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GOVERNANÇA ADAPTATIVA E SEGURANÇA HÍDRICA EM CONTEXTO DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO SEMIÁRIDO

GOBERNANZA ADAPTATIVA Y SEGURIDAD HÍDRICA EN EL CONTEXTO DE CAMBIO CLIMÁTICO EN SEMIÁRIDO

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar se a gestão de recursos hídricos no estado do RN atende aos requisitos da governança adaptativa, de modo a possibilitar a segurança hídrica e os processos de adaptação aos possíveis impactos das mudanças climáticas em regiões semiáridas. Para tanto, o trabalho segue as orientações de uma abordagem de natureza qualitativa, exploratória e descritiva, utilizando-se de um conjunto de instrumentos de pesquisa: levantamento bibliográfico, estudo de caso, entrevistas estruturadas e análise de conteúdo. Os resultados apontam que a gestão de recursos hídricos do RN apresenta uma série de desafios e entraves para se configurar numa perspectiva de governança adaptativa climática. Em síntese, conclui-se que a gestão de recursos hídricos do estado do RN ainda não atende aos requisitos de uma goverança adaptativa robusta e capaz de operar respostas aos riscos das mudanças climáticas e garantir a segurança hídrica.

Palavras-chave:
Mudanças Climáticas; Adaptação; Gestão de Recursos Hídricos; Sustentabilidade; Semiárido Brasileiro.

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar si la gestión de los recursos hídricos en el estado de RN cumple con los requisitos de gobernanza adaptativa, para posibilitar procesos de adaptación a los posibles impactos del cambio climático en regiones semiáridas. Por tanto, el trabajo sigue las pautas de un enfoque cualitativo, exploratorio y descriptivo, utilizando un conjunto de instrumentos de investigación: relevamiento bibliográfico, estudio de caso, entrevistas estructuradas y análisis de contenido. Los resultados muestran que la gestión de los recursos hídricos en RN presenta una serie de desafíos y obstáculos para configurarse en una perspectiva de gobernanza adaptativa al clima. En resumen, se concluye que la gestión de los recursos hídricos en el estado de RN aún no cumple con los requisitos de una gobernanza adaptativa robusta capaz de operar respuestas a los riesgos del cambio climático y garantizar la seguridad hídrica.

Palabras-clave:
Cambio Climático; Adaptación; Gestión de Recursos Hídricos; Sustentabilidad; Región Semiárida Brasileña.

Abstract

The aim of this paper is to analyze whether the management of water resources in the state of RN meets the requirements of adaptive governance in order to enable adaptation processes to the possible impacts of climate change in semi-arid regions. To do so, the work follows the guidelines of a qualitative, exploratory and descriptive approach using a set of research instruments: bibliographic survey, case study, structured interviews and content analysis. The results show that the management of water resources in RN presents a series of challenges and obstacles to configure itself in a climate adaptive governance perspective. In summary, it is concluded that the management of water resources in the state of RN still does not meet the requirements of a robust adaptive governance capable of operating responses to the risks of climate change and ensuring water security.

Keywords:
Climate Change; Adaptation; Management of Water Resources; Sustainability; Brazilian Semi-arid.

INTRODUÇÃO

Com o avanço das mudanças climáticas em nível global, não há como debater sobre segurança hídrica sem considerar a imposição de novos riscos para as populações e os ecossistemas em consequência dessas mudanças. Água e clima, portanto, são temas indissociáveis, sendo o setor hídrico fortemente afetado pelas mudanças climáticas (PUGA, 2018PUGA, B. P. Governança dos recursos hídricos e eventos climáticos extremos: a crise hídrica de São Paulo. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, 2018.). Paralelamente, as ações para garantia da segurança hídrica devem incorporar os riscos das mudanças climáticas, principalmente, em regiões com baixa disponibilidade hídrica, como é caso do semiárido brasileiro que historicamente enfrenta eventos de seca.

É inegável que foi possível aprender muito com a ocorrência das grandes secas que, sobretudo, possibilitou o desenvolvimento de estratégias de convivência com o semiárido, evitando as consequências mais óbvias das grandes secas do passado que eram a fome, a desnutrição, a miséria e o êxodo rural (MCBEAN; RODGERS, 2009MCBEAN, G.; RODGERS, C. Climate Hazards and Disasters: the need for capacity building. Wiley Interdisciplinary Reviews, v. 1, n. 6, p. 871-884, 2009.). Contudo, os cenários climáticos futuros apontam para uma tendência de o semiárido tornar-se mais árido, bem como para o aumento da frequência e da intensidade das secas, com o comprometimento cada vez maior da disponibilidade hídrica (AMBRIZZI et al., 2007AMBRIZZI, T. et al. Cenários regionalizados de clima no Brasil para o Século XXI: Projeções de clima usando três modelos regionais. Relatório 3, Ministério do Meio Ambiente - MMA, Brasília, 2007.; MARENGO, 2008MARENGO, J. A. Vulnerabilidade, impactos e adaptação à mudança do clima no semiárido do Brasil. Parcerias Estratégicas. Brasília, v.13, n. 27, p.149-176, 2008.).

