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Reforma do setor de segurança no Brasil e a atualização da Doutrina de Segurança Nacional: O caso da intervenção federal no Rio de Janeiro (2018)

Resumos

Este artigo analisa a agenda da Reforma do Setor de Segurança (RSS) em sua adaptação às condições brasileiras, mormente tendentes ao autoritarismo. Persegue-se a hipótese de que, no Brasil, há uma incorporação da agenda da RSS com o fim de legitimar o incremento de intervenções militares no domínio social, em uma atualização dos procedimentos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Por meio de pesquisa em fonte primária e estudo de caso, analisa-se a intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018, planejada e desempenhada pelas Forças Armadas após uma série histórica de engajamento militar em operações de pacificação e Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Palavras-chave:
Reforma do Setor de Segurança; Doutrina de Segurança Nacional; relações civil-militares; intervenção federal; Garantia da Lei e da Ordem


Security Sector Reform in Brazil and the Updating of the National Security Doctrine: The Case of the Federal Intervention in Rio de Janeiro (2018) analyzes the Security Sector Reform (SSR) agenda in its adaptation to Brazilian conditions that pend towards authoritarianism. We defend the hypothesis that, in Brazil, the RSS agenda is processed to legitimize the increase of military interventions in the social domain, updating procedures from the National Security Doctrine. Through primary source research and a case study, we analyze the federal intervention in Rio de Janeiro in 2018, planned and carried out by the Armed Forces after a historical series of military engagement in pacification and Law and Order Guarantee operations.

Keywords:
Security Sector Reform; National Security Doctrine; civil-military relations; federal intervention; Law and Order Guarantee


Introdução

Oesforço analítico para a compreensão do papel militar não é recente. Depois da Segunda Guerra Mundial, muito se discutiu sobre a guerra revolucionária e o perfil de ação policial a ser desempenhado pelas forças armadas. Durante e depois da Guerra Fria, formas de conflito diferentes daqueles caracterizados por Estados que se enfrentam com seus exércitos nacionais prevaleceram, sendo mesmo possível afirmar que esses são, hoje, um fenômeno pouco provável de ocorrer.

Forças armadas atendem à demanda de segurança estatal. A percepção dessa segurança se transformou ao longo do tempo e, com ela, a atividade militar. Bruneau e Matei (2013)BRUNEAU, Thomas; MATEI, Florinda (Orgs.). The Routledge Handbook of Civil-Military Relations. Londres: Routledge, 2013. discutem, a partir do debate geral sobre relações civil-militares, o conceito de setor de segurança - todas as agências estatais que trabalham, direta ou indiretamente, na provisão de segurança, agora percebida como não mais restrita ao campo militar -, visando compreender a atuação militar em espectro amplo e associada a outras instituições envolvidas na provisão de segurança.

Nesse ínterim, organizações internacionais vêm construindo e propagando uma agenda voltada para a Reforma do Setor de Segurança (RSS). Em linhas gerais, essa reforma visa melhorar a efetividade das ações desempenhadas pelo setor de segurança e enquadrá-las em procedimentos democráticos e liberais, partindo do entendimento de que ambientes de estabilidade política e econômica favorecem o desenvolvimento e de que segurança e desenvolvimento se reforçam mutuamente. Essa agenda começou a ser gestada na década de 1990 e adquiriu mais visibilidade no conjunto de esforços de contraterrorismo após os atentados de 2001.

O conceito do setor de segurança e a agenda de sua reforma dão margem para que sua interpretação seja acomodada aos respectivos contextos nacionais de aplicação. O presente artigo discute a RSS em sua interpretação no contexto social e político do Brasil. Levanta-se a hipótese de que tal interpretação, em contato com a tradição autoritária brasileira, aponta para a atualização da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), traduzindo-a no formato de intervenções como as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), pacificação e intervenção federal.

A intervenção federal no Rio de Janeiro, realizada em 2018, será analisada como estudo de caso demonstrativo da atualização da DSN - que incorpora elementos da RSS. Tratou-se de uma operação deflagrada sob a justificativa de promover uma reforma nas forças de segurança pública a fim de torná-las mais efetivas no combate às ameaças contemporâneas que afetam a população e o Estado, bem como na manutenção da ordem pública. A intervenção foi planejada e conduzida majoritariamente pelas Forças Armadas do Brasil, que assumiram o controle da segurança pública no estado do Rio de Janeiro - além de já estarem envolvidas em uma operação de GLO em curso naquele mesmo ano. Esse protagonismo militar no planejamento e execução de ações voltadas para a manutenção da ordem recupera, em larga escala, o conteúdo da DSN.

A escolha metodológica do estudo de caso pretende alcançar dois objetivos: alcançar maior conhecimento sobre um evento singular - a intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018 -e entender e explicar, a partir dele, um fenômeno mais geral, qual seja, a atualização da DSN por meio dos procedimentos da RSS (BECKER, 1999BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1999., pp. 117-118). O estudo de caso não permite tratamento estatístico no sentido da produção de grandes séries de dados a partir de amostragens exaustivas de um grande número de agentes envolvidos em um determinado fenômeno. No entanto, permite construir um tipo ideal racional e operacional para aferição de um fenômeno social a partir de seu contexto, com potencial para extrapolação e verificação da continuidade de uma tendência. Não se trata, certamente, de sustentar a hipótese de trabalho pela via do controle experimental, visto que a intervenção federal aqui analisada não constitui evento de laboratório passível de repetição controlada. Contudo, é possível trabalhar na hipótese, a partir da metodologia escolhida, por verificação não experimental, observando casos em que as condições do fenômeno ocorrem e verificando se os resultados esperados de fato são observados (HEMPEL, 1974HEMPEL, Carl G. Filosofia da ciência natural. Rio de Janeiro: Zahar, 1974., p. 33). No caso em questão, trata-se de verificar se na intervenção federal no Rio de Janeiro ocorreram resultados concernentes às políticas e práticas anteriormente subsumidas na DSN.

Os documentos sob maior escrutínio serão o Plano estratégico da intervenção federal (2018) e o Relatório de gestão da intervenção federal (2019). A opção pela pesquisa em fonte primária apresenta uma grande vantagem e dois grandes riscos. A vantagem é realizar o estudo a partir da manifestação oficial do agente interventor, de suas metas principais, seu entendimento político da situação social e suas pretensões de longo prazo em termos do legado da intervenção para a segurança pública. O primeiro grande risco é o de se assumir a visão oficial como a única, ou ainda, assumir o risco de assumir a visão oficial como a “correta”. O segundo é o de escolher os documentos que atendam aos interesses da pesquisa e forçosamente confirmem a hipótese de trabalho. Pretende-se contornar esses riscos cotejando a fonte primária com a literatura científica sobre a RSS e as relações políticas entre civis e militares, bem como compreendendo a intervenção federal como a manifestação renovada de políticas e práticas já conhecidas do Brasil, consolidadas na DSN (assim sendo, a hipótese de trabalho não é construída ad hoc).

