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AOS TEUS OLHOS: UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE A PEDOFILIA E O “TRIBUNAL” DAS MÍDIAS SOCIAIS

AOS TEUS OLHOS: A CONTEMPORARY LOOK AT PEDOPHILIA AND THE “COURT” OF SOCIAL MEDIA

AOS TEUS OLHOS: UNA MIRADA CONTEMPORÁNEA SOBRE LA PEDOFILIA Y EL “TRIBUNAL” DE LAS REDES SOCIALES

Resumo

O artigo inicia com uma resenha do longa-metragem Aos Teus Olhos (2017), estrelado por Daniel Oliveira, no qual o professor de natação Rubens é acusado de praticar pedofilia contra um de seus alunos. O fio condutor do texto é uma discussão feita com base em uma literatura especializada, que mostra que não há um real acréscimo da pedofilia, mas maior controle e punição quando esses crimes ocorrem. Articula-se ainda o enredo do longa com casos ocorridos antes e depois do advento das mídias sociais, nos quais a vida de alguns professores foi destruída graças à disseminação de boatos sem provas. Por fim, espera-se que tanto o filme seja trabalhado como importante recurso didático na formação inicial e continuada de professores quanto este texto, de maneira a potencializar uma discussão acerca da pedofilia e do poder das mídias sociais na destruição da vida dos profissionais da educação.

Palavras chave:
Educação; Filmes cinematográficos; Pedofilia; Mídias sociais

Abstract

The article starts with a review of “Aos Teus Olhos”, a film starred by Daniel Oliveira, in which swimming instructor Rubens is accused of pedophilia against one of his pupils. The text’s guiding thread is a discussion based on specialized literature that shows that rather than a real increase in pedophilia, there is greater control of and punishment to that type of crime. The film’s plot addresses cases that happened before and after the advent of social media, in which some teachers had their lives destroyed by rumors. Finally, the film and this text are expected to be used as important teaching resources in teachers’ initial and continued training, in order to help discussing pedophilia and the power of social media concerning destruction of Education professionals’ lives.

Keywords:
Education; Motion pictures; Pedophilia; Social media

Resumen

El artículo comienza con una reseña del largometraje “Aos Teus Olhos” (2017), protagonizado por Daniel Oliveira, en el que el profesor de natación Rubens es acusado de practicar pedofilia contra uno de sus alumnos. El hilo conductor del texto es una discusión realizada sobre la base de literatura especializada que señala que no existe un real aumento de la pedofilia, sino un mayor control y castigo cuando estos crímenes ocurren. También se articula la trama de la película con casos ocurridos antes y después de la llegada de las redes sociales, en los cuales la vida de algunos profesores fue destruida debido a la diseminación de rumores sin pruebas. Por último, se espera que tanto el largometraje como este texto sean trabajados como importantes recursos didácticos en la formación inicial y continuada de profesores, de manera a impulsar una discusión acerca de la pedofilia y el poder de las redes sociales en la destrucción de la vida de los profesionales de la educación.

Palabras clave:
Educación; Películas; Pedofilia; Redes sociales

1 APRESENTAÇÃO DO FILME AOS TEUS OLHOS

Submersos, aos poucos vamos emergindo, saindo do meio silencioso da água, na piscina, para um ambiente ruidoso. Tanto a água quanto a borda da piscina estão cheias de crianças e adolescentes em aula com os respectivos professores. Assim, começa o filme Aos Teus Olhos (2017), um drama brasileiro com 90 minutos de duração. Produzido por Carolina Jabor, o longa que se inspira na peça O Princípio de Arquimedes, criada, em 2011, pelo espanhol Josep Maria Mir, tem como classificação indicativa “Não recomendado para menores de 16 anos” e foi laureado mais de uma dezena de vezes em diversos festivais de cinema.

Lançado em abril de 2018 e visto pelos autores no mês seguinte, o filme traz duas grandes questões que se cruzam e motivam a escritura do texto: a acusação de pedofilia1 1 No decorrer de nosso texto, o leitor se deparará com algumas expressões, como pedofilia, violência sexual contra crianças, crime sexual contra crianças e abuso sexual infantil, que são usadas basicamente para designar o fenômeno de praticar abusos (ou a simples intenção de realizar abusos) de natureza sexual contra crianças. Sabedores de que cada um desses conceitos pode apresentar sentidos e/ou significados diferentes - características psicológicas, categoria social, entre outros -, sugerimos ao leitor que leia os artigos de Lowenkron (2010) e de Florentino (2015), caso desejem compreender um pouco mais sobre as diferenças existentes entre tais conceitos que, para a escritura deste artigo, não nos convém desenvolver. que o professor de natação Rubens sofre e a instantânea destruição de sua vida via mídias sociais.2 2 Ao invés de usarmos a expressão redes sociais, preferimos utilizar, neste texto, o termo mídias sociais para apontar as relações estabelecidas entre indivíduos por meios digitais, uma vez que, segundo Terra (2010, p. 7), “Podemos definir a mídia social como aquela utilizada pelas pessoas por meio das tecnologias e políticas na web, com fins de compartilhamentos de opiniões, ideias, experiências e perspectivas. São considerados mídias sociais os textos, imagens, áudio e vídeo em blogs, microblogs, quadro de mensagens, podcasts, wikis, vlogs e afins que permitem a interação entre os usuários”. Concordando com Saturnino de La Torre (1998) em que o filme é um importante recurso formativo pelo que nos faz sentir (afetos), pensar (cognição) e agir (ação), entendemos ser necessário discutir tais fatos, especialmente no que concerne à série de implicações que a suspeita levantada contra Rubens trouxe para sua vida. Acreditamos que, ao articularmos o filme Aos Teus Olhos com a literatura especializada sobre os problemas nele levantados, ilustrando-os com acontecimentos ocorridos com a comunidade escolar, podemos contribuir para um processo de tomada de consciência que talvez auxilie os professores em formação inicial e continuada a se prevenirem de problemas como os que ocorreram com Rubens. Em outras palavras, o objetivo deste artigo é apresentar e realizar uma discussão acerca da temática da pedofilia que, a nosso ver, nos traz uma problemática instigante, contemporânea e que precisa ser estudada na área da Educação Física. Mas, antes de partirmos para a construção de nosso artigo, será preciso apresentar o enredo do filme que forneceu elementos para nossa análise.