O episódio recente de seca no período 2012-2017, considerado o maior dos últimos 100 anos, evidenciou a grande vulnerabilidade dos sistemas hídricos no semiárido, onde várias cidades entraram em colapso hídrico: os principais reservatórios atingiram o volume morto, algo que não acontecia desde a inauguração destes (FRANÇA; MORENO, 2017FRANÇA, J. M. F.; MORENO, J. C. Uma reflexão sobre os impactos causados pela seca no Rio Grande do Norte de 2012 a 2016. Parcerias Estratégicas, v. 22, n. 44, p. 213-232, 2017.).

Todas essas questões suscitam mudanças e melhorias na gestão de recursos hídricos, que devem ser orientadas pelo desenvolvimento da capacidade de operacionalização de respostas diante das tantas incertezas sobre os impactos das mudanças climáticas aos recursos hídricos. Nesse sentido, com problemas cada vez mais complexos para garantir a segurança hídrica, demanda-se uma gestão mais adaptável e flexível para atuar sob as rápidas mudanças que estão ocorrendo no clima. Essa discussão adentra na miríade de um modelo de gestão cada vez mais necessário e quem vem sendo debatido por alguns autores, a governança adaptativa (DIETZ; OSTROM; STERN, 2003DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. Struggle to Govern the Commons. Science, v. 302, n. 5652, p. 1907-1912, 2003.; DESSAI et al., 2004DESSAI, S. et al. Defining and experiencing dangerous climate change. Climatic change, v. 64, n. 1, p. 11-25, 2004.; FOLKE et al., 2005FOLKE, C. et al. Adaptive Governance of Social-Ecological Systems. Annual Review of Environment and Resources, v. 30, n. 1, p. 441-473, 2005.; ADGER et al., 2007ADGER, W. N. et al. Assessment of adaptation practices, options, constraints andcapacity. In: PARRY, M. et al. (Ed.) Climate Change 2007: impacts, adaptation andvulnerability. Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of theIntergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge, UK: Cambridge UniversityPress, p.717-43, 2007.).

Face ao exposto, esse artigo busca compreender essa problemática a partir de um estudo de caso na região semiárida do Rio Grande do Norte (RN), cujo clima semiárido representa 93% do seu território, sendo, assim, o segundo estado com a maior porção semiárida do Brasil. O estado apresenta contexto climático e de respostas aos eventos climáticos semelhantes aos demais estados inseridos nessa região, o que possibilita que as reflexões realizadas no âmbito deste estudo lancem reflexões teórico-metodológicas para os demais.

A partir dessa contextualização, faz-se o seguinte questionamento: como a gestão de recursos hídricos voltada para o semiárido do estado do RN está incorporando os princípios da governança adaptativa no contexto das mudanças climáticas? Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar se a gestão de recursos hídricos no estado do RN atende aos requisitos da governança adaptativa, de modo a possibilitar processos de adaptação aos possíveis impactos das mudanças climáticas.

O artigo está estruturado em quatro momentos, além desta introdução, tem-se a metodologia empregada para o desenvolvimento deste artigo, depois aborda-se acerca dos conceitos que são essenciais para a compreensão deste estudo e em seguida, analisam-se e discutem-se os resultados obtidos com este trabalho. Por fim, conclui-se com as principais considerações sobre as análises e discussões realizadas no transcorrer deste artigo.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para alcance do objetivo proposto na introdução, a pesquisa se apropria de uma abordagem qualitativa, exploratória e descritiva, utilizando-se dos métodos de estudo de caso e de entrevistas semiestruturadas para uma compreensão mais aprofundada do objeto de estudo (MINAYO; SANCHES, 1993MINAYO, Maria Cecilia de S.; SANCHES, Odécio. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade?. Cadernos de saúde pública, v. 9, p. 237-248, 1993.; BABBIE, 2001BABBIE, E. Métodos de Pesquisas de Survey. 1. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2001.; FRANCO, 2003FRANCO, M. L. P. B. Análise de conteúdo. Brasília: Plano Editora, 2003.).

Os resultados e as discussões aqui apresentados foram desenvolvidos em três fases: a primeira foi exploratória, consultando bibliografias e coletando dados secundários; a segunda foi a etapa de campo, com a realização de entrevistas semiestruturadas; e a terceira foi a etapa de sistematização, análise e interpretação dos dados.

A primeira fase possibilitou a revisão de conceitos-chave e a compreensão da área estudada em seus diversos aspectos: ambiental, social, econômico, político e institucional, a partir do levantamento bibliográfico e documental em artigos, livros, sites, relatórios, leis e planos em instituições, tais como o Instituto de Gestão das Águas do Rio Grande do Norte (IGARN), a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMARH), a Defesa Civil Estadual (DC), o Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (IDEMA), e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esta fase compreendeu todo o período de realização da pesquisa.

A segunda fase, de realização das entrevistas, foi fundamental para compreender a percepção dos interlocutores institucionais envolvidos com a gestão de recursos hídricos do RN, assim como conseguir dados e informações sobre o tema no contexto do estado. Foram entrevistados 14 atores entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020, divididos em dois grupos: atores sociais, composto por sete pesquisadores (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, e da Universidade Federal Rural do Semi-Árido - UFERSA), sendo estes pós-graduandos e/ou professores que desenvolveram/desenvolvem pesquisas sobre meio ambiente, mudanças climáticas e recursos hídricos, inclusive com experiência de atuação em órgãos ambientais públicos.

