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O SAGRADO COMO CONCEITO SOCIOLINGUÍSTICO: APONTAMENTOS ENTRE DURKHEIM E SAUSSURE

RESUMO

Este artigo tem como objeto de estudo a contribuição de Émile Durkheim, pela Sociologia e Ferdinand de Saussure, pela Linguística e a Etnologia, na definição dos objetos de estudo conhecidos como fatos sociais e fatos linguísticos (respectivamente). Mais que o lançamento de objetos de estudos, alicerçados na promoção de recortes epistemológicos e científicos, Durkheim e Saussure fundamentam suas teorias também em bases cronológicas e espaciais, preferindo a sincronia à diacronia e o retorno a uma zona espacial/temporal mais condizente com o movimento conjuntural. Além disso, através da exposição teórica buscamos mostrar o fato de que sem a definição dos fatos sociais, não teríamos a base para o estudo dos fatos linguísticos. Isto não apenas aproxima os fatos sociais dos fatos linguísticos, como também possibilita pensarmos o campo científico como um campo teoricamente relacional e passível de entendimento via uma situação empírica, através do conceito de sagrado e sua análise em consonância com a realidade social.

sociedade; fatos sociais; fatos linguísticos; sagrado

ABSTRACT

The object of this article is to study the contribution of Émile Durkheim, in sociology, and Ferdinand de Saussure, in linguistics and ethnology, in the definition of the objects of study known as social facts and linguistic facts (respectively). More than just launching of objects of studies, based on the promotion of epistemological and scientific cut-outs, Durkheim and Saussure also based their theories on chronological and spatial bases, preferring synchrony to diachrony and returning to spatial/temporal zone more in line with the conjunctural movement. In addition, through the theoretical exposition we have tried to show the fact that without the definition of social facts, we would not have the basis for the study of linguistic facts. This not only brings social facts closer to linguistic facts, but also makes it possible to think of the scientific field as a theoretically relational field that can be understood via an empirical situation, through the concept of the sacred and its analysis in line with social reality.

society; social facts; linguistic facts; sacred

Introdução

Este artigo tem como objeto de estudo a contribuição de Émile Durkheim, pela Sociologia e Ferdinand de Saussure, pela Linguística e a Etnologia, na definição dos objetos de estudos conhecidos como fatos sociais e fatos linguísticos (respectivamente).

Mais que o lançamento de objetos de estudo alicerçados na promoção de recortes epistemológicos e científicos, Durkheim e Saussure fundamentam suas teorias também em bases cronológicas e espaciais, preferindo a sincronia à diacronia, como uma zona espacial/temporal condizente com o movimento conjuntural. E mesmo que usem de cronologias históricas, este é um recurso que reforça a importância dos fatos da moral e da língua, pois são parte do processo que caminha estável, porém, sempre aberto a lentas e graduais mudanças configuracionais (Elias, 2006ELIAS, N. Escritos e ensaios: estado, processo e opinião pública. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.).

Seguindo este caminho de definições importantes, apontamos ainda para uma semelhança entre as duas abordagens: o funcionalismo de Durkheim põe os fatos sociais como exteriores, coercivos e gerais, produto do consciente coletivo, agindo de forma estável, apesar de oposições e contrassensos (Durkheim, 2010). Da mesma forma os fatos linguísticos são vistos por Saussure dentro de seu estruturalismo (que não deixa de ser funcional em termos objetivos), como tendo um caráter social, homogêneo e estável, diretamente ligado a língua, com sua unidade simbólica (o signo), que é disseminador de um detalhe memorial sonoro que faz o falante e o ouvinte acessarem uma estrutura passível de compreensão (Saussure, 2010). Isso fornece aos dois autores, não apenas a posição de teóricos fundadores, mas também a importância de construírem uma composição teórica ainda fluente apesar das críticas e posicionada na condição de textos clássicos, que são: As Regras do Método Sociológico de Durkheim, publicada em 1895 e o Curso de Linguística Geral (compilação atribuída às anotações e aos cursos de Saussure), publicado após sua morte por seus alunos em 1916.

