos indígenas deve reconhecer os nomes, relações, lugares, histórias e conceitos usados pelos povos indígenas. Se as perspectivas indígenas não forem incorporadas às ferramentas de organização do conhecimento, isso criará outra barreira de acesso para os povos indígenas, ao mesmo tempo que perpetua uma representação imprecisa e culturalmente inadequada para o público em geral. [...] A classificação dominante [...] tem um poder sem precedentes para marginalizar os domínios do conhecimento indígena e estabelecer as perspectivas culturais da corrente principal da América do Norte como um mundo-norma.” (BURNS et al., 2009, p. 2040, tradução nossa) . A partir deste debate originário, a Biblioteconomia Indígena e a Organização do Conhecimento Indígena (OCI) surgiram de modo conjugado no início da década de 1970 e constituíram-se, a primeira, como um domínio de conhecimento e, a segunda, como uma metodologia analítica deste domínio. Ambas herdam a agenda das pesquisas indígenas nos campos das ciências humanas e sociais, reunidas pela pesquisadora Maori, Linda Tuhiwai Smith (2018SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Curitiba: Ed. UFPR, 2018., p. 166-187) e sistematizadas em 25 ações metodológicas: reivindicar, testemunhar, contar histórias, celebrar a sobrevivência, relembrar, indigenizar, intervir, revitalizar, conectar, ler, escrever, representar, debater gênero, imaginar o futuro, reestruturar, restaurar, devolver, democratizar, rede de contatos, nomear, proteger, criar, negociar, descobrir e compartilhar.

De maneira sintética e expositiva, Smith (2012SMITH, Linda Tuhiwai. Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. London: Zed Books, 2012., p. 121) resume as 25 ações metodológicas em uma agenda de pesquisa indígena estruturada em 4 categorias fundamentais (Saúde7 7 Saúde: física, espiritual, psicológica, social, coletiva e restaurativa. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa) , Descolonização8 8 Descolonização: política, social, espiritual e psicológica. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa) , Transformação9 9 Transformação: psicológica, social, política, econômica, mudança coletiva. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa) e Mobilização10 10 Mobilização: local, nacional, regional e global. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa) ) e 3 camadas relacionais sobrepostas (Sobrevivência, Recuperação e Desenvolvimento), sendo as categorias e as camadas, vetorizadas pela dimensão nuclear da autodeterminação dos povos indígenas.

Figura 1
Agenda de pesquisa indígena

Por meio desta multifacetada agenda de pesquisa indígena é possível traçar uma cartografia informacional da Biblioteconomia Indígena nas veias abertas dos mundos nativos, por exemplo, com as iniciativas regionais da IFLA - IFLA Cultural Heritage Resources, IFLA Indigenous Matters Section e Indigenous Notions of Ownership and Libraries, Archives and Museums, International Indigenous Librarian’s Forum (IILF) -, da American Indian Library Association (AILA) - Rural, Native, and Tribal Libraries of All Kinds Committee -, dos protocolos de pesquisa com materiais indígenas - Protocols for Native American Archival Materials11 11 Este protocolo é baseado no documento do Pacífico Sul denominado: Aboriginal and Torres Strait Islander Protocols for Libraries, Archives, and Information Services. , Traditional Knowledge Labels e Protocols for the Treatment of Indigenous Materials (American Philosophical Society) -, das Redes de Biblioteconomia Indígena - Digital Public Library of America (DPLA), iNative Research Group12 12 O grupo de pesquisa iNative da University of Washington Information School é composto por pesquisadores, profissionais da informação e estudantes nativos americanos e do Alasca preocupados em enfrentar os desafios informacionais das nações nativas. , Library & Information Needs of Native Peoples -, além das plataformas dos grupos indígenas focados na Biblioteconomia, na Documentação e na Ciência da Informação Indígena - Association of Tribal Archives, Libraries, and Museums (ATALM), The Digital Atlas of Native American Intellectual Traditions (DANAIT), Mukurtu13 13 Mukurtu é uma plataforma de arquivo comunitário gratuita e de código aberto projetada pelas comunidades indígenas, bibliotecas, arquivos e museus. Mukurtu é construído sobre um sistema de gerenciamento comunitário de conteúdo com a finalidade de preservação e divulgação do patrimônio cultural indígena. , First Nations Interest Group, dentre outras. Uma cartografia informacional nativa também aponta para os processos e sistemas do campo da Organização do Conhecimento Indígena (OCI) a partir de iniciativas informacionais perspectivadas pelo pensamento indígena americano e mundial como o Subject Access and Classification Committee Wiki da AILA, o Library of Congress Subject Headings Related to Indigenous Peoples, o The Mashantucket Pequot Thesaurus of American Indian Terminology Project, o Maori Subject Headings Thesaurus (Nga Upoko Tukutuku), o Thesaurus of Australian Institute for Aboriginal and Torres Strait Islander Studies (AIATSIS), o First Nations Subject Headings, o Project Naming da Library and Archives Canada (LAC), a Indigenous Ontology das First Nations, Métis, and Inuit do Canadá e o X̱wi7x̱wa Library Classification System, que é uma adaptação do Brian Deer Classification System (BDCS).

