Acessibilidade / Reportar erro

MULTILETRAMENTO ENGAJADO PARA A PRÁTICA DO BEM VIVER

Engaged Multiliteracy for the Practice of Good Living

Multiliteracidad comprometida para la práctica del buen vivir

Resumo

No atual contexto de necropolítica (MBEMBE, 2016), em que a decisão de viver ou morrer está na mão de alguns, a educação tem um importante papel na constituição de espaços para a criação de possibilidades de futuro. Nessa direção, este artigo expõe as bases teóricas e a práxis do Multiletramento Engajado. Parte da apresentação da demanda por práticas pedagógicas que promovam o “bem viver” e, para isso, discute as bases freirianas e vygotskianas para entender as reformulações e as proposições implementadas na Pedagogia dos Multiletramentos como forma de criação do Multiletramento Engajado. Finaliza com a exemplificação de uma proposta didática realizada no Programa Digitmed e com considerações e caminhos a serem percorridos a partir dessa nova perspectiva na busca de possibilidades de superação da necropolítica por meio do engajamento de todos na compreensão e na transformação das condições de opressão.

Palavras-chave:
Multiletramento Engajado; Bem viver; Freire; Vygotsky; Pedagogia dos Multiletramentos

Abstract

In the current context of necropolitics (MBEMBE, 2016), in which the decision to live or die is up to some individuals, education owns an important role in organizing spaces to create possibilities for the future. In this direction, this article sets out theoretical bases and praxis of the Engaged Multiliteracy, presenting the demand for pedagogical practices that promote the “good living.” For that purpose, it discusses the Freirian and Vygotskian bases in order to understand the reformulations and propositions implemented in the Pedagogy of Multiliteracies ​​as a way of creating the Engaged Multiliteracy. Finally, this text exemplifies a didactic proposal carried out in the Digitmed Program and presents considerations and paths to be taken from the Engaged Multiliteracy, searching for possibilities of overcoming necropolitics through everybody’s engagement into the understanding and transformation of oppressive conditions of living.

Keywords:
Engaged Multiliteracy; Good living; Freire; Vygotsky; Pedagogy of Multiliteracies

Resumen

En el actual contexto de necropolítica (MBEMBE, 2016), en el que la decisión de vivir o morir está en manos de unos, la educación juega rol importante en la constitución de espacios para la creación de posibilidades de futuro. En tal sentido, este artículo expone las bases teóricas y la praxis de la Multiliteracidad Comprometida. Se empieza con la presentación de la necesidad de prácticas pedagógicas que promuevan el “buen vivir” y, para ello, discute las bases de Freire y Vygotsky para comprender las reformulaciones y proposiciones implementadas en la Pedagogía de las Multiliteracidades como forma de hacer la Multiliteracidad Comprometida. Se finaliza con el ejemplificación de una propuesta didáctica realizada en el Programa Digitmed y con consideraciones y caminos a seguir desde esa nueva perspectiva en la búsqueda de posibilidades de superación de la necropolítica a través del compromiso de todos en la comprensión y transformación de las condiciones de opresión.

Palabras clave:
Multiliteracidad Comprometida; Buen Vivir; Freire; Vygotsky; Pedagogía de las Multiliteracidades

Nós estamos vivendo um momento no nosso Planeta que suspende a todos nós do nosso estado cotidiano. E não podemos operar no automático. Cada um de nós acordou nesta manhã com a experiência de um repouso e uma recepção de um dia novo que nos aparece. Nós não podemos viver no automático. (KRENAK, 2020KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Organização Bruno Maia. Cultura do bem viver, 2020. Disponível em: http://www.culturadobemviver.org/. Acesso em: 30 abr. 2021.
http://www.culturadobemviver.org...
, p. 4).

1 INTRODUÇÃO

A crise de Covid-19 deixou clara a existência, por muitas vezes, fútil e precária de nossas vidas. Permitiu-nos entender quão dissociados da realidade e de uma cosmovisão estamos. Considerando os questionamentos de Krenak (2020KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Organização Bruno Maia. Cultura do bem viver, 2020. Disponível em: http://www.culturadobemviver.org/. Acesso em: 30 abr. 2021.
http://www.culturadobemviver.org...
), na epígrafe deste artigo, estaríamos acordando de um repouso e recepcionando, de fato, o novo dia ou agindo no automático? No momento, impera uma atitude de quase total desrespeito pelas mais de 525 mil vidas perdidas1 1 Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 6 jul. 2021. em um momento de mentiras e de corrupção presidenciais em ascensão. Ademais, entendemos a ausência de cuidado com o viver, como explica Butler (2020BUTLER, J. Judith Butler: on COVID-19, the politics of non-violence, necropolitics, and social inequality. Youtube, 2020. Disponível em: https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek. Acesso em: 30 abr. 2021.
https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek...
, fala em live, tradução nossa2 2 No original: “If we seek to repair the world or the planet then it must be unshackled from the market economy that profits from its distribution of life and death”. Disponível em: https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek. Acesso em: 29 abr. 2021. ): “Se buscarmos consertar o mundo ou o planeta, então ele deve ser libertado da economia de mercado que lucra com sua distribuição de vida e morte”. Essa perspectiva de necropolítica (MBEMBE, 2016MBEMBE, A. Necropolítica. Artes e Ensaios, n. 32, p. 122-151, 2016. Disponível em: https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf.
https://www.procomum.org/wp-content/uplo...
), materializada continuamente em nosso viver, determina que alguns precisam dar a vida para que outros possam lucrar em um contexto de economia de morte.

Vivemos um contexto de extrema violência das estruturas e sistemas sociais. Nele, como explica Butler (2020BUTLER, J. Judith Butler: on COVID-19, the politics of non-violence, necropolitics, and social inequality. Youtube, 2020. Disponível em: https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek. Acesso em: 30 abr. 2021.
https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek...
):

[...] uma ética da não-violência não pode ser baseada no individualismo e deve assumir a liderança em fazer uma crítica ao individualismo como base da ética e da política. Uma ética e uma política de não violência teriam que dar conta da maneira como os eus estão engajados nas vidas uns dos outros, vinculados por um conjunto de relações que podem ser tão destrutivas quanto sustentáveis (BUTLER, 2020BUTLER, J. Judith Butler: on COVID-19, the politics of non-violence, necropolitics, and social inequality. Youtube, 2020. Disponível em: https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek. Acesso em: 30 abr. 2021.
https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek...
, p. 9, tradução nossa)3 3 No original: “[…] an ethics of nonviolence cannot be predicated on individualism, and it must take the lead in waging a critique of individualism as the basis of ethics and politics alike. An ethics and politics of nonviolence would have to account for this way that selves are implicated in each other’s lives, bound by a set of relations that can be as destructive as they can be sustaining” (BUTLER, 2020, p. 9). .

Nessa direção, tal engajamento parece ser central ao pensar na superação de uma perspectiva de desvalorização do viver ou de valorização apenas de alguns viventes. Esse é um dos pontos essenciais para pensar o momento em que vivemos: considerar quem tem o direito de entendê-lo, dizê-lo, transformá-lo. Na obra Pode o subalterno falar?, a autora indiana Spivak (2010SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.) problematiza e contesta a autoridade intelectual eurocentrada, branca, masculina que fala no lugar da voz silenciada do subalterno, justamente, por conta de sua condição. Esse é um dado, explica Kilomba (2020KILOMBA, G. Memórias da plantação. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó. Edição do Kindle, 2020., posição 513), que está ligado “à dificuldade de falar dentro do regime repressivo do colonialismo e do racismo”. Nessa linha, torna-se central questionar as estruturas de validação do conhecimento que, segundo Kilomba (2020), definem o que é válido, verdadeiro e está sob o controle de uns poucos, normalmente brancos. Nessa abordagem, pensar educação em uma perspectiva libertadora implica a construção de um espaço heterogêneo, intercultural e marcado politicamente.