O personagem central do filme é Rubens, professor de Educação Física que trabalha em um clube dando aulas de natação para crianças. Entre os demais personagens que compõem o longa, encontramos estes: Alex, aluno de Rubens; Davi e Marisa, pais de Alex; Ana, diretora do clube; Heitor, outro professor de natação; Edu, um adolescente, ex-aluno de Rubens; e Sofia, também ex-aluna e namorada do personagem protagonista de Aos Teus Olhos.

Durante o filme, é possível perceber que Davi e Alex (que mora com a mãe Marisa) não mantêm boa relação, pois Davi mostra-se um pai severo, que exige que seu filho seja o melhor na turma de natação e constrange-o por ter ficado em segundo lugar na competição organizada pelo clube. Marisa parece ser o tipo de mãe que superprotege seu filho, enquanto Alex se apresenta uma criança calada, retraída, tímida, mas que reage de maneira agressiva, quando provocado por Bruno, o aluno que venceu o campeonato anteriormente citado.

Rubens, por sua vez, é um professor “boa-praça”: atencioso, carinhoso, sorridente e incentivador de seus alunos. Nas cenas do longa em que mantinha contato com os alunos, ele se posicionava como um amigo (mais velho) e como exemplo, ao ensinar-lhes regras de tolerância, de respeito ao próximo. No dia do campeonato, ao final do evento, Rubens comentou, no vestiário, com Heitor, seu colega de profissão, que muitos pais “fodem a cabeça dos filhos”, fazendo clara alusão ao comportamento de Davi com Alex à beira da piscina instante antes.

Em um momento de descontração, no ambiente privado do vestiário, Rubens fez comentários a respeito das características físicas sobre uma mãe e as alunas de Heitor, que não apenas ficava incomodado, como também o aconselhava a mudar seu comportamento, especialmente quanto ao relacionamento que ele mantinha com os alunos do clube via mídias sociais. Além disso, o protagonista da história demonstrava não querer fazer uma troca de turma para trabalhar com as alunas adolescentes de Heitor, por acreditar que, nessa faixa, as meninas já começam a ficar com a sexualidade aflorada e que, trabalhando com os pequenos, ele evitaria problemas. Ledo engano, poucos dias após a competição, Davi procurou Ana, diretora do clube, para acusar Rubens de beijar seu filho na boca e exigir a imediata demissão do professor. Cenas adiante, o próprio Davi demonstrou não ter certeza de que o beijo na boca aconteceu e, ao indagar sua ex-mulher Marisa, preferiu insistir na denúncia por crer que seu filho foi assediado por um adulto.

No retorno à conversa entre Ana e Davi, a diretora defendeu Rubens por ele ser o melhor professor do clube e o mais querido pelas crianças. Apesar disso, Ana pediu ao segurança da instituição que lhe fornecesse sigilosamente as filmagens das aulas de natação no período em que o suposto beijo teria acontecido. A única ocorrência para além de uma aula normal foi a ação de Rubens em amparar Alex e conduzi-lo pela mão até o vestiário para conversarem, aparentemente para não expor os problemas de seu aluno para seus colegas. Tal ação foi suficiente para disparar o alarme na cabeça de Ana e fazê-la conviver com a dúvida entre defender Rubens ou acreditar que existe um pedófilo em seu quadro de funcionários.

Insatisfeita com a ação tomada pelo clube, Marisa, mãe de Alex, iniciou uma campanha de difamação contra Rubens pelo aplicativo WhatsApp em um grupo formado por pais de alunos da turma da natação. Motivada pelos comentários de seus pares nesse meio, ela aumentou os ataques contra Rubens no Facebook. Como consequência, a publicação de Marisa tornou-se viral em menos de 24 horas, sendo compartilhada algumas dezenas de vezes, chegando inclusive aos jornais. Apesar de não ter existido nenhuma prova contra Rubens, ele foi considerado culpado também por Heitor, seu colega de profissão, que acredita que Rubens - que tem guardada em seu armário uma sunga de Alex para devolução - é pedófilo. Vale destacar que a comum ação do professor em recolher objetos esquecidos por seus alunos para devolução na próxima aula - algo corriqueiro entre os professores do clube - passou a ser enxergada por Heitor e Davi e pelo delegado como uma prova de que Rubens estivesse guardando um troféu da pedofilia praticada.