Todas essas experiências indígenas contemporâneas revigoram os saberes ancestrais da Biblioteconomia, mas também da Documentação e da Ciência da Informação, que indigenizadas compartilham do horizonte cosmopolítico e acional da terra como fabricadora de um conhecimento vivo. Descolonizando o pensamento da teoria clássica da BDCI que abordava os objetos de pesquisa dos campos como representações de processos mentais e/ou linguísticos capturados como “unidades de conteúdo”, Gosart (2021GOSART, Ulia. Indigenous librarianship: Theory, practices, and means of social action. International Federation of Library Associations and Institutions, Haia, v. 47, n. 3, p. 293-304, 2021.) argumenta que as perspectivas indígenas são uma guinada nos saberes da BDCI, pois provocam uma transformação radical na concepção de conhecimento, reencantando-a ao nutri-la de vida.

3 VIDA: O NÉCTAR DO PENSAMENTO BIBLIOTECONÔMICO INDÍGENA

Assim está lançada a tarefa do encantamento: afirmar a vida neste e nos outros mundos - múltiplos feito as folhas - como pássaros capazes de bailar acima das fogueiras, com a coragem para desafiar o incêndio e o cuidado para não queimar as asas. Chamuscados, feridos, mas plenos e intensos, cantando por saber que a vida é voo.

Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, “Encantamento” (2020SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020., p. 15-16).

Vari mai nãko / Nãko osõatõsho / Wení katsiinã | Néctar da terra-sol / Dentro do néctar / Surgimento começa.

Pedro Cesarino, “Cânticos Marubo da Formação do Céu e da Terra”

(2018, p. 54-55)

Elemento expressivo do pensamento indígena, em específico o ameríndio, o néctar é a fonte de onde o “surgimento começa”. Os Marubo dizem que o néctar é o chinã da terra, ou seja, a vida/pensamento que faz a terra falar (mai vanainai) (CESARINO, 2013CESARINO, Pedro de Niemeyer (org.). Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia Marubo. São Paulo: Ed. 34, 2013., p. 55-68). No princípio do mundo, quando a “‘terra era nova’ (mai vená), tudo falava” (CESARINO, 2013, p. 58). Os desencontros e as más decisões trouxeram o desencantamento - “minha vida enfraqueceu” (ea china natsoai) - e então a terra deixou de falar (vana enemativo). Reencontrar o néctar para reencantar de vida o mundo é uma tarefa ética ancestral dos povos indígenas, sob diferentes faces e nomes.

Os mundos ameríndios trazem elementos para uma crítica decolonial da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação, a partir da diferença do princípio da relação social baseado no outro. A diferença é um princípio de relacionalidade. Sob esta perspectiva que se insere a dimensão vitalista da “lei do antropófago” segundo Oswald de Andrade (2011ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011., p. 67) - “só me interessa o que não é meu”, ou seja, só me interessa o outro. Não há objetivação ou desencanto que limite a relação à uma identidade objetiva ou subjetiva. O que há é uma constante variação destinada à aglutinação do outro como um princípio agentivo de aprendizado e diferenciação cultural da humanidade. Ao invés da identidade fraternal e especista, a relação social ameríndia é marcada pela dimensão diferencial com um outro qualquer com quem se deseja estabelecer uma relação genérica. O outro é “o termo que cria a relação onde nenhuma existia. É a forma pela qual o desconhecido é tornado conhecido”, ou, em outras palavras, através do caminho ou do método da equivocação controlada do perspectivismo: “a relação ameríndia é uma diferença de perspectiva. Enquanto tendemos a conceber a ação de se relacionar como um descartar de diferenças em favor de semelhanças, o pensamento indígena vê o processo por outro ângulo: o oposto da diferença não é a identidade mas a indiferença.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Antropologia perspectivista e o método da equivocação controlada. Aceno: Revista de Antropologia do Centro-Oeste, [S.l.], v. 5, n. 10, p. 247-264, 2018b., p. 261) Diferenciar-se é marcar o seu ponto de vista perante toda a humanidade de humanos, animais, plantas, minerais, mortos e espíritos. Neste território localiza-se o encantamento da fala do bibliotecário Nuxalk - a terra é a nossa biblioteca - e o voo da Biblioteconomia terrana dos indígenas como uma transformação, não dos nomes, mas na natureza das coisas - uma epistemologia constante com ontologias variáveis, as mesmas representações para outros objetos, um mesmo significado para múltiplos referentes. A biblioteca como terra é uma diferença indígena metódica e furtiva na ordem dos significados biblioteconômicos.