Em um processo que pressupõe a decolonialidade do poder e do saber (MIGNOLO, 2015MIGNOLO, W. Habitar la frontera. Sentir y pensar la descolonización (Antología 1999 - 2014). México: Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 2015.), é preciso ensejar um movimento de repensar o currículo que denominamos desencapsulador (LIBERALI, 2019aLIBERALI, F. C. Transforming urban education in São Paulo: insights into a critical-collaborative school project. DELTA, v. 35, n. 3, 2019a. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1678-460x2019350302. Acesso em: 16 fev. 2022.
http://dx.doi.org/10.1590/1678-460x20193...
). A desencapsulação pode retirar saberes, modos de aprender-ensinar, papéis sociais, posicionamentos de dentro de cápsulas para tornar o currículo escolar um espaço de construção do bem viver. Esse bem viver, na visão de Krenak (2020KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Organização Bruno Maia. Cultura do bem viver, 2020. Disponível em: http://www.culturadobemviver.org/. Acesso em: 30 abr. 2021.
http://www.culturadobemviver.org...
, p. 17), não está relacionado à distribuição de riqueza, mas à “abundância que a Terra proporciona como expressão mesmo da vida”.

Para o autor, a educação não pode continuar a atender a demanda do mercado pela formação de profissionais, técnicos e/ou gente para operar e manter o sistema. Ao contrário, é preciso que o processo educacional inspire os corpos vivos para uma Terra viva e contribua para a formação de seres humanos em processo de constituição como uma realização social.

Nessa linha e seguindo a sugestão de Mignolo (2015MIGNOLO, W. Habitar la frontera. Sentir y pensar la descolonización (Antología 1999 - 2014). México: Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 2015.), a proposta a ser apresentada neste artigo pressupõe uma desobediência epistêmica como processo educacional. Implica pensar fora dos espaços e tempos predeterminados e considerar as múltiplas vozes, por vezes excluídas e silenciadas. Míguez Passada (2019) enfatiza a importância de reconhecer os sujeitos em seus espaços, tempos históricos em processo de tornarem-se.

Nesse enquadre, sublinham-se as orientações freirianas e de outros teóricos da América Latina para uma educação libertadora, ao entender que a educação e o currículo, em sentido mais específico, podem ser instrumentos de transformação das condições de opressão e podem expandir a agência dos sujeitos (VYGOTSKY, 1994VYGOTSKY, L. S. The problem of the environment. In: VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. (Eds.). The Vygotsky reader. Oxford: Blackwell, 1994.). Por isso, a proposta de um Multiletramento Engajado, como organizador do trabalho em todas as áreas, pretende apontar formas de pensar a educação, não de forma ingênua, mas como um real engajamento com a vida e com sua transformação por meio do processo praxiológico, compreendido como uma possível forma de educar para o bem viver.

Além das considerações iniciais, este texto apresenta as bases freirianas e vygotskianas direcionadoras de um currículo na interface da vida cotidiana e os saberes historicamente acumulados por diferentes grupos sociais. Na sequência, a proposta desenvolvida pelo New London Group (1996/2000), Pedagogia dos Multiletramentos, é revisitada para sua reconstituição na perspectiva do Multiletramento Engajado tendo em vista o respectivo embasamento teórico. Com o intuito de materializar esse novo olhar para os multiletramentos, este artigo apresenta uma unidade didática construída em um projeto de extensão, denominado Programa Digitmed4 4 O Programa Digitmed foi desenvolvido com fomento de auxílio à pesquisa PIPeq/PUC-SP (2017-2019). Essa pesquisa obedece a determinações do Comitê de Ética da PUC-SP e tem a autorização de consentimento e uso de imagem dos envolvidos para uso científico-acadêmico. CAAE: 37778820.0.0000.5482, Parecer: 4.484.531. , e, por fim, tece algumas considerações e caminhos a serem percorridos a partir dessa nova perspectiva.

2 AS BASES FREIRIANAS E VYGOTSKIANAS PARA UM MULTILETRAMENTO ENGAJADO

Os trabalhos realizados pelo Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividade no Contexto Escolar (LACE) têm, historicamente, se organizado a partir de bases freirianas e vygotskianas. Para Freire (1970FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.), a transformação da realidade opressora demanda, sobretudo, compreendê-la, já que o sujeito nela está imerso. A partir dessa imersão no mundo vivido, é possível a emersão da consciência da realidade, objetivando-a, problematizando-a, compreendendo-a como um projeto humano. Nessa emersão, surge o processo dialógico, crítico, criativo e revelador das agências de cada um.

Nesse sentido, a proposta de Freire se alinha ao sugerido por Krenak (2020KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Organização Bruno Maia. Cultura do bem viver, 2020. Disponível em: http://www.culturadobemviver.org/. Acesso em: 30 abr. 2021.
http://www.culturadobemviver.org...
), porque entende que a reflexão e a vivência plena da situacionalidade permitem pensar a própria condição de existir dos sujeitos. A criticidade advém, então, de uma realidade espessa, envolvendo os sujeitos que nela se engajam, mas não são aprisionados. Como aponta o autor, “da imersão em que se achavam, emergem, capacitando-se para inserir-se na realidade que se vai desvelando” (FREIRE, 1970FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970., p. 65). Nessa linha, a inserção pressupõe ir além da percepção da realidade, envolve construir um processo de responsabilidade e de responsividade ativo que carrega em si a consciência histórica e o engajamento efetivo com sua transformação. Como seres da práxis, os sujeitos, como aponta Freire (1970), não apenas admiram e observam o mundo, mas o analisam, conhecem e se engajam em sua transformação ao mesmo tempo que são por ele transformados.

Para que isso seja possível, a educação precisa desenvolver a curiosidade epistemológica contra a pedagogia da resposta, do armazenamento mecânico na memória, da certeza, os quais são típicos de uma educação bancária. Na pedagogia libertadora, a curiosidade epistemológica parte desse desejo de conhecer a realidade para o anseio de transformá-la, por meio da pergunta e da rigorosidade metódica.

No processo de imersão e de emersão da realidade, a rigorosidade metódica é central, porque implica um movimento de aproximação e distanciamento do objeto para “conhecê-lo e dele falar prudentemente” (FREIRE, 1993FREIRE, P. Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho D’Agua, 1993., p. 116). Essa aproximação se realiza por vários ângulos, em abordagem transdisciplinar, com o uso de todos os instrumentos disponíveis para formar os sujeitos de modo a mudar a realidade em busca da construção do ser mais. É assim que as práticas pedagógicas passam a ser vistas com um agir sobre a realidade com o objetivo de transformá-la, transformando igualmente a qualidade da própria curiosidade.

Dessa forma, o processo de ensino se realiza pela criação de bases para ir além das situações-limite colocadas pela realidade imediata, cuja força está em soluções realizáveis, porém ainda não conhecidas ou concebidas (FREIRE, 1970FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.). Em nota no livroPedagogia da Esperança, Ana Maria Araújo Freire explica que as práticas pedagógicas envolveriam construir o inédito viável como:

[...] algo que o sonho utópico sabe que existe, mas que só será conseguido pela práxis libertadora [...] é na realidade uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada, e quando se torna um ‘percebido-destacado’ pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade (FREIRE, 2014FREIRE, A. M. A. Notas explicativas. In: FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 273-333., p. 278-279).

A construção do inédito viável se materializa nas práticas pedagógicas, considerando o conceito de reflexão crítica de Smyth (1992SMYTH, J. Teacher's work and the politics of reflection. American Educational Research Journal, v. 29, n. 2, p. 471-491, 1992.), realizadas a partir das quatro ações crítico-reflexivas: descrever (entender seu próprio fazer), informar (conhecer as raízes históricas de seu agir), confrontar (questionar as razões que sustentam o agir e as bases desse agir) e reconstruir (propor modos de ressignificar o fazer a partir e no próprio processo de reflexão-ação). Expandindo-as, implicam:

  • Descrever: ligado à percepção da ação para sua revelação aos próprios praticantes, implica a observação, a coleção de evidências e o desenvolvimento de um discurso sobre a própria ação e as ações da coletividade. Essa ação está relacionada à questão O que faço? e requer uma ruptura com o intelectualismo e o dessilenciamento das ações, posições, modos de agir que servem como ponto de partida, base para uma imersão consciente que permitirá desencadear a emersão crítica da realidade;

  • Informar: envolve a busca intercultural pelos princípios que embasam, conscientemente ou não, as ações. O informar procura responder a questões como Quais os significados dessas ações? e permite a compreensão mais ampla e a contextualização histórica das ações. Nela, a emersão possibilita a construção de múltiplas generalizações sobre a realidade e sua captura para uma avaliação crítica;

  • Confrontar: sugere submeter as práticas, as bases históricas e os conceitos científicos a questionamentos. Refere-se ao entendimento das ações em um contexto histórico que, por vezes, torna as ações e mesmo as epistemologias que as sustentam meros aspectos de um senso comum. No confrontar, os sujeitos são chamados a fazer escolhas e a entender seus significados. Envolve questões mais críticas como: Quem tem poder sobre minha ação? A que interesses minha ação está servindo? Acredito nesses interesses ou apenas os reproduzo? Ademais, as ações não são atos isolados, mas, sim, uma expressão histórica de certos valores que passam a ser questionados por meio de múltiplos olhares.