A hipótese é então trabalhada por meio de observação e análise de estudo de caso. Consegue-se, assim, “identificar condições antecedentes, verificar a importância dessas condições antecedentes e explicar casos de importância intrínseca”1 1 No original: “identificar condiciones antecedentes, verificar la importância de estas condiciones antecedentes y explicar casos de importância intrínseca”. (VAN EVERA, 2002VAN EVERA, Stephen. Guía para estudiantes de ciencia política. Barcelona: Gedisa, 2002., p. 65). Em se tratando do presente artigo: identificar as condições antecedentes à intervenção federal (condições políticas do Brasil/DSN) e verificar a importância da inércia histórica e política da DSN na explicação do caso de importância intrínseca em questão.

Testando a hipótese, a análise dos documentos oficiais da intervenção federal no Rio de Janeiro busca evidenciar que há uma incorporação, por parte das Forças Armadas, de elementos da RSS, como a preocupação com ameaças multidimensionais que afetam as populações internamente, a mobilização e adequação de um setor de segurança holístico para lidar com essas questões dentro dos procedimentos democráticos, a vinculação dos parâmetros de eficácia e eficiência à provisão de segurança e a associação entre segurança e desenvolvimento. Por meio desses elementos, é possível visualizar como as Forças Armadas atualizam as preocupações centrais da DSN no contexto atual.

O artigo se divide em três seções, além desta introdução e da conclusão. Em um primeiro momento, apresenta-se brevemente a tradição autoritária brasileira e a da DSN, com o fito de compreender a prática nacional de traduzir segurança em manutenção da ordem interna. Em seguida, discute-se o conceito de setor de segurança e a formação da agenda pela RSS a partir de três vetores internacionais: a Organização pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Centro de Controle Democrático das Forças Armadas (CCDFA). Indica-se, nessa seção, pontos de aproximação e distanciamento do conteúdo da reforma com a DSN. Por fim, o artigo contextualiza brevemente a intervenção federal no Rio de Janeiro e explora a documentação oficial relativa a essa operação como fonte primária, destacando o Plano estratégico da intervenção federal (2018) e o Relatório de gestão (2019). A escolha desses documentos entende que ambos indicam a atualização da DSN para o contexto contemporâneo.

Tradição autoritária brasileira e Doutrina de Segurança Nacional

A discussão sobre a DSN e o pensamento autoritário que a permeia permite compreender o ambiente social e político em que a agenda da RSS é acomodada. Destaca-se, nesta seção, a peculiaridade da formação histórica brasileira e o papel aqui desempenhado pelas Forças Armadas, uma instituição que se pretende civilizatória, monopolizando o civismo, o interesse público e, pelo controle das armas, elaborando um projeto nacional conservador - que desconfia do liberalismo e enxerga o homem brasileiro como despreparado, irracional, rural e desinteressado da coisa pública.

Uma doutrina pode ser definida como um “conjunto de princípios ordenados entre si em função de algum aprendizado pretendido” (MENDONÇA e COSTA, 2018MENDONÇA, Thaiane; COSTA, Frederico. Exército brasileiro e o setor de segurança: Uma atualização da Doutrina de Segurança Nacional. In: AGUILAR, Sérgio Luiz Cruz; ALONSO, Isabela Zorat (Orgs.). Os desafios da política externa e segurança no século XXI. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2018. p. 167-190., p.182). A DSN é o conjunto de princípios que organiza a compreensão do que a comunidade política entende como ameaça. No Brasil, ela foi formulada no século XX e preocupava-se, essencialmente, com a manutenção da ordem interna. Ela se constrói a partir de elementos diversos, que podem ser explicados, sem prejuízo de outras interpretações, pela persistência do pensamento autoritário nacional, pela profissionalização das Forças Armadas a partir de 1930 e pela influência externa no contexto da Guerra Fria e da doutrina insurrecional francesa.

Recuperando alguns expoentes do pensamento social brasileiro como Oliveira Vianna (1939)OLIVEIRA VIANNA, Francisco José. O idealismo da Constituição. São Paulo: Editora Nacional: 1939., Raymundo Faoro (2001)FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: O Globo, 2001. e Florestan Fernandes (1976)FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976., é possível entender que a nossa formação parte da herança colonial, escravocrata e latifundiária2 2 Não se ignoram os acréscimos e críticas a esses autores. No entanto, para os efeitos deste artigo, seu recurso é privilegiado, por ocuparem o lugar de clássicos na interpretação da formação histórica e sociológica do Brasil. . O pano de fundo desses autores, tão diferentes entre si, é a verificação do perfil anticívico, antiassociativo e autoritário do homem brasileiro, propenso ao isolamento e apegado a modos de vida oligárquicos.

Vianna (1939) argumentava que era preciso organizar a democracia por meio da ação centralizadora do Estado, corrigindo os erros gerados pela importação da democracia liberal e do sufrágio. Na percepção do autor, a adoção desse sistema no solo brasileiro teria permitido a eleição de homens desinteressados da vida pública, preocupados apenas com a perpetuação de seus clãs. Com a participação popular coordenada pelo Estado, seria possível selecionar uma elite culta, responsável pela interpretação dos interesses populares e capaz de conduzir o país ao progresso.

Faoro (2001)FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: O Globo, 2001. e Fernandes (1976)FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976., cada um segundo sua perspectiva teórica, weberiana e marxista, respectivamente, convergem no que se refere à debilidade cívica da formação do brasileiro. Faoro argumenta que o traço patrimonial - herança de Portugal - não pôde ser superado nem pela mudança de governos, nem pela transformação do sistema econômico para o capitalismo. Pelo contrário, o patrimonialismo se acoplou na burocracia pública, que, em vez de exprimir formalmente a dominação do tipo racional-legal, se transformou em uma técnica de autoperpetuação das elites, cristalizando um estamento burocrático que tem como objetivo a manutenção da ordem vigente. O papel da instituição militar é essencial nesse processo, na medida em que faz parte do estamento burocrático e, por isso, também busca garantir o status quo por meio do uso da força, em um viés estabilizador e pacificador (FAORO, 2001FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: O Globo, 2001., p. 821).