O perspectivismo projeta uma imagem da tradução como um processo de equivocação controlada - ‘controlada’ no sentido que caminhar pode ser descrito como um jeito controlado de cair. O perspectivismo indígena é uma teoria da equivocação, ou seja, da alteridade referencial entre conceitos homonímicos. A equivocação aparece aqui como o modo de comunicação por excelência entre posições perspectivas diferentes. (VIVEIROS DE CASTRO, 2018bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Antropologia perspectivista e o método da equivocação controlada. Aceno: Revista de Antropologia do Centro-Oeste, [S.l.], v. 5, n. 10, p. 247-264, 2018b., p. 251)

Portanto, como contraponto à percepção desencantada do mundo dos ocidentais, a crítica ameríndia está marcada pela insígnia decolonial do encantamento da vida. Desde um ponto de vista dos campos da BDCI, o pensamento indígena ameríndio socialmente anima os nossos artefatos culturais. Em oposição ao desencantamento objetivo do mundo que engloba os campos modernos da BDCI, a vida é a rebeldia indígena que descoloniza, desobstrui e vitaliza outras relações possíveis para os “objetos” dos nossos campos, através da vivacidade do conhecimento presente nas plantas, animais, pedras, árvores, montanhas, rios, lagos e em uma série de outras entidades vivas14 14 “O conhecimento é compartilhado com toda a criação. Não são apenas relacionamentos interpessoais [...] mas um relacionamento com toda a criação. É com o cosmos, com os animais, com as plantas, com a terra que compartilhamos esse conhecimento.” (WILSON, 2001, p. 177, tradução nossa) .

Neste sentido, Ailton Krenak (2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 17) argumenta que “tudo é natureza”, tudo o que consegue pensar é natureza - as paisagens têm sentido, o rio canta, dança e se alegra com os seres que com ele compartilham vida. “O rio é nosso avô”, diz Ailton Krenak (2019, p. 40). Como narrado por Krenak, Philippe Descola (2016DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas. São Paulo: Ed. 34, 2016., p. 13) relata que para os povos Achuar da Amazônia equatoriana, as plantas e os animais são pessoas como nós. Em termos ontoepistêmicos, para os povos logocêntricos do Ocidente, a condição comum entre os humanos e os animais é a natureza e a forma geral do Outro é a coisa | o ente. Conhecer é dessubjetivar/objetivar. Para os povos ameríndios, a condição entre os humanos e os animais é a humanidade cultural. Humanidade é o nome da forma geral do Outro: a Pessoa (Sujeito) | o Não-Ente. Conhecer é personificar (VIVEIROS DE CASTRO, 2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2017., p. 358).

Desta paisagem indígena nasceu a proposição do “livro vivo” (MENEZES, 2021aMENEZES, Vinícios Souza de Menezes. Da representação à perspectivação de(s)colonial do conhecimento: a ontologia informacional sob a tez ameríndia. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 1-25, 2021a., 2021bMENEZES, Vinícios Souza de. Outros livros, outras grafias: relatos indígenas. Bibliothecae.it, Bologna, v. 10, n. 2, p. 219-254, 2021b.), uma inspiração ancestral e um legado do povo Huni Kuĩ, em especial, da obra compilada pelo pajé Agostinho Manduca Mateus Ika Muru (2012IKA MURU, Agostinho Manduca Mateus (org.). Huna Hiwea, o Livro Vivo. Belo Horizonte: Literaterras, 2012.) denominada “Huna Hiwea, o Livro Vivo”.