  • Reconstruir: envolve um processo de responsividade e responsabilidade em relação a si, aos outros e aos contextos sociais mais amplos. Alude à busca de alternativas para suas ações de uma maneira embasada, informada e questionadora. Ao reconstruir, os sujeitos se colocam na história como agentes, com maior poder de decisão sobre como agir na construção de possibilidades inéditas e viáveis.

Nessa direção, é importante compreender a educação como o “direito de expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir e de optar [...]” (FREIRE, 1976FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 49). Por isso, Freire (1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 153-54) observa que “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História”.

Todo esse aporte, pensado a partir das ideias de Freire, está entrelaçado às discussões vygotskianas sobre a formação de conceitos realizada a partir do duplo movimento entre conceitos científicos e cotidianos; embora se desenvolvam em direções opostas, esses conceitos estão intimamente relacionados. Para Vygotsky (1994VYGOTSKY, L. S. The problem of the environment. In: VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. (Eds.). The Vygotsky reader. Oxford: Blackwell, 1994.), conceitos cotidianos emergem das reflexões do próprio sujeito sobre as experiências do dia a dia e movem-se de baixo para cima em direção a uma maior generalização. Por sua vez, os conceitos científicos impõem ao sujeito conceitos definidos logicamente, que se movem de cima para baixo em direção a uma maior concretude. Esses conceitos demandam uma atividade instrucional de sala de aula altamente estruturada e especializada.

Nesse duplo movimento, o conhecimento é contextualizado e ensinado de acordo com as necessidades, os interesses e as questões sócio-histórico-culturais dos alunos. O processo de aprender parte da investigação concreta/contextualizada em direção ao conceito geral/abstrato/científico. Essas considerações implicam que o planejamento das práticas pedagógicas precisa partir do histórico das experiências vivenciadas pelos alunos, relacionadas ao seu cotidiano. Ao retomar essas práticas e os conceitos cotidianos nelas experimentados, os alunos criam base para estabelecer relações entre sua vivência e os conceitos científicos que, por sua vez, compõem as bases das propostas curriculares oficialmente definidas para seu processo instrucional. Desse modo, a vida vivida guia o processo ensino-aprendizagem e possibilita a constituição agentiva dos sujeitos.

Essa orientação foi a base para a proposição de uma perspectiva de currículo organizado a partir das atividades humanas, denominadas como Atividades Sociais (LIBERALI, 2009LIBERALI, F. C. Atividade Social nas aulas de Língua Estrangeira. São Paulo, SP: Moderna, 2009.). As atividades são compreendidas, a partir dos estudos de Leontiev (1978LEONTIEV, A. N. Activity, consciousness, and personality. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1978.), como um conjunto de práticas em que os sujeitos estão em interação com outros em contextos culturais determinados e historicamente dependentes. Nessas atividades humanas, os sujeitos buscam alcançar um motivo que surgiu de uma necessidade e se transformou em uma vontade. Essa atividade está inserida em um grupo social ou comunidade com valores, regras e modos de agir específicos que precisam ser considerados para sua condução. Além disso, os sujeitos precisam de instrumentos (materiais e simbólicos) para nela atuar. Em uma proposta de organização pedagógica, a partir da realidade dos sujeitos e de suas experiências cotidianas, os saberes das diferentes áreas, assim como os modos de agir, sentir, ser, saber e experimentar certas práticas, são considerados instrumentos simbólicos/recursos de que os sujeitos precisam se apropriar para agir nas atividades sociais.

Ao pensar no contexto escolar, a vida cotidiana em forma de atividades, o aporte vygotskiano sobre o papel do brincar se torna fundamental. Segundo Holzman (2009HOLZMAN, L. Vygostsky at work and play. New York: Routledge, 2009.), o brincar, entendido como performance, requer do sujeito ser quem ele não é, enquanto se transforma em quem pode ser. Nesse sentido, brincar é uma forma de ir além de si mesmo, de criar outras formas de se relacionar consigo mesmo, com outros, com o mundo a sua volta.

Por meio do brincar, segundo Vygotsky (1991VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p.105-118.), há a criação, a manipulação, a atribuição de significados novos e a construção de novas possibilidades de ser, sentir, agir, saber, viver. Além disso, o brincar permite viver uma experiência de forma subjetiva e coletiva simultaneamente. Isso propicia que o significado seja reconstruído pelo ponto de vista da própria pessoa com influência do contexto social. Ao brincar com a experiência da vida e ao expandir seus modos de participação por meio dos novos saberes compartilhados nesse processo, cada pessoa atua com um subconjunto de possibilidades humanas e, assim, pode apropriar-se de uma fração das possibilidades oferecidas por todos os presentes no contexto social. O desenvolvimento que se realiza por meio do brincar permite experimentar um constante processo de mudança e de transformação de si, do outro e do próprio contexto.

Nessa perspectiva, é por meio do brincar que os múltiplos e variados saberes cotidianos e científicos se encontram em atividades humanas, que pressupõem maneiras múltiplas de o sujeito participar e se apropriar da cultura e de formas de transcender o mundo das atividades imediatamente disponíveis. O poder de imaginação gera, assim, possibilidades para criar o algo novo, de desenvolver mais liberdade de ser, sentir, agir, saber, viver. O brincar não acontece dissociado da reflexão sobre ele. É o passo inicial que abre espaço para múltiplas reflexões sobre formas de ser, sentir, agir, saber, viver possíveis. A conversa que ocorre para sua criação, assim como as discussões sobre as brincadeiras, são centrais para o desenvolvimento expansivo (ENGESTRÖM, 2001ENGESTRÖM, Y. Expansive learning at work: Toward an activity-theoretical reconceptualization. Journal of Education and Work, v. 14, n. 1, p. 133-156, 2001. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/13639080020028747. Acesso em: 16 fev. 2022.
http://dx.doi.org/10.1080/13639080020028...
) de todos os participantes. Isso ocorre porque os sujeitos podem transcender as dimensões lineares e socioespaciais de suas ações individuais e imediatas, criando capacidade crescente de ir além de suas possibilidades.

Nesse sentido, ao brincar nas atividades sociais, os sujeitos expandem seu patrimônio vivencial (MEGALE; LIBERALI, 2020MEGALE, A. LIBERALI, F. As implicações do conceito de patrimônio vivencial como uma alternativa para a Educação Multilíngue. Revista X, v. 15, n. 1, p. 55-74, 2020.) que integra os conceitos de:

  • repertório (BUSCH, 2015BUSCH, B. Expanding the notion of the linguistic repertoire: On the concept of Spracherleben: The lived experience of language. Applied Linguistics, v. 38, n. 3, p. 340-358, 2015., 2012; BLOMMAERT, 2010BLOMMAERT, J. A sociolinguistics of globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.): um conjunto de recursos e possibilidades produzidos sócio-historicamente no coletivo, que é recuperado e reconstituído em atividades situadas (BLOMMAERT; BACKUS, 2012). Em outras palavras, uma orientação biográfica, construída a partir de processos intersubjetivos localizados na fronteira entre o eu e o outro, constituída por meio de experiências emocionais e corporais (BUSCH, 2015);

  • patrimônio de conhecimento (funds of knowledge) (HOGG, 2011HOGG, L. Funds of knowledge: an investigation of coherence within the literature. Teaching and Teacher Education, v. 27, p. 666-677, 2011.; MOLL et al., 1992MOLL, L. C.; AMANTI, C.; NEFF, D.; GONZÁLES, N. Funds of knowledge for teaching: using a qualitative approach to connect homes and classrooms. Theory into Practice, v. 31, n. 2, p. 132-141, 1992.): compreendido como “corpos de conhecimento e habilidades historicamente acumulados e culturalmente desenvolvidos, essenciais para o funcionamento e o bem-estar da família ou do indivíduo” (MOLL et al., 1992, p.134, tradução nossa5 5 Trecho original: “[…] historically accumulated and culturally developed bodies of knowledge and skills essential for household or individual functioning and wellbeing” (MOLL et al., 1992, p.134). );

  • perezhivanie: (VYGOTSKY, 1994VYGOTSKY, L. S. The problem of the environment. In: VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. (Eds.). The Vygotsky reader. Oxford: Blackwell, 1994.; VYGOTSKY, 2010), a forma como cada sujeito experiencia uma mesma situação e como é por ela afetado, isto é, “uma e a mesma situação objetiva pode ser interpretada, percebida, experimentada ou vivenciada por diferentes crianças de diferentes maneiras" (VAN DER VEER; VALSINER, 1994VAN DER VEER, R; VALSINER, J. (Eds.). The Vygotsky reader. Oxford: Blackwell, 1994., p. 354, tradução nossa6 6 No original: “express the idea that one and the same objective situation may be interpreted, perceived, experienced or lived through by different children in different ways” (VAN DER VEER; VALSINER, 1994, p. 354). ).