Para além destas questões o artigo também aborda numa primeira seção a relação entre os dois autores, dentro das nuances de suas teorias e as possibilidades de ligação entre elas, além de fazer uso de uma interpretação onde não seria possível a construção dos fatos linguísticos sem as bases teóricas fornecidas pela análise dos fatos sociais. Seguindo, temos uma segunda seção, que por sua vez abordará as aplicações dos conceitos e análises dos autores em relação a um fenômeno empírico particular que é a questão do sagrado, abordado de um ponto de vista social e religioso.

A relação entre As Regras do Método e o Curso de Linguística Geral

O ponto central desta seção é mostrar ao leitor quão inovadores para o lançamento de novas ciências (na transição do século XIX para o século XX), são os dois textos aqui mencionados: As Regras do Método Sociológico de Durkheim e o Curso de Linguística Geral, que é uma junção e revisão dos escritos de gabinete deixados por Saussure, além de anotações de seus cursistas, organizados por Charles Bally e Albert Sechehaye. E para além das intenções de pesquisa distintas, os termos: “fatos sociais” e “fatos linguísticos”, guardam entre si analogias que remonta não só a formação de subcampos de conhecimento, no campo geral da cultura, mas a formação de dois objetos de estudo que compartilham características fundamentais (Bourdieu, 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia do campo científico. São Paulo: Ed. da UNESP, 2004.).

Comecemos então por definir as características comuns aos objetos, trazendo para o debate as citações dos textos originais. A primeira destas características fundamentais é a relação sujeito/objeto. Em Durkheim esta relação está definida em termos de objetividade do pesquisador em mostrar as causas do surgimento dos fatos sociais, externos a ele próprio, sendo uma das características mais delicadas de sua teoria. Neste sentido, os fatos sociais são coisas criadas a partir da interação entre as pessoas e as regras sociais, que nascem dos costumes e podem chegar a se constituir enquanto leis. Segundo o próprio Durkheim (2010, p.XXIII):

Assim se acha justificada, por uma razão nova, a separação que estabelecemos mais adiante entre a Psicologia propriamente dita, ou a ciência do indivíduo mental, e a Sociologia. Os fatos sociais não diferem apenas em qualidade dos fatos psíquicos; eles têm outro substrato, não evoluem no mesmo meio, não dependem das mesmas condições. O que não quer dizer que não sejam, também eles, psíquicos de certa maneira, já que todos consistem em modos de pensar ou de agir. Mas os estados da consciência coletiva são de natureza diferente dos estados da consciência individual: são representações de uma outra espécie.

Durkheim avança em seus argumentos, buscando a construção das características fundamentais de seu objeto, defendendo a questão de que apesar dos fatos sociais serem psíquicos e trabalharem na mente das pessoas, seu substrato (o que lhe há de mais essencial), advém do fato de que são “produto social” de um consciente coletivo. Isso implica direcionar o sentido das regras que obedecemos: eles não nascem da vontade individual e são reproduzidas aos seus milhões aleatoriamente, são na verdade produto de um convencimento coletivo, que se enraíza aos poucos mesmo que produzido a partir de uma pessoa ou mais (como também parece ser o processo dos fatos linguísticos, no que se refere a produção da língua), alcançando uma dimensão diferente, propriamente social, se afastando de seus produtor(es) inicial(is).

Como exemplo do que foi dito acima temos a moeda chamada de “Real”, que para o brasileiro é muito mais que a representação de uma política econômica expressa pelo governo Itamar Franco e seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, iniciada em 1994 (Monteiro, 2000MONTEIRO, J. V. As regras do jogo: o Plano Real 1997–2000. São Paulo: FGV, 2000.). Esta política econômica criou uma moeda/cédula de uso comum e geral para o brasileiro e é por meio de seu uso, com caráter coercivo e regular, que as trocas comerciais acontecem com seu grau de liquidez (e este é seu lado funcional). Após seu uso corrente por cerca de 28 anos essa moeda/cédula se consolidou para além da economia, indo para o consciente coletivo dos brasileiros. Alguém alheio a isso pode querer testar o uso do Euro para comprar algo na padaria, mas não conseguirá pelo fato das dificuldades de cálculo valorativo e câmbio dificultarem sua aceitação em outra realidade social.

