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Divinização, peregrinação e desigualdade social: experiências de mulheres no acesso à assistência obstétrica

Resumo

Objetivos:

compreender as experiências de mulheres do semiárido nordestino brasileiro no acesso à assistência obstétrica.

Métodos:

pesquisa qualitativa conduzida pelo referencial metodológico da etnoenfer-magem, realizada com 13 informantes-chave em maternidade pública localizada na região do Cariri cearense no semiárido nordestino brasileiro. Adotou-se para coleta de dados o capacitador Observação-Participação-Reflexão com registro das observações em diário de campo e entrevistas individuais do tipo "conte-me sobre". O processo de imersão no campo durou cinco meses. O material empírico foi submetido aos procedimentos do guia de análise de dados da etnoenfermagem.

Resultados:

a partir dos padrões que emergiram empiricamente evidenciaram-se três temas culturais: "Tem que entregar nas mãos de Deus": construções discursivas acerca do acompanhamento pré-natal; "A gente fica nesse vai e vem sem fim": peregrinação anteparto; "Se eu fosse rica, não estaria aqui": atenção recebida no acesso à maternidade.

Conclusões:

no cenário cultural analisado as mulheres encontravam-se inseridas em contexto de fragilidades clínica e social, de violação de direitos e da dignidade, recorrendo aos desígnios divinos diante das dificuldades de acesso aos serviços obstétricos e peregrinação para garantia de consultas, exames e internamento para o parto.

Palavras-chave
Cuidado pré-natal; Trabalho de parto; Enfermagem obstétrica; Acesso aos serviços de saúde; Antropologia cultural

Abstract

Objectives:

to understand the experiences of women from Brazilian northeastern semi-arid in accessing obstetric care.

Methods:

qualitative research conducted by the methodological framework of ethnonursing, carried out with 13 key informants in a public maternity hospital located in the Cariri region of Ceará in the Brazilian Northeast semiarid. The Observation-Participation-Reflection enablers was adopted for data collection, with observations recorded in a field diary and individual interviews, such as "tell me about". The immersion process in the field lasted five months. The empirical material was submitted to procedures of the data analysis guide for ethno-nursing.

Results:

from the patterns that emerged empirically, three cultural themes became evident: "It has to be delivered in the hands of God": discursive constructions about prenatal care; "We stay in this endless coming and going": antepartum pilgrimage; "If I were rich, I wouldn't be here": attention received in accessing maternity.

Conclusions:

in the cultural scenario analyzed, women were inserted in the context of clinical and social weaknesses, violation of rights and dignity, resorting to divine designs in the face of difficulties in accessing obstetric services and pilgrimage to guarantee consultations, exams, and hospitalization for childbirth.

Key words
Prenatal care; Labor; obstetric; Obstetric nursing; Health services accessibility; Cultural anthropology

Introdução

A saúde das mulheres não deve ser vista apenas do ponto de vista orgânico, devendo ser considerada a complexidade deste fenômeno social e suas interseccionalidades com questões de raça/etnia, gênero e classe social. Essas dimensões se inserem no contexto em que a vida transcorre, traduzem-se nas condições em que as mulheres vivem, trabalham e expressam a situação de saúde deste segmento social, individual e coletivamente.11 Geib, LTC. Social determinants of health in the elderly. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(1):123-33.

No contexto da saúde reprodutiva, intervenções realizadas no âmbito dos serviços públicos resultaram em melhoria nos indicadores de saúde das mulheres brasileiras.22 Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, Victora C. Reproductive, maternal, neonatal and child health in the 30 years since the creation of the Unified Health System (SUS). Cien Saúde Coletiva. 2018; 23(6):1915-28. Entretanto, fatores como o aumento da pobreza, as iniquidades sociais e a desconsideração dos determinantes sociais no processo saúde-doença, influenciam na exposição a fatores de risco e vulnerabilidades a doenças, agravos e dificuldades de acesso aos serviços de atenção obstétrica.33 Fiorati RC, Arcêncio RA, Souza LB. Social inequalities and access to health: challenges for society and the nursing field. Rev Latinoam Enferm. 2016;24:e2687.

O acesso é definido como a ausência de barreiras socioculturais, organizacionais, econômicas, geográficas e de gênero nos cuidados em saúde; e como a capacidade dos serviços em atender às necessidades das populações em qualquer nível de atenção por meio de infraestrutura, recursos humanos e tecnologias de saúde adequadas.44 Pan American Health Organization. Strategy for universal access to health and universal health coverage. Proceedings of the 53rd Directing Council (CD53/5, Rev. 2) [Internet]. 2014 [acesso 2019 Out 20]. Disponível em: https://www.paho.org/hq/dmdocuments/2014/CD53-5-e.pdf
https://www.paho.org/hq/dmdocuments/2014...