Fernandes (1976)FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. aponta a aliança de duas oligarquias: a tradicional agrária e a industrial. A socialização do meio rural teria sido transposta aos centros urbanos e, a partir daí, a burguesia industrial formada no solo brasileiro teria reproduzido o latifúndio na cidade. O argumento do autor que interessa à concepção de DSN é que duas categorias sociais foram construídas como inimigas nesse movimento de junção oligárquica por ameaçarem a ordem vigente: o escravo liberto (o negro) e o trabalhador. Diante dessas ameaças construídas, o Estado opera por intermédio do aparato policial-militar e jurídico, permitindo explosões modernizadoras concomitantes à constante regeneração dos costumes e da ordem (FERNANDES, 1976FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976., p. 342).

A partir desse pano de fundo social, a identidade e a profissionalização das Forças Armadas foram se adequando a uma visão do Brasil como um país que precisa de um intérprete ou guia para compreender as aspirações populares e prover segurança contra as aventuras liberais. Na gestação da DSN, a partir da década de 1930, a identidade da organização militar se formou em torno do binômio segurança e desenvolvimento. Nesse sentido, todos os aspectos da vida nacional seriam do interesse militar por afetar a segurança nacional, como defendera Góes Monteiro (apudCOELHO, 2000COELHO, Edmundo C. Em busca de identidade: O exército e a política na sociedade brasileira. Rio De Janeiro: Record, 2000., pp. 114-115) em sua percepção do papel das Forças Armadas, em uma antecipação da DSN:

Um órgão essencialmente político; e a ele interessa, fundamentalmente, sob todos os aspectos, a política verdadeiramente nacional, de onde emanam, até certo ponto, a doutrina e o potencial de guerra. A política geral, a política econômica, a política industrial e agrícola, o sistema de comunicações, a política internacional, todos os ramos de atividades, de produção e de existência coletiva, inclusive a instrução e educação do povo, o regime político-social - tudo enfim afeta a política militar do país. (...) Sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a política do Exército, e não a política no Exército. (...) Nestas condições, as forças militares têm de ser, naturalmente, forças construtoras, apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova estrutura à existência nacional, porque só com força é que se pode construir.

Agregando as influências externas na composição da DSN, Alfred Stepan (2001)STEPAN, Alfred. 2001. The New Professionalism of Internal Warfare and Military Role Expansion. In: STEPAN, Alfred. Arguing Comparative Politics. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 23-39. observa que os intercâmbios e programas de assistência militares realizados no âmbito da Doutrina Truman tiveram um impacto significativo no Brasil. O ambiente político nacional e a tendência militar de atuar politicamente convergem com as doutrinas de contra-insurgência - com todos os acréscimos oriundos da doutrina militar francesa da contra-insurgência -3 3 Stepan (2001) se concentra na influência da contrainsurgência americana. João Roberto Martins Filho (2008), por sua vez, enfatiza que a França foi pioneira nas elaborações sobre táticas de contrainsurgência diante da experiência na Argélia e teve grande influência na formação do oficialato brasileiro. e permitem que se visualize um novo tipo de profissionalismo militar no país, voltado para a intervenção. Nesse processo de profissionalização, as atividades militares e políticas são interrelacionadas, seu campo de ação é irrestrito, expandindo seu papel para o gerenciamento político e o ordenamento interno (STEPAN, 2001STEPAN, Alfred. 2001. The New Professionalism of Internal Warfare and Military Role Expansion. In: STEPAN, Alfred. Arguing Comparative Politics. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 23-39., p. 27).

O profissionalismo militar voltado para a intervenção não é extemporâneo à realidade brasileira. Está alicerçado no modo de formação do cidadão brasileiro e na própria visão que as Forças Armadas têm do Brasil e de si mesmas, a de elemento construtor e guia dos interesses maiores da nação. Coelho (2000)COELHO, Edmundo C. Em busca de identidade: O exército e a política na sociedade brasileira. Rio De Janeiro: Record, 2000. sumariza elementos gerais da DSN que são gestados e operacionalizados a partir da visão singular que as Forças Armadas produzem do processo social e histórico do Brasil: o elogio do Estado e da força como elementos civilizatórios e a desconfiança das propostas liberais e dos segmentos marginais da população.

  1. As Forças Armadas são um órgão essencialmente político.

  2. Em vez de se fazer a política nas Forças Armadas, deve-se fazer a política das Forças Armadas.

  3. Os princípios da organização militar devem reger a reorganização nacional. Isto é, não são modelos políticos, mas modelos organizacionais os mais adequados para a reorganização nacional.

  4. Reorganizada a nação nestes moldes, o Estado haverá de ter perfil centralizado e a Nação haverá de ser movimentada por governos fortes apoiados basicamente nas Forças Armadas.

  5. Tais princípios de reorganização nacional haverão de disciplinar a sociedade civil, além de permitirem o máximo rendimento nas diversas áreas da atividade nacional.

  6. No binômio Segurança-Desenvolvimento, o primeiro termo deve ser entendido como um ‘fator de produção’ indispensável ao Desenvolvimento. E cabe à organização militar produzir este fator. A capacidade da organização militar em produzir eficientemente este fator é função do nível de Desenvolvimento da Nação. Daí advém a necessidade de participação crescente da organização militar na formulação de políticas substantivas relativas ao Desenvolvimento (COELHO, 2000COELHO, Edmundo C. Em busca de identidade: O exército e a política na sociedade brasileira. Rio De Janeiro: Record, 2000., p. 172).

Cabe apontar que a ideia de desenvolvimento ultrapassa a esfera estritamente econômica, na medida em que prover desenvolvimento significa, para as Forças Armadas, aprimorar e progredir a nação como um todo - em seu aspecto econômico, social e político (ESG, 2000ESG. Fundamentos Doutrinários da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: ESG, 2000., p. 175). Pelas lentes da DSN, esse desenvolvimento só poderia se dar com a condução por uma força centralizadora e responsável por manter a ordem vigente, por proteger as estruturas e os valores vigentes.

Essa linha de ação está presente nos manuais elaborados na Escola Superior de Guerra (ESG), espaço viabilizador da formulação da DSN a partir da articulação militar com elites políticas e burocráticas, bem como de intercâmbios com os EUA e outros países (FERNANDES, 2009FERNANDES, Ananda. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela Escola Superior de Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva”. Antíteses, v. 2, n. 4, p. 831-856, 2009.). Por meio da DSN, defende-se que cabe às elites interpretar os interesses da população por meio da comunicação social, identificando suas dificuldades e fatores de insegurança, para então organizar um planejamento estratégico que permita o desenvolvimento da nação em todas as expressões do poder nacional: política, econômica, psicossocial, militar e científico-tecnológica. Assim, segundo os manuais da ESG (2000ESG. Fundamentos Doutrinários da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: ESG, 2000., p. 178), uma política de desenvolvimento deve ser planejada com eficácia para induzir a correção de falhas ou carências nacionais, e não somente as relativas às estruturas públicas de Estado, mas também do setor privado e os próprios indivíduos.