A partir da combinação desses conceitos, o patrimônio vivencial pode ser entendido, na perspectiva vygotskiana, como um conjunto de recursos acumulados a partir de eventos dramáticos vividos com o outro. Esses recursos se materializam (ou não) nos meios pelos quais os sujeitos interagem com o mundo e compreendem aspectos linguísticos, culturais, emocionais e sociais (MEGALE; LIBERALI, 2020MEGALE, A. LIBERALI, F. As implicações do conceito de patrimônio vivencial como uma alternativa para a Educação Multilíngue. Revista X, v. 15, n. 1, p. 55-74, 2020.). Portanto, os patrimônios vivenciais congregam múltiplas formas de ser, sentir, agir, saber, viver dos sujeitos ao longo de suas experiências e os modos como essas formas podem ser ampliadas, transformadas, aplicadas, criticadas em novas experiências.

Essas discussões freirianas e vygotskianas que constituem as práticas do grupo LACE, ao longo de seus vários projetos, foram ampliadas com as discussões sobre a Pedagogia dos Multiletramentos (NEW LONDON GROUP, 2000).

3 UMA RELEITURA POLITIZADA DA PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS

A Pedagogia dos Multiletramentos, desenvolvida pelo New London Group (doravante NLG) em 1996, surgiu em um quadro mundial de resistência a uma visão autônoma de letramento. Nasceu como oposição à compreensão de letramento em termos estritamente técnicos, um conjunto de habilidades descontextualizadas que podem ser aplicadas em qualquer situação. A revolucionária “virada social” (GEE, 2000GEE, J. New people in new worlds: networks, the new capitalism and schools. In: COPE, B.; KALANTZIS, M. (Eds.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. London: Routledge, 2000.) propunha os Novos Letramentos, focando-os como práticas sociais (STREET, 2014STREET, B. V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola, 2014.), o que implicava o reconhecimento de múltiplos letramentos, variando de acordo com o tempo e o espaço, e a contestação das relações de poder que colocam algumas ações como dominantes, outras marginalizadas ou resistentes.

Nesse enquadre, a Pedagogia dos Multiletramentos, conforme Bevilaqua (2013BEVILAQUA, R. Novos estudos do letramento e multiletramentos: divergências e confluências. RevLet - Revista Virtual de Letras, v. 5, n. 1, 2013. Disponível em: http://revlet.com.br/artigos/175.pdf. Acesso em: 16 fev. 2022.
http://revlet.com.br/artigos/175.pdf...
), focaliza um design que centraliza o produtor de sentido, seu interesse e sua motivação na construção de sentidos, contextualmente situados e altamente diversificados em relação a outros contextos. Os Multiletramentos valorizam, portanto, a multiplicidade de canais de comunicação, de mídias e de recursos semióticos e a crescente diversidade cultural da sociedade atual. Cria-se, então, uma teoria da semiose que responde aos interesses de indivíduos socialmente localizados, formados cultural e historicamente, como os “remakers, transformadores, e os re-shapers” (KRESS, 2010KRESS, G. Multimodality: a social Semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge, 2010., p. 155) dos recursos representacionais que estão a sua disposição.

A partir das ideias do NLG, é possível promover uma reflexão sobre as práticas pedagógicas permeadas pelas múltiplas mídias, que têm como marca principal a variedade de modos de significar, pautadas na multimodalidade e que permitem uma diversidade cultural mais expandida. Assim, as múltiplas mídias são a base para a compreensão de que existe uma matriz de artefatos para transmitir, recriar e produzir significados na sociedade moderna. Essa multiplicidade abarca muitos aparatos no trabalho com os saberes das diferentes áreas de forma integrada. A relação entre as mídias e os significados projetados é fundamental para a seleção dos materiais a serem usados e produzidos pelos aprendizes.

Nos vários aparatos usados para significar, funcionam novos textos que demandam novos recursos semióticos, tais como: recursos da escrita manual (papel, pena, lápis, caneta, giz e lousa), da impressa (tipografia, imprensa) além de áudio, vídeo, tratamento da imagem, edição e diagramação, ou seja, as multimodalidades (KRESS, 2010KRESS, G. Multimodality: a social Semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge, 2010.). A multimodalidade torna-se central por focalizar as variedades de recursos semióticos/modos selecionados pelos enunciadores/produtores de textos de acordo com o contexto em que estão inseridos. Esses recursos têm efeitos cognitivos, culturais e sociais específicos e são utilizados na representação e na comunicação, pois são produtos do trabalho social que têm significado em seus ambientes culturais (KRESS, 2010). Esses múltiplos modos de significar se tornam recursos recriados pelos usuários para o alcance de propósitos culturais vários.

Semelhantemente, a multiculturalidade focaliza a abertura necessária a uma pluralidade de modos de conhecimento e novas formas de relacionamento entre eles, cruzando fronteiras entre os conhecimentos (SANTOS, 2008SANTOS, B. S. A gramática do tempo, para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.). Considerando que a diferença é constitutiva do sujeito e de grupos sociais, em contínuo processo de construção-desconstrução-construção (CANDAU, 2011CANDAU, V. M. Diferenças culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, v. 11, n. 2, p. 240-255, 2011.), é necessário expandir e ampliar o tratamento com as diferenças culturais: “étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosas, entre outras - que se manifestam em todas as suas cores, sons, ritos, saberes, sabores, crenças e outros modos de expressão” (CANDAU, 2011, p. 241).

Em uma proposta que visa ao multiculturalismo emancipatório (SANTOS, 2008SANTOS, B. S. A gramática do tempo, para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.), o trabalho com os diversos campos de atuação permite o reconhecimento da presença da pluralidade de conhecimentos e de concepções distintas sobre a dignidade humana e sobre o mundo. Essa atitude explicita a falta de neutralidade das escolhas de saberes e de sua hierarquização. Como explica García-Canclini (2008), um conjunto de textos híbridos de diferentes letramentos (vernaculares e dominantes), de diferentes campos (ditos popular/de massas/erudito) circundam nosso viver e pressupõem um processo de escolha pessoal e política e de hibridização de produções de diferentes “coleções”.

Nessa direção, Liberali e Megale (2019) mostram os caminhos de uma visão política que procura desmantelar o processo de produção de saberes, existires e viveres e questionam: “como conectar-se com o outro para a construção de uma realidade menos desigual e menos injusta, que não silencie nossas vozes pelos processos imperialistas, desenvolvimentistas e neoliberais?” (LIBERALI; MEGALE, 2019, p. 61). Esse questionamento, alinhado ao desejo de construção de uma pedagogia que se oriente para o bem viver, abre espaço para a reconceitualização da Pedagogia dos Multiletramentos em uma perspectiva de Multiletramento Engajado. Em outras palavras, implica uma escolha por pensar a educação, essencialmente, focalizando a transformação dos sujeitos em sujeitos do bem viver, em busca de uma vida com mais equidade e harmonia com a natureza e com os demais.

4 MULTILETRAMENTO ENGAJADO

O foco do Multiletramento Engajado que propiciou a criação de uma nova forma de nomear o trabalho do Grupo LACE parte de uma demanda por um engajamento profundo com a realidade vivida, da percepção inconteste da necessidade de sua transformação por todos e da importância da educação nesse processo. Então, recuperando as tradições freirianas e vygotskianas, o Multiletramento Engajado pressupõe que a realidade seja o ponto de partida e de chegada de toda forma de trabalho pedagógico. Envolve o entendimento de que a “vida que se vive” (MARX; ENGELS, 1845-1846/ 2007) estrutura as escolhas por atividades da vida que podem se tornar objeto de experimentação, reflexão, análise, avaliação, transformação.