O outro grupo, dos atores institucionais, foi formado por sete representantes de órgãos públicos (como a Defesa Civil, a SEMARH, o IGARN e o IDEMA), os quais consistiam em técnicos, gestores e outros líderes importantes para o processo de tomada de decisões sobre as questões ambientais e climáticas no estado. As entrevistas foram orientadas por um roteiro prévio com perguntas abertas. Em geral, tiveram duração de 45 minutos e foram gravadas com a permissão do entrevistado.

A terceira e última fase, de análise e discussões, os dados foram triangulados e foi realizada a análise da incorporação dos requisitos da governança adaptativa na gestão de recursos hídricos no RN, com base nas discussões teóricas de Dietz, Ostrom e Stern (2003)DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. Struggle to Govern the Commons. Science, v. 302, n. 5652, p. 1907-1912, 2003., conforme apresenta-se no tópico de análise e discussão dos resultados.

A (IN)SEGURANÇA HÍDRICA NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO E A EMERGÊNCIA DA GOVERNANÇA ADAPTATIVA CLIMÁTICA

Não restam dúvidas que a temperatura média global tem sofrido um processo de aquecimento desde a revolução industrial e que as atividades humanas têm grande responsabilidade sobre esse aspecto a partir dos níveis crescentes de emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE) que alteram o balanço de radiação solar (IPCC, 2014IPCC - Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS 2014: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade - Resumo para Decisores. Genebra: IPCC, 2014. Disponível em: . Acesso em: 28 de abr. de 2020.). Isso corrobora com as alterações na dinâmica climática natural, constatando-se que “nas últimas duas décadas, a superfície está aquecendo quase 0,2°C por década, que é um ritmo 50 vezes mais acelerado do que seu o seu ciclo natural observado até então” (NOBRE et al., 2012NOBRE, C. A.; REID, J.; VEIGA, A. P. S. Fundamentos científicos das mudanças climáticas. São José dos Campos: Rede Clima/INPE, 2012. Disponível em: . Acesso em: 02 ago. 2021., p. 08).

Apesar da grande visibilidade do tema das mudanças climáticas e do seu aperfeiçoamento no campo das Ciências Climáticas, que tem produzido modelos climáticos cada vez mais robustos devido ao alto grau de complexidade envolvida nas questões relacionadas às mudanças climáticas, ainda há um universo de incertezas em torno, sobretudo, das formas diversas dos impactos climáticos e sua magnitude, tanto temporal quanto espacial (KNUTTI et al., 2010KNUTTI, R. et al. Challenges in combining projections from multiple climate models. Journal of Climate, v. 23, n. 10, p. 2739-2758, 2010.).

Ainda assim, algumas evidências demonstram que muito provavelmente a elevação na temperatura e as alterações no regime de chuvas, por exemplo, poderão induzir a mudanças na frequência, na intensidade, na dimensão espacial e na duração de eventos climáticos, resultando em extremos sem precedentes, com efeitos adversos em diversos sistemas, em especial, no que tange aos recursos hídricos (WISE et al., 2014WISE, R. M. et al. Reconceptualising adaptation to climate change as part of pathways of change and response. Global Environmental Change, v.28, p.325-36, 2014.). Consequentemente, incrementam, promovem e expõem a vulnerabilidade, principalmente, das populações, alterando o funcionamento das sociedades e o bem-estar delas (VEYRET, 2013VEYRET, I. Os riscos: o homem como agressor e vítima do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto. 315p., 2013.).

Vale salientar que alguns sistemas (populações, territórios, setores) são mais vulneráveis, ou seja, apresentam uma condição interna de sensibilidades, seja do ponto de vista social, econômico ou ambiental, que influenciam ou aumentam a exposição e a suscetibilidade para sofrer impactos (KELLY; ADGER, 1999; VEYRET, 2013VEYRET, I. Os riscos: o homem como agressor e vítima do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto. 315p., 2013.). Nesse contexto, Marengo et al. (2017)MARENGO, J. A. et al. Características climáticas da seca de 2010 a 2016 na região semiárida do nordeste do Brasil. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 90, n. 2, p. 1678-2690, 2017. evidenciam que o semiárido brasileiro é um território vulnerável e altamente exposto aos impactos adversos das mudanças climáticas.

A região com clima semiárido que abrange os nove estados do Nordeste brasileiro e parte de Minas Gerais, com condições climáticas naturais de elevadas temperaturas, altos índices de evapotranspiração e uma curta quadra chuvosa, condicionam uma disponibilidade hídrica nula em boa parte do tempo (cursos d’água intermitentes) e grande variabilidade pluviométrica inter e intra-anual (ANA, 2019ANA - Agência Nacional de Águas. Plano Nacional de Segurança Hídrica. Brasília: ANA, 2019. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2021.), desencadeando diversos problemas socioeconômicos (SANTOS et al., 2010SANTOS, D. N. dos et al. Estudo de alguns cenários climáticos para o Nordeste do Brasil. Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental, v. 14, p. 492-500, 2010.). Esses aspectos somam-se às pressões pelo uso e a pela intensa degradação ambiental que se dá desde a época de colonização com atividades de intensa exploração dos recursos naturais (SALES, 2002SALES, M. C. L. Evolução dos estudos de desertificação no Nordeste brasileiro. Revista GEOUSP, Espaço e Tempo, São Paulo, n. 11, p. 115-126, 2002.), aumentando a vulnerabilidade da região aos possíveis impactos das mudanças climáticas (MARENGO et al., 2016MARENGO, J. A.; CUNHA, A. P.; ALVES, L. M. A seca de 2012-15 no semiárido do Nordeste do Brasil no contexto histórico. Climanálise, v. 3, n. 1, p. 1-6, 2016.).