Ter o livro, nosso Livro Vivo, porque os antigos, quando surgiu doença, se preocuparam em se transformar em ervas para socorrer o seu povo. Como o primeiro pajé, que descobriu como se transformar em ervas dos grupos Dua, Banu, Inani e Inu, para socorrer os Huni Kuĩ, assim eu também me preocupei em deixar esta mensagem de conhecimento para o meu povo, meus filhos e netos; para toda a comunidade e para os que vão ver esse documento da identidade e do conhecimento do nosso povo antepassado. [...] o Livro Vivo não é para acabar mais nunca [...]. Por que Livro Vivo? Porque a natureza está viva, as ervas que se transformaram estão vivas e os pesquisadores estão vivos, e os autores deste livro, que tiveram a experiência de fazer esta documentação. [...] E tem os parques: tem essa quantidade de famílias de plantas, que são essas 352 espécies no parque que eu criei. Então o Livro Vivo é também o parque onde mora nosso povo ancestral, que são as famílias de ervas que se transformaram. (IKA MURU, 2012IKA MURU, Agostinho Manduca Mateus (org.). Huna Hiwea, o Livro Vivo. Belo Horizonte: Literaterras, 2012., p. 6-7)

O livro vivo é um corpo indígena, portador de grafismos classificadores das relações com o mundo sociocósmico15 15 “Estaríamos assim diante de uma ‘condensação visual’ [...] Teríamos a condensação de várias ‘vestimentas’ sobre um só suporte, o corpo do homem. Teríamos então um homem (segundo o seu ponto de vista e o de sua sociedade), cuja pele é o suporte de grafismos (de motivos agentivos que são a imagem - ou parte da imagem - de outros seres segundo seus pontos de vista), vendo realizar sobre si o poder agentivo da transformação gráfica, ou seja, a realização do processo de metamorfose feito pela sobreposição e pela condensação das imagens.” (MACEDO, 2009, p. 518) , cuja instituição bibliográfica é a vida. Em um mundo habitado por diferentes espécies de sujeitos, pessoas humanas e não-humanas, dotadas de pontos de vista distintos, cuja condição geral é a humanidade, o livro não deixa de ter lugar. O que lhe ocorre é que este deixa de ser um ente dessubjetivado para afetar-se pela alteridade radical: a vida. O que há é uma variação na natureza do livro, não na ordem linguística do nome, mas na dimensão pronominal e significativa da coisa. O livro deixa de ser uma coisa cultural, um ente existencialmente destacado da natureza - uma técnica cultural, diria Briet (2016BRIET, Suzanne. O que é a documentação? Brasília: Briquet de Lemos, 2016.) -, para tornar-se naturalmente um corpo dotado de pessoalidade, que varia conforme os usos dos seus desenhos, das suas pinturas escritas, grafadas nas peles do mundo pelos tlahcuilos ancestrais e contemporâneos. O livro da Terra Viva é vivo e, ao inscrever a alteridade, a interpreta como pessoa encantada, seja ela viva, morta ou espiritual: nunca desencantada. O livro indígena é afirmado no devir, avesso ao livro como representação (OTLET, 2018OTLET, Paul. Tratado de documentação: o livro sobre o livro: teoria e prática. Brasília: Briquet de Lemos, 2018., p. 55) e distinto do “despersonificado” livro mallarmaico, “instrumento espiritual” de “expansão total da letra”, lugar do “sentido sepultado”, onde: “tudo, no mundo, existe para culminar num livro.” (MALLARMÉ, 2010MALLARMÉ, Stéphane. Divagações. Florianópolis: Editora UFSC, 2010., p. 180) Diferente, o livro vivo dos povos indígenas co-existe com o mundo em uma zona viva de diferença.

4 CONCLUSÃO: UM CARACOL DE POSSIBILIDADES, OU, UM DEVIR OUTRO BIBLIOTECONÔMICO PARA A DOCUMENTAÇÃO E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

O Doador da Vida é um tlahcuilo (pintor-escriba), um poeta que declara que tudo o que existe na Terra está pintado e inscrito em um amoxtli (livro) que se encontra nas mãos de quem também é Tloque Nahuaque (Dono da Cercania e da Proximidade). Em seu papel de criador, o Tloque Nahuaque é um tlahcuilo. O mundo está pintado e só existe em seu portentoso livro. Flores e cantos lhe dão vida. Mais tarde quando a vida se conclui, sua página se fecha no livro.

Miguel León-Portilla citando um bibliotecário-escriba forjador de cantos nahuatl em “Códices: os antigos livros do Novo Mundo” (2012a, p. 262).