Assim são definidas em Durkheim as coisas que são propriamente sociais, enquanto algo que é criado arbitrariamente e por regularidade tornam-se usuais/normais. Este mesmo uso vai tornando-as generalizadas, não apenas por prática, mas por estarem “instaladas” no consciente coletivo (Durkheim, 2010).

Figura 1
– Representação física da política econômica do Real e do Euro na forma de moedas

Já em Saussure, a construção de seu objeto, que são os fatos linguísticos, está amparada na característica principal de separação dos estudos históricos da língua, estudos diacrônicos, preocupados em mostrar o desenvolvimento de uma determinada estrutura de língua no tempo, dos estudos sincrônicos, que focam na estrutura da língua em um tempo definido, optando ele pela questão sincrônica1 1 Durkheim, para a Sociologia, aplica a mesma direção, chamando a atenção para os estudos das “espécies sociais”, em separado da visão generalista evolutiva. . Assim, mesmo que haja espaço para comparações, o estudo linguístico de Saussure se atém a um espaço e um momento específicos, na tentativa de apreender seu funcionamento.

Deste modo os fatos linguísticos agem como os fatos sociais em termos integradores. Mas, ao invés de ligarem a moral da regra social à conduta da média das pessoas de uma sociedade, ligam os conceitos às representações sonoras estáveis, em sentido artificial e arbitrário, formando ligações de sentido psíquico (por isso também concreto).

O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Este não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica deste som, a representação que ele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la material, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato (Saussure, 2010SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2010., p. 80).

O interessante é percebermos o trabalho que Saussure faz em definir um objeto para a ciência linguística ao mesmo tempo em que afirma que este objeto é psíquico e concreto, porém não puramente individual e psicológico, pois as imagens acústicas, assim como as regras morais, são compartilhadas por dentro do consciente coletivo, por isso, tem o grau de convencionalismo. Novamente vemos o esforço de construção da objetividade. Este esforço nada mais é do que dar ao objeto de estudo uma invariabilidade, tornando-o estável e possível de experimentação. Por isso é coerente pensarmos que a imagem acústica não varia, pois ela tem validade psíquica e concreta, dada a sua função que é permitir a existência de um detalhe sonoro que nos faça pela memória, acessar um sentido de compreensão do que nos é dito e articular isso de forma social, como algo generalizado e estável (funcional/estrutural).

Isto não pode ser confundido com pura abstração pelo fato da característica central do objeto de pesquisa, neste caso, ser na verdade a baliza da ciência emergente. Este papel individual de Saussure no campo da ciência, que chamamos genericamente de papel fundador, requer de seu agente o construto de algo que possa apresentar um grau de estabilidade frente às controvérsias, e mais que isso, gerar possibilidades de reflexão e aprimoramento, sendo que os próximos passos são dados em torno do objeto fundado.

Figura 2
– Relação conceito, imagem sonora e sentido da arbitrariedade

O que Saussure faz pela linguística é possibilitar o entendimento dos processos de formação do sentido das palavras, enquanto algo construído e estabilizado (abrindo espaço para o campo de estudo chamado posteriormente de fonologia). Aqui a ideia de valor do objeto é extremamente importante, pelo fato de que seu valor não é atribuído automaticamente ou está no signo por si mesmo, pelo contrário, é algo que lhe é dado pelo uso convencional (social e regular, assim como são os fatos sociais). Por isso que o signo “Árvore” e o signo “Tree”, mantém uma estrutura sonora capaz de nos remeter as suas significações de sentido. Se esta vai significar árvore natural ou genealógica, isso não é mais importante que o fato de socialmente existir uma estrutura que nos leva a estas significações. Até mesmo sociologicamente, podemos dizer que a estrutura moral nos permite o mesmo efeito, nos remetendo a um limite de significações, seja considerando árvore como algo natural (a preservação ambiental é importante) ou como algo social (genealogicamente temos uma filiação institucional familiar, que define papéis e pode ser representada por um fluxograma similar a ramos de uma árvore).