As desigualdades relacionadas à classe social e gênero afetam o acesso das mulheres aos serviços de saúde e repercutem no processo saúde-doença, sobretudo entre as procedentes de classes sociais menos favorecidas e com participação limitada no mercado de trabalho.11 Geib, LTC. Social determinants of health in the elderly. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(1):123-33.,55 Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA, Theme-Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Pública. 2015;37(3):140-7.

No Brasil, em decorrência da sua extensão territorial, as condições de acesso das mulheres à assistência obstétrica são geograficamente distintas,55 Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA, Theme-Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Pública. 2015;37(3):140-7.,66 Guimarães WSG, Parente RCP, Guimarães TLF, Garnelo L. Access to prenatal care and quality of care in the Family Health Strategy: infrastructure, care, and management. Cad Saúde Pública. 2018; 34(5):e00110417. variando conforme características sociais, demográficas e reprodutivas, produzindo desigualdades regionais significativas, sobretudo entre mulheres indígenas e negras, com menor escolaridade, maior número de gestações, residentes nas regiões Norte e Nordeste do país.55 Domingues RMSM, Viellas EF, Dias MAB, Torres JA, Theme-Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Pública. 2015;37(3):140-7.

Ademais, os modos de se assistir e perceber a gestação, a parturição e o nascimento são distintos nas diferentes regiões do país à medida que congregam perspectivas e expectativas diferentes frente a esses eventos e, consequentemente, os significados atribuídos às experiências variam conforme o cenário sociocultural.77 Tostes NA, Seidl EMF. Expectativas de Gestantes sobre o Parto e suas Percepções acerca da Preparação para o Parto. Temas Psicol.(online). 2016; 24(2):681-93.

Desse modo, em contextos individuais, sociais e institucionais adversos as mulheres recorrem ao capital social, entendido como o conjunto das relações entre pessoas tecidas no cotidiano por meio de atitudes e comportamentos baseados na confiança, solidariedade, cooperação e reciprocidade, como estratégia de enfrentamento às condições vulneráveis e aviltantes que dão sentidos e significados às suas experiências de saúde-doença.11 Geib, LTC. Social determinants of health in the elderly. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(1):123-33.,88 Freitas MA, Mattos ATR; Gomes WZ, Caccia-Bava MCGG Who are they, what do they talk about and who listens to the poor?. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(12):3859-82.

No âmbito da saúde coletiva, estudos descritivos e qualitativos tentam explorar a dimensão subjetiva do acesso aos serviços de assistência obstétrica, entretanto, somente parcela se ancora em referenciais teórico-metodológicos de cunho antropológico-cultural,99 Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública. 2017; 33 (9): e00118016. reforçando a necessidade destas abordagens serem ampliadas em pesquisas neste campo.

Desse modo, objetivou-se compreender as experiências de mulheres do semiárido nordestino brasileiro no acesso à assistência obstétrica.

Métodos

Trata-se de pesquisa qualitativa conduzida pelo referencial metodológico da etnoenfermagem inserido na Teoria da Universalidade e Diversidade do Cuidado Cultural, adequado para gerar uma base de dados a partir da relação entre cuidado e cultura. A etnoenfermagem é definida como um processo de observação direta, descrição detalhada, documentação, apreensão e análise dos modos de vida ou padrões específicos de uma ou múltiplas culturas em seus ambientes naturalísticos, sendo útil para compreender o cuidado culturalmente congruente sob as perspectivas etic e emic.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006.

A perspectiva etic refere-se ao ponto de vista externo e frequentemente à visão dos profissionais de saúde sobre fatos e fenômenos; enquanto a perspectiva emic engloba o ponto de vista interno e nativo que os sujeitos possuem e compartilham entre si por estarem imersos em padrões culturais.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006.

Neste estudo, aborda-se a perspectiva emic à medida que o domínio de investigação se encontra voltado para compreensão dos significados que permeiam as experiências de mulheres do semiárido no acesso à assistência obstétrica.

O estudo foi desenvolvido em maternidade pública, localizada no Cariri cearense do semiárido nordestino brasileiro, referência para atendimento de mulheres residentes em seis municípios circunvizinhos, com população total de 397.246 habitantes. Esses municípios inserem-se em um contexto que historicamente apresenta os piores indicadores sociais nacionais, marcado por pouco desenvolvimento econômico, elevado percentual de pobreza, condições de habitação precárias, configurando-se como região mais desigual do país. 1111 Hissa-Teixeira K. Uma análise da estrutura espacial dos indicadores socioeconómicos do nordeste brasileiro (20002010). Eure. 2018; 44 (131):101-124.

Para compreender o domínio da investigação sob a perspectiva emic, foram selecionadas intencionalmente 13 informantes-chave em trabalho de parto e sem intercorrências clínicas e/ou obstétricas. Excluíram-se as adolescentes tendo em vista que as questões sociais, econômicas, culturais e históricas que envolvem os aspectos reprodutivos nesta fase são complexas e multifatoriais.