A partir daí, a inteligência estratégica e a logística seriam responsáveis por fornecer as informações necessárias à segurança nacional, antecipar as necessidades e prover os meios necessários para o desenvolvimento e a segurança. O aparato de inteligência (e contrainteligência) atende à necessidade de produção de conhecimento sobre a realidade, uma atividade permanente de obtenção de dados e avaliação de conjuntura. Para as Forças Armadas, esses princípios são oriundos dos princípios gerais da estratégia e da guerra, que, por serem universais, poderiam ser aplicados a quaisquer atividades que demandem planejamento e execução. Dessa forma, reforça-se o argumento de que cabe à organização militar garantir todos os esforços em prol do desenvolvimento e da segurança (ESG, 2000ESG. Fundamentos Doutrinários da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: ESG, 2000., p. 198).

No conteúdo da DSN, podem ser identificados elementos para interpretação daqueles outros que serão trazidos pela RSS, na medida em que já se observam a preocupação com ameaças internas e questões de ordem estrutural, a busca por planejamento e gestão eficaz das atividades de segurança e um entendimento de que desenvolvimento e segurança se reforçam mutualmente.

Reforma do setor de segurança

Em se tratando das hipóteses de emprego da força militar, há dois movimentos distintos, embora convergentes, observáveis historicamente e apontados na literatura. O fim da Segunda Guerra Mundial marca o início de um momento histórico em que surgem, por um lado, a Guerra Fria e, por outro, a guerra insurrecional. Mesmo que se admita ser a Guerra Fria um elemento que, de certa forma, enquadra o século XX em uma única estrutura, não se deve deixar de apontar a enorme relevância das guerras insurrecionais na conformação de novas hipóteses de emprego da força militar.

Já na década de 1960, Trinquier (1964TRINQUIER, Roger. Modern Warfare: A French View of Counterinsurgency. Londres: Pall Mall Press, 1964., p. 3) advertia que a França insistia em se preparar para uma guerra que não mais existia e que jamais seria travada novamente. A nova guerra é chamada de guerra revolucionária ou subversiva, na qual a vitória não mais se observa pelo resultado do confronto de tropas em campo de batalha, mas por ações políticas, econômicas, psicológicas e militares que visam derrubar e/ou substituir o governo de um determinado Estado. Em tradução livre, teríamos: “nesse vasto campo de ação, forças armadas tradicionais não mais dispõem do papel decisivo. A vitória não depende mais da batalha no terreno” (TRINQUIER, 1964TRINQUIER, Roger. Modern Warfare: A French View of Counterinsurgency. Londres: Pall Mall Press, 1964., p. 6)4 4 No original: “On so vast a field of action, traditional armed forces no longer enjoy their accustomed decisive role. Victory no longer depends on one battle over a giver territory”. .

Os fatores decisivos passariam por múltiplos fatores que podem ser resumidos na expressão “conquista de corações e mentes”. Assim, operações de vigilância populacional, ataques breves a pontos específicos, assaltos e sequestros, atentados terroristas, tortura, pressão psicológica, entre outros, assumiriam o primeiro plano na estratégia da nova guerra. Todas essas ações diferem da ação tradicional das forças armadas e exigem um enfrentamento diferente, de perfil policial. Assim, percebe-se que as ações voltadas para a segurança estatal se tornam cada vez mais fluidas, mesclando de forma variável atividades militares, policiais, políticas, econômicas, jurídicas, tecnológicas, entre outras. E, mais importante, conquistar corações e mentes significa conquistar e condicionar o comportamento de pessoas singulares, e não mais o objetivo clássico clausewitziano de forçar um Estado a cumprir a vontade de outro.

A partir da década de 1980, parte da comunidade acadêmica, sobretudo nos centros de pesquisa europeus e americanos, começou a contestar a exclusividade da relação entre o termo segurança e seu significado realista - projeção de poder de um Estado sobre outro por meio da imposição de força militar - e passou a abarcar, também, o referencial do indivíduo (BUZAN e HANSEN, 2009BUZAN, Barry; HANSEN, Lane. The Evolution of International Security Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.). Assim, os estudos de segurança foram se expandindo, passando a abranger mais do que a esfera militar e estendendo o leque de atores políticos para além do Estado, incluindo, principalmente, o ser humano (PEOPLES e WILLIAMS, 2010PEOPLES, Columba; WILLIAMS, Nick. Critical Security Studies: An Introduction. Nova York: Routledge, 2010., p. 17).

Nesse sentido, uma ameaça à segurança pode ser tanto a que fere a soberania estatal como a que aflige a população. Alimentação, saneamento, infraestrutura e até mesmo a falta de senso comunitário podem afetar a condução da vida do indivíduo, tornando-o vulnerável, causando a sensação de insegurança (BUZAN e HANSEN, 2009BUZAN, Barry; HANSEN, Lane. The Evolution of International Security Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.) e, na continuidade dessa sensação, acirrando os ânimos da população e transformando-a em potencial inimigo desestabilizador a ser combatido. O debate sobre os processos de securitização surge nesse contexto.

Grosso modo, securitização é o processo por meio do qual um aspecto da vida humana migra, segundo um ato de fala, da esfera política (de normalidade) para a esfera da segurança (de excepcionalidade) (BUZAN, WEAVER e WILDE, 1998BUZAN, Barry; WEAVER, Ole; WILDE, Jaap. Security: A New Framework for Analysis. Colorado: Lynne Rienner Publishers, 1998.). Como o Estado é a instituição que monopoliza a violência, verifica-se que a securitização, na prática, aumenta o poder discricionário estatal de eleger mais questões de segurança: humana, econômica, ambiental, política e militar (COUTINHO, 2017COUTINHO, Rachel. A exceção e paradigma securitário: Influências da tese schmittiana e seu panorama crítico após o 11 de Setembro de 2011. Dissertação (Mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.; MOTTA, 2018MOTTA, Bárbara. Securitização e política de exceção: O excepcionalismo internacionalista norte-americano na segunda guerra do Iraque. São Paulo: Editora Unesp, 2018.). No quadro geral aqui discutido, a extensão da excepcionalidade em um contexto de conflitos insurrecionais coloca toda a população como alvo ou objetivo das ações estatais de segurança.