As projeções de clima na região semiárida do Brasil indicam que o aumento gradual de temperatura média da terra acarretará mudanças nos padrões de chuva e, consequentemente, um decréscimo nas precipitações. Sendo assim, o aumento de 0,5ºC a 1,0ºC na temperatura média da terra até o final do século XXI significaria um decréscimo entre 10% a 20% da precipitação até 2040 (PBMC, 2013PBMC - Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Base Científica das Mudanças Climáticas. Contribuição do Grupo de Trabalho 1 do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas ao Primeiro Relatório de Avaliação Nacional sobre Mudanças Climáticas. Organização de T. Ambrizzi&M. Araujo. Rio de Janeiro, Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.; VIEIRA et al., 2015VIEIRA, R. M. S. P. et al. Identifying areas susceptible to desertification in the Brazilian northeast. Solid Earth, v. 6, n. 1, p. 347-360, 2015.; MARENGO et al., 2017MARENGO, J. A. et al. Características climáticas da seca de 2010 a 2016 na região semiárida do nordeste do Brasil. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 90, n. 2, p. 1678-2690, 2017.). As condições mais quentes agravam o déficit hídrico regional e podem desencadear processos avançados de aridez e desertificação, afetando de forma negativa a garantia da segurança hídrica, alimentar e energética (EAKIN; LEMOS; NELSON, 2014EAKIN, H.C.; LEMOS, M. C., NELSON, D. R. Differentiating capacities as a means to sustainable climate change adaptation. Global Environmental Change, v. 27, p. 1-8, 2014.).

Os problemas e desafios à segurança hídrica abrangem todo território nacional, porém, a região semiárida merece atenção especial, pois conta com menos de 5% das reservas de água do país, sendo a maior parte subterrânea, com alto teor de salinidade e imprópria para consumo (BRASIL, 2016BRASIL - Ministério do Meio Ambiente. Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima. Brasília: MMA, 2016. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2021.). É possível afirmar que os avanços foram consideráveis para a superação do déficit hídrico e a minimização dos impactos das secas recorrentes relatadas desde o século XVI, que em outrora geraram perdas humanas, intensa migração e forte impacto no desenvolvimento da região.

Nas últimas décadas, um conjunto de políticas públicas permitiu a permanência e convivência das populações com o clima semiárido, principalmente, pela ampliação da oferta de água com infraestrutura pública de açudes de grande e médio porte, e a implementação do programa de cisternas de placa para populações rurais difusas. Contudo, algumas ações emergenciais como o abastecimento por carros-pipa, a entrega de alimentos e os auxílios emergenciais ainda são necessários atualmente (LIMA; MAGALHÃES, 2019LIMA, J. R.; MAGALHÃES, A. R. Secas no Nordeste: registros históricos das catástrofes econômicas e humanas do século 16 ao século 21. Parcerias Estratégicas, v. 23, n. 46, p. 191-212, 2019.).

A segurança hídrica é condicionada pela oferta e demanda de água, sendo totalmente dependente da dinâmica climática e da gestão dos recursos disponível. É nesse sentido que os desafios à segurança hídrica se evidenciam e demonstram a suscetibilidade dos sistemas hídricos aos extremos climáticos de seca na região semiárida brasileira, demostrando a necessidade de uma gestão de recursos hídricos cada vez mais robusta para que todas as pessoas tenham acesso à água potável suficiente, a um custo acessível e que garanta sua produção.

No contexto das mudanças climáticas em curso, os velhos desafios ganham novos agravantes e a gestão dos recursos hídricos torna-se cada vez mais complexa em um cenário de profundas incertezas. Sendo assim, as instituições reguladoras precisam entender os modos de variação do clima, e a oferta e a demanda por água, para que, assim, compreendam os riscos hidrológicos e os riscos socioeconômicos envolvidos, podendo tomar iniciativas mais assertivas frente à problemática em questão. Consequentemente, facilitará a incorporação dos riscos das mudanças climáticas e a definição dos mecanismos para uma governança adaptativa dos recursos hídricos e garantir a segurança hídrica no médio e longo prazo (RAADGEVER et al., 2008RAADGEVER, G. Tom et al. Assessing management regimes in transboundary river basins: do they support adaptive management?. Ecology and Society, v. 13, n. 1, 2008.).

Apesar de todo avanço nas ciências e na promoção de conhecimento sobre o clima e a água, ainda existem muitas lacunas que precisam ser superadas, tendo em vista que, no contexto das mudanças climáticas, as experiências passadas já não são suficientes para subsidiar a gestão hídrica pensando no futuro. É necessário considerar também que os recursos hídricos não requerem apenas conhecimento técnico, mas um diálogo entre as ciências naturais e humanas, para dar conta de uma demanda emergente, que é a governança dos recursos hídricos (PUGA, 2018PUGA, B. P. Governança dos recursos hídricos e eventos climáticos extremos: a crise hídrica de São Paulo. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, 2018.).