Além disso, a perspectiva de uma vida vivida em plenitude (KRENAK, 2020KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Organização Bruno Maia. Cultura do bem viver, 2020. Disponível em: http://www.culturadobemviver.org/. Acesso em: 30 abr. 2021.
http://www.culturadobemviver.org...
) indica a necessidade de que essas vivências sejam recapturadas, expandidas, aprofundadas, reestruturadas por meios de saberes múltiplos de fontes distintas, representados das mais diferentes formas para que possam ampliar o patrimônio de vivências dos sujeitos. É pressuposto que, com essas atividades, os sujeitos possam efetivamente fazer escolhas sobre como ser, agir, pensar, sentir, aprender, viver tais eventos de formas críticas, expandidas, com a busca por um bem viver coletivo. Para que esse bem viver possa ser alcançado, três ações organizam as práticas do Multiletramento Engajado: imersão na realidade, construção crítica de generalizações e produção de mudança social, tendo base em imersão, emersão, inserção, formas propostas por Freire.

A Imersão na Realidade envolve capturar a realidade e envolver os aprendizes no processo de mergulhar em vivências de atividades humanas como forma de experimentar com a vida no espaço escolar. Nessa ação pedagógica, os alunos têm a oportunidade de engajamento na realidade, que se realiza por estudo de problemas da vida concreta dos alunos. Esse movimento implica criar modos de expor e de trabalhar com dados concretos da realidade que são vividos, mas, muitas vezes, não são problematizados ou trabalhados. Nessa direção, essa imersão incorpora a investigação das necessidades dos participantes do processo de ensino-aprendizagem e lança mão não só de dados como também da performance de situações da vida concreta.

Esse processo de imersão, que recupera a prática situada do NLG (1996), expande-se com o conceito de imersão freiriano e com o acesso aos saberes da vida cotidiana, segundo Vygotsky. Nesse âmbito, partir de atividades da vida torna mais concreta a possibilidade de entrelace entre os temas a serem ensinados nas diferentes disciplinas e as experiências concretas dos alunos. Além disso, esse entrelace, por meio do brincar, que recria a realidade no contexto concreto da sala de aula, permite experimentar a vida de forma vicária, passar pelo processo catártico de sentir-pensar-agir, ao brincar com situações alegres, tristes, desafiadoras, revoltantes como base para a compreensão de seus significados. Nessa imersão na realidade, os participantes percebem a relação entre a escola e suas vidas e a importância do que estão aprendendo para sua forma de ser no mundo.

Então, os participantes acessam seu patrimônio de vivências ao mesmo tempo que passam a demandar e compartilhar novas possibilidades de ser, pensar, sentir, agir, que serão refletidas e ampliadas na Construção Crítica de Generalizações. Essa ação, que inclui tanto a proposta de instrução evidente como de enquadramento crítico do NLG, está integrada à ideia de conscientização e emersão histórica de Freire (1970FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.). Igualmente, pressupõe a sistematização generalizante dos saberes vividos. Envolve considerar aspectos tais como: questões sobre o quê, como, por que das ações por várias fontes e modos de organizar a compreensão de determinada situação, fenômeno ou experiência. Essa ecologia de compreensões e apreensões sobre dada realidade permite questionar seus significados de forma histórica, examinando os valores que sustentam aquela ação conforme já era proposição da ação de confrontação sugerida por Smyth (1992SMYTH, J. Teacher's work and the politics of reflection. American Educational Research Journal, v. 29, n. 2, p. 471-491, 1992.).

Esse movimento se inicia por uma conexão entre a realidade imediata, vivida ou brincada pelos participantes, com problemas e situações sociais mais amplas. A partir dessa conexão entre algo particular e sua compreensão em relação a situações históricas várias, parte-se para o desenho de formas de discutir seus valores e formas possíveis de intervir na realidade para transformá-la.

Como tentativa de tornar os participantes sujeitos de sua história, transformadores de suas realidades, criam-se propostas para a Produção de Mudança Social. Essa ação coloca os participantes como agentes de transformações radicais como apontam Stetsenko (2017STETSENKO, A. The transformative mind: expanding Vygotsky´s approach to development and education. New York: Cambridge University Press, 2017.) e Liberali (2019aLIBERALI, F. C. Transforming urban education in São Paulo: insights into a critical-collaborative school project. DELTA, v. 35, n. 3, 2019a. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1678-460x2019350302. Acesso em: 16 fev. 2022.
http://dx.doi.org/10.1590/1678-460x20193...
). Por meio de propostas didáticas, os alunos vivenciam a reflexão, a construção de possibilidades e a proposição e a implementação de ações concretas de transformação. Nesse sentido, os participantes voltam-se para suas realidades imediatas em conexão com as questões históricas mais amplas. Assim, a análise, a avaliação e a proposição de ações recuperam o patrimônio de vivências com aspectos múltiplos, que podem expandir os modos de sentir, pensar, agir e viver certas situações.

Em todo o processo, no brincar/performance, os participantes vão aprendendo a lançar mão dos recursos que construíram, de forma recíproca, e que compõem seu patrimônio de vivências. No brincar, experimentam, não apenas cognitivamente, mas afetivamente, possibilidades de ser, sentir, pensar, agir. Os participantes se tornam implicados na mudança da realidade que vivem. Os saberes passam a se tornar instrumentos/recursos de agir.

O Quadro 1, adiante, pretende mostrar as várias conexões entre os conceitos já expostos e que sustentam as ações que organizam o trabalho com o Multiletramento Engajado.

5 A PRÁXIS DO MULTILETRAMENTO ENGAJADO

Essas imbricações na discussão teórica evidenciam as práticas que realizamos nos muitos projetos desenvolvidos pelo Grupo LACE ao longo de seus quase 20 anos de existência, tais como o Programa Digitmed e o Projeto Brincadas7 7 Para informações sobre o Brincadas, acesse: https://bit.ly/3ioKafv. . Para materializar essas discussões, este trabalho retoma um projeto formativo desenvolvido no Programa Digitmed, em 2018, cujo tema centralizou o “arquitetar transformações no bairro ou na cidade”.

Quadro 1
Principais conceitos científicos do Multiletramento Engajado

O Programa Digitmed, iniciado como um Projeto de Pesquisa internacional, financiado pelo Interchange Project Marie Curie International Research Teams - European Union FP7 (IRSES) (2012-2014), já passou por várias fases, sempre organizado em torno de conceitos como Atividade Social (LIBERALI, 2009LIBERALI, F. C. Atividade Social nas aulas de Língua Estrangeira. São Paulo, SP: Moderna, 2009.), multiculturalismo crítico (SANTOS, 2008SANTOS, B. S. A gramática do tempo, para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.), brincar (VYGOTSKY, 1991VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p.105-118.) multiletramentos (FREIRE, 1970FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.; NLG, 1996). O grupo de pesquisa LACE ampliou o objetivo do Programa Digitmed para a pesquisa de intervenção crítico-colaborativa (MAGALHÃES, 2010MAGALHÃES, M. C. C. Pesquisa crítica de colaboração: uma pesquisa de intervenção no contexto escolar. In: SILVA, L. S.; LOPES, J. J. M. (Org.). Diálogos de pesquisa sobre crianças e infâncias. Juiz de Fora: UFJF. 2010. p. 21-40.), integrando escolas privadas e públicas (municipais e estaduais) de São Paulo, com enfoque em uma universidade-escola, parceria comunitária para a construção conjunta de propostas curriculares desencapsuladas (LIBERALI, 2019a). Os projetos incluem conteúdos escolares, respaldados pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017) e recuperados em tarefas planejadas para privilegiar a multiculturalidade, a multimídia e a multimodalidade (NLG, 1996), por meio do engajamento com a realidade na brincadeira/performance (FREIRE, 1970; VYGOTSKY, 1991).

Além disso, temáticas como as propostas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 têm precedência nas discussões e escolha dos pesquisadores, educadores e alunos. Para o planejamento das tarefas e dos projetos, os alunos estudam preliminarmente suas realidades e as principais questões a serem abordadas com foco nos diferentes objetivos dos 17 ODS. Depois, investigadores e educadores (e, muitas vezes, também alunos) estudam a BNCC para descobrir, nas diferentes áreas disciplinares, que aspectos/objetivos podem ser abordados no âmbito das tarefas a planejar no currículo escolar.

