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O MUNDO É COMO É? RESISTÊNCIAS E (RE)EXISTÊNCIAS POR MEIO DOS ESTUDOS DO DISCURSO1 * RESENDE, V. M. (org.). Estudos do discurso: relevância social, interseccionalidade, interdisciplinaridade. Campinas, SP: Pontes Editores, 2022. 210 p. (Resenha).

RESENDE, V. M.. . Estudos do discurso: relevância social, interseccionalidade, interdisciplinaridadeCampinas, SP: Pontes Editores, 2022210p.

Estudos do discurso, livro organizado por Viviane de Melo Resende, é o resultado de pesquisas e reflexões, por meio de diferentes gêneros discursivos, apresentadas no VIII Colóquio da Associação Latino-Americana de Estudos do Discurso no Brasil (ALED/Brasil), em 2021, um fórum de discussão organizado através de diferentes eixos temáticos. Como a organizadora afirma, apesar das dificuldades experimentadas durante a pandemia, a consistência e a relevância das pesquisas discursivas são evidenciadas nas significativas discussões apresentadas no livro.

O primeiro capítulo, escrito por Gersiney Santos, é intitulado “PARA QUE(M) ESTAMOS FALANDO? REDES PRAGMÁTICAS COMO REEXISTÊNCIA EM TEMPOS PANDÊMICOS”. Este texto foi elaborado no período da pandemia do Covid-19, quando situações de vulnerabilidade social foram agravadas. O autor discute a possibilidade e a necessidade de os estudos do discurso irem além dos muros da universidade, para que, através do profícuo diálogo entre teorizações e tecnologias digitais (redes sociais, por exemplo), tenhamos lutas sociais que emerjam de forma prática. Ele defende uma ruptura epistemológica que produza espaços menos burocráticos e mais integradores, onde diferentes atores sociais participem, questionem e opinem por meio de gêneros discursivos diversos e propõe a Análise Crítica do Discurso, com seu caráter transdisciplinar, como suporte para a produção de novos diálogos teóricos e epistemológicos. Ao longo do capítulo, o autor nos apresenta o conceito de Redes Pragmáticas (RP), no qual há redes de solidariedade e cooperação na busca de (re)existências e questionamentos de sociedades desiguais, a fim de que não nos conformemos e aceitemos que o mundo é como é. Partilhamos os mesmos argumentos do autor no que concerne à ampliação de espaços para que possamos dialogar a respeito de questões que permeiam as nossas existências, crenças e valores. Com relação a isso, Santos (2022, p.20) argumenta:

[...] as RP dizem respeito a um trabalho discursivo-aplicado articulado em quatro vértices acionais de ordem intercambiável (a saber: 1. Exercício da reflexividade, 2. Intervenções antirretóricas, 3. Visibilidade estratégica e 4. Produção reflexiva-social), relacionados ao tema da reflexividade, da ação aplicada e não exclusivamente dependente de teorias, com especial atenção à difusão acional estratégica e à produção de gêneros (entendidos como) de reexistência.

O autor afirma que as RPs não têm a intenção de apontar receitas prontas para o fim de injustiças sociais, mas prover uma discussão mais aberta “[...] que se configura a partir de uma patente conscientização entre o papel da teoria e da prática para o trânsito discursivo — e para a efetividade de projetos de mudança social” (Santos, 2022, p.20). Dessa forma, percebemos que a proposta do autor vai muito além de questões de ordem conceitual, técnica ou teórica, propondo redes de resistências nas quais vozes diversas participem ativamente na busca por uma transformação social.