Ainda assim, a governança hídrica não é uma questão simples, especialmente em regiões onde há uma baixa disponibilidade hídrica e uma grande demanda, como é o caso do semiárido brasileiro, tornando-se ainda mais complexa com a imposição de novos riscos pelas mudanças climáticas, dessa forma, é necessário novos conhecimentos e novas abordagens para responder e se adaptar às mudanças climáticas. De modo geral, a adaptação se tornou uma emergência para dar respostas aos impactos das mudanças climáticas em curso, sendo necessária a diminuição das vulnerabilidades das populações, setores e ecossistemas.

A adaptação, na perspectiva das mudanças climáticas, está relacionada ao processo de ajuste de sistemas naturais e humanos ao comportamento do clima no presente e no futuro, configurando-se em uma medida antecipatória e preventiva para responder aos riscos (IPCC, 2014IPCC - Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS 2014: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade - Resumo para Decisores. Genebra: IPCC, 2014. Disponível em: . Acesso em: 28 de abr. de 2020.). Esse é um processo contínuo no qual o conhecimento, a experiência e as estruturas institucionais se juntam para buscar opções e determinar ações, envolvendo, portanto, um alto grau de complexidade, em que a tomada de decisões deve ser feita através de diferentes escalas e diferentes atores (ADGER; VINCENT, 2005ADGER, W. N.; VINCENT, K. Uncertainty in adaptive capacity. C. R. Geoscience, v. 337, p.399-410, 2005.).

Nesse sentido, observa-se um crescente conjunto de trabalhos sobre as necessidades e requisitos para uma governança adaptativa (CLARVIS; ALLAN; HANNAH, 2014CLARVIS, M. H.; ALLAN, A.; HANNAH, D. M. Water, resilience and the law: from general concepts and governance design principles to actionable mechanisms. Environmental Science & Policy, v. 43, p. 98-110, 2014.), enfoque conceitual a ser dado com este artigo. Devido à grande inércia dos Estados para implementar ações efetivas para responder aos riscos das mudanças climáticas, esses esforços buscam formas inovadoras de governança para articular propostas para seus impactos em diversos setores. Nesse sentido, é necessário reconhecer que as incertezas científicas quanto ao futuro não devem inibir a adaptação (ADGER; VICENT, 2005). O Estado precisa compreender que, no contexto das mudanças climáticas, suas escolhas devem ser tomadas em meio às incertezas (DOVERS, 2009DOVERS, S. Normalizing adaptation. Global Environmental Change, v. 19, n. 1, p. 4-6, 2009.).

Assim sendo, a governança adaptativa surge como uma estratégia de planejamento em diferentes cenários de impactos que, diante deles, é necessário estabelecer um panorama de alternativas adaptativas (DESSAI et al., 2004DESSAI, S. et al. Defining and experiencing dangerous climate change. Climatic change, v. 64, n. 1, p. 11-25, 2004.). Também enfatiza a flexibilidade em permitir interferência em políticas públicas ou ações de adaptação ao longo de todo o processo de implementação, inclusive alterá-las quando conveniente (LINDOSO, 2015LINDOSO, D. P. Adaptação à mudança climática: ciência, política e desenvolvimento sustentável. ClimaCom Cultura Científica, v. 2, p. 1-21, 2015.). Portanto, a boa governança adaptativa parte do pressuposto que a adaptação envolve ajustes coordenados em diferentes escalas espaciais, níveis de tomada de decisão e horizontes temporais (ADGER, 2006ADGER, W. N. Vulnerability. Global Environmental Change, v.16, n.3, p.268-281, 2006.).

Para Dietz, Ostrom e Stern (2003)DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. Struggle to Govern the Commons. Science, v. 302, n. 5652, p. 1907-1912, 2003. e Folke et al. (2005)FOLKE, C. et al. Adaptive Governance of Social-Ecological Systems. Annual Review of Environment and Resources, v. 30, n. 1, p. 441-473, 2005., a governança adaptativa envolve um processo dinâmico, que considera a aprendizagem social, contribuição de diferentes atores para criação e implementação de políticas e estratégias de gerenciamento dos recursos. Para uma boa governança adaptativa, Dietz, Ostrom e Stern (2003)DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. Struggle to Govern the Commons. Science, v. 302, n. 5652, p. 1907-1912, 2003., por exemplo, salientam que devem ser considerados os seguintes aspectos: aporte de informações adequadas; instituições participativas; gestão de conflitos; cumprimento de regras; disponibilidade de infraestrutura física, social, institucional e tecnológica; e flexibilidade institucional, associada à capacidade de aprender e repensar regras e normas de acordo com as mudanças ambientais, conforme será apresentado na análise e discussão dos resultados em sequência.

GOVERNANÇA ADAPTATIVA DOS RECURSOS HÍDRICOS ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO CONTEXTO DO RN

O estado do RN está enquadrado na região hidrográfica Atlântico Nordeste Oriental, que possui a menor disponibilidade hídrica do país (ANA, 2017ANA - Agência Nacional de Águas. Região Hidrográfica Atlântico Nordeste Oriental. Brasília: ANA, 2017. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2019.), para superar esse déficit foi intalada uma grande infraestrutrura hídrica para capturar a água durante o curto período chuvoso, armazenar e distribuir em todo o estado. No entanto, o abastecimento público ainda passa por momentos de fragilidades nos períodos com ocorrência das grandes secas, com a capacidade de abastecimento sendo excedida e os municípios vivenciando colapsos hídricos e restrições de acesso à água para consumo, sobretudo, para suas atividades produtivas familiares.