Comum no mundo ameríndio mesoamericano, o caracol é um ser de possibilidades e uma imagem metafórica do tempo indígena cujo princípio e o fim são indeterminados, feito uma biblioteca16 16 Júnia Marúsia Trigueiro de Lima reproduz o Comunicado Zapatista de 6 de janeiro de 1995, onde o símbolo indígena do caracol, através da imagem da Biblioteca, aparece em suas possibilidades organizativas, ontológicas e temporais (2014, p. 224): “La Biblioteca de Aguascalientes es el final y el comienzo del caracol y no tiene entrada ni salida definidas. Quiero decir que, en el gigantesco caracol que describió Tacho para explicar la disposición arquitectónica de Aguascalientes, la Biblioteca está en el inicio y el fin. La casa de seguridad, ‘que guarda los más grandes secretos de la organización’, está en el otro final y principio del remolino. Recorro con la vista la gigantesca espiral en que se alinean las construcciones e imagino que sólo desde un satélite especial se podrá apreciar la figura del caracol ‘que desde la selva llama’”. . Esta indeterminação própria da vida e do inacabamento das bibliotecas, desde um ponto de vista indígena, porta um “devir outro”, como expresso por Kopenawa e Albert (2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 66) em seu livro vivo, ou, utupayasiki - sua pele de imagens. Trata-se de encaracolar a Biblioteconomia Indígena e o livro vivo nas dimensões espessas da Documentação e da Ciência da Informação para transformar os olhos ontoepistêmicos e imbuir de espírito o desencantado mundo das “unidades de conteúdo”.

Sob esta perspectiva de um mundo todo vivo, Geir Grenersen, Kjell Kemi e Steinar Nilsen (2016GRENERSEN, Geir; KEMI, Kjell; NILSEN, Steinar. Landscapes as documents: the relationship between traditional Sámi terminology and the concepts of document and documentation. Journal of Documentation, [S.l.], v. 72, n. 6, p. 1181-1196, 2016.) assinalam para uma perspectiva indígena da Documentação Viva (Living Documentation) inscrita nas paisagens do mundo e no documento vivo (living document)17 17 Um dos primeiros usos da expressão “living documents” (documentos vivos) foi feito, em 2005, pelo protocolo da Biblioteca Aborígene e da Rede de Recursos de Informação das Ilhas do Estreito de Torres (ATSILIRN). Esta expressão é também compartilhada por Brett Lougheed, Ry Moran e Camille Callison (2015), desde a perspectiva indígena canadense do National Research Centre for Truth and Reconciliation. Desenvolvendo esta perspectiva a partir dos povos indígenas Sámi, do norte europeu, Grenersen, Kemi e Nilsen (2016, p. 1188, tradução nossa) argumentam que: “Para os Sámi, um animal vivo retirado de seu habitat natural é uma forma fraca de documentação. Uma rena cercada não diz muito sobre como esse animal se comporta na natureza. A afirmação de Briet de que um animal selvagem não é um documento não faz sentido em um contexto Sámi, onde o animal selvagem pode ser observado como uma fonte vital de informações ligadas a quase todos os aspectos da prática dos pastores. O comportamento dos animais em relação ao clima e à paisagem é a mais importante fonte de informação disponível para os pastores de renas em caminhada, ainda hoje na era digital.” . Dovdat18 18 Dovdat significa saber. Também faz parte dos seus contextos de usos as ações de perceber, sentir, notar, experienciar, entender e reconhecer. ou dow’dat são as palavras Sámi para a documentação/documento (GRENERSEN; KEMI; NILSEN, 2016GRENERSEN, Geir; KEMI, Kjell; NILSEN, Steinar. Landscapes as documents: the relationship between traditional Sámi terminology and the concepts of document and documentation. Journal of Documentation, [S.l.], v. 72, n. 6, p. 1181-1196, 2016., p. 1181). O documento para o povo indígena Sámi é multimodal e pode ser entendido a partir de duas perspectivas: i) o modo forte de documentação, alcançado quando se vê, ouve e sente as coisas com os próprios sentidos e ii) o modo fraco de documentação, aquele que é produzido fora da natureza - o modo ocidental. Neste último, o objeto ganha status de documento a partir da sua “mortificação” (desencantamento), da sua desvinculação com os processos vivos do mundo. Diferente de dovdat - o documento segundo o modo forte de documentação -, o documento artificial é chamado por um termo não-Sámi, dokumeanta - um empréstimo substantivo. Para ser considerado verdadeiro e confiável, o documento Sámi deve ser vivo, estar conectado com os fluxos de conhecimento, de experiência e com a vitalidade das relações que lhes são constitutivas. O dovdat (documento) é fruto do pensamento linguístico Sámi, onde os verbos possuem funções mais proeminentes que os substantivos, isto é, a linguagem para um Sámi é um instrumento de observação de pessoas e seu conceito de documento tem uma tendência a enfatizar a vivacidade do processo e das interações mais do que a representação dos objetos e substâncias.