A pesquisa de campo foi realizada no período de março a agosto de 2016. Utilizou-se para coleta de dados o capacitador Observação-Participação-Reflexão composto por quatro fases sequenciais: observação com escuta ativa; observação com participação limitada; participação com observação continuada; reflexão e confirmação dos achados com as informantes.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006.

Na primeira fase realizou-se a observação dos fenômenos e escuta ativa para obter uma visão ampliada do contexto cultural e documentação em diário de campo dos achados. Na segunda fase, começou-se a interagir gradativamente por meio de conversas informais. Na terceira fase, a participação tornou-se mais ativa e a observação diminuiu. Na última fase, observações reflexivas foram realizadas com reavaliação das informações e análise da influência exercida sobre os acontecimentos.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006.,1212 Silveira RS; Martins CR, Lunardi VL, Lunardi Filho WD. Etnoenfermagem como metodologia de pesquisa para a congruência do cuidado. Rev Bras Enferm. 2009; 62 (3): 442-6.

A dinâmica de observação abrangeu a recepção, sala de triagem, posto de enfermagem, salas de pré-parto, de relaxamento/fisioterapia, de parto, de cuidados com o recém-nascido e alojamento conjunto, durante todos os dias da semana nos turnos matutino e vespertino.

O pesquisador principal abordou as participantes durante a admissão e no decorrer do internamento quando conduziu entrevistas individuais do tipo "conte-me sobre" voltadas às experiências das mulheres no acesso à assistência obstétrica.

As entrevistas foram gravadas em áudio, realizadas reservadamente na sala de admissão e no leito obstétrico durante a fase de dilatação e no puerpério imediato considerando-se as condições clínicas da mulher. Tiveram duração média de 50 minutos, foram encerradas mediante identificação da saturação teórica dos dados e a validação do conteúdo pelas participantes ocorreu após a transcrição.

O material empírico foi submetido aos procedimentos do guia de análise de dados da etnoenfer-magem composto por quatro fases para analisar as informações obtidas em campo.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006.

Na fase I, "coleta, descrição e documentação dos dados brutos", realizou-se organização, codificação e análise das informações coletadas para identificar significados contextuais e fazer interpretações preliminares. Na fase II, "identificação e categorização dos componentes e descritores", os fenômenos foram separados por unidades temáticas conforme semelhanças e divergências e os componentes recorrentes codificados por seus significados.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006.

Na fase III, "padrão e análise contextual", buscou-se identificar a saturação de ideias e padrões recorrentes contendo significados-em-contexto. E, na fase IV, "temas principais, resultados de pesquisa, formulações teóricas e recomendações", realizou-se a abstração e confirmação dos temas principais, síntese e interpretação dos dados.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006.

A partir dos padrões que emergiram empiricamente evidenciaram-se três temas culturais: "Tem que entregar nas mãos de Deus": construções discursivas acerca do acompanhamento pré-natal; "A gente fica nesse vai e vem sem fim": peregrinação anteparto; "Se eu fosse rica, não estaria aqui": atenção recebida no acesso à maternidade, que foram analisados de forma interpretativa.

Foram adotados os seis critérios da etnoenfer-magem para conferir rigor metodológico e solidez para os resultados encontrados: credibilidade, confirmabilidade, padrões recorrentes, significado-em-contexto, saturação e transferibilidade.1010 Leininger MM, McFarland MR. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. Sudbury, MA: Jones & Bartlett Learning; 2 ed.; 2006. O estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer n° 1.397.142 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética n° 52703715.0.0000.5055.

Resultados

As 13 informantes-chave do estudo se situavam na faixa etária de 20 a 41 anos; oito eram casadas; 12 se autodenominaram pardas, uma branca; todas cristãs; oito tinha o ensino médio completo; 11 se ocupavam de atividades domésticas remuneradas ou não e todas possuíam renda familiar igual a um salário mínimo (R$ 880,00 - valor vigente à época). Quanto aos aspectos gineco-obstétricos, 11 eram multíparas, sete tinham idade gestacional igual ou superior a 40 semanas, duas referiram um aborto e o número de consultas pré-natais variou de três a dez.

Temas culturais

"Tem que entregar nas mãos de Deus": construções discursivas acerca do acompanhamento pré-natal

Neste tema, foram delineadas as necessidades em saúde no período gestacional e os significados atribuídos ao acompanhamento pré-natal.

Os relatos evidenciaram que a continuidade da assistência pré-natal de risco habitual encontrava-se comprometida, à medida que a maioria das informantes não recebeu acompanhamento na Atenção

Primária à Saúde (APS) em decorrência de paralisação dos serviços públicos mediante greve trabalhista, sendo encaminhadas para acompanhamento na atenção secundária em Serviços de Atendimento Médico Especializado (SAME): "quase não tive nenhum acompanhamento com os postos de saúde de greve [...], depois que completei sete meses eu não fui mais [...] quando chegava as portas estavam fechadas" (e5).