“A ATIVIDADE MATERIAL COMO ELEMENTO DE EXCLUSÃO EM PRÁTICAS SOCIODISCURSIVAS: QUAL A RELAÇÃO ENTRE CORPOS, ÔNIBUS COLETIVO E BANHEIRO?”, escrito por Maria Carmen Aires Gomes, Alexandra Bittencourt de Carvalho e Samuel de Sá Ribeiro, é o título do segundo capítulo. Neste texto, os autores apresentam e discutem uma análise linguístico-discursiva com dados extraídos das pesquisas desenvolvidas por Carvalho (2018) e Ribeiro (2020), analisando, em blogs de pessoas gordas, negras, lésbicas e homens trans, o transporte público e os banheiros de duas escolas. Eles apontam que “Corpos ocupam lugares diferentes a partir da colisão dos eixos de poder e de subordinação: Gênero, Raça, Etnia, Classe Social, Territorialidade, Tamanho, Capital Intelectual, Deficiência, Faixa etária [...]” (Gomes; Bittencourt; Ribeiro, 2022, p. 35). Em suas discussões, os autores deste capítulo usam o termo ‘corpo interseccionado’ (ver Chouliaraki; Fairclough, 1999CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.), o qual traz a ideia de movimento, ação, mudança, transformação e posicionalidade. Em outros termos, esses corpos produzem resistências à “matriz hegemônica do CIStema — cisgeneridade, cisnormatividade, cissexismo [...]” (Gomes; Bittencourt; Ribeiro, 2022, p.30). O primeiro texto apresentado pelos autores é chamado Você já sentou ao lado de uma gorda no ônibus?, escrito no blog Gorda e Sapatão. Eles argumentam que já há uma militância relacionada às pressões estéticas sofridas pelas pessoas gordas. No entanto, a produtora desse blog aponta outros problemas que vão além da questão estética, como o espaço físico limitado em catracas e assentos de ônibus. Assim, por meio desse texto, percebemos uma expansão de formas de discriminação e, através de uma posicionalidade e de um discurso transformacional, a produtora do relato argumenta e reclama do sofrimento vivido.

O outro recorte dessas análises é de corpos transmasculinos em banheiros escolares. De acordo com os autores, em uma das escolas, os estudantes trans reclamaram sobre o constrangimento que experimentavam nos banheiros, o que levou a supervisão escolar a providenciar um banheiro sem gênero com a seguinte mensagem relativa à identificação de gênero: “quem quiser vai usar”. Conforme os autores apontam, entretanto, outras questões apareceram e foram relatadas por pessoas trans — como problemas de higiene, pois o banheiro era frequentemente usado (em pé) por homens cis, causando problemas para quem tinha necessidade de sentar-se no vaso sanitário. Na segunda escola, os autores nos mostram que os meninos trans também tiveram suas reclamações ouvidas pela supervisão, que providenciou um banheiro na quadra do andar superior. Entretanto, eles afirmam que esses alunos não gostaram da ideia pela distância e o afastamento — como se a transexualidade fosse uma doença, uma patologia que merecesse isolamento — e um deles afirmou que, diante disso, não frequentava banheiro algum, mesmo se houvesse extrema necessidade. Posteriormente, houve uma conversa entre um dos alunos e a supervisão para usar o banheiro da última, que permitiu. Os autores veem esse aluno como um agente de mudança e resistência. No entanto, apesar da mudança e dos alunos se sentirem mais seguros e confortáveis ao usar o banheiro da supervisão do que outros banheiros da escola, os autores afirmam que, ao frequentar esses espaços, esses corpos se tornaram mais visibilizados pela comunidade escolar, diferentemente do que ocorre com os demais alunos. Percebemos que essa visibilidade pode ser negativa e causar constrangimento aos alunos que gostariam de ter seus corpos respeitados em quaisquer espaços públicos. Por fim, através dessas análises, os autores ressaltaram diferentes práticas violentas, como o racismo, a gordofobia e a transfobia.

