Ao encerrar 2021 e fechar seu 14º volume, a Machado de Assis em linha presta homenagem às mais de 5 milhões de vítimas da COVID-19 no mundo, 600 mil delas no Brasil, por meio da lembrança de Alfredo Bosi (1936-2021), morto em 7 de abril, aos 84 anos, num dos dias mais letais da pandemia no país.
Mestre de muitas gerações, extraordinário leitor de poesia, estudioso dos grandes escritores brasileiros, historiador da literatura, intérprete do Brasil, ativista dos direitos humanos, ecologista, intelectual sempre pronto a servir e a defender a universidade pública, Alfredo Bosi foi também admirador profundo e um dos mais agudos intérpretes de Machado de Assis.
Autor de Machado de Assis: o enigma do olhar (1999) e Brás Cubas em três versões - estudos machadianos (2006), Bosi deixou ensaios fundamentais sobre o escritor. Além dos que dão título aos dois livros mencionados, destacam-se "A máscara e a fenda" (1978), "Uma figura machadiana" (1979) e "O teatro político nas crônicas de Machado de Assis" (2004), dedicados respectivamente aos contos, ao romance e à crônica.
Em todos esses textos críticos, nota-se a preocupação de observar o fenômeno literário em suas várias dimensões, o que fica sintetizado em artigo publicado na MAEL em 2009:
Do ponto de vista metodológico tenho-me servido de um esquema triádico de perfis da obra literária que ensaiei pela primeira vez em meu livrinho Reflexões sobre a arte. Então pareceu-me viável penetrar no universo simbólico da literatura (e das demais artes) contemplando três dimensões: a representativa ou mimética; a expressiva ou existencial; e a construtiva ou formal. (BOSI, 2009BOSI, Alfredo. Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica. Machado de Assis em linha, ano 2, número 4, dezembro 2009, pp. 17-32. Disponível em: http://machadodeassis.net/revista/numero04/rev_num04_artigo02.asp . Acesso em 22 nov. 2021.
http://machadodeassis.net/revista/numero... )
Muito marcado pelas leituras de Alcides Maya e Augusto Meyer, críticos que enfatizaram a dimensão expressiva existencial nos escritos de Machado de Assis, mas também inspirado por Lúcia Miguel Pereira e Antonio Candido, Bosi valorizou o fio da história que atravessa personagens e enredos machadianos, conformados às ideologias de seus tempos - mas também resistentes a elas.
A palavra resistência, por sinal, é chave para o seu modo de entender a literatura em geral, e a de Machado de Assis em particular. Se a arte responde às ideologias do tempo, para Bosi ela também tem uma componente contraideológica, que supera determinações políticas e econômicas, apontando para os dramas humanos, que dizem respeito a qualquer tempo e lugar.
No último escrito que publicou sobre Machado de Assis, sintetizou:
O espírito crítico que permeou toda a sua obra levou-o primeiro a denunciar a ideologia excludente e preconceituosa do velho liberalismo oligárquico (e aqui temos o escritor democrático que faz a sátira de certas formas cruéis da nossa sociabilidade conservadora), e depois a universalizar o olhar negativo estendendo-o ao gênero humano, e aqui temos a visão do ceticismo radical. (BOSI, 2010BOSI, Alfredo. Um nó ideológico - sobre o enlace de perspectivas em Machado de Assis. In: BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., 420-1)
Com sua notável capacidade de unir a reflexão à ação, Alfredo Bosi fez da resistência também um modo de estar no mundo. Sua morte faz refletir sobre o imenso legado que deixou para os estudos literários e também sobre suas lições de luta contra a opressão e a injustiça, lições tão necessárias para atravessar os tempos terríveis em que vivemos.
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Sensibilizada pelas perdas e consciente da necessidade de resistir, a Machado de Assis em linha completa 14 anos de existência com este volume, composto de 22 artigos.