Nestes locais, relataram insatisfação em relação à demora, ausência de atendimento e "compromisso " dos profissionais: "no SAME [...] era muito ruim, longe da minha casa, demorava demais, eu perdia o dia todo. As vezes, não tinha médico ou enfermeira para atender, remarcava, era triste. Eles não tinham compromisso, chegavam tarde demais" (e10).

Diante das dificuldades de acesso às consultas na APS, no serviço para o qual eram referenciadas e por não terem suas necessidades de saúde satisfeitas, a busca por assistência em hospitais tornava-se um imperativo: "quando sentia alguma coisa vinha para o hospital, tomava remédio e ficava boa [...]. A pressão estava alta [...] ia ao posto de saúde, a mulher não verificava [...], ia na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), mas ninguém verificava, diziam que ali não era lugar de gestante. Mandavam ir para o posto de saúde, mas estava fechado " (e2).

A dificuldade no acesso a consultas, exames e medicamentos resultava em sentimentos negativos ao longo da gestação. Esses aspectos, acrescidos da preocupação das mulheres quanto à higidez e desenvolvimento fetal, reforçavam a necessidade iminente de cuidados profissionais: "só fiz três consultas porque não tinha medicamento, sulfato ferroso e eu morava longe" (e3); "até hoje estou esperando meus exames do pré-natal. Isso é um descaso, você passa a gravidez toda tensa esperando um resultado [...]tem que entregar nas mãos de Deus. Estes exames todos vim fazer aqui no hospital. Eu vim bater uma ultrassonografia agora" (e6).

Na APS, as consultas eram intercaladas entre enfermeiras e médicos, embora a maioria das informantes tenha realizado o acompanhamento pré-natal apenas com as enfermeiras, com as quais referiram ter maior proximidade: "quando era a enfermeira era diferente, fazia muita coisa, media tudo, escutava o coração do bebê, fazia um monte de pergunta, anotava tudo dos exames no cartão, deixava a gente mais tranquila" (e11); "a enfermeira era muito boa, me atendia bem [...]fiz todo acompanhamento com ela" (e8).

Em contrapartida, os relatos evidenciaram que as consultas médicas eram mais rápidas, superficiais, com pouco diálogo e interação: "o médico apenas olhava os exames e pronto, não media barriga, não escutava o coração, não dava muita atenção" (e13); "a doutora não era muito boa, era fria" (e12).

"A gente fica nesse vai e vem sem fim": peregrinação anteparto

Neste tema cultural, as mulheres rememoraram os acontecimentos desde o início do trabalho de parto, quando sentiram as "primeiras dores", que eram significadas como sofrimento e decidiram buscar assistência. Assim, a partir de tais relatos foram descritas as situações de acessibilidade das parturientes à maternidade.

Algumas mulheres decidiram buscar atendimento na iminência dos primeiros sinais e sintomas do trabalho de parto. Entretanto, a maioria referiu procurar assistência mais tardiamente: "comecei a sentir as primeiras dores de manhã, fiquei em casa sentindo dor o dia todo, não vim para o hospital, eu disse: 'só vou amanhã, quando a dor tiver forte '. Quando eu vi já estava perdendo água [...] A dor era muito forte, só aumentava, eu ficava agoniada [...] passei a noite acordada. Foi quando eu resolvi vir para o hospital, era bem cedinho " (e9).

Nos relatos evidenciaram-se, com frequência, queixas das mulheres sobre dificuldades de acessibilidade à maternidade em decorrência da distância em relação à sua residência e da ausência de condições e meios de transporte para se deslocarem. Este caminho percorrido em busca de assistência muitas vezes acontecia por meios próprios, em carros ou motocicletas obtidos com pessoas da comunidade: "a gente fica nesse vai e vem sem fim, eles (médicos) pensam que a gente não gasta dinheiro para pagar uma pessoa para vir deixar aqui no hospital. Moro num bairro que é um pouco longe, por isso tem que arrumar um carro" (e5).

No acesso, as experiências maternas eram influenciadas pelos comentários de pessoas conhecidas da rede social e comunitária acerca da qualidade da assistência prestada na maternidade ou pela vivência da mulher em partos anteriores: "a minha amiga que veio para este hospital disse que não gostou daqui [...] aí eu já fiquei morrendo de medo de vir" (e4); "da minha outra filha foi demorado porque quando comecei a sentir as dores já fui direto para o hospital. Era o primeiro (filho) e eu não tinha entendimento, desse agora comecei a sentir em casa e demorei a vir para maternidade [...] e fui alertada pelas minhas colegas de que o atendimento aqui era devagar e que só viesse nos fmalmentes " (e7).