Até mesmo a condição sexual de Rubens, que é heterossexual e namora Sofia, uma ex-aluna do clube, passou a ser questionada, como se estivessem buscando uma justificativa para a pedofilia do tipo: se Rubens é homossexual, fica evidente que ele é pervertido sexual, praticante de pedofilia. Daí em diante, uma série de infortúnios torna a vida de Rubens mais difícil e culmina com sua condução à delegacia, para prestar depoimento sobre o caso. Vale destacar que as declarações fornecidas em juízo por ele correspondiam a uma mera formalidade, pois apenas Sofia e Edu pareciam acreditar em sua inocência. Nesse sentido, Rubens passou a ser considerado culpado pela opinião pública e por oficiais da lei, antes mesmo de ser submetido a um julgamento justo que obedecesse aos trâmites processuais corretos.

Aos Teus Olhos é brilhante na medida em que levanta dúvidas para o expectador e nos deixa tirar as próprias conclusões: Rubens é ou não pedófilo? Ele tem ou não culpa no crime que lhe é imputado? Trata-se de um convite à necessária reflexão sobre o tempo em que vivemos e nossa aparente autoridade para julgar todas as pessoas. Findados os spoilers,3 3 De acordo com o Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, spoiler significa a “revelação de fatos importantes ou desfecho da trama de um filme, de conteúdos televisivos e livros, vídeo games etc., que pode ser prejudicial à apreciação de quem os vê, lê ou joga pela primeira vez”. partiremos para a discussão auxiliada por uma literatura especializada dos dois pontos que consideramos mais incômodos e importantes para a análise do filme: a acusação de pedofilia e a instantânea destruição da vida de Rubens via mídias sociais.

2 HÁ DE FATO UM AUMENTO NOS CRIMES SEXUAIS PRATICADOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES?

O enredo de Aos Teus Olhos ocorreu em um clube de natação, mas estabeleceremos um paralelo entre a situação vivida pelo professor de Educação Física Rubens em seu clube e a instituição escolar por dois motivos: primeiro, porque essa instituição corresponde àquela em que temos interesse investigativo; segundo, mas não menos importante, porque é comum observar na mídia casos em que docentes são acusados de praticar crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Em uma breve consulta a um site de buscas, encontramos uma infinidade de casos ao redor do país nos quais membros da comunidade escolar foram acusados (e, na maioria das vezes, inocentados) de praticar pedofilia contra seus alunos.

Um sociólogo que traz elementos interessantes para ilustrar a maneira pela qual nos comportamos em relação aos cuidados e ao contato físico com nossas crianças é Zygmunt Bauman (2011BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., p. 51, grifos do autor), que afirma:

[…] estreitar a distância que são instruídos a manter entre si [pais e filhos] e outros adultos e seus filhos pode vir a ser (deve ser e será) interpretado como propício à liberação - aberta, sub-reptícia ou subconsciente - de impulsos pedófilos endêmicos […].

As principais baixas do pânico do abuso sexual são […] os vínculos, e a intimidade entre as gerações […] o medo do abuso sexual definiu os adultos como ‘suspeitos habituais’, culpados a priori de crimes que ele ou ela devem ter tido a intenção de cometer, ou pelo menos foram levados a praticar pelo instinto, com ou sem intenção maldosa.

Em outras palavras, a intimidade entre adultos e crianças não tem sido bem vista, chegando muitas vezes a ser condenada sob a pecha de um exagerado pânico moral gerado em torno da pedofilia, que felizmente tem sido muito menos comum do que a mídia veicula. Questionamos se a atual preocupação de nossa sociedade com a pedofilia não é um pouco exagerada, pois, na opinião de Jenkins (1998JENKINS, Philip. Moral panic: changing concepts of the child molester in modern America. New Haven: Yale University Press, 1998.), os crimes sexuais contra crianças e adolescentes não têm aumentado, além de existirem grupos que lucram disseminando a ideia de que a ocorrência desses crimes esteja fora de controle: trata-se dos assistentes sociais que conseguem mais dinheiro com mais crianças sob a sua tutela, dos terapeutas que ganham mais clientes, dos psicólogos e psiquiatras que são alçados aos postos de especialistas, das pessoas que levam a moral religiosa a ter credibilidade, da mídia que se autopromove, dos advogados que ganham novas causas e dos políticos que ganham muitos votos levantando a bandeira do combate à pedofilia.

Por conta de toda essa visibilidade alcançada na mídia, especialmente devido aos motivos apontados anteriormente, é possível encontrar dois tipos de interpretações para o aparente acréscimo dos números de casos de violência sexual praticados contra crianças:

[…] uma mais pessimista, que acredita que estamos vivendo uma ‘epidemia’ de ‘abusos sexuais’ de crianças e outra mais otimista, que considera que a maior visibilidade não decorre do aumento repentino de atos, mas da ruptura do antigo ‘tabu do silêncio’ (LOWENKRON, 2010LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas? Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 5, p. 9-29, 2010. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/394/726. Acesso em: 02 ago. 2018.
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, p. 11).