Nesse contexto, a literatura sobre relações civil-militares - que tradicionalmente se concentrava no controle civil sobre as forças armadas - busca expandir o arcabouço teórico para pensar as atividades de segurança e o controle civil nessas novas circunstâncias. Thomas Bruneau e Florina Matei (2013, p. 29) distinguem seis hipóteses de emprego militar no século XXI: guerra entre Estados, guerras internas, terrorismo, crime organizado, assistência humanitária e missões de paz. As forças armadas cada vez menos são empregadas na guerra entre Estados, mas atuam mais estreitamente com outras agências provedoras de segurança, como polícias, companhias privadas de segurança, agências de inteligência diversas, sistemas prisionais e judiciários e órgãos da sociedade civil, compondo um sistema complexo de agentes envolvidos na provisão de segurança.

Entendendo-se as relações civil-militares como um fluxo dialógico e dialético entre elites civis e militares do qual resultam políticas de segurança, o controle civil é a garantia de que as elites civis informam às elites militares - em termos das demandas de segurança - tão somente aquilo que foi decidido e construído em conjunto com a sociedade civil (COSTA, 2015COSTA, Frederico Carlos de Sá. Estudos estratégicos, controle civil e identificação do inimigo. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 30, n. 61, p. 112-127, 2015.). Somente em ambientes democráticos, com procedimentos e valores estabelecidos e estáveis, é possível orientar as políticas de segurança publicamente e avaliar se os recursos e resultados obtidos estão de acordo com as demandas apresentadas

Partindo da perspectiva democrática do controle civil, a regulação do setor de segurança assume grande importância, dado seu amplo leque de atuação. A RSS pode ser definida como a reforma das instituições para torná-las mais responsivas e aptas a criar um ambiente seguro para indivíduos e comunidades de uma forma consistente com normas democráticas de boa governança (EDMUNDS, 2013EDMUNDS, Timothy. Security Sector Reform. In: BRUNEAU, Thomas; MATEI, Florina (Orgs.). The Routledge Handbook of Civil-Military Relations. Londres/Nova York: Routledge, 2013. p. 48-60.). É importante considerar que todas essas características da reforma se manifestam no contexto de consolidação do capitalismo neoliberal, em que vigora a lógica da administração, produtividade e gestão otimizada dos serviços, inclusive do serviço da segurança pelo Estado (DARDOT e LAVAL, 2013DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2013.).

Dois objetivos gerais da reforma podem ser destacados: adequar os setores de segurança à amplitude de ameaças e inseguranças no contexto contemporâneo e garantir que essa adequação se baseie na prevenção da prática de violência contra a própria população que se quer proteger, já que, em muitos países, a principal ameaça à segurança dos indivíduos é o próprio Estado.

A RSS se apresenta então como um instrumento para acessar problemas de insegurança, desenvolvimento e democratização em países sob processo de transformação política, operações de paz, estabilização e conflitos de contra-insurgência (EDMUNDS 2013EDMUNDS, Timothy. Security Sector Reform. In: BRUNEAU, Thomas; MATEI, Florina (Orgs.). The Routledge Handbook of Civil-Military Relations. Londres/Nova York: Routledge, 2013. p. 48-60., p. 48). Esses problemas são acessados pelos próprios países, bem como pelo amplo espectro de atores internacionais que constroem e identificam ameaças em diferentes situações. Logo, a RSS se torna uma ferramenta política de alcance internacional para o desenvolvimento e a segurança, empregada por diferentes atores em diferentes contextos5 5 Não se pretende desconsiderar o etnocentrismo desses processos, imaginados nos países ricos para serem aplicados nos países pobres. Esses processos, entretanto, precisam ser compreendidos a partir de seu ponto inicial de elaboração. . Como reforça Duffield (2001)DUFFIELD, Mark. Global governance and the New Wars: The Merging of Security and Development. Londres/Nova York: Zed Books, 2001., essas operações do tipo interventoras partem da concepção de que a associação entre segurança e desenvolvimento é um imperativo para que se alcance a paz liberal. Assim, por meio da RSS, estimular-se-iam mutuamente a provisão de segurança e o desenvolvimento econômico, social e político dos Estados e suas populações.

Instituições como a ONU, a OCDE e o CCDFA contribuem para formação e difusão da agenda pela RSS.

Alguns elementos se sobressaem na compreensão da ONU do que é a RSS. O primeiro é a ênfase dada ao Estado, que se mantém como a principal organização provedora da segurança, seguindo formas democráticas de governança (ONU, 2008). O segundo é a compreensão de democracia pela via procedimental, ou seja, a existência de instituições e seu funcionamento adequado, aliada à promoção dos valores da igualdade e da liberdade, respeito ao Estado de direito e aos direitos humanos (ONU, 2009). Por fim, um terceiro elemento da reforma no âmbito da ONU, que interessa mais a esse artigo, é o espectro de ameaças que a RSS pode ajudar a mitigar. Nominalmente, a ONU cita o terrorismo e o crime organizado atrelado à violência urbana como as principais ameaças à paz.

A OCDE sugere diretrizes para Estados envolvidos em processos de reforma, orientando-os para o estabelecimento de uma visão compartilhada do que é segurança nacional. Assim, a organização busca estabelecer procedimentos para a identificação das principais ameaças a essa segurança, a partir de uma análise de conjuntura, e para a elaboração de planos de priorização das capacidades e recursos disponíveis e necessários para lidar com as ameaças, além de planos de distribuição de responsabilidades para cada instituição do setor de segurança, considerando a necessidade de coordenação interagências, comunicação e transparência (OCDE, 2007OCDE. OECD DAC Handbook on Security System Reform (SSR): Supporting Security and Justice. Paris: OCDE, 2007., p. 92).

Já o CCDFA, sediado na Suíça, propõe, em seus relatórios, diretrizes específicas para diversas situações de insegurança. Tal como a ONU, considera que terrorismo e crime organizado configuram ameaças proeminentes no cenário internacional. Dois relatórios do CCDFA pertinentes para pensar a situação brasileira dizem respeito aos papéis específicos de militares e policiais em contextos de violência urbana e à atuação de gendarmarias (gendarmeries) - o termo é um conceito guarda-chuva, podendo se referir às polícias nacionais, carabineiros, polícias militares e forças especiais. Em cenários urbanos, o Centro considera que uma reforma do setor de segurança deve vislumbrar a predominância da ação policial do tipo comunitária, que busca a aproximação com a população, respeitando os direitos humanos por meio de protocolos e procedimentos democraticamente estabelecidos (CCDFA, 2019, p. 5). Ainda segundo o Centro, a preferência da atuação das polícias não exclui a participação das forças armadas, desde que seguindo as diretrizes civis e de acordo com o Estado de direito. O CCDFA também entende que há um gradiente entre essas duas instituições (forças armadas e polícia), que se esvai à medida que suas atividades se aproximam, criando forças que congregam elementos de ambas: as gendarmarias (CCDFA, 2015).