O suporte recebido de membros da rede social e comunitária promovia segurança emocional às mulheres, necessária ao enfrentamento de barreiras relacionadas ao acesso. Essas mulheres tinham voz a partir de outrem e por meio deles buscavam assegurar a assistência ao reivindicar seus direitos: "pense numa coisa ruim é você ir e voltar. Eles dizem: 'venha só quando a bolsa estourar, tiver sangramento, sentindo muita dor no pé da barriga '. Esses cinco dias que vim, se você não souber conversar, ficar calada, não for atrás dos seus direitos você volta sem ser atendida igual a mim nas últimas consultas. Dessa vez trouxe minha comadre, vim preparada, por isso não me mandaram de volta" (e6).

"Se eu fosse rica, não estaria aqui": atenção recebida no acesso à maternidade

Neste tema apresentam-se os relatos das parturientes acerca da atenção recebida no acesso à maternidade. Delineiam-se os aspectos marcantes apontados pelas mulheres relativos às rotinas assistenciais que permitiram compreender como o acolhimento era experienciado durante a admissão para o parto.

Embora tenham relatado conseguir atendimento, as informantes apontaram que não tiveram opção em relação à escolha da maternidade e atribuíam isso à condição socioeconómica: "a gente vem porque só tem essa maternidade, não tem outra. A gente que é pobre e não tem condição de mandar tirar o menino fica à mercê daqui" (e1).

Para as informantes "ser pobre" era uma condição determinante para a utilização dos serviços públicos que, por sua vez, era sinônimo de uma assistência sem qualidade, precarizada, causando-lhes sentimentos de (in)conformidade: "o atendimento pela demora não foi bom. Porque o povo diz que o pobre se reclama de tudo, é lógico! [...] Se eu fosse rica, não estaria aqui. E agora eu estou aqui, com sede, com fome. Não é um descaso com os pobres? Pobre é invenção do diabo! [...]Eu não vejo a hora desse sofrimento acabar" (e3).

Durante a avaliação para admissão, as mulheres eram examinadas pelo obstetra, residente e ou acadêmicos de medicina. Diante do diagnóstico de trabalho de parto eram admitidas na unidade para "ganhar" seu filho. Ao longo desse processo, não havia acolhimento/triagem de enfermagem.

As informantes relataram longos períodos de espera, filas extensas e ausência de profissionais para realizar o primeiro atendimento: "eu cheguei ao hospital era umas oito horas, subi para a maternidade dez horas, [...] porque as atendentes e o doutor não tinham chegado. Tinham seis na minha frente. E ainda tinham as urgências que chegavam" (e3). Em contrapartida, aquelas que chegavam à maternidade em trabalho de parto avançado, com intercorrências clínicas e ou obstétricas tinham prioridade na avaliação ou eram imediatamente admitidas.

Diante das dificuldades apresentadas no acesso, era recorrente entre as informantes a insatisfação com o atendimento, o medo e a preocupação de retornar para casa: "o doutor que me atendeu lá embaixo não queria me internar, queria me mandar embora, eu não gostei dele. Ele devia ter mais atenção [...]Eu estava com medo, preocupada dessa menina nascer [...] estou com 40 semanas e dois dias" (e6).

As mulheres quando não internadas eram orientadas pelos profissionais sobre o momento de retornar à maternidade em busca de assistência: "Ele (médico) disse: 'você só venha se sentir alguma coisa ', todo ignorante! Mas tem mulher que não tem sintoma, não sai nada, não estoura bolsa" (e7). Essas orientações abrangiam sinais e sintomas relacionados ao trabalho de parto como a presença de sangramento, perda de líquido amniótico e ou tampão mucoso, dor em baixo ventre, início, frequência e intensidade das contrações uterinas.

A ausência de internamento era percebida pelas mulheres como negligência de cuidados obstétricos: " 'Só voltar quando sentir uma coisa ', eu acho isso absurdo! Parece que tem médico que não gosta de fazer cesárea" (e6). Ao conseguirem superar essa barreira, atribuíam esta conquista à intercessão divina, enfatizada em "as coisas são tudo como Deus quer, Ele tocou no coração dessa doutora" (e7).

Evidenciou-se que algumas mulheres não entendiam ou acatavam sem questionar as condutas médicas: "a gente não pode nem reclamar, porque fico com medo deles mandarem voltar para casa" (e3); "eu estava sangrando, o médico examinou os batimentos (cardiofetais) da criança, disse que estava normal, fez o tal do toque (vaginal) e falou que eu estava com uma digital, um negócio assim, não entendi, ele falou grego" (e5).