Acreditamos que a segunda interpretação seja mais coerente, uma vez que não é possível afirmar que esteja ocorrendo um aumento real de crimes sexuais contra crianças e adolescentes tanto internacional (SINGH; PARSEKAR; NAIR, 2014SINGH, Mannat Mohanjeet; PARSEKAR, Shradha S; NAIR, Sreekumaran N. An epidemiological overview of child sexual abuse. Journal of Family Medicine and Primary Care, n. 3, v. 4, oct./dec., 2014, p. 430-435. DOI: 10.4103/2249-4863.148139. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4311357/. Acesso em: 5 jun. 2018.
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) quanto nacionalmente (POLÍCIA FEDERAL, 2009/2010; 2011/2012; 2013/2014), e sim maior número de registros e punições dessas sérias transgressões. Não estamos dizendo com isso que crimes sexuais contra crianças e adolescentes não sejam um sério problema para o qual nossa sociedade deve estar atenta, pois, concordando com West (2000WEST, Donald. Paedophilia: plague or panic? The Journal of Forensic Psychiatry, v. 11, n. 3, p. 511-531, 2000. DOI: 10.1080/09585180010002669. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09585180010002669. Acesso em: 5 jun. 2018.
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), entendemos que a pedofilia e os crimes sexuais contra adolescentes correspondem a um problema de saúde pública, haja vista as consequências físicas e psicológicas que tais crimes podem gerar em crianças e adolescentes que os sofrem.

Contudo, levantamos a hipótese de estar havendo um certo exagero na crença de que os casos de pedofilia e de violência sexual contra crianças e adolescentes estejam aumentando no Brasil e no mundo. O problema é que, diante do pânico gerado, principalmente pela mídia, muitos professores, especialmente aqueles do sexo masculino, têm preferido evitar qualquer tipo de contato físico com seus alunos diante do medo de serem acusados de assumir um “comportamento inadequado” ou de serem vistos como “predadores sexuais”. Tal ação para se proteger de acusações infundadas é um mecanismo de defesa compreensível que vem sendo adotado por muitos professores (PETERSEN, 2014PETERSEN, Nadine. The ‘good’, the ‘bad’ and the ‘ugly’? Views on male teachers in foundation phase education. South African Journal of Education, v. 34, n. 1, feb. 2014. DOI: 10.15700/201412120926. Disponível em: http://www.scielo.org.za/pdf/saje/v34n1/02.pdf. Acesso em: 2 ago. 2018.
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), especialmente por causa das expectativas geradas em torno dos problemas que esse tipo de relação pode acarretar. Por outro lado, a negação dos docentes em manter contato físico com seus educandos pode gerar frustrações e corresponder a um tipo de violência simbólica aos desejos mais sublimes desses sujeitos por afago e calor humano (BARROS; FIAMENGHI JÚNIOR, 2007BARROS, Raquel de Camargo; FIAMENGHI JÚNIOR, Geraldo Antônio. Interações afetivas de crianças abrigadas: um estudo etnográfico. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 5, p. 1267-1276, out. 2007.).

Seria possível conciliar perspectivas tão distintas ante o risco de ter sua vida destruída por uma falsa acusação como o filme Aos Teus Olhos nos mostra? Cruickshank (2018CRUICKSHANK, Vaughan. Male primary teachers’ fear and uncertainty surrounding physical contact, Education 3-13, 2018. DOI: 10.1080/03004279.2018.1434221. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/03004279.2018.1434221. Acesso em: 2 ago. 2018
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), Petersen (2014PETERSEN, Nadine. The ‘good’, the ‘bad’ and the ‘ugly’? Views on male teachers in foundation phase education. South African Journal of Education, v. 34, n. 1, feb. 2014. DOI: 10.15700/201412120926. Disponível em: http://www.scielo.org.za/pdf/saje/v34n1/02.pdf. Acesso em: 2 ago. 2018.
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) e Jones (2007) apontam que tanto os professores homens quanto as professoras mulheres investigadas enxergam diferentemente um gesto de carinho destinado aos alunos, quando quem pratica tal ação é homem ou mulher: se quem está fazendo carinho é do sexo masculino, o sinal de alerta logo é ligado, coisa que não ocorre se é uma professora. Ao articular essa perspectiva com o filme Aos Teus Olhos, não é de estranhar a atual evitação de muitos professores do gênero masculino em manter contato físico com seus alunos, conforme temos observado no cotidiano escolar, com especial destaque para as aulas de Educação Física, em que o contato corporal entre alunos e professor é algo inevitável.

A polêmica em torno dessa questão fica ainda mais clara quando consideramos a motivação da diretora Carlina Jabor para filmar o longa, expressa em uma entrevista concedida ao jornal O Globo em abril de 2018JABOR, Caroline. “Aos teus olhos” parte de perturbadora acusação para discutir linchamento. O Globo, Rio de Janeiro, 10 de abril de 2018. Entrevista concedida a Fabiano Ristow pela diretora. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/aos-teus-olhos-parte-de-perturbadora-acusacao-para-discutir-linchamento-1-22573687. Acesso em: 5 jun. 2018.
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:

[…] No filme, o pai do menino urge em saber se o professor é homossexual, porque na cabeça dele seria uma prova de que o filho sofreu abuso. Como pode alguém relacionar um crime tão grave à orientação sexual? É uma sociedade conservadora. Me perguntaram como seria o filme caso o acusado fosse uma mulher. Talvez não teria feito o filme, porque o gesto possivelmente seria visto como um ato maternal (JABOR, 2018JABOR, Caroline. “Aos teus olhos” parte de perturbadora acusação para discutir linchamento. O Globo, Rio de Janeiro, 10 de abril de 2018. Entrevista concedida a Fabiano Ristow pela diretora. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/aos-teus-olhos-parte-de-perturbadora-acusacao-para-discutir-linchamento-1-22573687. Acesso em: 5 jun. 2018.
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).