Desde o ponto de vista informacional, o giro indígena nas tradições físicas e cognitivas se dá, dentre outros aspectos, por meio da concepção do conceito de informação. Tanto a tradição física quanto a cognitiva estão encerradas no paradigma da consciência que constitui a moderna dinâmica fundante da teoria do conhecimento entre sujeitos e objetos. Objetivamente, o fisicalismo informacional se dá através de uma percepção humana ou não-humana (autômata) das realidades físicas do mundo a ser conhecido. O objeto é apreendido pelo sujeito (O→S). Subjetivamente, o mentalismo ou cognitivismo informacional é uma relação que se constitui por meio da imposição interpretativa do sujeito acerca do objeto de conhecimento. O sujeito produz o objeto (S→O). Já o paradigma social da informação, de viés ocidental, inova ao se colocar na relacionalidade social entre o sujeito e o objeto (S←So→O). Sujeito e objeto, categorias por excelência do conhecer, são construídas seletivamente por meio da partilha informacional de um mundo comum de ações sociais. A pragmática social gera política e epistemologicamente os sujeitos e os objetos do conhecimento. As bases de fundamentação da perspectiva informacional indígena não são parte do paradigma da consciência, como as tradições físicas e cognitivas, e diferem da percepção social do outro como uma alteridade de si mesmo. Nos mundos indígenas, a dimensão xamânica, inconsciente e onírica informa a vida. Sonhar à maneira dos povos ameríndios, com nossos livros, informações e documentos, é um modo de estudá-los, de preencher-se de lembranças, muitas vezes mutiladas pelos empreendimentos coloniais. O sonho não é um modo de alienação do mundo real, nem uma renúncia da vida prática, mas a via régia do conhecimento indígena. Trata-se de um modo concreto de aprendizado e onirismo especulativo, onde as questões da vida prática encontram-se abertas como possibilidades.

Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. [...] instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas. (KRENAK, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 52-53)

O social é sonhado através do espelho perspectivo do outro. Pela via subjetiva do meu semelhante, minha irmã é para meu cunhado sua esposa. Pela via objetiva das coisas, onde vejo sangue, a onça vê cerveja, a carne assada está para os humanos assim como a carniça está para os urubus. A diferença de perspectiva não altera a linguagem da palavra, mas o estatuto das coisas por ela nomeadas. A terra é a biblioteca indígena. O corpo indígena é seu modo de informar-se. A língua, a sua maneira de documentar as estórias das humanidades multinaturais. “Nós do povo Guarani estamos dentro das palavras, para que vivas façam com que arandu (conhecimento tradicional) permaneça”, visto que, “vivemos dentro da escrita viva, pois para o ‘bem viver futuramente’ (teko porã rã) nosso modo de ser precisa falar o que vivemos e vivemos dentro das palavras e sentimos as palavras que falamos”, testemunha de Sandra Benites, antropóloga Guarani (2018 apud FRANCHETTO, 2018FRANCHETTO, Bruna. Brasil de muitas línguas. In: CASSIN, Bárbara (coord.). Dicionário dos intraduzíveis: um vocabulário das filosofias. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 77-100., p. 94-95). A busca por esta chama viva é o destino da Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação Indígenas.

A estória marginal dos conceitos de livro, documento e informação compõe-se de personagens conceituais dissidentes, de línguas menores provocadoras de multiplicidades, diferenciações, acontecimentos e devires na extensão da língua maior da informação. Este texto visou estabelecer agenciamentos com camadas outras de interpretação do livro, do documento e da informação. Trata-se de um programa vitalista, ou seja, por meio da abundância de vida dos mundos indígenas, untar com o néctar animista os nossos objetos - livro, documento e informação -, os nossos campos - Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação -, as nossas instituições - bibliotecas, centros de documentação e redes e sistemas informacionais - e as nossas profissões - bibliotecários, documentalistas e cientistas da informação -, desencantadas pela colonialidade ocidental. Instalar-se no espaço do equívoco entre eles e nós, e encaracolar-se, é a tarefa tradutora perseguida por este texto. Traduzir não para silenciar o outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última entre o que ele e nós estamos dizendo, mas, ao avesso, fazer morada no pensamento indígena para que ele enquanto língua originária deforme, descolonize, subverta e transforme os destinos e as geografias conceituais da nossa língua.