Durante o último período de seca, entre 2012-2017, o volume dos reservatórios ficou num nível muito baixo e, apesar de os anos de 2018 e 2019 terem sido considerados chuvosos, os reservatórios não recuperaram totalmente suas capacidades e alguns municípios continuaram sem o abastecimento normalizado. Em 2020, com as chuvas também na média, muitos reservatórios recuperaram sua capacidade.

Nos períodos em que os municípios enfrentam colapso hídrico, geralmente a medida adotada é declarar emergência por causa da seca, para que, assim, consigam recursos e mais atenção para ações do Estado. Uma das estratégias adotadas para prover água para os municípios em colapso e amenizar os efeitos da seca é o uso de carros-pipa para transportar água. Em 2014, dois anos após o início da seca, 159 declaram emergência. Já em 2019, mesmo com as médias de chuva normalizando, foram 133 municípios em situação de emergência reconhecidos pela Defesa Civil nacional, com prazo de vigência dessa condição até março de 2020.

Toda essa problemática demonstra o quão o RN requer uma gestão dos recursos hídricos mais preparada, tendo em vista a complexidade e os desafios para atender as necessidades do abastecimento humano e, assim, assegurar a qualidade de vida e o desenvolvimento socioeconômico da região. Em estudo realizado por Trolei e Silva (2018)TROLEI, A. L.; SILVA, B. L. da. Os recursos hídricos do Rio Grande do Norte: uma análise da vulnerabilidade territorial ao colapso no abastecimento de água. Confins - Revista franco-brasilera de geografia, n. 34, 2018., indica-se que a maioria dos municípios, principalmente do território semiárido, apresenta alta criticidade ao colapso hídrico, bem como demanda uma infraestrutura hídrica mais eficiente e uma gestão integrada dos recursos hídricos. Desde 2000, no Fórum Mundial da Água, foi declarado que a crise da água é muito mais um problema de gestão do que a própria limitação do recurso.

No âmbito da gestão de recursos hídricos do RN, o órgão responsável é a SEMARH, criada pela Lei Complementar n° 163, de 25 de Fevereiro de 1996, com a atribuição de planejar, coordenar e executar as ações públicas estaduais que contemplem a oferta e a gestão dos recursos hídricos e do meio ambiente no estado.

A SEMARH conduz a Política Estadual de Recursos Hídricos, Lei Estadual nº 6.908/1996; e o Sistema Integrado de Gestão dos Recursos Hídricos (SIGERH), que é o marco regulatório principal de gestão de águas. Os instrumentos previstos na lei são: o Plano Estadual de Recursos Hídricos, o Fundo Estadual de Recursos Hídricos, o sistema de informações, a outorga do direito de uso e o licenciamento de obras hídricas, o enquadramento dos corpos de água e a cobrança pelo uso da água.

Como relata Tundisi (2013)TUNDISI, J. G. Governança da água. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 20, n. 2, p. 222-235, 2013., observou-se que nas últimas décadas houve um avanço no arcabouço legal e institucional na escala nacional, tornando a gestão das águas mais eficiente; mas que ainda não se encontra no nível ideal de governança, ou seja, em nível organizacional, constitucional e operacional para garantir a segurança hídrica.

Nesse contexto, uma nova ideia de governança emerge da necessidade das instituições e das políticas adotarem novas abordagens para lidar com novos problemas e contextos de mudanças, que convenciona-se aqui chamar de governança adaptativa. É nesse viés que esta análise baseia-se nos requisitos de uma governança adaptativa, com base no estudo de Dietz, Ostrom e Stern (2003)DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. Struggle to Govern the Commons. Science, v. 302, n. 5652, p. 1907-1912, 2003. e que são apresentados na tabela 1.

Tabela 1
Relação entre a governança adaptativa e a gestão dos recursos hídricos no RN. Fonte: adaptação dos autores a partir de Dietz, Ostrom e Stern (2003)DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. Struggle to Govern the Commons. Science, v. 302, n. 5652, p. 1907-1912, 2003..

Um dos papéis da ciência na adaptação às mudanças do clima está na geração de conhecimento e informações, por isso, a informação e conhecimento sistematizado, acessível e confiável é um requisito importante, pois, mesmo diante da complexidade e das incertezas, deve-se buscar identificar os riscos para os sistemas e entender as vulnerabilidades dos sistemas afetados, para que, assim, seja possível definir estratégias de adaptação (LEBEL et al., 2006LEBEL, L. et al. Governance and the capacity to manage resilience in regional social-ecological systems. Ecology and Society, v. 11, n. 1, 2006.; MARTINS; FERREIRA, 2012MARTINS, R. D’A.; FERREIRA, L. da C. Vulnerabilidade, adaptação e risco no contexto das mudanças climáticas. Mercator (Fortaleza), v. 11, n. 26, p. 237-251, 2012.; DI GIULIO et al., 2019DI GIULIO, G. M. et al. Bridging the gap between will and action on climate change adaptation in large cities in Brazil. Regional Environmental Change, v. 19, n. 8, p. 2491-2502, 2019.).

No âmbito da gestão do RN, foi possível identificar que há carências no monitoramento, na sistematização de dados, nas previsões de curto prazo e médio prazo, bem como na identificação e espacialização dos potenciais impactos das mudanças climáticas no território.