A questão do carinho masculino direcionado aos alunos também foi abordada em Aos Teus Olhos, quando Rubens perguntou a Ana se ela nunca havia beijado algum de seus alunos na bochecha. Ana afirmou que sim, mas rebateu, ao alegar que, por ser mulher, a situação é diferente quando comparada com a de um beijo dado por Rubens. Ao assumirmos que apenas o carinho masculino pode gerar esse tipo de estranhamento, vemos que a implicação da figura masculina na produção do filme é estratégica para a construção de sua trama. Isso ocorre porque, segundo Felipe (2006FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo? Cadernos Pagu, n. 26, p. 201-223, jun. 2006.), há o equívoco de se atrelar quase que exclusivamente o homem à pedofilia: primeiro, porque existe a ideia no senso comum de que os homens são “animais do sexo”; segundo, porque há associação direta e equivocada entre pedofilia e homossexualidade.

É interessante destacar que essa visão não se limita ao Brasil, pois diversos são os estudos que demonstram a existência de preconceitos de pais e docentes acerca da presença do professor homem nas escolas de Educação Infantil e nos primeiros anos do ensino fundamental, atrelando o professor homem à homossexualidade (SKELTON, 2003SKELTON, Christine. Male primary teachers and perceptions of masculinity, Educational Review, v. 55, n. 2, 2003, p. 195-209. DOI: 10.1080/0013191032000072227. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0013191032000072227. Acesso em: 2 ago. 2018.
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; KING, 2004KING, James. R. The (im)possibility of gay teachers for young children. Theory Into Practice, v. 43, n. 2, p. 122-127, 2004. DOI: 10.1207/s15430421tip4302_5. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1207/s15430421tip4302_5. Acesso em: 5 jun. 2018.
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; MARTINO, 2008MARTINO, Wayne John. Male teachers as role models: Addressing issues of masculinity, pedagogy and the re-masculinization of schooling. Curriculum Inquiry, v. 38, n. 2, p. 189-223, 2008.; RABELO, 2013aRABELO, Amanda. Debates sobre gênero na docência: o professor do sexo masculino nas séries iniciais do Rio de Janeiro-Brasil e Aveiro-Portugal. Educar em Revista, n. 48, p. 207-234, abr./jun. 2013a.; 2013b) ou considerando-o um predador sexual em potencial (MARTINO; BERILL, 2003; McWILLIAM; JONES, 2005). Não por acaso alguns dos autores deste artigo já passaram por situações constrangedoras ao trabalharem com Educação Física na Educação Infantil e serem inicialmente vistos com desconfiança por pais de alunos que os taxavam como “potencialmente perigosos” apenas por serem homens. Esses estereótipos são tão sérios que a simples acusação de pedofilia faz com que docentes, mesmo depois de inocentados, passem a ser tratados de maneira diferente por seus pares, coisa que dificilmente acontece com as mulheres. O fato é que as mulheres, “[…] no exercício da maternidade ou na função de cuidadoras de crianças, parecem estar sempre acima de qualquer suspeita, o que nem sempre é verdade” (FELIPE, 2006FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo? Cadernos Pagu, n. 26, p. 201-223, jun. 2006., p. 214-215).

Em pesquisa realizada por Cruickshank (2018CRUICKSHANK, Vaughan. Male primary teachers’ fear and uncertainty surrounding physical contact, Education 3-13, 2018. DOI: 10.1080/03004279.2018.1434221. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/03004279.2018.1434221. Acesso em: 2 ago. 2018
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), ficou muito clara a existência de um forte preconceito para com os homens, como é possível perceber no trecho a seguir:

Eu trabalhei em duas escolas onde um funcionário foi acusado de comportamento inadequado. Em um caso, as alegações foram uma invenção completa e o professor do sexo masculino foi inocentado. Mas eu vi em primeira mão como os homens são tratados e o impacto que isso tem em suas vidas […]. Colegas, pais, entre outros, todos o evitavam como a peste e ele finalmente saiu […]. No outro caso, o perpetrador era na verdade uma mulher e ela era culpada e praticamente não tinha publicidade alguma […], era uma mulher que realmente havia feito algo inapropriado e os pais dos meninos simplesmente chamaram de experiência de vida […]. Se fosse um professor e uma garota, a história não teria sido silenciada. Teria sido na primeira página, teria sido publicamente conhecido, teria sido notícia e teria sido o fim da carreira de alguém (Trechos da entrevista concedida por Fenton para Cruickshank, 2018CRUICKSHANK, Vaughan. Male primary teachers’ fear and uncertainty surrounding physical contact, Education 3-13, 2018. DOI: 10.1080/03004279.2018.1434221. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/03004279.2018.1434221. Acesso em: 2 ago. 2018
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, p. 6, traduzida pelos autores).

Não sendo objetivo deste artigo elaborar um tratado da pedofilia no espaço escolar, levantamos três questões que podem ser desdobradas em estudos futuros: o que leva um caso comprovado de pedofilia, praticado por uma professora contra um menino, a acabar “sendo entendido” como a “expressão precoce da sexualidade” do adolescente? Por quais motivos a simples suspeita de pedofilia levantada contra um homem é suficiente para sua condenação antecipada? Os docentes de Educação Física estão sujeitos a maiores riscos do que os professores das demais áreas do conhecimento pelo simples fato de nessa disciplina a proximidade e o contato corporal serem algo mais comum?