Após essas breves considerações sobre algumas características dos fatos sociais e dos fatos linguísticos, que em resumo podem ser definidas como a capacidade destes fatos serem objetos externos, produto da convenção social, tendo um início e um desenvolvimento individual e coletivo que se consolida enquanto prática, podemos afirmar também que são formas de representação, tendo como substrato os elementos morais e sonoros vistos de forma sincrônica. Para os mais desatentos esta última caraterística não aparecerá como pertencendo aos dois autores. Isso porque em Durkheim, será mais comum considerar sua análise como diacrônico-comparativa, baseada na leitura de Meillet (1948)MEILLET, A. Linguistique historique et linguistique générale. Paris: Librairie Ancienne Honoré Champion, 1948., discípulo de Saussure e que trabalhou para unir as análises destes dois teóricos:

Antoine Meillet enfatizava, em seus textos, o caráter social e evolutivo da língua. Segundo ele: ʽPor ser a língua um fato social, resulta que a linguística é uma ciência social, e o único elemento variável ao qual se pode recorrer para dar conta da variação linguística é a mudança socialʼ (Meillet, 1921, apud Calvet, 2002, p. 16). Como se pode notar nessa citação, do ponto de vista de Meillet, toda e qualquer variação na língua é motivada estritamente por fatores sociais. Meillet foi discípulo de Saussure, mas, inspirado no sociólogo Durkheim, definia a língua como um fato social, enfatizando o caráter evolutivo da língua, diferentemente de Saussure, para quem a sincronia prevalece sobre a diacronia (Coelho et al., 2010, p. 15).

Contudo, o próprio Durkheim a quem Millet se filia colocando inclusive a Linguística como uma ciência social, não define a Sociologia como um estudo diacrônico, mas sincrônico, justamente para fugir da tendência evolucionista aberta por Albert Spencer de comparar e classificar as culturas (Durkheim, 2010). Por isso sua precaução em permitir os estudos comparativos com o intuito de reforçar as diferenças e os estudos focados nos aspectos sincrônicos das sociedades, as quais ele chamava de “espécies sociais”. Isso vai se conectar inclusive, com as observações feitas pelo próprio Saussure, para quem as análises sincrônicas são relativas à estrutura linguística de um dado povo no tempo e espaço definidos (Saussure, 2010).

Outra questão importante que liga as teorias de Durkheim e Saussure é a questão do valor. De um lado o que vemos em Durkheim é a defesa de um valor moral para os fatos sociais, que tem sua força reconhecida pelo social justamente por estar nas consciências individuais de forma compartilhada, formando um substrato diferente, o consciente coletivo. Saussure opera o mesmo efeito justificando a formação de um novo substrato advindo do social, a diferença é que não colocará isso na conta da moral, mas na possibilidade memorial que as pessoas têm dentro da cultura e do uso da língua, de estabelecer o reconhecimento de detalhes sonoros que possibilitam o sentido das palavras. Tanto num caso como em outro, considerando fatos sociais e linguísticos, moral ou nuances sonoras, o valor dado pelo social é tão tal que se excluem as possibilidades de ruptura destas regras de forma volátil, visto que só se rompem com muito esforço e tempo, invalidando os pressupostos até então consolidados dos objetos em questão.