As condutas profissionais eram referidas como satisfatórias quando as mulheres eram admitidas rapidamente e ou encontravam-se em trabalho de parto avançado. Este aspecto refletia uma suposta resolutividade à medida que assegurava o internamento imediato: "não demorou muito. Eu cheguei já ganhei, não teve muito sofrimento. Aqui uma enfermeira me ajudou e num instante nasceu. A bolsa estourou e me mandaram para sala de ganhar, não teve corte, não teve ponto" (e10).

Discussão

O acesso qualificado à assistência obstétrica constitui um desafio, sobretudo em regiões com dificuldades de organização da rede de atenção à saúde. No contexto cultural analisado a assistência obstétrica era marcada por dificuldades de acesso, acessibilidade e violação de direitos nos diferentes níveis de atenção.

Esses aspectos resultaram em baixa assiduidade ao pré-natal, peregrinação nos serviços de saúde e ausência de padrão mínimo de cuidados. A recomendação do Ministério da Saúde abrange a realização de, no mínimo, seis consultas, com início no primeiro trimestre, procedimentos, exames clínico-obstétricos, laboratoriais e orientações voltadas à promoção da saúde.1313 Nunes JT, Gomes KRO, Rodrigues, MTP, Mascarenhas MDM. Qualidade da assistência pré-natal no Brasil: revisão de artigos publicados de 2005 a 2015. Cad Saúde Coletiva. 2016; 24 (2): 252-61.

Neste cenário complexo, as informantes sem condições financeiras, movidas pela preocupação buscavam formas e ou recursos para realizar exames obstétricos ou recorriam aos desígnios divinos como forma de amenizar o sofrimento e ou mecanismo de enfrentamento. Em função da insegurança que permeia a gravidez e o parto as mulheres tendem a se apegar aos aspectos religiosos para receber proteção divina.1414 Bezerra MGA, Cardoso MVLML. Fatores culturais que interferem nas experiências das mulheres durante o trabalho de parto e parto. Rev Latinoam Enferm. 2006; 14 (3): 41421.

A (in)conformação enfatizada em "tem que entregar nas mãos de Deus" pode denotar, em primeiro momento, desconhecimento e ou passividade em relação à reivindicação de direitos, mas essencialmente reforça a desigualdade de acesso aos serviços e direitos negligenciados. Ressalta-se que em regiões pobres cerca de 60% das gestantes não têm acesso a um padrão mínimo de cuidados clínicos e laboratoriais.77 Tostes NA, Seidl EMF. Expectativas de Gestantes sobre o Parto e suas Percepções acerca da Preparação para o Parto. Temas Psicol.(online). 2016; 24(2):681-93.

A ausência de vinculação às maternidades de referência ou serviços diagnósticos e a centralização da assistência pré-natal em serviços de atenção secundária determinavam peregrinação. Para evitar deslocamentos de área adscrita,1515 Cabral FB, Hirt LM, Sand ICPVD. Prenatal care from puerperal women's point of view: from medicalization to the fragmentation of care. Rev Esc Enferm USP. 2013; 47 (2): 281-7. durante a organização da assistência pré-natal, deve-se considerar características individuais, socioeconómicas e culturais, a disponibilidade, distribuição espacial e proximidade dos serviços de saúde com a comu-nidade,1616 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Prenatal care in Brazil. Cad Saúde Pública. 2014; 30 (supl. 1): 85100. assim como orientações quanto à busca por serviços de referência ao apresentar sinais e sintomas do trabalho de parto, intercorrências clínicas ou obstétricas.1616 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Prenatal care in Brazil. Cad Saúde Pública. 2014; 30 (supl. 1): 85100.

Esses aspectos quando não contemplados contribuem para a fragmentação da assistência pré-natal ao reforçar a lógica hospitalocêntrica à medida que as gestantes não têm suas necessidades de saúde satisfeitas. Nos itinerários em saúde, as trajetórias pessoais passam a ter centralidade nesta lógica quando se observa no processo social situações de vulnerabilidade e violações de direitos associadas a distanciamentos e barreiras no acesso aos serviços de APS.17,18

As consultas pré-natais eram intercaladas entre médicos e enfermeiros, conforme recomendação do Ministério da Saúde. Entretanto, essa dinâmica de atendimento ainda enfrenta dificuldades de consolidação. Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste do Brasil as consultas pré-natais são realizadas predominantemente por médicos, em contrapartida na Norte e Nordeste metade dos atendimentos pré-natais são realizados por enfermeiros.1616 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Prenatal care in Brazil. Cad Saúde Pública. 2014; 30 (supl. 1): 85100.

Os espaços de escuta e diálogo estabelecidos com a enfermeira, traduzidos na abertura para expressar dúvidas e inquietações, resultaram na avaliação positiva do atendimento ao gerar sentimentos de confiança e segurança. Entretanto, as ações descritas voltavam-se a aspectos rotineiros padronizados, ao enfatizarem procedimentos e ações técnicas realizadas na consulta.