Finalizamos esta seção afirmando que: a pedofilia corresponde a uma grave transgressão, mas não dá para afirmar que ela esteja crescendo no espaço escolar; os professores homens, independentemente de sua sexualidade, não correspondem a maior ameaça do que as mulheres. Apontadas essas importantes questões, partiremos para discutir outra situação problemática que se tem tornado, a cada dia, mais complexa para muitas pessoas: o tribunal das mídias sociais e seu poder para destruir vidas e reputações de muitos professores.

3 O TRIBUNAL DAS MÍDIAS SOCIAIS E SUA CAPACIDADE DE DESTRUIÇÃO

Antes de tratar do fenômeno contemporâneo da destruição de reputações e vidas que acontece pela interação via mídias sociais, é preciso trazer à baila dois casos em que membros da comunidade escolar foram falsamente acusados de praticar crimes sexuais contra crianças dentro das escolas e, mesmo assim, tiveram um “julgamento” e uma “condenação” antecipada pela mídia (televisão e mídia escrita): o primeiro deles ocorreu quando um professor de Educação Física de uma escola privada de Vila Velha, cidade do Espírito Santo, foi acusado, em 2012, de abusar sexualmente de 13 alunos de 3 a 4 anos de idade ao longo de 2011 (JUSTIÇA DO ES..., 2013); já o segundo aconteceu faz quase duas décadas e meia e ficou conhecido internacionalmente como o “Caso da Escola Base” - Escola de Educação Infantil Base - da cidade de São Paulo em 1994, quando seis pessoas (sócios-proprietários da escola, professora, motorista e até um pai de aluno) foram presas acusadas de praticar crimes sexuais contra crianças de 2 e 3 anos de idade (GODOY, 1994GODOY, Marcelo. Casal acusado de abuso sexual é preso. Folha de São Paulo, 6 abril 1994, Cotidiano, p. 3.).

No caso mais recente, desembargadores da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo entenderam que as provas coletadas eram insuficientes para incriminar o professor de Educação Física. Mas isso não impediu sua demissão da escola em que trabalhava ao final de 2011, a condenação em primeira instância a 22 anos e meio de prisão em regime fechado, tampouco fosse mantido quase dois anos preso até sua completa absolvição. Além disso, encontramos quatro matérias publicadas ao longo do processo que apontavam o professor de Educação Física como culpado, contra apenas uma última que tratava de sua absolvição, todas escritas e publicadas no mesmo veículo de comunicação. Para piorar um pouco mais a situação do docente, notamos que, mesmo na matéria que tratava de sua absolvição, a ilustração utilizada apresentava uma imagem antiga em que ele era conduzido ao presídio, quando fora decretada sua prisão preventiva na fase inicial da investigação.

No episódio da Escola Base, numa instituição de Educação Infantil localizada no bairro da Aclimação, na zona sul de São Paulo, as consequências sofridas pelos seis acusados foram ainda mais devastadoras: a depredação e o saque da escola e da casa de uma das professoras, a falência dos proprietários da instituição, além de mudanças operadas na vida desses sujeitos, como o abandono da profissão por uma professora. Como desdobramentos desse caso, encontramos uma série de reportagens e livros (RIBEIRO, 1995; COUTINHO, 2016COUTINHO, Emílio. Escola Base: onde e como estão os protagonistas do maior crime da imprensa brasileira. São Paulo: Casa Flutuante, 2016.) que apontam o “Caso da Escola Base” como um dos maiores erros cometidos pela imprensa brasileira até os dias atuais e uma das grandes injustiças operadas por um delegado que deixou que suas opiniões suplantassem as provas que vinham sendo levantadas. É preciso destacar que ambos os casos citados anteriormente não envolveram o uso das mídias sociais, sendo divulgados por veículos de comunicação de massa, como a televisão, a mídia impressa e portais de notícias na internet (no episódio mais recente). Entretanto, ambas as situações nos dão mostras de como a vida pessoal e profissional de pessoas inocentes, acusadas injustamente, pode ser destruída rapidamente, situação que pode ser ainda mais rápida e devastadora quando utilizadas as mídias sociais nesse tipo de divulgação.

Por esse motivo, consideramos o longa Aos Teus Olhos de extrema importância para prestarmos atenção a um fenômeno que pode atingir a qualquer um de nós professores e mais especialmente, mas não exclusivamente, os de Educação Física em qualquer momento de nossas vidas. Por isso, é importante estar atento para o potencial destrutivo que uma postagem no calor da emoção pode causar à vida de outras pessoas, uma vez que

O grande potencial de disseminação de mensagens audiovisuais pela Internet [e pelas mídias sociais] potencializa os danos causados por informações desprovidas de boas intenções e moral. Antes as informações caluniosas passadas de uma pessoa pra outra, se perdiam no tempo, porém hoje com ‘provas’ lançadas na Internet [e pelas mídias sociais], o potencial dos danos são ainda maiores. Além disso, sua rapidez imediata é tal, que a reparação de danos dos envios é quase impossível de reverter (DIAS; ALEIXO, 2013DIAS, Reinaldo; ALEIXO, Tayra Carolina Nascimento. O impacto das mídias sociais na privacidade das pessoas. Razón y Palabra, v. 18, n. 84, p. 1- 22, set. /nov. 2013. Disponível em: http://www.razonypalabra.org.mx/N/N84/V84/18_DiasNascimento_V84.pdf. Acesso em: 2 ago. 2018.
http://www.razonypalabra.org.mx/N/N84/V8...
, p. 17).