No terceiro capítulo, intitulado “GÊNERO E SUAS RESSIGNIFICAÇÕES NOS DISCURSOS DE DEPUTADOS/AS FEDERAIS NO BRASIL”, Janaína Negreiros Persson discute como deputados/as federais distorcem a noção feminista de gênero em seus discursos na Câmara, transformando-a em ideologia de gênero. O estudo foi realizado entre os anos de 2017 e 2019, tendo o seu foco nos partidos políticos e no material coletado na página aberta na Câmara de Deputados, norteado pela palavra gênero (tendo como principais resultados os termos igualdade de gênero e ideologia de gênero). Nesta pesquisa, a autora realizou uma análise de discursos sobre gênero na Câmara dos Deputados, discursos esses que por vezes transformam-se em leis, por sua capacidade de articulação e legitimação — por meio de certa autoridade (ver Van Leeuwen, 2008VAN LEEUWEN, T. The discursive construction of legitimation. In: VAN LEEUWEN, T. Discourse and Practice: new tools for critical discourse analysis. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 105-123.). A abordagem teórica está ancorada nos Estudos Críticos do Discurso, e também usam a dimensão ingroup versus outgroup (ver Van Dijk, 1995VAN DIJK, T. Discourse Analysis as ideology analysis. In: SCHÄFFNER, C.; WENDEN, A. L. Language & peace. London: Routledge, 1995, p. 17-34.). Em sua análise, a autora percebe que embora exista certo consenso entre deputados/as de esquerda e direita sobre a igualdade de gênero estar relacionada à igualdade salarial (para homens e mulheres), ao fim da violência contra a mulher e do feminicídio e até o empoderamento das mulheres, a ala esquerda vai além e discute pautas como os direitos da comunidade LGBT+, questões raciais e aborto. A autora também aponta que o uso de recursos semânticos de legitimação, como dados estatísticos ou científicos, é feito tanto por deputado/as de esquerda como por deputado/as de direita. Por outro lado, ela argumenta que, quando os deputados de (extrema) direita e centro-direita discutem gênero, logo o associam à ideologia de gênero — uma noção negativa, mal arranjada e cheia de distorções que enxerga movimentos sociais em prol dos direitos humanos e da inclusão social como uma ameaça à família tradicional, à igreja, à moral e aos bons costumes, além de relacionar com doença, termos pejorativos (como o kit gay), crianças sexualizadas e crimes (como a pedofilia), enquanto os deputados de partidos de esquerda e centro-esquerda afirmam que a ideologia de gênero não existe. Nos discursos de parlamentares conservadores, a autora ainda percebe que há uma forte articulação com outras distorções — por exemplo, ao invés de atacar diretamente a comunidade LGBT+, os deputados de (extrema) direita e centro-direita usam estratégias de representação própria e afirmam serem vítimas de heterofobia, cristianofobia, familiafobia etc. Por fim, diante dos resultados de sua pesquisa, a autora não nos parece tão esperançosa sobre o futuro relacionado a questões de gênero quando afirma: “Nesse sentido, eu diria que este estudo mostra as tendências políticas de como o conceito feminista de gênero pode vir a ser interpretado na sociedade brasileira no futuro” (Persson, 2022, p.74). Solidarizamo-nos com a autora diante deste cenário caótico no qual se encontra o Brasil, mas, assim como ela, resistimos, pois “onde há poder, há resistências” (Foucault, 2020FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. 10. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020., p. 104).

“´MAIS MULHERES SÃO ASSASSINADAS NA PANDEMIA’: CONSTRUÇÃO DISCURSIVA JORNALÍSTICA SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NO ISOLAMENTO SOCIAL” é o título do quarto capítulo do livro, escrito por Micheline Mattedi Tomazi e Viviane de Melo Resende. Nesta pesquisa, as autoras analisam 14 textos do jornal A Tribuna na cidade de Vitória – ES, entre março de 2020 e fevereiro de 2021, os quais reportam violências contra mulheres. O aporte teórico utilizado na pesquisa foi multidisciplinar e se baseia tanto na abordagem sociocognitiva dos Estudos Críticos do Discurso (ver Van Dijk, 1990VAN DIJK, T. La noticia como discurso. Comprensión, estructura y producción de La información. Traducción de Guillermo Gal. Barcelona: Ediciones Paidós, 1990., 2010VAN DIJK, T. Discurso e poder. Tradução de Judith Hoffnagel et al. São Paulo: Contexto, 2010., 2012VAN DIJK, T. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução de Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2012., 2016VAN DIJK, T. Discurso y conocimiento: una aproximación sociocognitiva. Traducción de Flavia Limone Reina. Barcelona: Gedisa, 2016., 2017VAN DIJK, T. Discurso, notícia e ideologia: estudos na análise crítica do discurso. Tradução de Zara Pinto-Coelho. Portugal: Humus, 2017.) como em teorias que discutem o tema dentro na mídia jornalística. Para as autoras:

A interface entre discurso, cognição e sociedade permite a analistas engajamento para buscar compreender injustiças sociais, desigualdades, discriminação, marginalização e exclusão presentes na sociedade e produzidas discursivamente pelo poder e pelo controle exercido por grupos hegemônicos, nem sempre de forma claramente declarada e percebida. Ao representar, em notícias e outros gêneros jornalísticos, a violência de homens contra mulheres em relações afetivo-conjugais, jornais podem identificar-se com elites simbólicas que têm domínio sobre o discurso público por controlarem a maneira como o tema será tratado: os tópicos, o léxico, os argumentos, as metáforas e demais estruturas do discurso que podem afetar, manter ou transformar modos preconceituosos, machistas, misóginos e sexistas de compreensão social do problema (Tomazi; Resende, 2022, p. 90).

Apesar de os textos jornalísticos terem sido publicados no período da pandemia, quando havia um significativo isolamento social, as autoras argumentam que isso não foi enfatizado nas notícias, tampouco foi relacionando o aumento de violências contra mulheres com o isolamento. Outro fator levantado pelas autoras em seus resultados é o foco em casos individualizados nas notícias, ao invés de um problema social que envolve questões de gênero. Nesse quesito, percebemos a prevalência da lógica neoliberal, dentro da qual os agentes sociais se tornam individualmente responsáveis por resolver questões estruturais/sistêmicas que afetam a todas e todos. Lógica que isenta o Estado de responsabilização no que concerne a políticas públicas, não apenas no agravamento de leis (tornando-as mais severas), mas principalmente políticas públicas que envolvam pautas educacionais e psicossociais. Como argumentado pelas autoras, o foco dos textos jornalísticos não é discutir as falhas do Estado, que deveria garantir efetiva assistência, proteção e reparação às mulheres, mas justificar as agressões e manter uma ordem de discurso que culpa e desqualifica as mulheres — as quais são vítimas de violência cotidiana e têm seus corpos (físicos ou simbólicos) dilacerados e suas vidas reduzidas ao martírio, ao calvário, à morte (em vida).

O quinto capítulo do livro, intitulado “O DISCURSO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO NO BRASIL”, foi escrito por Teun A. van Dijk, um dos fundadores dos Estudos Críticos do Discurso. Neste artigo, ele analisa diferentes textos do Movimento Unificado Negro Contra Discriminação Racial (MUCDR), posteriormente chamado de Movimento Negro Unificado (MNU). De acordo com o autor, o movimento iniciou-se em 1978 — período da Ditatura Militar — em São Paulo, com importante ativistas negros, como Lélia González e Abdias do Nascimento. A estrutura teórica utilizada no artigo é multidisciplinar — na qual a Análise Crítica do Discurso conversa com teorias sobre o (anti) racismo, conceitos da Psicologia Cognitiva e Social e teorias sobre movimentos sociais das Ciências Sociais. Em suas análises, o autor percebeu que após muita violência contra o movimento negro, ativistas deram um basta e, por meio do MNU, começaram a resistir contra diferentes formas de discriminação, as quais perpassam o desemprego, a violência policial, entre outras. Van Dijk afirma que os textos do MNU (os quais variam de gênero, como a carta e o manifesto, e de estilo, às vezes mais informal e outras vezes com argumentos de textos acadêmicos) agregam todos os fatores de um movimento contra a violência — nome, fundamentos, objetivos, métodos, eventos recentes relevantes etc. Violência vista tanto antes de 1888 (abolição da escravidão) como depois dessa data: “[...] não era nada a ser comemorado, pois a comunidade negra não foi libertada do racismo, discriminação, preconceito e muitas formas de opressão [...] Para os brancos, 1888 significa a transição de uma economia da escravidão para uma economia capitalista [...]” (Van Dijk, 2022, p. 129 e 131). Para o autor, o discurso de resistências do MNU também discute a situação sociopolítica e tem como primeiro destinatário a comunidade negra — a fim de que haja um fortalecimento na comunidade —, depois a população em geral, assim como os oponentes racistas e violentos. Com relação ao conteúdo dos discursos materializados nos textos do MNU (dentro dos mais de 40 anos de movimento), o autor afirma que ele quase não mudou — a violência policial continua e as diferentes formas de discriminação e precarização no trabalho, habitação, saúde e educação ainda são fortemente percebidas. Uma das poucas mudanças que o autor observou foi uma maior atuação das mulheres nos movimentos e o crescente apelo a esses movimentos por um lado — surgiram outras organizações negras no Brasil, dialogando com movimentos internacionais, como Black Lives Matter nos EUA—, e por outro uma negligência de grande parte da sociedade a qual tem interesse na manutenção do racismo.