Sobre as características dos dois tipos de fatos, podemos ainda dizer que os fatos sociais são exteriores, coercivos e gerais, enquanto os fatos linguísticos são sociais, homogêneos e estáveis. Juntando estas duas categorizações é possível dizer que a exterioridade do fato social consiste em que ele é um construto que toma autonomia enquanto regra coletiva, indo para o campo da objetividade e não da subjetividade. Isso se coaduna com a questão de que o fato linguístico é social, produto de uma convenção, portanto, também exterior e objetivo, não passível de alteração por parte dos falantes, pois a mudança não pertence aos indivíduos, assim como nos fatos sociais.

Depois disso temos o par coercitividade e homogeneidade que indica que a força dos fatos sociais e linguísticos não pode ser alterada sem que para isso a ordem social e linguística não o seja, sendo uma manobra passível de sanções no caso social, resultante de quebra dos costumes e das leis. Já no caso linguístico, provoca a repulsa e a incompreensão, não permitindo a comunicação.

Por último temos o par generalidade e estabilidade. Quanto aos fatos sociais, estes são gerais e estáveis por estarem na consciência da média populacional e isso gera consolidação, pois mudam sua natureza. Este processo também ocorre com os fatos linguísticos, que consolidam a imagem acústica como estrutura da língua, o que fecha a questão de sua base social, revelando ainda que enquanto constituição, são fatos sociais e estão dentro do alcance analítico da França acadêmica do século XIX.

Dessa forma, os elementos que compõem os fatos linguísticos: o signo (como a menor unidade da língua), seu significado (conceito socialmente reconhecido e vinculado a ele, via consciência coletiva) e significante (estrutura sonora mínima que permite ao falante reconhecer pela memória, dentro de uma cultura – dando sentido à comunicação), consolidaram-se através de um conjunto de elementos sociais: a consciência coletiva formada psiquicamente e a interação social responsável pela operacionalização de significados e estruturas sonoras mínimas. Ou seja, o construto é linguístico, os materiais utilizados são linguísticos, mas o “elo” que os une é sociológico, pois não implica apenas interação, mas a sistematização dessa interação na forma de um corpo de conhecimento teórico.

Figura 3
– Esquema fatos sociais/fatos linguísticos

Concluímos esta primeira seção pontuando os elementos que em Durkheim e Saussure representam aproximações e nuances, recorrendo a análise de suas próprias teorias. Sendo assim, partiremos agora para a exemplificação desta primeira seção, por meio da análise do que se reconhece no ocidente como “sagrado”, fazendo uso da análise dos fatos sociais e linguísticos em relação a este objeto.

O conceito de sagrado como fato social e linguístico: unindo Durkheim e Saussure

No intuito de formarmos a aplicação teórica e empírica do fato social e do fato linguístico, seguiremos com os apontamentos sobre um conceito passível de efetuar esta demonstração e ligação, que é o conceito de sagrado. Este conceito se aplica tanto a questões sociais que evidenciam a formação de um consciente coletivo que gera coerção e generalidade, sem perder a postura de fenômeno sincrônico, quanto as questões linguísticas, por alinhar seu conceito geral a convenção social e permitir a verificação de uma nuance sonora que lhe confere estrutura. Mas longe de analisar o conceito de sagrado separando os dois autores, faremos seus apontamentos relacionando os aspectos centrais dentro de uma discussão mais fluida e interdisciplinar.

Em Durkheim, o sagrado é toda a norma social que implica em uma aceitação pela média das consciências, tendo conotação de algo a ser protegido, respeitado ou cultuado. Pode-se aplicar as regras sociais ou aos ritos religiosos e formar um par de oposição entre: o individual e o coletivo (Durkheim, 1996). Já em Saussure o sagrado é um signo que se comporta de forma simbólica (não estabelecendo relação de causa e consequência direta entre palavra e significado), portanto é uma palavra formada por convencionalismo social, passível a muito custo de uma dada modificação, que define conceitualmente algo a ser protegido, respeitado ou cultuado, assim como no fato social (Arnemann, Santos, 2016). A diferença está na questão de que há uma estrutura sonora, para além de uma condição moral, que permite por meio da memória acústica (significante), a relação entre palavra e significado.