A partir dessa exposição, verificamos alguns pontos de aproximação entre o conteúdo da DSN e a agenda pela RSS, como: a ênfase no âmbito interno como principal espaço onde se encontram (ou constroem) ameaças à segurança, a compreensão de que é necessária a mobilização de múltiplos agentes para provisão de segurança, a parametrização das ações de segurança pela eficácia e eficiência, a ideia de que segurança e desenvolvimento são elementos que se reforçam positivamente e a ênfase no Estado como agente propositor das reformas - que podem ou não ser patrocinadas ou ter inputs de órgãos diversos da sociedade civil.

Há pontos de distanciamento entre a RSS e a DSN, mas não são tão veementes a ponto de representarem desassociação ou impossibilidade de amálgama entre uma e outra. O primeiro, que atribui sentido aos demais, é a agência política da população. Na agenda da RSS, por mais que haja uma centralidade do Estado como provedor de segurança e que as condições práticas de reformas em diversos países muitas vezes atropelem a participação da sociedade civil, argumenta-se que todo o setor de segurança deve estar sob controle democrático. Isso significa fomentar a participação cívica da população - muito embora seja sabido que democracias reais só existem em contextos de monopólio estatal legítimo da força física, territorial e institucional de perfil procedimental-legal.

Já no contexto da DSN, coloca-se explicitamente que a população não participa como agente de liderança, pois esse é o papel das elites. Assim, um segundo ponto de distanciamento é o controle dos limites da atuação das forças de segurança no combate às ameaças. Enquanto na RSS expressa-se uma preocupação em manter todas as operações sob supervisão civil, o mesmo não se aplica ao contexto de DSN - também se sabe que supervisão civil, em democracias reais, se dá por meio de segmentos organizados da sociedade civil que geralmente nascem de minorias de preferências intensas, e não da maioria amorfa civil.

Intervenção federal no Rio de Janeiro

O debate apresentado na seção anterior, do setor de segurança, da RSS e da DSN, formou o terreno comum compreensivo e interpretativo do Plano estratégico de intervenção federal no Rio de Janeiro, em particular, e das operações de GLO, em geral.

Intervenções federais e operações de GLO enquadram-se no quadro geral da missão civilizatória e ordenadora das Forças Armadas do Brasil, bem como no perfil da profissionalização voltada para a intervenção. Segundo dados do Ministério da Defesa, entre 1992 e junho de 2020 houve 142 operações de GLO voltadas para conter a violência urbana, suprir a segurança durante greves de policiais militares, garantir a segurança de eventos, preservar a segurança em eleições e realizar operações em zonas rurais e em combate a crimes ambientais.

Essencialmente, as operações de GLO mobilizam as Forças Armadas para o policiamento ostensivo e as colocam em um ambiente de coordenação com todo o complexo institucional de agentes de segurança. Atua-se em conjunto com as polícias civis e militares e a Polícia Federal, mobilizando o Executivo a nível estadual e federal, o Ministério da Defesa, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Ministério do Planejamento e o Ministério das Relações Exteriores - este último apenas quando se considera que as ações internas podem ecoar de alguma forma no âmbito internacional (BRASIL, 2001BRASIL. Presidência da República. Decreto no 3.897, de 24 de agosto de 2001: Fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2001.). Ainda, essas operações elencam como inimigo a ser combatido a própria população brasileira, pois considera como força oponente as “[p]essoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio” (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Defesa. Portaria normativa no 3.461, de 19 de dezembro de 2013: Garantia da Lei e da Ordem, Md33-M-10. Brasília: Ministério da Defesa, 2013., p. 14). Além disso, operações de GLO se associam com operações de pacificação, como durante as instalações das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Complexo do Alemão, no Complexo da Penha e no Complexo da Maré entre 2010 e 2014.

Segundo o ex-governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, essas operações foram insuficientes para lidar com a violência no estado. Ele solicitou então, em seu mandato, uma “GLO ampliada” ao governo federal. Assim, o então presidente da República, Michel Temer, utilizou-se do artigo 34 da Constituição, que, em seu inciso terceiro, permite intervenção federal em caso de grave comprometimento da ordem pública, em atendimento ao pedido do governador.

A partir da documentação relativa à intervenção, concatena-se a conjugação da DSN com a RSS nos seguintes pontos: 1) a mobilização do setor de segurança (atuação expandida e interagência de vários segmentos provedores de segurança); 2) o processo de análise de conjuntura e a descrição das fontes de insegurança e ameaças (a partir de parâmetros herdados da guerra de insurgência); 3) a ênfase nos parâmetros de eficácia e eficiência; e 4) a reafirmação da simbiose entre segurança e desenvolvimento, ambas sob orientação e enforcement estatal.

Mobilização do setor de segurança

A intervenção foi pensada a partir de experiências prévias de engajamento militar coordenado com outras agências, como as operações de GLO. Sob liderança do interventor nomeado, general Braga Netto, montou-se um Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro (GIFRJ), instância formalmente responsável pela administração da intervenção e pela elaboração de todos os documentos relativos a ela.

O GIFRJ teve a seguinte composição: no âmbito estratégico, Comando Militar do Leste, GSI, Ministério da Defesa e Ministério Extraordinário da Segurança Pública; no âmbito operacional e tático, Abin, Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, Polícia Rodoviária Federal e Guarda Municipal. Além disso, o Plano estratégico reitera que o GIFRJ conduz suas ações em diálogo com o Tribunal de Contas da União (TCU), o Tribunal de Contas do Estado (TCE) e a Advocacia-Geral da União (AGU) (BRASIL, 2018, p. 11).

Na página eletrônica oficial do GIFRJ, é possível encontrar alguns dados noticiados. Por exemplo, em setembro de 2018, oficiais da intervenção federal capacitaram, na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), agentes do estado para o policiamento e ordenamento interno no Estágio de Operações em Ambiente de Mata, visando preparar os agentes para as áreas das favelas do Rio, que deveriam aprender a reagir diante de ambientes hostis e minimizar danos entre civis. Segundo o site, participaram 55 policiais militares do Comando de Operações Especiais (COE), do Batalhão de Operações Especiais (Bope), do Batalhão de Ação com Cães (BAC) e do Batalhão de Choque e do Grupamento Aeromóvel, além de sete policiais civis da Coordenadoria de Recursos Especiais e dois policiais federais.