No conjunto, nota-se a persistência do interesse, aliás crescente nos últimos anos, pelos estudos sobre o escritor em seus anos de juventude e formação. Esse interesse abrange aspectos biográficos, como a investigação sobre um pouco conhecido endereço em que o escritor viveu em 1867, antes portanto do casamento com Carolina, e também sobre o gosto do escritor pelo jogo de xadrez, que tem participação importante na ficção machadiana. O foco recai também sobre suas primeiras incursões literárias, como a registrada no recém-descoberto poema "O grito do Ipiranga", publicado quando o autor contava apenas 17 anos. Três artigos voltam-se para o processo de formação do prosador, seja pela sua impregnação das leituras de Shakespeare, que servem de mote e ponto de partida para sua produção romanesca, desde Ressurreição, seja pela demonstração da dissonância de seus escritos em relação aos de seus contemporâneos (como é o caso de Franklin Távora), quase sempre pautados pelo nacionalismo romântico. O exame das imbricações e convergências entre a produção contística e romanesca na década de 1870 também contribui para investigações recentes, que têm valorizado o processo de formação do escritor. Sem subordinar o que veio antes àquilo que viria depois, os estudos sobre as primeiras décadas de atuação do escritor têm contribuído para melhor compreender os resultados extraordinários a que chegou nas várias obras-primas publicadas a partir da década de 1880.
Além de Shakespeare, que dá o mote para sua estreia no romance, em 1872, Charles Lamb e Dante Alighieri também aparecem neste volume como referências importantes para a composição da obra machadiana, em artigos que mostram as afinidades filosófico-filológicas do autor de Brás Cubas com o ensaísta inglês e escrutinam as referências ao autor da Divina comédia em Dom Casmurro e no Memorial de Aires. A dimensão internacional da obra de Machado de Assis também é tratada em outra chave, a da recepção, em artigo que recompõe o processo de tradução e edição de Quincas Borba, publicado em inglês em 1954 com o título Philosopher or Dog?
De par com a focalização dos anos de 1850 a 1870, nota-se também o interesse pelos gêneros até recentemente considerados "menores", aos quais o escritor se dedicou intensamente no início de sua carreira - a poesia, o teatro e a crônica -, e que teriam papel fundamental para a composição de suas obras mais conhecidas. Neste volume, há um estudo sobre a peça Quase ministro, a leitura do já citado poema "O grito do Ipiranga" e uma análise minuciosa do poema "Mundo interior", além de dois artigos sobre as crônicas da série "A Semana", com as quais o escritor encerrou sua longa e prolífica trajetória como cronista.
Os contos antológicos e os grandes romances também são revisitados. "O caso da vara" e "Pai contra mãe" são assunto de artigo no qual se define a posição do escritor em relação à escravidão. Os artifícios retóricos empregados em "A igreja do diabo", por sua vez, são estudados como estratégias para a produção de uma crítica dos fundamentos morais da filosofia clássica e da doutrina cristã. Os romances são relidos pela perspectiva dos problemas de geração e filiação, que tanto envolvem os personagens machadianos, que raramente deixam descendentes, como incidem sobre as relações de autoria, por meio da invenção de autores ficcionais.
Por fim, o crítico Antonio Candido, referência intelectual e afetiva de Alfredo Bosi, que lhe dedicou o ensaio "Uma figura machadiana", tem dois de seus ensaios machadianos, "Música e música" e "Esquema de Machado de Assis”, examinados aqui.
O volume 14 reúne ainda quatro resenhas de livros recentes sobre aspectos variados da obra de Machado de Assis, cujas publicações são sinais da vitalidade dos estudos machadianos, mesmo diante das imensas adversidades impostas à produção intelectual e cultural no país.
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Por fim, a MAEL registra algumas notas de agradecimento.
A Pedro Meira Monteiro, Editor Associado Internacional da MAEL, que, num momento crítico para o financiamento das publicações acadêmicas no Brasil, gentilmente disponibilizou recursos dos fundos de pesquisa do Department of Spanish and Portuguese da Princeton University, permitindo a preparação de artigos para publicação na revista. E a Fernando Borsato dos Santos, Karina Okamoto, Rodrigo Trindade e Tiago Seminatti, que não mediram esforços para que a Machado de Assis em linha resistisse.
São Paulo, novembro de 2021.
Referências
- BOSI, Alfredo. Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica. Machado de Assis em linha, ano 2, número 4, dezembro 2009, pp. 17-32. Disponível em: http://machadodeassis.net/revista/numero04/rev_num04_artigo02.asp Acesso em 22 nov. 2021.
» http://machadodeassis.net/revista/numero04/rev_num04_artigo02.asp - BOSI, Alfredo. Um nó ideológico - sobre o enlace de perspectivas em Machado de Assis. In: BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2021