Em Durkheim (1996DURKHEIM, É. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 19–20) temos:

Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos que as palavras ‘profano’ e ‘sagrado’ traduzem bastante bem. A divisão do mundo em dois domínios que compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos, os gnomos, as lendas, são representações ou sistemas de representações que exprimem a natureza das coisas sagradas, as virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua história, suas relações mútuas e com as coisas profanas.

Em Saussure (2010SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2010., p. 80) temos:

O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema. É porque as palavras da língua são para nós imagens acústicas, cumpre evitar falar dos “fonemas” de que se compõem. Esse termo, que implica uma ideia de ação vocal, não pode convir senão a palavra falada, a realização da imagem interior no discurso. Com falar de sons e de sílabas de uma palavra, evita-se o mal-entendido, desde que nos recordemos tratar-se de imagem acústica.

Assim o sagrado atua de forma moralizante e de forma mnemônica, usando o consciente coletivo, o convencionalismo, a moral e o detalhe sonoro como meios de aplicação social. Mas isso não seria o bastante para justificar a permanência do sagrado como algo duradouro e estável, como fato social e linguístico. Por isso seu grau de durabilidade está em uma condição que permite tanto em Durkheim como em Saussure a defesa da estabilidade ao invés da instabilidade, que é a noção de morfologia.

A forma como o sagrado é constituído, seja como elemento moral, seja como nuance sonora mnemônica, evidencia mais do que a questão das “substâncias de composição”, evidencia a forma social e linguística dando a entender o funcionamento e a estrutura do sagrado. Como fenômeno propriamente social e religioso, o sagrado possui suas variações em contextos específicos, baseados na composição costumes/mitos/ritos e está alicerçado por diferentes culturas de diferentes formas. Para além desta composição usual é visto também como algo funcional/estrutural tomando por vezes a posição concomitante de fato social e linguístico. Em termos gerais, estas considerações foram feitas por Eliade (2010ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 17), que argumenta:

O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se encontra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Pode-se dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias pelas manifestações das realidades sagradas.

Isto possibilitou pensar o sagrado em duas dimensões: uma dimensão mais subjetiva que se apresenta como reveladora do sagrado ou hierofânica, operando por meio das percepções (Schutz, 2018SCHUTZ, A. A construção significativa do mundo social. Petrópolis: Vozes, 2018.). E uma dimensão objetiva, atuando como força ou como forças que implicam na presença do sagrado de maneira social (Monteiro, 1986MONTEIRO, P. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Ática, 1986.). Este fora um debate já pronunciado nas Ciências Sociais e que tomou os seguintes direcionamentos: discussão sobre a secularização das práticas religiosas; surgimento da dimensão da religiosidade e da espiritualidade e pluralização dos espaços de participação do sagrado (Berger, 1985BERGER, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma sociologia da religião. São Paulo: Paulus, 1985.; Hervieu-Leger, 2015HERVIEU-LEGER, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2015.; Simmel, 2011SIMMEL, G. Religião: ensaios. São Paulo: Olho-d’água, 2011. v. 1.). Por isso, diante destes pontos, cabe agora um trabalho mais detalhado sobre cada um e como estes se ligam aos fatos sociais e linguísticos.

Em meio aos debates da década de 1970, autores como Berger (1985)BERGER, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma sociologia da religião. São Paulo: Paulus, 1985. e Hervieu-Leger (2015)HERVIEU-LEGER, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2015., dimensionaram a presença de forças seculares invadindo o terreno das crenças no sagrado, operando socialmente a dessacralização de instituições e espaços públicos, espaços até então influenciados pela religião, o que mexeu com a rotina dos comportamentos. Isso levou a crença que o futuro seria então convertido em um momento em que o sagrado não seria mais monopolizado institucionalmente e que sua existência, pelo menos no ocidente, seria ligada a algo muito particular, uma forma de experiência subjetiva, nem mais nem menos importante do que a sacralidade das leis e da ética.