No sexto capítulo, intitulado “DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA, E PROPRIEDADE: IDEOLOGIA E DISCURSO NA LIGA MUNDIAL ANTICOMUNISTA (WACL) E DA CONFEDERAÇÃO ANTICOMUNISTA LATINO-AMERICANA (CAL) (1975-1979)”, André Kaysel discute os documentos do II e III Congressos da CAL, os quais aconteceram no Rio de Janeiro (1975) e em Assunção (1977), assim como edições do diário Patria, em 1979, que foram dedicadas à cobertura do XII WACL, em Assunção. Foram analisados a ideologia e o discurso político dessas organizações com diferentes atores sociais e, para isso, utilizando a teoria política de Ernesto Laclau sobre o discurso fascista (ver Laclau, 1977). A hipótese do autor, confirmada em suas análises, é que o anticomunismo é produto de uma formação — e interpelação — discursiva heterogênea de extrema direita, tais como a defesa da fé cristã, o nacionalismo e a liberdade econômica. O autor identificou, nos discursos investigados, a presença dos seguintes elementos: conservadorismo religioso, supranacionalismo e neoliberalismo, os quais são associados a valores nobres (de justiça, dignidade, humanidade). Além disso, o autor também ressalta o apego à família e à terra de origem. Por meio das análises, pudemos perceber que essas famílias são exclusivamente cisheteronormativas e, evidentemente, não abrem espaço para possibilidades outras. O nós x eles também é evidenciado pelas análises do autor, por meio de expressões pejorativas nos discursos, tais como terroristas e assassinos marxistas, além de teorias da conspiração, que alegam que comunistas são perigosos inimigos, pois estão infiltrados em todos os lugares para destruir o bem e todos os valores provindos dele. Por fim, o autor também cita um parlamentar brasileiro, o qual foi chefe do executivo, argumentando que os discursos proferidos por Jair Bolsonaro são semelhantes aos discursos anticomunistas, assim como outros do mesmo teor ideológico que, conforme a proposta de Ernesto Laclau, estão relacionados ao fascismo.

“UMA ABORDAGEM HOLÍSTICA DA DINÂMICA CONFLITUOSA DAS CATEGORIZAÇÕES NO MESMO ESPAÇO SOCIAL” é o título do sétimo e último capítulo deste livro. O texto foi escrito por Stéphanie Cassilde, que busca contribuir, por meio de uma abordagem holística, para o campo da análise de categorizações. A autora defende uma expansão nessas análises, as quais, muitas vezes, reduzem possibilidades, uma vez que pessoas são plurais e seus traços identitários podem não se enquadrar num binarismo simplista. Por exemplo, muitas vezes quando preenchemos um formulário, na categoria sexo há duas opções: masculino ou feminino. De alguns anos para cá isso já se ampliou para outras identidades de gênero. E situação semelhante pode acontecer em categorizações de análise de uma pesquisa — o que era oferecido como categoria analítica por determinada abordagem teórica no passado pode ter sido modificado, ampliado e expandido para incluir novas demandas. Nesse texto, a autora apresenta conceitos de rapport social — os quais implicam a binariedade aliada a uma imutabilidade, a uma rigidez, a uma tentativa definitiva. Ela argumenta que na medida em que categorias analíticas se tornam mais fluídas, sem uma fixidez obrigatória, há toda uma repercussão nos espaços sociais e uma plasticidade de escolhas em prol da diversidade. Para ela:

A interseccionalidade das teorias propostas pela abordagem holística das dinâmicas conflituosas das categorizações no mesmo espaço social constitui uma estrutura global para analisar as questões sociais através das categorizações e categorias envolvidas. [...] esta abordagem é generalizada aqui e permite que a capacidade dos atores de utilizar várias categorias e categorizações simultaneamente seja levada em conta, [...] Trata-se de levar em conta várias posições simultaneamente em termos de categorizações [...] Nossa abordagem holística nos permite sair de uma única estrutura teórica, convidando-nos a manter várias ao mesmo tempo, a fim de nos aproximarmos da realidade categórica vivida pelos atores (Cassilde, 2022, p. 198, 199 e 200).

Todos os sete capítulos discutidos nesta resenha estão ancorados em abordagens críticas, majoritariamente nos Estudos Críticos do Discurso, um campo de pesquisa transdisciplinar. Assim, por meio destes textos, percebemos um diálogo com outras áreas do conhecimento, que varia conforme a necessidade do objeto de pesquisa. Também observamos que as análises abrangem discursos situados na contemporaneidade, envolvendo discussões de gênero, raça e classe as quais afetam atores em desvantagens sociais — como grupos marginalizados.

Por meio da leitura desse livro, experimentamos um resgate de diferentes formas de resistência nas lutas por transformações sociais. Transformações essas que rompem (vulneráveis) estruturas sociais que causam sofrimento humano, para que possibilidades outras não fiquem apenas no campo da utopia ou de um conformismo preguiçoso e/ou interesseiro que afirma: o mundo é como é. Assim, recomendamos essa obra tanto para ativistas e pesquisadores, como para quaisquer pessoas interessadas em caminhos os quais não cessam de fomentar a criação de resistências e outras formas de (re)existências.

REFERÊNCIAS

  • CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.
  • FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. 10. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
  • LACLAU, E. Ideology and politics in Marxist theory: capitalism, fascism and populism. London: New Left Review Books, 1977.
  • VAN DIJK, T. Discurso, notícia e ideologia: estudos na análise crítica do discurso. Tradução de Zara Pinto-Coelho. Portugal: Humus, 2017.
  • VAN DIJK, T. Discurso y conocimiento: una aproximación sociocognitiva. Traducción de Flavia Limone Reina. Barcelona: Gedisa, 2016.
  • VAN DIJK, T. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução de Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2012.
  • VAN DIJK, T. Discurso e poder. Tradução de Judith Hoffnagel et al. São Paulo: Contexto, 2010.
  • VAN DIJK, T. Discourse Analysis as ideology analysis. In: SCHÄFFNER, C.; WENDEN, A. L. Language & peace. London: Routledge, 1995, p. 17-34.
  • VAN DIJK, T. La noticia como discurso. Comprensión, estructura y producción de La información. Traducción de Guillermo Gal. Barcelona: Ediciones Paidós, 1990.
  • VAN LEEUWEN, T. The discursive construction of legitimation. In: VAN LEEUWEN, T. Discourse and Practice: new tools for critical discourse analysis. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 105-123.
  • *
    RESENDE, V. M. (org.). Estudos do discurso: relevância social, interseccionalidade, interdisciplinaridade. Campinas, SP: Pontes Editores, 2022. 210 p. (Resenha).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2022
  • Aceito
    07 Jun 2023
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