O cuidado de enfermagem no pré-natal necessita ultrapassar a dimensão biológica, tecnicista e centrada em problemas e valorizar aspectos do contexto sociocultural, dimensões subjetivas e afetivas da mulher, para garantir a integralidade da atenção e cuidados culturalmente congruentes.1818 Alves CN, Wilhelm LA, Barreto CN, Santos CC, Meincke SM, Ressel LB. Prenatal care and culture: an interface in nursing practice. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2015; 19 (2): 265-71.

As consultas médicas, ancoradas em uma lógica reducionista, se limitavam à procedimentos técnicos e avaliação de exames. Esses aspectos remetem à influência do modelo biomédico nas práticas profis-sionais1919 Warmling CM, Fajardo AP, Meyer DE, Bedos C. Social practices in the medicalization and humanization of prenatal care. Cad Saúde Pública. 2018; 34 (4): e00009917. que, consequentemente, resultam em fragilidade na avaliação e satisfação da assistência pelas mulheres que apreenderam uma lógica de atenção em saúde restrita ao âmbito físico.

Desse modo, superar essa padronização e generalização das ações assistenciais implica considerar que não existe uma forma de cuidar única que possa ser roteirizada e prescrita universalmente, tampouco vista como objeto passível de legitimação e reprodução à medida que existem necessidades de saúde distintas que precisam ser contextualizadas socioculturalmente.

A busca tardia pela assistência ao parto associa-se a conseguir vaga para internação, ser atendida sem demora, à rapidez do nascimento, às experiências anteriores e resultado da comparação entre assistência recebida e o relato de outras mulheres. A satisfação das mulheres associa-se à atuação pontual de algum profissional de saúde, à rapidez do trabalho de parto e nascimento, poucas dores e ausência de complicações.2020 Dias MAB, Deslandes SF. Expectativas sobre a assistência ao parto de mulheres usuárias de uma maternidade pública do Rio de Janeiro, Brasil: os desafios de uma política pública de humanização da assistência. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (12): 2647-55.

Durante a peregrinação anteparto a maioria das mulheres buscava assistência por meios próprios. A implantação de um sistema de transporte, com transferências de gestantes de risco ou em trabalho de parto, feito por ambulâncias, traria acolhimento às parturientes, diminuição dos riscos potenciais durante o percurso e das desigualdades.2121 Menezes DCS, Leite IC, Schramm JMA, Leal MC. Avaliação da peregrinação anteparto numa amostra de puérperas no Município do Rio de Janeiro, Brasil, 1999/2001. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (3): 553-9.

Os membros da comunidade (vizinhos, amigas, colegas e comadres), enquanto elementos do capital social inseridos nas redes sociais e comunitárias formais e informais das mulheres, fornecem apoio e suporte às mulheres contribuindo para amenizar o "sofrimento" e a limitada autonomia e empoderamento durante o processo de parturição.11 Geib, LTC. Social determinants of health in the elderly. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(1):123-33.,2222 Marrero L, Brüggemann OM, Costa R, Junges CF, Scheneck CA. Institutional violence reported by birth companions in public maternity hospitals. Acta Paul Enferm. 2020; 33: eAPE20190220

Desse modo evidencia-se que, na perspectiva da promoção da saúde, o empoderamento e a mudança discursiva a partir da reivindicação de direitos com base em mecanismos legais (Lei federal n° 11.108/2005), assistenciais (normas e recomendações da Rede Cegonha) e educativos constituem elementos presentes no capital social decisivos para romper barreiras de acesso aos serviços de saúde.11 Geib, LTC. Social determinants of health in the elderly. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(1):123-33.,2222 Marrero L, Brüggemann OM, Costa R, Junges CF, Scheneck CA. Institutional violence reported by birth companions in public maternity hospitals. Acta Paul Enferm. 2020; 33: eAPE20190220

A presença de acompanhante de escolha da mulher, integrante da sua rede sócio comunitária, transmite confiança, amparo físico e emocional.2323 Brüggemann OM, Oliveira ME, Martins HEL, Gayeski ME. The integration of the birth companion in the public health services in Santa Catarina, Brazil. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2013; 17 (3): 432-38. Complementarmente, a implantação de acolhimento com classificação de risco constitui a voz institucional das mulheres ao configurar estratégia de organização do processo de trabalho em saúde, garantir acesso eficiente, equânime e integralidade da atenção.2424 Sousa TS, Andrade MU, Almeida MS, Nunes IM, Carvalho MM. Acolhimento com classificação de risco: a voz das mulheres. Rev Baiana Enferm. 2013; 27 (3): 212-20.