Como exemplo, as atividades de 2018 do projeto incluíram fomentar o engajamento responsável e responsivo com posições ativistas transformadoras. As sete escolas envolvidas no projeto em 2018 (duas públicas e quatro privadas) somavam um número variável de 50 a 80 participantes em cada workshop na PUC-SP. Naquele ano, o trabalho focalizou a ODS 11 Cidades e Comunidades Sustentáveis com o tema “arquitetar transformações no bairro ou na cidade”, cuja proposta se estruturou por meio das ações do Multiletramento Engajado, conforme descritas a seguir.

5.1 IMERSÃO NA REALIDADE

Para a Imersão na Realidade, em grupos, os participantes se engajaram na realidade por meio da discussão de problemas centrais de cidades ao redor do mundo: habitação, transporte, lazer, saúde, meio ambiente. A partir dessa discussão, criaram pôsteres com semelhanças e diferenças, problemas e qualidades de seus próprios bairros. Além disso, fizeram levantamento informal de aspectos que os incomodavam, alegravam, indignavam. Na sequência, fizeram apresentações artísticas de suas conclusões iniciais com todos os participantes (Figura 1).

A partir daí, em cada uma das escolas, participantes iniciaram a investigação mais detalhada das necessidades de suas comunidades. Para isso, criaram infográficos com dados colhidos por diversos alunos das diferentes escolas a partir de diferentes categorias sobre o bairro (Figura 2).

Com elas, construíram um datawall8 8 O datawall é um painel de coleta de dados que pode ser feito de forma interativa. No projeto, foi realizado de forma física pela maioria das escolas que utilizaram papel craft, quadros de avisos, barbantes coloridos, linhas coloridas, dentre outros materiais para criar gráficos de forma colaborativa. com todos os participantes da escola, avaliando as principais características do bairro. O resultado foi apresentado de modo performático, por exemplo: uma escola realizou um filme similar a um telejornal, no qual os dados eram apresentados pela âncora (Figura 3).

Aprofundando a Imersão na Realidade e escolhendo a temática da habitação, os participantes desenvolveram uma conexão entre a realidade imediata e os problemas sociais mais amplos. Para isso, primeiro construíram os bairros de seus sonhos, levantando tudo que consideravam, em cada região onde moravam, necessário e desejável (Figura 4). Então, os formadores iniciaram uma performance chamada “Queima dos Sonhos”, na qual as folhas em que os participantes haviam colocado seus sonhos foram queimadas (Figura 5).

Figura 1
Apresentação das características das cidades

Figura 2
Preparação de gráficos para organizar os resultados das consultas aos alunos

Figura 3
Apresentação performática dos resultados

Figura 4
Organização dos sonhos para os bairros

Figura 5
Queima dos sonhos

Depois disso, os participantes viram um documentário, feito por um dos integrantes do grupo LACE, sobre ocupações pelo Estado de São Paulo, com ênfase no caso da ocupação do Prédio Paissandu, que pegou fogo e caiu, ferindo e matando várias pessoas e deixando outras totalmente desassistidas. Refletiram, então, sobre a relação entre queima dos sonhos e queda do Prédio Paissandu. Esse movimento permitiu a conexão com a realidade e o envolvimento de todos com a temática a ser expandida de forma multicultural, crítica e ampla.

O movimento desencadeado pelo processo de Imersão na Realidade pressupôs que os participantes ficassem intrigados pelos fatos de sua realidade concreta e, a partir disso, pudessem ser capturados em sua curiosidade e seu desejo por mudar suas condições de existir de forma mais ampla. O acesso aos conhecimentos cotidianos valorizou saberes, respeitou experiências e vivências, recuperou recursos que cada um dos envolvidos trazia em seu patrimônio vivencial para compartilhar com os demais. Nesse sentido, todos tiveram a oportunidade freiriana de viver plenamente sua situacionalidade e perceber o não percebido de forma mais consistente. Além disso, os gráficos, desenhos, discussões se estruturaram como múltiplas formas de representação multimodal da realidade. A experiência de mergulho no existir criou o que Mignolo (2015MIGNOLO, W. Habitar la frontera. Sentir y pensar la descolonización (Antología 1999 - 2014). México: Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 2015.) aponta como a ideia de que os espaços e os tempos precisam ser uma construção a partir de práticas de liberdade coletiva (FREIRE, 1970FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.).

5.2 CONSTRUÇÃO CRÍTICA DE GENERALIZAÇÕES

O processo de Construção Crítica de Generalizações foi, então, iniciado com o estabelecimento de relação entre diferentes formas de entender realidades e conceitos sobre ocupação, invasão, posse e propriedade. Os participantes leram e analisaram diferentes definições de posse e propriedade de diferentes fontes e, a partir desses conceitos e da leitura de depoimentos vários, discutiram a distinção entre ocupação e invasão em vários grupos diferentes (Figura 6).

Figura 6
Discussão dos materiais lidos

Para tornar esses conceitos mais vivos, foi proposto que cada grupo utilizasse os saberes construídos para elaborar performances que respondessem às distintas situações sobre habitação (Figura 7), como, por exemplo:

  • conversa com representantes de movimentos sociais e de incorporadoras sobre local ocupado;

  • dois políticos de posições diferentes apresentam na Câmara suas posições sobre uma ocupação determinada;

  • pessoas do entorno do local ocupado conversam com agentes e com moradores do local;

  • um grupo discute como organizar a ocupação e precisa levar em conta a história deles com contradições, ansiedades, estratégias e motivações;

  • um grupo consegue o retrofit, mas nem todos poderão ficar com a regularização. Conversam sobre como lidarão com essa questão;

  • um homem, que tinha o sonho de construir um espaço cultural, compra um prédio, fazendo dívidas, mas o prédio já estava na estratégia de um movimento que o tinha por desocupado; o grupo ocupa o prédio. Realizam a conversa entre proprietário (advogados) e líderes do movimento de ocupação.

Figura 7
Apresentação das performances

A vivência dessas performances abriu espaço para que os saberes construídos se tornassem prenhes de recursos emocionais, cognitivos, conceituais, posturais e éticos. A rigorosidade metódica, que permitiu a conscientização do mundo vivido, por saberes múltiplos científicos e não científicos, escolarizados ou não, ampliou a emersão e a possibilidade de posicionamento dos participantes para que, na performance, pensassem em formas de agir e de viver os diferentes papéis efetivos para assumir formas mais justas para todos (Figura 8).

Portanto, para além da performance das situações, os participantes também realizaram reflexões acerca das formas de alcançar soluções conjuntas a partir dessa rigorosidade metódica e dessa colaboração. Esse projeto conjunto, crítico, posicionado, que implica um desenvolvimento engajado dos sujeitos (LIBERALI et al., 2021LIBERALI, F. C.; SEGUNDO, P. R. G.; FREITAG, R. M. K.; CARRIJO, V. L. S. (Org.). Multiletramentos, práticas de leitura e compromisso social. Campinas: Pontes, 2021.), permitiu o design de novas formas de ser, estar, sentir, agir no mundo. As performances e as reflexões foram eventos dramáticos (VYGOTSKY, 1991VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p.105-118.), a partir dos quais os participantes construíram novos recursos para pensar em transformações responsivas e responsáveis da realidade. Esse movimento pressupõe a desobediência epistêmica, conclamada por Mignolo (2015MIGNOLO, W. Habitar la frontera. Sentir y pensar la descolonización (Antología 1999 - 2014). México: Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 2015.) como central para o processo decolonial.

Figura 8
Discussão da performance

5.3 PRODUÇÃO SOCIAL DE MUDANÇA

No desenrolar do projeto, cada escola refletiu sobre os aspectos mais relevantes a serem tratados em seus bairros. A partir daí, propuseram múltiplas reflexões com análise, avaliação e proposição de ações. Dentre as atividades, os participantes construíram bairro-móbiles com imagens de bairros trazidas pelos participantes, planejaram e indicaram soluções para situações problemáticas e formas de alcançá-las (Figura 9). Estruturaram e apresentaram a todos os grupos propostas concretas para os problemas do bairro, que foram posteriormente levadas a cada escola, avaliadas, reorganizadas e colocadas em prática (Figura 10). Uma das soluções envolvia a limpeza do local próximo de uma das escolas (Figura 11). A partir de trabalhos dos participantes do projeto com múltiplas turmas da escola, propostas de limpeza e conscientização do bairro foram feitas e desenvolvidas pela comunidade escolar em comunhão com os moradores do local.

