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Diretrizes: para quê?

EDITORIAL

Diretrizes: para quê?

José Antônio Baddini Martinez

Professor Associado, Divisão de Pneumologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto (SP) Brasil

Sociedades médicas e instituições relacionadas vêm empenhando esforços e recursos substanciais na confecção e divulgação de documentos contendo posicionamentos sobre questões médicas diversas. Todo esse investimento de energia, tempo e dinheiro é justificável?

Inicialmente, devemos considerar que a denominação "diretrizes" para tais iniciativas é muito mais apropriada do que a antiga expressão "consenso". A experiência mostra que um texto fluente e bem acabado frequentemente esconde discussões acaloradas, opiniões contrariadas e votações de resultados apertados. A leitura desses documentos pode, portanto, esconder a existência de vozes dissonantes sobre aspectos polêmicos. Ou seja, por detrás de um "consenso" dificilmente há total consenso. Há de se supor que o mesmo também seja verdade para diretrizes.

Quando apreciamos os assuntos abordados em diretrizes efetuadas por diferentes sociedades, podemos concluir que os temas são em geral pertinentes, pois costumam abordar condições médicas altamente prevalentes, de gravidade substancial, ou que envolvam grandes dúvidas diagnósticas e terapêuticas.

Opinar aqui sobre o conteúdo desses documentos seria temerário, devido ao grande número e complexidade dos assuntos abordados e à impossibilidade de uma única pessoa exibir conhecimento profundo em tantos campos da Medicina. Contudo, como tais iniciativas mobilizam os maiores nomes atuantes em suas respectivas áreas e demandam uma metodologia rígida, assume-se que os conteúdos produzidos sejam altamente confiáveis.

Vale relembrar aqui a afirmação da Associação Médica Brasileira e do Conselho Federal de Medicina, segundo os quais, a criação de diretrizes "visa, de maneira ética e com rigorosa metodologia científica, construir as bases de sustentação das recomendações de conduta médica, utilizando-se os meios da ciência atual, de forma crítica e desprovida de interesse se não aquele que resulte na melhoria do binômio médico-paciente".(1)

Quem seriam os maiores beneficiados com a confecção e divulgação de tais documentos? Primeiramente, e mais importante, os pacientes. O respeito a diretrizes protege-os da realização de procedimentos e do uso de intervenções terapêuticas de eficácia não comprovada ou aceitáveis apenas em contextos experimentais. Além disso, o emprego de protocolos bem estabelecidos para procedimentos e terapêutica costuma cursar com melhores respostas clínicas, redução de efeitos colaterais indesejáveis e menores custos. Numa era na qual o conhecimento não tem dono e difunde-se rapidamente de maneira eletrônica, a procura espontânea de pacientes por essas informações, ainda que frequentemente vista com desaprovação por muitos profissionais, pode tornar-se o ponto de partida para o fornecimento de esclarecimentos de condutas tomadas e para a promoção de maior adesão ao tratamento proposto.

Os médicos beneficiam-se igualmente do emprego de diretrizes. Isso é particularmente verdadeiro para aqueles pouco familiarizados com o assunto abordado. Para um pneumologista que esteja cuidando de um asmático com diabetes tipo II, a leitura de diretrizes sobre os passos a seguir na condução da última doença certamente será muito útil. Não podemos ainda esquecer que seguir o recomendado por sociedades médicas sempre constituirá uma poderosa defesa na eventualidade de processos judiciais envolvendo responsabilidades legais.

Contudo, conhecer bem as diretrizes não significa que todos os médicos sejam obrigados a seguir todas as recomendações em todos os pacientes! Mesmo documentos rubricados pela Associação Médica Brasileira e pelo Conselho Federal de Medicina ressaltam que "as informações contidas neste projeto devem ser submetidas à avaliação e à crítica do médico, responsável pela conduta a ser seguida, frente à realidade e ao estado clínico de cada paciente".(2)

É nesse ponto que entra a Arte da Medicina. Diretrizes não são capazes de prever todas as situações, nem cobrir todas as particularidades possíveis de surgir no cotidiano profissional do médico. Coisas que podem soar antigas, fora de moda e mesmo obscuras aos mais jovens, tais como bom senso, raciocínio clínico e vivência profissional prévia, certamente ocupam um papel relevante na interpretação e aplicação de diretrizes em casos individuais. Naturalmente, não devemos chegar ao extremo de imitar o comportamento que já foi atribuído a um velho e famoso professor de medicina norte-americano: "Eu não leio consensos. Eu escrevo consensos". Entretanto, não podemos deixar de enfatizar que, mesmo num oceano de recomendações baseadas em evidências, ainda há muito espaço de manobra para bons clínicos.

A real aderência dos profissionais às normas recomendadas pelas diretrizes é um aspecto fundamental desta discussão. Há evidências que, tanto no campo das doenças respiratórias como fora dele, o emprego das recomendações de diretrizes pode ser bastante baixo na prática do "mundo real".(3-6) Isso parece ser especialmente verdadeiro ao nível da medicina primária e na prática de não especialistas. A correção desse problema não é simples, mas iniciativas educacionais e de divulgação dos conteúdos publicados certamente constituem elementos centrais desse esforço.