A via de parto e os ideários construídos em torno da parturição apresentam recorte socioeconómico. As expectativas de mulheres de classe média são marcadas por empoderamento e autonomia, menor nível de intervenções de tecnologias assistenciais, maior participação e controle sobre o processo, em contrapartida, as pobres inserem-se em contextos de vulnerabilidade e heteronomia à medida que anseiam abreviar a dor e o sofrimento, por meio das intervenções profissionais.2020 Dias MAB, Deslandes SF. Expectativas sobre a assistência ao parto de mulheres usuárias de uma maternidade pública do Rio de Janeiro, Brasil: os desafios de uma política pública de humanização da assistência. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (12): 2647-55.

A resignação presente no discurso das informantes refletida na condição de se submeter à ação do destino e aceitar pacificamente os sofrimentos da vida é permeada por sentimento de impotência que reflete um lugar de fala que vai além do que se poderia enquadrar como pobreza subjetiva, "vinda das próprias pessoas a partir de seu contexto e história",88 Freitas MA, Mattos ATR; Gomes WZ, Caccia-Bava MCGG Who are they, what do they talk about and who listens to the poor?. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(12):3859-82. mas como reflexo pungente do modo como as desigualdades socioeconómicas afligem e aprisionam as pessoas em um cotidiano perverso.

No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) somam-se às desigualdades sociais, a diminuição do investimento financeiro nos últimos anos que compromete a capacidade de atender a demanda na perspectiva da universalidade e integralidade,2525 Teixeira CFS, Paim JS. A crise mundial de 2008 e o golpe do capital na política de saúde no Brasil. Saúde Debate. 2018; 42 (2): 11-21. a ausência de sua apropriação como direito e representações sociais ancoradas em visões negativas do sistema entre a classe média.2626 Reigada CLL, Romano VF. O uso do SUS como estigma: a visão de uma classe média. Physis (Rio J.). 2018; 28 (3):e280316.

Há uma perspectiva compartilhada entre as informantes de que as maternidades constituem locais de segurança para o parto. As rotinas da obstetrícia hospitalar moderna constroem a narrativa de que a maternidade constitui um local dotado de profissionais e tecnologias assistenciais que conferem às mulheres a capacidade, proteção e condições necessárias para a parturição e essencial ao bem estar materno-fetal.2727 Gonçalves R, Aguiar CA, Merighi MAB, Jesus MCP. Experiencing care in the birthing center context: the users' perspective. Rev Esc Enferm. USP. 2011; 45 (1): 62-70.

O lugar de poder decorrente do saber médico e a falta de tradução do conhecimento para que as mulheres entendam o que está sendo realizado e dito tem fundamentação nas relações hegemónicas, hierárquicas e assimétricas de saber e poder. No espaço da maternidade há a legitimação dessas relações, o controle sobre os corpos e centralização dos processos decisórios na figura do médico que por meio de sua formação técnico-científica assume o comando das ações e conduz a parturição.2828 Pereira RR, Franco SC, Baldin N. Representações sociais e decisões das gestantes sobre a parturição: protagonismo das mulheres. Saúde Soc. 2011; 20 (3): 579-89. Esse fenómeno é agravado pela carência de informação adequada às mulheres durante acompanhamento pré-natal sobre aspectos relativos ao trabalho de parto e seus direitos.

Em termos de reflexividade, aponta-se que a utilização da etnoenfermagem no contexto cultural analisado apresenta um olhar sobre as perspectivas do cuidado obstétrico à medida que considera as necessidades de saúde das participantes sob a ótica do seu grupo cultural e desvela dimensões humanísticas e subjetivas presentes no seu cotidiano que necessitam ser entendidas e incorporadas na assistência para se promover práticas de cuidado culturalmente congruentes.

Considerações finais

No cenário cultural analisado as experiências das informantes no acesso à assistência obstétrica foram tecidas em meio a contextos de fragilidades clínica e social, de violação de direitos e da dignidade. As mulheres recorriam aos desígnios divinos para interceder diante dos obstáculos enfrentados no acesso aos serviços de saúde, dificuldades de acessibilidade sócio organizacional e geográfica, assim como peregrinação para garantia do direito às consultas pré-natais, exames e internamento para o parto. Esse contexto, atribuído pelas participantes à desigualdade social, resultava em sentimentos de resignação e impotência frente ao desamparo que lhes afligia.

Emergem como desafios que os profissionais responsáveis pela assistência obstétrica incluam em suas ações aspectos sociais, culturais e subjetivos para o fornecimento de um cuidado culturalmente congruente, bem como os órgãos governamentais garantam a universalidade do acesso aos serviços e às políticas públicas de saúde brasileiras por meio de oportunidades iguais, justas e dignas baseadas na integralidade, equidade e qualidade dos serviços, considerando marcadores sociais (classe, raça/etnia, gênero) e culturais, padrões resistentes de desigualdades sócio espaciais e áreas de vulnerabilidade em determinadas regiões do país.

Agradecimentos

À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) pelo apoio financeiro. Concessão de bolsas de mestrado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2020
  • Revisado
    19 Dez 2020
  • Aceito
    05 Jan 2021
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