Figura 9
Móbiles com imagens dos bairros

Figura 10
Propostas para ação e transformação dos problemas

Figura 11
Implementação de transformação nos bairros

Além disso, sobre habitação, foi desenvolvida uma reflexão ampla sobre o tema e a elaboração conjunta de um manifesto enviado a vários grupos e mídias sociais com aspectos que o grupo rejeitava, suportava e propunha. Ao experienciar práticas concretas de transformação de seus contextos, os participantes assumiram voz e vez no processo de produção de seu bem viver e de sua comunidade.

A desencapsulação, nesse caso, implicou ir além de saberes prescritos e provas como avaliadoras dos resultados dos processos de ensino-aprendizagem. O processo envolveu o engajamento coletivo na produção de um tipo de vida abundante, conectada, que transforma a todos, porque intenta o bem viver como perspectiva de perpetuar a existência justa, plena e equitativa. Cada participante, como aponta Míguez Passada (2019), pode se perceber sujeito de seus espaços, tempos históricos, em processo de transformar-se enquanto transforma o mundo que os transforma. Mais uma vez, retoma-se Krenak (2020KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Organização Bruno Maia. Cultura do bem viver, 2020. Disponível em: http://www.culturadobemviver.org/. Acesso em: 30 abr. 2021.
http://www.culturadobemviver.org...
, p.17) ao enfatizar que, no processo educacional vivido, foi possível “inspirar corpos vivos para uma Terra Viva”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta do Multiletramento Engajado, aqui discutida e apresentada, foi motivada por questionamentos de pesquisadores da área dos letramentos e multiletramentos, os quais apontavam a forma de agir do Grupo LACE nas práticas vividas nos projetos como expansão do que outros autores dessa área realizavam, inclusive do que apresentava o NLG. Esses questionamentos, de modo colaborativo, foram criando no Grupo LACE percepção mais aguçada sobre seu próprio fazer. Em outras palavras, desencadeou a imersão na realidade pedagógica do grupo, na busca por um viver questionando aquilo que era feito.

Nesse âmbito, foi importante uma retomada sistemática e rigorosa das bases teóricas que historicamente sustentaram, centralmente, as escolhas do LACE para que fosse possível rastrear os conceitos que sustentavam, conscientemente ou não, as escolhas feitas sobre como trabalhar pedagogicamente. Então, foi possível entender por múltiplos olhares, autores, perspectivas os significados do fazer do Grupo LACE.

Esse processo foi transformador, porque fez com que o Grupo LACE passasse a assumir novas ações em relação à forma de trabalhar o Multiletramento mais consciente sobre a demanda por uma postura mais política, mais engajada na transformação das condições de viver em busca do bem viver de forma coletiva.

Quando, em uma apresentação no Jornada Internacional de Linguística Aplicada Crítica - JILAC, em Brasília (LIBERALI, 2019bLIBERALI, F. C. O compromisso da Linguística Aplicada com a formação de educadores: avanços e desafios. Apresentação oral em Jornada Internacional de Linguística Aplicada Crítica, Brasília, 2019b.), mostrei nossas ações e falei que nosso multiletramento era, na realidade, implicado/engajado, Ofélia Garcia foi assertiva ao dizer: “Pronto! É isso! O trabalho de vocês tem um claro engajamento e atenção concreta com a transformação das condições de vida das pessoas! Implicado/Engajado! É isso!” Essa conversa foi motivadora desse título e dessa discussão que em si enseja um processo de Multiletramento Engajado, já que nós, pesquisadores, mergulhamos em nosso fazer, recuperamos as bases teóricas e históricas desse agir e, como resultado, estabelecemos mudanças e ações mais transformadoras das condições de viver.

Finalizo este artigo apontando que, neste momento, muitos pesquisadores do grupo estudam esta temática (SILVA; LIBERALI, 2021SILVA, S. B. S.; LIBERALI, F. C. Multiletramentos como instrumento para a desencapsulação curricular. In: LIBERALI, F. C.; SEGUNDO, P. R. G.; FREITAG, R. M. K.; CARRIJO, V. L. S. (Org.). Multiletramentos, práticas de leitura e compromisso social. Campinas: Pontes, 2021. p. 69-83.; LIBERALI et al., 2021a; LIBERALI et al., 2021b; LIBERALI et al., no prelo; ROCHA et al., 2021ROCHA, C. H.; LIBERALI, F. C.; MEGALE, A.H. Bilinguismos e translinguagem na educação linguística para crianças. In: ROCHA, C. H.; BASSO, E. A. (Org.). Ensinar e aprender língua estrangeira/adicional nas diferentes idades: reflexões para professores e formadores. Campinas: Pontes, 2021, v. 2, p. 25-58.; RODRIGUES et al., 2021RODRIGUES, P. A.; CARRIJO, V. L. S.; MODESTO-SARRA, L. K. Experiências de um sarau: o inédito viável em meio a pandemia. Teias, v. 22, p. 122-132, 2021.; DIEGUES et al., 2021DIEGUES, U. C. C.; MODESTO-SARRA, L. K.; TISO, M. D. R. Hora da brincada (live) dialogando sobre experiências e criando o inédito viável. Revista Brasileira da Pesquisa Sócio-Histórico-Cultural e da Atividade, v. 3, p. 17, 2021.). Considerando a dura realidade da Covid-19 e da necropolítica que vivemos, isso nos parece central se queremos, como apontou Krenak na epígrafe deste artigo, superar o automatismo que nos mata e acordar com a experiência do repouso e com a recepção de um novo dia que nos aparece. Almejamos novos dias que sejam de luta pela dignidade de nosso povo, pelo bem viver!

AGRADECIMENTOS

Agradeço a leitura cuidadosa e crítica, as revisões e sugestões dos colegas do Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividade no Contexto Escolar (LACE).