Diversos são os exemplos que poderiam ser dados para esse problema em nosso cotidiano, mas nos ateremos a apenas dois para demonstrar sua complexidade. Em 3 de maio de 2014, uma dona de casa foi amarrada e espancada por um grupo de populares, vindo a falecer dois dias depois, depois de ter circulado o boato em uma rede social que uma mulher, com características físicas parecidas com a dela, teria ligação com o sequestro de crianças e práticas de magia negra na periferia de Guarujá, na região da Baixada Santista (MORRE..., 2014). Em 21 de maio de 2015, dois homens prestaram queixa na Polícia Civil depois de terem sido confundidos com outro que havia estuprado uma médica na cidade de Salvador, estado da Bahia. Apontados em mídias sociais como praticantes do crime, eles passaram por uma série de transtornos depois que a falsa notícia se espalhou rapidamente (DOIS..., 2015).

Na opinião de Pantumsinchai (2018PANTUMSINCHAI, Penn. Armchair detectives and the social construction of falsehoods: an actor-network approach. Information, Communication & Society, v. 21, n. 5, p. 761-778, 2018. DOI: 10.1080/1369118X.2018.1428654. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/1369118X.2018.1428654. Acesso em: 2 ago. 2018.
https://www.tandfonline.com/doi/full/10....
), o que une crimes praticados a constrangimentos cotidianamente gerados via mídias sociais é o desejo da pessoa comum, que veicula esse tipo de notícias, por fazer justiça com as próprias mãos. No interessante artigo escrito por esse autor, percebemos a maneira pela qual os “detetives de poltrona” (maneira como ele chama as pessoas que se sentem solucionadores de crimes do cotidiano) perseguiram e acusaram inocentes de terem praticado os atentados a bomba de 2013 em Boston, nos Estados Unidos, e, em 2015, em Bangkok, na Tailândia, causando-lhes sérios problemas. Utilizamos a charge a seguir (Figura 1), desenhada pelo cartunista Tigre, para sintetizar o artigo de Pantumsinchai (2018) e apresentar qual parece ser, a nosso ver, o sentimento das pessoas que abandonam sua vida cotidiana para se tornarem verdadeiros juízes de seus pares nas mídias sociais.

Figura 1
Um tribunal de exceção chamado mídias sociais

Como é possível perceber na charge, muitas pessoas comuns parecem sentir prazer na “autoridade que as mídias sociais lhes conferem” de serem sensores do comportamento alheio. Traçando um paralelo entre o julgamento realizado atualmente pelas mídias sociais e a justiça da máfia, Pantumsinchai (2018PANTUMSINCHAI, Penn. Armchair detectives and the social construction of falsehoods: an actor-network approach. Information, Communication & Society, v. 21, n. 5, p. 761-778, 2018. DOI: 10.1080/1369118X.2018.1428654. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/1369118X.2018.1428654. Acesso em: 2 ago. 2018.
https://www.tandfonline.com/doi/full/10....
, p. 762-763, tradução dos autores) afirma: “Enquanto a justiça da máfia tem raízes históricas que remontam à caça às bruxas medievais, a internet e suas ferramentas de comunicação e coleta de informações elevaram a justiça da máfia a um novo nível de abrangência e eficácia sem precedentes”.

A grande questão que queremos chamar a atenção, articulando a charge do cartunista Tigre com o pensamento de Pantumsinchai (2018PANTUMSINCHAI, Penn. Armchair detectives and the social construction of falsehoods: an actor-network approach. Information, Communication & Society, v. 21, n. 5, p. 761-778, 2018. DOI: 10.1080/1369118X.2018.1428654. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/1369118X.2018.1428654. Acesso em: 2 ago. 2018.
https://www.tandfonline.com/doi/full/10....
) e algumas das cenas trazidas pelo filme Aos Teus Olhos (2017), é que acusar um professor de ser praticante de pedofilia é algo muito sério e que pode destruir vidas, reputações. Sem falar que mesmo quando acontece uma retratação da parte do acusador isso não repara os danos causados em quem foi acusado injustamente.

De maneira a trazer mais elementos para discutir o poder que as mídias sociais possuem apresentamos a letra de uma música do compositor e cantor Tom Zé, que corresponde a uma resposta dele às duras críticas que ele sofreu depois de fazer propaganda em 2013 para a Coca-Cola. O artista teve a brilhante ideia de construir a canção “Tribunal do Feicebuqui” (ZÉ, 2013), valendo-se de argumentos utilizados nas mídias sociais a favor e contra sua ação de trabalhar com aquela companhia, traduzindo em música o poder de julgamento que as pessoas atribuem a si mesmas nesse meio de interação.

TRIBUNAL DO FEICEBUQUI Tom Zé mané Baixou o tom Baba baby Bebe e baba Velho babão Tom Zé bundão Baixou o tom Baba baby Bebe e baba Mané babão Seu americanizado Quer bancar Carmen Miranda Rebentou o botão da calça Tio Sam baixou em sampa Vendido, vendido, vendido! A preço de banana Já não olha mais pro samba Tá estudando propaganda Que decepção Traidor, mudou de lado Corrompido, mentiroso Seu sorriso engarrafado Não ouço mais, eu não gostei do papo Pra mim é o príncipe que virou sapo Onde já se viu? Refrigerante! E agora é a Madalena arrependida com conservantes Bruxo, descobrimos seu truque Defenda-se já no tribunal do Feicebuqui A súplica Que é que custava morrer de fome só pra fazer música? (ZÉ, 2013ZÉ, Tom. Tribunal do feicebuqui, 2013. Disponível em: https://www.cifraclub.com.br/tom-ze/tribunal-do-feicebuque/letra/. Acesso em: 1 out. 2018.
https://www.cifraclub.com.br/tom-ze/trib...
).