REFERÊNCIAS

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    Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.
  • 1
    “Terranos, isto é, a todos os existentes enquanto partes do mundo, aqueles inumeráveis pontos de vista cujo entrecruzamento constitui o mundo, e que são, enquanto tais (se é que é possível pensá-los ‘enquanto tais’), expressões monadológicas discordantes de um Mundo que não tem antônimo ou antagonista, porque não é um Objeto a espera de um Sujeito, de um ponto de vista transcendente. O mundo ‘sem o Homem’ desse Antropoceno vivido sob o modo da resistência se encontraria assim com o mundo ‘feito de gente’ das cosmogonias ameríndias: a transcendência definitiva de Gaia se torna indistinguível da imanência antropogeomórfica originária postulada pelos ‘povos de Pachamama’”. (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 146)
  • 2
    A partir das designações etno-cartográficas da Conquista do Novo Mundo, Carlos Jáuregui (2008) chama de Canibalia, a conformação palimpséstica das diferenças culturais da América. Em suas palavras, “la Canibalia es entonces resultado de una mirada cartográfica al Outro; mirada panóptica que autoriza epistemologicamente al colonialismo y que incluye no solamente los numerosos mapas en los que el signo del canibal representa y señala a América como lugar del deseo y lugar de dominación, sino también los trabajos etnográficos que organizaron un sistema de representación de la Otredad sobre el eje de los sacrifícios humanos y el canibalismo. Estas etno-cartografías asientan - mediante el tropo caníbal - el lugar espacial, moral y político del colonizado, y su tempo salvaje o asincronía respecto de la hora de la civilización (salvajismo, niñez, inferioridade).” (JÁUREGUI, 2008, p. 27-28)
  • 3
    Os pintores escribas eram chamados pelos Mayas de dz’ibob (assim como os livros), os Mixtecos denominavam ah ts’ib, os Quiché atribuem a palavra vuh (ou wuj) para livro e os Yucateco chamavam de huun, o papel amate - feito com fibra de figueira - e o livro.
  • 4
    “Cuida de la tinta negra y roja, los libros, las pinturas, colócate, junto y al lado del que es prudente, del que es sabio. [...] El sabio: una luz, una tea, una gruesa tea que no ahuma. Un espejo horadado, un espejo agujerado por ambos lados. Suya es la tinta negra y roja, de él son los códices, de él son los códices. Él mismo es escritura y sabiduría.” (LEÓN-PORTILLA, 2012b, p. 146-148)
  • 5
    “Os índios antigos esconderam esses papéis para que não lhes tirassem os espanhóis, quando entraram na cidade e nas terras e ficaram perdidos [os livros], pela morte dos que os esconderam, ou porque os religiosos e o bispo primeiro, Don Juan de Zumárraga, os queimaram, com outros muitos, de muita importância para saber as coisas antigas desta terra, porque como todas elas [as pinturas] eram figuras e caracteres que representavam animais racionais ou irracionais, ervas, árvores, pedras, montes, água, serras e outras coisas desse tom, entenderam que era demonstração de superstição idolátrica; e assim queimaram quantos puderam ter nas mãos que, se não tivessem sido diligentes alguns índios curiosos em esconder parte desses papéis e histórias, não teria, agora, deles ainda a informação que temos.” (TORQUEMADA, 1975 apud LEÓN-PORTILLA, 2012a, p. 65) “Faltam suas pinturas, nas que tinham suas histórias, porque, no tempo em que o Marquês do Vale, Dom Hernando Cortés, com os demais conquistadores entraram por primeira vez nela [em Tezcoco], as queimaram nas casas reais de Nezahualpilli, em um grande aposento que era o arquivo geral de seus papéis, no qual estavam pintadas todas as suas coisas antigas, pelo que, hoje em dia, choram seus descendentes, com muito sentimento, por terem ficado às escuras, sem notícia nem memória dos fatos de seus antepassados. [...] E os [livros] que tinham ficado em poder de alguns principais, uns de uma coisa e outros de outra, os queimaram por temor a Dom fre Juan de Zumárraga, primeiro arcebispo do México, para que não lhes atribuísse coisas de idolatria, porque, naquela ocasião, estava acusado por idólatra, depois de ter sido batizado, Dom Carlos Ometochtzin, filho de Nezahualpilli.” (POMAR, 1964, p. 153)
  • 6
    “A literatura documenta as maneiras pelas quais os principais sistemas tendem a marginalizar, omitir ou deturpar os tópicos indígenas. Esses tipos de imprecisões ocorrem por meio da historicização, da falta de especificidade, da falta de relevância, da falta de reconhecimento das nações soberanas e da omissão das realidades históricas da colonização. A prática de catalogação para tópicos indígenas deve reconhecer os nomes, relações, lugares, histórias e conceitos usados pelos povos indígenas. Se as perspectivas indígenas não forem incorporadas às ferramentas de organização do conhecimento, isso criará outra barreira de acesso para os povos indígenas, ao mesmo tempo que perpetua uma representação imprecisa e culturalmente inadequada para o público em geral. [...] A classificação dominante [...] tem um poder sem precedentes para marginalizar os domínios do conhecimento indígena e estabelecer as perspectivas culturais da corrente principal da América do Norte como um mundo-norma.” (BURNS et al., 2009, p. 2040, tradução nossa)