Assim as apostas em um declínio do sagrado religioso permitiriam a oferta de um sagrado secular, mantendo as formas sociais e tornando o pensamento religioso como mais um dentre tantas outras formas de pensamento. Isso garantiria sua presença na morfologia social, enquanto fato social, colocando-o dentro de uma suposta percepção objetiva/subjetiva, bem como na morfologia linguística, permanecendo as limitações do conceito e a estrutura sonora básica para o seu entendimento. Com isso o que vemos é a propositura de um sagrado lido agora não em termos funcionais e estruturais, mas com “poderes limitados”, social e religiosamente.

Isso também implicaria no declínio das instituições religiosas tradicionais, lidas a partir da Europa como um amontoado de igrejas-museus, que se mantém a partir de sua constituição histórica e artística, mas não propriamente religiosa (Simmel, 2011SIMMEL, G. Religião: ensaios. São Paulo: Olho-d’água, 2011. v. 1.). Entretanto, quando voltamos o olhar para a realidade latinoamericana, esta propositura é bem diferente. O modelo de países em desenvolvimento abriu um terreno fértil para a composição do sagrado como algo objetivo/subjetivo, agora proliferado pelas religiões de matriz pentecostal que além de carregarem um escopo doutrinário, se revelam fiadoras de uma religiosidade disposta às demandas subjetivas, não subjetivas em si, mas dispostas a acomodarem a doutrinação a um sistema de recompensas individuais mais fluído.

Isso gera uma série de dificuldades analíticas para os estudiosos em Ciências Sociais, Ciências da Religião e Ciências da Linguagem, pois em meio a uma percepção de fluidez (Bauman, 2001BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), existe ao mesmo tempo a prevalência de uma estabilidade social nas igrejas ditas mais tradicionais e conservadoras em detrimento das subjetividades e das possibilidades de múltiplas filiações (Hervieu-Leger, 2015HERVIEU-LEGER, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2015.).

Esta estabilidade social advém do fato do sagrado como elemento religioso se internalizar nas consciências por meio de seus aspectos reguladores: usos e costumes e elementos doutrinários expressos em documentos específicos (como as profissões de fé, regimentos e estatutos). Já sua estabilidade linguística, como fato, advém da absorção da força social, expressando-a pelo sentido de alguns signos importantes como: fé, obediência, salvação e contribuição, por exemplo. Em linhas gerais os termos citados conectam aos fatos sociais e linguísticos da seguinte forma:

Figura 4
– Ligação entre: elementos sagrados e fatos sociais e linguísticos

Outra questão importante é a da definição de que o fato social e o fato linguístico promovem em relação ao sagrado uma tensão interpretativa em relação a dois fenômenos importantes, que são: a espiritualidade e a religiosidade. Comumente jogadas para o âmbito subjetivo, a espiritualidade, será entre as duas a que mais tem fluidez (Bauman, 2001BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), se aproximando de uma liberdade do uso de referências culturais para a construção de transcendências ou modelos de ascese, para usar uma expressão de Weber (2001)WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. e Swedberg (2005)SWEDBERG, R. Max Weber e a ideia sociologia econômica. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2005.. Este fenômeno é semelhante a questão das práticas linguísticas gerarem possibilidades fluidas de variação no referente a fala, conseguindo manter estruturalmente, no âmbito do signo, um sentido de código arbitrário compreensível. No caso da espiritualidade, estas relações com o sagrado tomam formas variadas, inclusive sincréticas e híbridas, no primeiro caso misturando referências, no segundo admitindo uma mesma referência com múltiplas interpretações.

Isso indica que as linhas de comportamento contínuas buscam imprimir micro sociologicamente uma interface entre o subjetivo e as regras gerais de permeiam a coletividade, bem como as bases de sentido que permitem dizer que para ser sagrado, tem que ser mais que espiritual, tem que ser algo do consciente coletivo, sendo assim ancorado, cultuado, defendido, mesmo que não absoluto. Isso indica que o sagrado lido de um ponto de vista social e linguístico, tem em sua elaboração científica a intenção de mostrar a discussão no entorno de algo objetivo e arbitrário, trazendo consigo o caráter estável, mas não imutável, social, apesar de também ser subjetivo, geral, mas ao mesmo tempo contestado.