Além disso, houve uma série de visitas de policiais e servidores dos órgãos de segurança pública a instalações militares, bem como visitas internacionais dos alunos e instrutores do Comando e Estado-Maior (CCEM) do Exército dos Estados Unidos. Ainda, por meio do GIFRJ, no Centro de Instrução Aloysio Teixeira de Camargo (Ciasc), onde a Marinha do Brasil instrui militares para operações de paz de caráter naval, agentes da segurança pública receberam cursos em diversas áreas, como psicopedagogia escolar, auxiliar de ensino, meio ambiente, guerra cibernética, logística e reembolso em operações de paz para oficiais, monitor de equitação e gestão de material bélico. Também por meio da intervenção, policiais militares entraram para o mestrado profissional em Humanidades em Ciências Militares no Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias (CEP/FDC), estabelecimento de ensino superior do Exército brasileiro.

Considerando-se a especificidade do caso brasileiro, deve ser apontado que o pedido de intervenção foi feito, protocolado e aprovado nas instâncias executivas civis - governador do estado e presidente da República -, porém o comando e a execução da operação foi militar. Na documentação fornecida pelo GIFRJ, reforça-se o caráter constitucional da intervenção e sua compatibilidade com o procedimento democrático, na medida em que suas ações estariam sob supervisão do TCU, do TCE e da AGU, indicando o controle democrático do setor de segurança, tal como indicado pela RSS. Em contrapartida, houve pouca abertura para supervisão por parte da sociedade civil. A prestação de contas em relação ao uso dos recursos vem sendo contestada com relatórios recentes do TCU publicados pela revista piauí (SALOMON, 28/09/2020).

Ademais, o controle civil sobre as Forças Armadas e outras forças de segurança, de maneira geral, não é algo cimentado no Brasil. Ainda que Bruneau e Tollefson (2014)BRUNEAU, Thomas; TOLLEFSON, Scott. Civil-Military relations in Brazil.: a reassessment. Journal of Politics in Latin America, v. 6, n2, 2014. afirmem que há um controle sobre a organização militar e organizações policiais e de inteligência, ele se verifica unicamente sob um viés procedimental. Não se deve ignorar as lições de Schumpeter, que afirmava estar sob controle da população apenas o poder de escolher elites que tomam decisões em seu lugar.

Análise de conjuntura, identificação das ameaças

A contextualização, que é o momento de análise conjuntural, constrói uma narrativa sobre a crise na segurança pública no estado do Rio de Janeiro. De acordo com o Plano estratégico (2018), governos populistas da década de 1980 foram permissivos e inativos no combate ao tráfico de drogas, que, além de crescer dentro do estado, se aperfeiçoou na região andina (BRASIL, 2018, p. 20). Soma-se a isso, também segundo o documento, a formação de um “terreno humano” particular que se configurou em espaços urbanos e teria dificultado a ação estatal voltada para coibir a violência (BRASIL, 2018, p. 21). O Plano resume a seguinte sequência de fatores:

Os altos índices de corrupção e aparelhamento da máquina estatal tiveram reflexos diretos nas políticas de segurança pública adotadas. A gestão ineficaz, fraudulenta e irresponsável dos recursos orçamentários do Estado implicou a insolvência do mesmo, agravada pela crise econômica nacional, com reflexos em todas as áreas (econômica, social, científica e tecnológica, educação, segurança, infraestrutura, etc.) (BRASIL, 2018, p. 22).

Desenhado o contexto, a intervenção federal utilizou a ferramenta de análise de cenários conhecida como modelo SWOT (strenghts, weaknesses, opportunities, threats)6 6 Forças, fraquezas, oportunidades e ameaças, respectivamente. para cruzar os pontos fortes e fracos das forças de segurança da intervenção com as oportunidades a serem exploradas e as ameaças a serem evitadas ou contornadas. Grupos de análise de cenários costumam empregar essa matriz para planejamento, pois ao obter os resultados dos cruzamentos, pode-se estabelecer metas de acordo com situações mais prováveis.

A partir daí, o Plano aponta os seis objetivos estratégicos (OE) que guiam a intervenção: 1) diminuir o índice de criminalidade de maneira gradual; 2) recuperar, incrementalmente, a capacidade operativa das secretarias de Estado e dos órgãos de segurança pública (OSP) do estado do Rio de Janeiro; 3) articular, de forma coordenada, as instituições dos entes federativos; 4) fortalecer o caráter institucional da segurança pública e do sistema prisional; 5) melhorar a qualidade e a gestão do sistema prisional, das secretarias de Estado e dos OSP intervencionados; e 6) implantar estruturas necessárias ao planejamento, coordenação e gerenciamento das ações estratégicas da intervenção federal. Ainda, o Plano delimita que para cada OE existem “fatores críticos de sucesso”, estratégias e metas específicas, indicadores de desempenho e planos de ação - divididos entre ações do tipo emergenciais e estruturantes.

Todos esses fatores, pelo que se expõe na documentação, giram em torno de uma ameaça: o crime organizado. Há uma convergência entre o que se considerada como suas causas e como seus desdobramentos, como a corrupção e a má gestão estatal, pois ao mesmo tempo que teriam permitido o crescimento do crime e violência, prosperam conforme as atividades criminais vigoram. Por isso o combate ao crime seria indissociável do combate à corrupção e má-administração, algo que é reiterado de maneira contundente no contexto da RSS.

Contudo, ainda que a RSS localize ameaças como o crime organizado no interior das populações, não as caracteriza em si como ameaça. Nesse ponto, entretanto, a intervenção recupera a preocupação com o inimigo interno da DSN ao entender que há um terreno humano mais propício a ser disruptivo. Conforme apresentado, ela surge a partir de operações de GLO e pacificação, que encaram a população como potenciais forças oponentes a serem combatidas e, preferencialmente, dissuadidas de atentarem contra a ordem, por meio da intervenção militar.

Eficácia e eficiência

Dos objetivos estratégicos da intervenção, destacamos um ponto que dialoga diretamente com a discussão sobre setor de segurança e RSS, que são os parâmetros de eficácia e eficiência como ferramentas de sustentação do controle civil democrático (BRUNEAU e MATEI, 2013BRUNEAU, Thomas; MATEI, Florinda (Orgs.). The Routledge Handbook of Civil-Military Relations. Londres: Routledge, 2013.). Segundo o GIFRJ, tornar os órgãos de segurança mais eficazes e eficientes seria o primeiro passo para reduzir os índices de criminalidade, aumentar a sensação de segurança e garantir a legitimidade das ações dentro da normalidade constitucional, e por isso, este se configura como primeiro objetivo estratégico (BRASIL, 2018, pp. 29-30).