Deve-se ressaltar ainda que, mesmo seguindo rigorosamente recomendações contidas em diretrizes, compete ao profissional médico saber reconhecer suas próprias limitações e a existência de casos difíceis. Nessas situações, o mais correto é encaminhar o doente para um especialista, ou mesmo para um hiperespecialista, da área.

No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia são publicados os "Destaques das Diretrizes de Doenças Pulmonares Intersticiais da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia" (SBPT), um texto resumido do abrangente manuscrito a ser distribuído a todos os nossos associados.(7,8)

A proposta da confecção desses documentos pela Comissão de Doenças Intersticiais da SBPT foi uma iniciativa ousada, atrevida, até abusada. O tema exibe dificuldades imensas para ser abordado de maneira razoavelmente sucinta, devido a sua extensão, complexidade e número enorme de dúvidas e questões ainda não respondidas. Além disso, a rapidez com que se acumulam novos conhecimentos na área, não raro, supera a capacidade dos autores de escrever textos completamente atualizados. A condução de um projeto envolvendo um número tão grande de colaboradores adiciona um desafio extra à empreitada.

Apesar de todos esses obstáculos, ficamos realmente satisfeitos em constatar versões finais dos manuscritos construídas de forma objetiva, exibindo fácil leitura e ricas nas informações essenciais necessárias ao clínico, seja ele atuante ou não na especialidade. Propõe-se uma classificação geral para essas moléstias, e são fornecidas orientações claras acerca dos passos diagnósticos. Além disso, diferentes processos são discutidos individualmente, com considerações terapêuticas de natureza geral, quando apropriadas.

Um produto final tão satisfatório é resultado de anos de esforço e do trabalho titânico de um grande número de colaboradores, todos listados como autores. Porém, devemos ressaltar, em especial, a dedicação e entusiasmo dos coordenadores do projeto, Dr. Bruno Baldi e Dr. Carlos Pereira. Devemos também enfatizar que a conclusão desse projeto só foi possível pelo apoio decisivo das diretorias da SBPT dos biênios atual e passado.

Naturalmente, as considerações de ordem genérica tecidas nos parágrafos iniciais do presente editorial também se aplicam às diretrizes agora divulgadas. Elas foram feitas no sentido de refletirmos sobre o valor e a real utilidade desse importante trabalho recém-concluído pela Comissão de Doenças Intersticiais Pulmonares da SBPT.

A publicação dessas diretrizes demonstra o grau acentuado de maturidade atingido pela Pneumologia brasileira, que alcança projeção internacional em inúmeros setores. Cabe agora ao leitor desfrutar desse excepcional trabalho e, mais importante, incorporá-lo na sua prática médica diária.

  • 1. Cerri GG, Jatene FB, Nobre MR, Bernardo WM. Introdução. In: Amaral JL, Andrade EO (editors). Projeto Diretrizes [monograph on the Internet]. São Paulo: Associação Médica Brasileira/Conselho Federal de Medicina; 2008 [cited 2012 Jun 13]. [Adobe Acrobat document, 6p.]. Available from: http://www.projetodiretrizes.org.br/projeto_diretrizes/texto_introdutorio.pdf
  • 2. Jardim JR, Oliveira JC, Rufino R, editors. Projeto Diretrizes. Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica [monograph on the Internet]. São Paulo: Associação Médica Brasileira/Conselho Federal de Medicina; 2001 [cited 2012 Jun 13]. [Adobe Acrobat document, 8p.]. Available from. http://www.projetodiretrizes.org.br/projeto_diretrizes/042.pdf
  • 3. Gourgoulianis KI, Hamos B, Christou K, Rizopoulou D, Efthimiou A. Prescription of medications by primary care physicians in the light of asthma guidelines. Respiration. 1998;65(1):18-20. PMid:9523363. http://dx.doi.org/10.1159/000029222
  • 4. Mattos W, Grohs LB, Roque F, Ferreira M, Mânica G, Soares E. Asthma management in a public referral center in Porto Alegre in comparison with the guidelines established in the III Brazilian Consensus on Asthma Management. J Bras Pneumol. 2006;32(5):385-90. PMid:17268740. http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132006000500003
  • 5. Navaratnam P, Jayawant SS, Pedersen CA, Balkrishnan R. Physician adherence to the national asthma prescribing guidelines: evidence from national outpatient survey data in the United States. Ann Allergy Asthma Immunol. 2008;100(3):216-21. http://dx.doi.org/10.1016/S1081-1206(10)60445-0
  • 6. Lima SM, Portela MC, Koster I, Escosteguy CC, Ferreira VM, Brito C, et al. [Use of clinical guidelines and the results in primary healthcare for hypertension]. Cad Saude Publica. 2009; 25(9):2001-11. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009000900014
  • 7. Baldi BG, Pereira CA, Rubin AS, Santana AN, Costa AN, Carvalho CR, et al. Highlights of the Brazilian Thoracic Association Guidelines for Interstitial Lung Diseases. J Bras Pneumol. 2012;38(3):282-91.
  • 8. Comissão de Doenças Intersticiais, Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Diretrizes de Doenças Pulmonares Intersticiais da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. J Bras Pneumol. 2012;38(Suppl 2):S1-S133. In press 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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