Por último, deixamos a questão dos locais de funcionamento do sagrado e sua pretensa instabilidade/estabilidade. Em termos de fato social e linguístico a estabilidade geográfica é o que dá coerência, tempo de consonância e caráter de costume às regras sociais impostas e às formas de uso de uma língua, ligando estes fenômenos não só às pessoas, mas aos locais em que habitam.

Desde os anos 1990, vemos na América Latina o proliferar de locais sagrados, ligados à religião, à política e aos símbolos nacionais, com o intuito de marcar referências de crença. Esta tendência reafirma a necessidade coletiva de um local/cultura de pertencimento e não é difícil imaginar que esta liberdade de expressão, experimentação e vivência, se reflita em cenários sociais, geograficamente localizados, mas que para além disso são espaços de interrelações. Locais também da presença dos fatos sociais e linguísticos inseridos ao mesmo tempo no desempenho de liturgias e papéis.

Esta seria então uma forma de comportamento que conecta a vida social e as noções de sagrado, ao mesmo tempo em que evidencia a presença das teorias de Durkheim e Saussure, como produtores de ferramentas explicativas de funções e estruturas que segundo eles, formam nossa realidade social e linguística.

Conclusão

O que se apresentou neste artigo foi uma síntese, ora particular, ora integrada entre as principais teorias presentes em duas obras que revelam um esforço de fundação de ciências emergentes na transição do século XIX para o século XX, a saber: a Sociologia e a Linguística.

Seus fundadores foram Émile Durkheim e Ferdinand de Saussure (respectivamente), sendo o primeiro o próprio compilador de seus escritos e o segundo teve seus escritos organizados e complementados por seus alunos, na forma de uma síntese geral de seus cursos. Contudo, o mais importante a frisar é que o trabalho mais importante aqui feito, foi o de aproximar estes dois autores e as bases de suas teorias sobre o fato social e o fato linguístico, mostrando que suas características são mais próximas do que o aparente e que as noções de funcionalismo e estruturalismo em que trabalham são convergentes. O problema é que Durkheim é comumente confundido como um pesquisador voltado à diacronia, enquanto Saussure é considerado um estruturalista puro, quando na verdade absorve a base de um funcionalismo na consideração do fato linguístico como algo social, elemento estrutural e comunicativo.

A questão é que esta aproximação entre fato social e fato linguístico e seus autores foi feita por meio de autores auxiliares como no caso de Meillet (1948)MEILLET, A. Linguistique historique et linguistique générale. Paris: Librairie Ancienne Honoré Champion, 1948.. Isto causara uma direção mais precisa em termos de construção histórica, mas não em termos de construção teórica, ficando sempre a interpretação de segunda mão como prioridade. O que foi feito em nosso caso é uma tentativa de ligar estas teorias de forma mais fluida e direta, por isso além da apresentação dos autores, buscamos colocar um objeto de estudo que pudesse ser o exemplo de fato social e linguístico, que é a questão do sagrado enquanto fenômeno social e religioso.

Isso demonstra em um primeiro momento a capacidade de colocarmos exemplos que se coadunam com a teoria, sem perder a capacidade empírica e ao mesmo tempo, a capacidade de reforçar o fato de que as contribuições de Durkheim e Saussure continuam a despertar os debates acadêmicos e levantar hipóteses sobre as nuances de seus argumentos, como sendo detalhes válidos nos estudos e na observação dos fenômenos sociais e linguísticos.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Durkheim, para a Sociologia, aplica a mesma direção, chamando a atenção para os estudos das “espécies sociais”, em separado da visão generalista evolutiva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2022
  • Aceito
    25 Maio 2023
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