  • 7
    Saúde: física, espiritual, psicológica, social, coletiva e restaurativa. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa)
  • 8
    Descolonização: política, social, espiritual e psicológica. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa)
  • 9
    Transformação: psicológica, social, política, econômica, mudança coletiva. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa)
  • 10
    Mobilização: local, nacional, regional e global. (SMITH, 2012, p. 121, tradução nossa)
  • 11
    Este protocolo é baseado no documento do Pacífico Sul denominado: Aboriginal and Torres Strait Islander Protocols for Libraries, Archives, and Information Services.
  • 12
    O grupo de pesquisa iNative da University of Washington Information School é composto por pesquisadores, profissionais da informação e estudantes nativos americanos e do Alasca preocupados em enfrentar os desafios informacionais das nações nativas.
  • 13
    Mukurtu é uma plataforma de arquivo comunitário gratuita e de código aberto projetada pelas comunidades indígenas, bibliotecas, arquivos e museus. Mukurtu é construído sobre um sistema de gerenciamento comunitário de conteúdo com a finalidade de preservação e divulgação do patrimônio cultural indígena.
  • 14
    “O conhecimento é compartilhado com toda a criação. Não são apenas relacionamentos interpessoais [...] mas um relacionamento com toda a criação. É com o cosmos, com os animais, com as plantas, com a terra que compartilhamos esse conhecimento.” (WILSON, 2001, p. 177, tradução nossa)
  • 15
    “Estaríamos assim diante de uma ‘condensação visual’ [...] Teríamos a condensação de várias ‘vestimentas’ sobre um só suporte, o corpo do homem. Teríamos então um homem (segundo o seu ponto de vista e o de sua sociedade), cuja pele é o suporte de grafismos (de motivos agentivos que são a imagem - ou parte da imagem - de outros seres segundo seus pontos de vista), vendo realizar sobre si o poder agentivo da transformação gráfica, ou seja, a realização do processo de metamorfose feito pela sobreposição e pela condensação das imagens.” (MACEDO, 2009, p. 518)
  • 16
    Júnia Marúsia Trigueiro de Lima reproduz o Comunicado Zapatista de 6 de janeiro de 1995, onde o símbolo indígena do caracol, através da imagem da Biblioteca, aparece em suas possibilidades organizativas, ontológicas e temporais (2014, p. 224): “La Biblioteca de Aguascalientes es el final y el comienzo del caracol y no tiene entrada ni salida definidas. Quiero decir que, en el gigantesco caracol que describió Tacho para explicar la disposición arquitectónica de Aguascalientes, la Biblioteca está en el inicio y el fin. La casa de seguridad, ‘que guarda los más grandes secretos de la organización’, está en el otro final y principio del remolino. Recorro con la vista la gigantesca espiral en que se alinean las construcciones e imagino que sólo desde un satélite especial se podrá apreciar la figura del caracol ‘que desde la selva llama’”.
  • 17
    Um dos primeiros usos da expressão “living documents” (documentos vivos) foi feito, em 2005, pelo protocolo da Biblioteca Aborígene e da Rede de Recursos de Informação das Ilhas do Estreito de Torres (ATSILIRN). Esta expressão é também compartilhada por Brett Lougheed, Ry Moran e Camille Callison (2015), desde a perspectiva indígena canadense do National Research Centre for Truth and Reconciliation. Desenvolvendo esta perspectiva a partir dos povos indígenas Sámi, do norte europeu, Grenersen, Kemi e Nilsen (2016, p. 1188, tradução nossa) argumentam que: “Para os Sámi, um animal vivo retirado de seu habitat natural é uma forma fraca de documentação. Uma rena cercada não diz muito sobre como esse animal se comporta na natureza. A afirmação de Briet de que um animal selvagem não é um documento não faz sentido em um contexto Sámi, onde o animal selvagem pode ser observado como uma fonte vital de informações ligadas a quase todos os aspectos da prática dos pastores. O comportamento dos animais em relação ao clima e à paisagem é a mais importante fonte de informação disponível para os pastores de renas em caminhada, ainda hoje na era digital.”
  • 18
    Dovdat significa saber. Também faz parte dos seus contextos de usos as ações de perceber, sentir, notar, experienciar, entender e reconhecer.

EDITORES

Franciéle Garcês, Natalia Duque Cardona, Edgar Bisset Alvarez, Ana Clara Cândido, Genilson Geraldo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2023
  • Aceito
    26 Mar 2023
  • Publicado
    05 Maio 2023
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