Com a popularização das mídias sociais não é incomum encontrar situações vividas por professores como a representada por Daniel Oliveira com o professor de Educação Física Rubens em Aos Teus Olhos. Temos consciência de que o aumento no acesso às tecnologias de informação e comunicação trouxe novas possibilidades de interação, mas também agravou a possibilidade de fazer dano ao próximo, e as reações apresentadas por Tom Zé em sua música são exemplos disso. Um comentário maldoso que alguns anos atrás (sem o uso das mídias sociais) poderia ser compreendido como maledicência - pois ficaria circunscrito à pessoa que o fez e a algumas pessoas próximas - pode ganhar ar de linchamento virtual em nosso tempo, uma vez que as mensagens que geram medo ou repulsa viralizam rapidamente, pois são replicadas sem checagem de sua veracidade em instantes.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que o longa metragem Aos Teus Olhos apresenta importantes questões que podem ser discutidas em cursos de formação inicial e formação continuada de professores, haja vista a quantidade de casos de professores que são acusados de ser praticantes de pedofilia e, mesmo quando são inocentados, acabam tendo sua vida pessoal e profissional prejudicada devido à ação indiscriminada de espalhar calúnias e opiniões sem provas por meio das mídias sociais. Trata-se de questões que podem atravessar a vida de professores tanto direta quanto indiretamente, independentemente da disciplina que lecionem no espaço escolar, situação para a qual nós, professores, precisamos estar preparados.

Sendo uma especificidade da disciplina Educação Física enquanto espaço educacional, atuar pedagogicamente sobre o corpo, isso pode amplificar os riscos de seus professores serem acusados de pedofilia. Dizemos isso porque esse educador costuma ser aquele que está mais próximo de seus alunos na escola e não apenas fala, mas age pedagogicamente sobre os corpos de seus alunos, chegando muitas vezes a tocá-los para favorecer a aprendizagem, favorecendo ainda mais que sua ação possa ser compreendida de maneira equivocada.

Finalmente, apontamos a necessidade de que os sistemas educacionais se posicionem acerca da ocorrência desses fenômenos, de maneira a preparar seus professores e a comunidade escolar a lidar com uma situação tão complexa, que pode não apenas gerar desconforto, mas principalmente destruir a vida de pessoas inocentes. Além disso, entendemos que o professor de Educação Física que porventura venha a optar por manter distância física em relação aos seus alunos por medo de ser acusado de praticante de pedofilia, ainda que esteja buscando se proteger de problemas, estará fadado a realizar uma prática vazia, sem sentido e significado para si e para seus educandos, pois ele não estará contribuindo como pode com o desenvolvimento físico, cognitivo e afetivo desses sujeitos. Acreditamos que uma maneira de realizar tal ação é proceder à exibição do filme para os professores das escolas e realizar uma discussão científica acerca das temáticas nele trabalhadas, ação que pretendemos que seja favorecida mediante a leitura de nosso artigo.

REFERÊNCIAS

  • Apoio:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 00. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
  • 1
    No decorrer de nosso texto, o leitor se deparará com algumas expressões, como pedofilia, violência sexual contra crianças, crime sexual contra crianças e abuso sexual infantil, que são usadas basicamente para designar o fenômeno de praticar abusos (ou a simples intenção de realizar abusos) de natureza sexual contra crianças. Sabedores de que cada um desses conceitos pode apresentar sentidos e/ou significados diferentes - características psicológicas, categoria social, entre outros -, sugerimos ao leitor que leia os artigos de Lowenkron (2010LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes nomes, diferentes problemas? Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 5, p. 9-29, 2010. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/394/726. Acesso em: 02 ago. 2018.
    http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.p...
    ) e de Florentino (2015FLORENTINO, Bruno Ricardo Bergamo. As possíveis consequências do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes. Fractal: Revista de Psicologia, v. 27, n. 2, p. 139-144, maio-ago. 2015.), caso desejem compreender um pouco mais sobre as diferenças existentes entre tais conceitos que, para a escritura deste artigo, não nos convém desenvolver.
  • 2
    Ao invés de usarmos a expressão redes sociais, preferimos utilizar, neste texto, o termo mídias sociais para apontar as relações estabelecidas entre indivíduos por meios digitais, uma vez que, segundo Terra (2010TERRA, Carolina Frazon. Usuário-mídia: a relação entre a comunicação organizacional e o conteúdo gerado pelo internauta nas mídias sociais. 2010. 207 f. Tese (Doutorado em Comunicação) - Programa de Ciências da Comunicação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 7), “Podemos definir a mídia social como aquela utilizada pelas pessoas por meio das tecnologias e políticas na web, com fins de compartilhamentos de opiniões, ideias, experiências e perspectivas. São considerados mídias sociais os textos, imagens, áudio e vídeo em blogs, microblogs, quadro de mensagens, podcasts, wikis, vlogs e afins que permitem a interação entre os usuários”.
  • 3
    De acordo com o Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, spoiler significa a “revelação de fatos importantes ou desfecho da trama de um filme, de conteúdos televisivos e livros, vídeo games etc., que pode ser prejudicial à apreciação de quem os vê, lê ou joga pela primeira vez”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2018
  • Aceito
    03 Set 2019
  • Publicado
    19 Dez 2019
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