O conhecimento e as informações disponíveis atendem em certa medida as necessidades de curto prazo, mas não traçam um panorama que possibilite saber, com propriedade, se haverá água suficiente para atendimento das demandas futuras ou em caso de extremos climáticos.

Outro aspecto importante para a governança adaptativa é a gestão de riscos e conflitos. Nesse sentido, pontua-se que, considerando que as mudanças climáticas aumentam os riscos de desastres naturais, é urgente que se tenha a articulação para uma gestão antecipatória, de modo a evitar impactos e conflitos sobre os diversos usos da água.

A gestão de riscos tem forte relação com o fornecimento de conhecimento, das previsões meteorológicas e climáticas, da identificação dos sistemas vulneráveis e de medidas preventivas de desatres.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a gestão de riscos no estado do RN está mais preparada para os riscos das secas do que das chuvas intensas devido ao maior aprendizado pela recorrência das secas. No entanto, não há a antecipação de riscos e as ações ocorrem, sobretudo, de forma emergencial após o desastre.

A gestão de conflitos tem tomado novas configurações, a partir das instâncias participativas criadas no estado, com evidência para os comitês de bacia hidrográfica; mas também para os conselhos estaduais como o da Defesa Civil, onde são tomadas decisões para assegurar água em quantidade e qualidade para todas as pessoas e atividades. Apesar dos avanços devido à baixa disponibilidade hídrica, há, em algumas regiões, conflitos entre pequenos e grandes produtores, que podem se acentuar em cenários climáticos que ameaçam a capacidade dos mananciais e ainda mais a disponibilidade hídrica.

Outra variável é o cumprimento de regras, que é totalmente necessário para garantir o acesso igualitário à água, assim como evitar os conflitos e a falta de manejo dos recursos. O RN dispõe de um arcabouço legal avançado e moderno, mas o cumprimento ainda é desafiador, tanto por parte da gestão na implementação dos instrumentos, quanto na fiscalização dos usuários que violam as normas de uso.

Dos instrumentos previstos na legislação de recursos hídricos, seja na escala federal ou estadual, ainda não foi implementado no estado do RN a cobrança pelo uso das águas e o enquadramento dos corpos d’água em classe de uso. Ainda, o sistema de informações de recursos hídricos deve ser posto em prática. A fiscalização dos usos e as outorgas e licenças carecem ainda de mais atenção devido à intensa perfuração de poços e à captação ilegal.

A governança adaptativa só é possível ainda se houver a presença de infraestrutura física, tecnológica e institucional, a qual seja capaz lidar com a complexidade da gestão de recursos hídricos. A infraestrutura e as tecnologias devem prover o aumento da eficiência nos diferentes usos da água, promovendo o aumento da captação, o aproveitamento, o armazenamento e a redução de perdas da água de chuva. Nesse sentido, há uma grande variedade de tecnologias, técnicas, metodologias e práticas já existentes, que podem ser replicadas, contanto que sejam simples, sustentáveis e adaptadas ao contexto em que vai ser implementada.

No contexto em análise, o RN dispõe de uma rede de captação, armazenamento e distribuição muito ampla; mas que, mesmo assim, ainda não é suficiente para garantir a segurança hídrica em períodos com secas severas, como vivenciado nos últimos anos. No âmbito do desenvolvimento de infraestrutura hídrica para ampliar a oferta e distribuição de água no estado, por exemplo, é de suma importância evidenciar grandes projetos que estão em fase de planejamento e implantação, como é o caso da transposição das águas do Rio São Francisco e o Projeto Seridó.

Esses projetos visam a criação de soluções conjuntas, em que a construção da barragem de Oiticica, na região Seridó, irá receber as águas do Rio São Francisco pelo Rio Piancó-Piranhas-Açu. Serão construídas também uma série de equipamentos, como canais e adutoras, para fazer a distribuição de água para os municípios. Já no âmbito institucional, as lacunas envolvem a falta de recursos financeiros e capital humano para execução da política de gestão de recursos hídricos instituída.

Por fim, a capacidade de aprendizado e adaptação, que representa o principal requisito para possibilitar a governança adaptativa e que está intrisincamente relacionada com os demais requisitos para uma boa governança adaptativa segundo Dietz, Ostrom e Stern (2003)DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. Struggle to Govern the Commons. Science, v. 302, n. 5652, p. 1907-1912, 2003.. Primeiramente, tem-se a percepção do risco, que é uma condição para incorporação dos riscos das mudanças climáticas nas agendas político-governamentais, mais especificamente, na gestão dos recursos hídricos (KERN; ALBER, 2008KERN, K.; ALBER, G. Governing climate change in cities: modes of urban climate governance in multi-level systems. In: The international conference on Competitive Cities and Climate Change, Milan, Italy, 9-10 October, 2009. 2009. p. 171-196.). Não há adaptação a um determinado fenômeno ou evento se eles não são entendidos como um risco (ADGER; VICENT, 2005).

Dias e Pessoa (2020)DIAS, E. M. S.; PESSOA, Z. S. Percepções sobre os riscos das mudanças climáticas no contexto da região semiárida do Rio Grande do Norte, Brasil. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 55, 2020. concluíram que atores intitucionais e sociais com influência na tomada de decisões sobre os recursos hídricos no RN percebem os riscos impostos pelas mudanças climáticas sobre os recursos hídricos, indicando a possibilidade do agravamento de ameaças já existentes e observados por eles, bem como que os impactos das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos expõem diversos outros sistemas aos riscos climáticos. No entanto, de acordo com os autores, esses riscos ainda não são um fator que orienta as decisões na gestão de recursos hídricos, pois os mesmos não vêm sendo internalizados na agenda pública como uma pauta importante.