REFERÊNCIAS

  • BEVILAQUA, R. Novos estudos do letramento e multiletramentos: divergências e confluências. RevLet - Revista Virtual de Letras, v. 5, n. 1, 2013. Disponível em: http://revlet.com.br/artigos/175.pdf Acesso em: 16 fev. 2022.
    » http://revlet.com.br/artigos/175.pdf
  • BLOMMAERT, J. A sociolinguistics of globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
  • BLOMMAERT, J.; BACKUS, A. Superdiverse repertoires and the individual. Current challenges for educational studies. In: SAINT-GEORGES, I.; WEBER, J. J. (Eds.). Multilingualism and Multimodality. Sense, 2012. p. 11-32.
  • BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). MEC. Brasília, 2017.
  • BUSCH, B. Expanding the notion of the linguistic repertoire: On the concept of Spracherleben: The lived experience of language. Applied Linguistics, v. 38, n. 3, p. 340-358, 2015.
  • BUSCH, B. The linguistic repertoire revisited. Applied Linguistics, v. 33, n. 5, p. 1-22, 2012.
  • BUTLER, J. The force of nonviolence: an ethico-political bind. Verso. Edição do Kindle, 2020.
  • BUTLER, J. Judith Butler: on COVID-19, the politics of non-violence, necropolitics, and social inequality. Youtube, 2020. Disponível em: https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek Acesso em: 30 abr. 2021.
    » https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek
  • CANDAU, V. M. Diferenças culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, v. 11, n. 2, p. 240-255, 2011.
  • DIEGUES, U. C. C.; MODESTO-SARRA, L. K.; TISO, M. D. R. Hora da brincada (live) dialogando sobre experiências e criando o inédito viável. Revista Brasileira da Pesquisa Sócio-Histórico-Cultural e da Atividade, v. 3, p. 17, 2021.
  • ENGESTRÖM, Y. Expansive learning at work: Toward an activity-theoretical reconceptualization. Journal of Education and Work, v. 14, n. 1, p. 133-156, 2001. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/13639080020028747 Acesso em: 16 fev. 2022.
    » http://dx.doi.org/10.1080/13639080020028747
  • FREIRE, A. M. A. Notas explicativas. In: FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 273-333.
  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
  • FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
  • FREIRE, P. Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho D’Agua, 1993.
  • GARCÍA-CANCLINI, N. Culturas híbridas - Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2008.
  • GEE, J. New people in new worlds: networks, the new capitalism and schools. In: COPE, B.; KALANTZIS, M. (Eds.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. London: Routledge, 2000.
  • HOGG, L. Funds of knowledge: an investigation of coherence within the literature. Teaching and Teacher Education, v. 27, p. 666-677, 2011.
  • HOLZMAN, L. Vygostsky at work and play. New York: Routledge, 2009.
  • KILOMBA, G. Memórias da plantação. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó. Edição do Kindle, 2020.
  • KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Organização Bruno Maia. Cultura do bem viver, 2020. Disponível em: http://www.culturadobemviver.org/. Acesso em: 30 abr. 2021.
    » http://www.culturadobemviver.org
  • KRESS, G. Multimodality: a social Semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge, 2010.
  • LIBERALI, F. C. Transforming urban education in São Paulo: insights into a critical-collaborative school project. DELTA, v. 35, n. 3, 2019a. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1678-460x2019350302 Acesso em: 16 fev. 2022.
    » http://dx.doi.org/10.1590/1678-460x2019350302
  • LIBERALI, F. C. O compromisso da Linguística Aplicada com a formação de educadores: avanços e desafios. Apresentação oral em Jornada Internacional de Linguística Aplicada Crítica, Brasília, 2019b.
  • LIBERALI, F. C. Atividade Social nas aulas de Língua Estrangeira. São Paulo, SP: Moderna, 2009.
  • LIBERALI, F. C.; FUGA, V. P.; VENDRAMINI-ZANELLA, D. A desencapsulação curricular por meio do teatro para o desenvolvimento engajado. In: MARQUES, P. N.; SMOLKA, A. L. B. (Org.). Dossiê temático: Desenvolvimento humano, drama e vivências: discussões em torno de ‘Sobre a questão da psicologia da criação pelo autor, de L S. Vigotski. Pro-Posições, Campinas, SP. 2021 (prelo).
  • LIBERALI, F. C.; MAZUCHELLI, L. P.; MODESTO-SARRA, L. K. O brincar no Multiletramento Engajado para a construção de práticas insurgentes. Revista De Estudos Em Educação E Diversidade - REED, 2(6), 1-26, 2021a. Disponível em: https://doi.org/10.22481/reed.v2i6.9643 Acesso em: 16 fev. 2022.
    » https://doi.org/10.22481/reed.v2i6.9643
  • LIBERALI, F. C.; MODESTO-SARRA, L. K.; MAZUCHELLI, L.; AMARAL, M. F.; MEDEIROS, B. S. F. Teatro do oprimido e direitos humanos: estratégia pedagógica para a (trans)formação. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 22, n. 2, p. 232-252, 2021b. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/4090 Acesso em: 16 fev. 2022.
    » https://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/4090
  • LEONTIEV, A. N. Activity, consciousness, and personality. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1978.
  • MAGALHÃES, M. C. C. Pesquisa crítica de colaboração: uma pesquisa de intervenção no contexto escolar. In: SILVA, L. S.; LOPES, J. J. M. (Org.). Diálogos de pesquisa sobre crianças e infâncias. Juiz de Fora: UFJF. 2010. p. 21-40.
  • MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Trad. Luis Claudio de Castro Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  • MBEMBE, A. Necropolítica. Artes e Ensaios, n. 32, p. 122-151, 2016. Disponível em: https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf.
    » https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf.
  • MEGALE, A. LIBERALI, F. As implicações do conceito de patrimônio vivencial como uma alternativa para a Educação Multilíngue. Revista X, v. 15, n. 1, p. 55-74, 2020.
  • LIBERALI, F. C.; SEGUNDO, P. R. G.; FREITAG, R. M. K.; CARRIJO, V. L. S. (Org.). Multiletramentos, práticas de leitura e compromisso social. Campinas: Pontes, 2021.
  • MIGNOLO, W. Habitar la frontera. Sentir y pensar la descolonización (Antología 1999 - 2014). México: Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 2015.
  • MÍGUEZ PASSADA, M. N. Discourses Analysis by a Decolonial Perspective, Advances in Discourse Analysis, Lavinia Suciu, IntechOpen, 2019. DOI: 10.5772/intechopen.81612.
    » https://doi.org/10.5772/intechopen.81612.
  • MOLL, L. C.; AMANTI, C.; NEFF, D.; GONZÁLES, N. Funds of knowledge for teaching: using a qualitative approach to connect homes and classrooms. Theory into Practice, v. 31, n. 2, p. 132-141, 1992.
  • NEW LONDON GROUP. The Pedagogy of Multiliteracies: Designing Social Futures. Harvard Educational Review, v. 66, n. 1, p. 60-92, 2000.
  • ROCHA, C. H.; LIBERALI, F. C.; MEGALE, A.H. Bilinguismos e translinguagem na educação linguística para crianças. In: ROCHA, C. H.; BASSO, E. A. (Org.). Ensinar e aprender língua estrangeira/adicional nas diferentes idades: reflexões para professores e formadores. Campinas: Pontes, 2021, v. 2, p. 25-58.
  • RODRIGUES, P. A.; CARRIJO, V. L. S.; MODESTO-SARRA, L. K. Experiências de um sarau: o inédito viável em meio a pandemia. Teias, v. 22, p. 122-132, 2021.
  • SANTOS, B. S. A gramática do tempo, para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.
  • SILVA, S. B. S.; LIBERALI, F. C. Multiletramentos como instrumento para a desencapsulação curricular. In: LIBERALI, F. C.; SEGUNDO, P. R. G.; FREITAG, R. M. K.; CARRIJO, V. L. S. (Org.). Multiletramentos, práticas de leitura e compromisso social. Campinas: Pontes, 2021. p. 69-83.
  • SMYTH, J. Teacher's work and the politics of reflection. American Educational Research Journal, v. 29, n. 2, p. 471-491, 1992.
  • SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
  • STETSENKO, A. The transformative mind: expanding Vygotsky´s approach to development and education. New York: Cambridge University Press, 2017.
  • STREET, B. V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola, 2014.
  • VAN DER VEER, R; VALSINER, J. (Eds.). The Vygotsky reader. Oxford: Blackwell, 1994.
  • VYGOTSKY, L. S. Quarta aula: a questão do meio na pedologia, Lev Semionovich Vigotski. Tradução M. P. Vinha e M. Welcman. Psicol. USP [online], v. 21, n. 4, p. 681-701, 2010.
  • VYGOTSKY, L. S. The problem of the environment. In: VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. (Eds.). The Vygotsky reader. Oxford: Blackwell, 1994.
  • VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p.105-118.
  • 1
    Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 6 jul. 2021.
  • 2
    No original: “If we seek to repair the world or the planet then it must be unshackled from the market economy that profits from its distribution of life and death”. Disponível em: https://youtu.be/6Bnj7H7M_Ek. Acesso em: 29 abr. 2021.
  • 3
    No original: “[…] an ethics of nonviolence cannot be predicated on individualism, and it must take the lead in waging a critique of individualism as the basis of ethics and politics alike. An ethics and politics of nonviolence would have to account for this way that selves are implicated in each other’s lives, bound by a set of relations that can be as destructive as they can be sustaining” (BUTLER, 2020, p. 9).
  • 4
    O Programa Digitmed foi desenvolvido com fomento de auxílio à pesquisa PIPeq/PUC-SP (2017-2019). Essa pesquisa obedece a determinações do Comitê de Ética da PUC-SP e tem a autorização de consentimento e uso de imagem dos envolvidos para uso científico-acadêmico. CAAE: 37778820.0.0000.5482, Parecer: 4.484.531.
  • 5
    Trecho original: “[…] historically accumulated and culturally developed bodies of knowledge and skills essential for household or individual functioning and wellbeing” (MOLL et al., 1992, p.134).
  • 6
    No original: “express the idea that one and the same objective situation may be interpreted, perceived, experienced or lived through by different children in different ways” (VAN DER VEER; VALSINER, 1994, p. 354).
  • 7
    Para informações sobre o Brincadas, acesse: https://bit.ly/3ioKafv.
  • 8
    O datawall é um painel de coleta de dados que pode ser feito de forma interativa. No projeto, foi realizado de forma física pela maioria das escolas que utilizaram papel craft, quadros de avisos, barbantes coloridos, linhas coloridas, dentre outros materiais para criar gráficos de forma colaborativa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2021
  • Aceito
    10 Fev 2022
Universidade do Sul de Santa Catarina Av. José Acácio Moreira, 787 - Caixa Postal 370, Dehon - 88704.900 - Tubarão-SC- Brasil, Tel: (55 48) 3621-3369, Fax: (55 48) 3621-3036 - Tubarão - SC - Brazil
E-mail: lemd@unisul.br