O direcionamento para estratégias de adaptação requer que as mudanças climáticas sejam uma prioridade política em todos os setores, de forma integrada e que construa habilidades para identificar, reconhecer, avaliar, antecipar e responder aos riscos climáticos. No território do RN, os sites oficiais do governo noticiaram que os primeiros passos foram dados com a criação de uma comissão para discutir a criação de uma Política Estadual de Mudanças Climáticas. A instituição dessa política irá marcar a entrada das mudanças climáticas na agenda político-governamental do estado.

Face ao exposto, para uma boa governança adaptativa, requer-se um processo de aprendizagem e adaptação, ou seja, de avaliação e melhoria contínua (PAGAN; CRASE, 2004PAGAN, P.; CRASE, L. Does adaptive management deliver in the Australian water sector. In: Prepared for the 48th Annual Conference of the Australian Agricultural and Resource Economics Society, Melbourne, Victoria. 2004. p. 11-13.). Esse processo envolve: (1) a avaliação integrada dos problemas atuais e a busca por soluções de forma participativa entre os setores e atores interessados; (2) o estabelecimento de metas e formulação depolíticas; e (3) a implementação para testar hipóteses por meio de monitoramento sistemático e avaliação dos resultados da política, incluindo as mudanças (RAADGEVER et al., 2008RAADGEVER, G. Tom et al. Assessing management regimes in transboundary river basins: do they support adaptive management?. Ecology and Society, v. 13, n. 1, 2008.).

CONCLUSÃO

No contexto da gestão de recursos hídricos voltada para a região semiárida do RN, pode-se dizer que, ao longo do tempo, criaram-se mecanismos de adaptação ao clima semiárido, o que convencionou-se chamar de “convivência com o semiárido”. Apesar disso, ainda é desafiador conviver com a variabilidade natural e os extremos do clima semiárido. Dessa forma, um primeiro passo para a adaptação seria enfrentar os problemas atuais de forma mais robusta, de maneira a aumentar a capacidade da gestão em lidar com possíveis aumentos dos extremos em consequência das mudanças climáticas (HALLEGATTE, 2009HALLEGATTE, S. Strategies to adapt to an uncertain climate change. Global Environmental Change, v. 19, n. 2, p. 240-247, 2009; BRASIL, 2016BRASIL - Ministério do Meio Ambiente. Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima. Brasília: MMA, 2016. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2021.). Contudo, a adaptação às mudanças climáticas é outra questão que envolve novos riscos, uma maior complexidade e incertezas (BURTON, 2010BURTON, I. Addressing Strategic and Integration Challenges of Climate Change Adaptation. In: STERN, P. C.; KASPERSON, R.E. (Eds.) Facilitating Climate Change Responses: A Report of Two Workshops on Insights from the social and Behavioral Sciences. Washington: The NationalAcademy Press. 2010.).

Nesse sentido, esta análise possibilitou a reflexão dos inúmeros desafios que ainda precisam ser superados para garantir a segurança hídrica em um contexto de mudanças climáticas e ameaças sobre a região semiárida. No âmbito do RN, foi possível observar que a gestão, apesar dos avanços, não atende aos requisitos importantes de uma boa governança adaptativa. Um aspecto importante a se considerar nesse contexto é a necessidade da integração entre as políticas setoriais (federais, estaduais e municipais) de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, gestão de resíduos, saúde, meio ambiente, infraestrutura, ciência e tecnologia, entre outras que são evidentemente fundamentais para garantir a segurança hídrica e a adaptação climática.

Sendo assim, afirma-se que o objetivo proposto na introdução foi alcançado por este artigo, na medida em que se consegue realizar a análise da gestão de recursos hídricos do RN de modo a compreender se atende às variáveis da governança adaptativa, conforme estabelecido na literatura científica. Empiricamente, constatou-se que a gestão de recursos hídricos do RN ainda não atende aos requisitos de uma goverança adaptativa robusta e capaz de operar respostas aos climáticos, bem como garantir a segurança hídrica do estado.

Esta pesquisa é de suma importância acadêmica, pois contribui para o debate científico, em especial nacional, sobre a governança adaptativa climática para os recursos hídricos, ao investigar o caso da região semiárida do RN. O artigo é também um alerta para a gestão dos recursos hídricos do RN, ao assumir que este território não incorpora em sua gestão uma governança adaptativa climática. Pontua-se ainda que este estudo é socialmente importante, pois as deficiências frente a essa governança adaptativa no RN têm reflexos diretos sobre as populações, em especial aquelas com baixo poder aquisitivo.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho recebeu apoio financeiro da CAPES do autor (a). Recebeu também apoio financeiro do Projeto “Gestão de riscos, vulnerabilidades socioambientais, sustentabilidade e capacidade adaptativa climática em cidades do semiárido do Nordeste” (Processo nº 441883/2020-6/CNPq/MCTI) sob coordenação do autor (a ):b, e dos quais os demais autores são alunos pesquisadores (a e c).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2021
  • Aceito
    01 Nov 2022
  • Publicado
    15 Dez 2022
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