Para o segundo objetivo, de recuperação da capacidade operativa, constam principalmente ações de otimização dos recursos humanos e materiais por meio de reativação de pagamentos, transferência e manejo de efetivos e amplo investimento financeiro para, entre outras coisas, fornecer veículos, armamentos, equipamentos de proteção individual e fardas, bem como itens de escritório necessários ao funcionamento das secretarias e de toda a rede departamental dos OSP (BRASIL, 2018, pp. 31-33). O Plano estratégico estabelece algumas metas de capacitação dos agentes de segurança por meio dos cursos descritos na seção acima. Para efeitos de tangibilidade da eficácia, o Plano propõe algumas metas de capacitação, como, por exemplo, capacitar no mínimo 60% de policiais redirecionados das UPPs para o policiamento ostensivo. Segundo o relatório, essa meta foi cumprida em 92,7% (BRASIL, 2019, p. 69).

No terceiro objetivo estratégico, a capacidade de cumprir as ações com êxito está diretamente relacionada à coordenação entre os órgãos, o que, além de reforçar o argumento da eficácia, retoma o debate sobre o setor de segurança ser mais bem compreendido a partir da ação conjunta entre militares, policiais e civis. Assim, a articulação dos entes federativos, como consta no documento, seria aprimorada por meio do incremento tecnológico e capacitação de pessoal, principalmente nas áreas de inteligência, o que foi feito por meio dos cursos de especialização.

Para fortalecer o caráter institucional - o quarto objetivo -, melhorar a eficiência significa reduzir os índices de corrupção e sucateamento, que colaboram para a construção de confiabilidade entre a população e órgãos de segurança. Segundo o Plano, são necessárias ações de aprimoramento da gestão financeira, frisando a necessidade de inspeções das instalações e materiais, bem como de relações públicas, promovendo eventos de integração entre sociedade e forças de segurança (BRASIL, 2018, pp. 41-42). No quinto objetivo, melhorar a qualidade do sistema prisional, são reforçadas as estratégias de melhor gestão financeira para melhor eficiência e enfatiza-se o investimento material necessário para tornar as penitenciárias mais bem equipadas (BRASIL, 2018, pp. 43).

Por fim, o objetivo de deixar o legado estratégico é inteiramente dedicado à gestão dos recursos para o período após a intervenção, destacando a criação de unidades gestoras, planos orçamentários e de aquisições, sempre com base na eficiência (BRASIL, 2018, p. 44). Todo esse planejamento conta com a supervisão, além do TCU e AGU, da Secretaria de Estado da Casa Civil e Desenvolvimento Econômico e da Secretaria de Estado de Fazenda (BRASIL, 2018, p. 49).

Segundo o Relatório de gestão (2019), os parâmetros de eficácia e eficiência foram cumpridos, pois a intervenção conseguiu deixar um legado tangível e intangível para a segurança pública e manteve-se dentro do orçamento destinado (R$1,2 bilhão). O legado se concentra no investimento para a aquisição dos materiais dispostos na seguinte figura:

Figura 1
Legado tangível da intervenção federal

O legado intangível são os atos normativos voltados para a reestruturação das carreiras dos órgãos de segurança pública, a reorganização de logística, a capacitação de pessoal e mudanças organizacionais. Segundo o relatório, foram elaborados aproximadamente 400 atos normativos (BRASIL, 2019, p. 40). Além de manter-se dentro do orçamento, o documento estipula que as mudanças feitas pela intervenção e a transferência dos materiais economizaram R$120 milhões ao estado, o que contribui para atestar a eficiência da operação.

Nesse mesmo relatório, constam os índices de redução da criminalidade no final de 2018, que, segundo o mesmo, atestam a eficácia da intervenção:

Quadro 1
Índices de criminalidade 2017 versus 2018

Segundo o relatório, o índice de ocupação hoteleira no fim de 2018 e a previsão de redução das apólices de seguros de veículos seriam indicativos de maior sensação de segurança. Isso, também conforme o documento, atestaria um resultado positivo da intervenção (BRASIL, 2019, p. 41). Outro elemento que a intervenção considera como legado positivo é a criação de uma memória organizacional e um conhecimento adquirido para servir de referência. O relatório frisa que todas as informações relativas à intervenção foram esquematizadas de modo a serem disponibilizadas publicamente, atendendo ao princípio da transparência.

Assim, nota-se que a intervenção traz à tona a métrica da eficácia/eficiência e a accountability (responsabilização e transparência) como elementos constitutivos do controle civil sobre o setor de segurança, que devem ser buscados em um processo de reforma das forças de segurança. Considerando o que foi exposto sobre a tradição autoritária nacional e a DSN, é importante salientar que eficácia e eficiência são definidas, nesse contexto, de forma unidirecional, pelas próprias Forças Armadas, sem a necessária articulação com a própria população a quem se pretende prover segurança. Ainda, conforme exposto, há fortes contestações recentes sobre a veracidade do legado estratégico e investigações sobre o uso indevido das verbas, visto que houve medidas feitas para uso exclusivo do Exército - compra de armas e melhorias em sistemas de inteligência -, o que contraria o propósito de reformar as forças de segurança pública (SALOMON, 2020SALOMON, Marta. Os desvios da intervenção militar: TCU apura irregularidades no uso de 93 milhões de reais durante operação das Forças Armadas no Rio em 2018, comandada pelo hoje ministro Braga Netto. Piauí, Questões de Gastos Públicos, 28 set. 2020. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/os-desvios-da-intervencao-militar/
https://piaui.folha.uol.com.br/os-desvio...
).

Segurança e desenvolvimento

Por fim, o reforço da associação entre segurança e desenvolvimento é um aspecto transversal à intervenção federal. Recuperando os fatores descritos na contextualização, percebe-se que o Plano estratégico estabelece uma causalidade entre o subdesenvolvimento e a violência no Rio de Janeiro. A partir da leitura do Plano e do Relatório de gestão, percebe-se que a intervenção aborda o subdesenvolvimento nos seguintes eixos: 1) condições materiais e físicas dos órgãos de segurança pública, marcando um subdesenvolvimento do tipo econômico; 2) administração pública do estado, considerada inadimplente diante da crise, o que denota um subdesenvolvimento do tipo político; e 3) a própria população fluminense, ou terreno humano, que é mais propícia à criminalidade e menos inclinada a confiar e apoiar as forças de segurança, indicando um subdesenvolvimento social.

A partir das aproximações entre a intervenção federal e a RSS, compreende-se com mais clareza a confluência com a DSN. A intervenção teve uma natureza militar; foi pensada como uma extensão da GLO, planejada pelo Comando Militar do Leste e conduzida e administrada por oficiais das Forças Armadas. Portanto, ao afirmar que é possível recuperar a ordem pública por meio da ação militar, ela recupera a ideia da DSN de que, por meio da atuação militar, instituição civilizatória, é possível fomentar o desenvolvimento, racionalizar a economia e incrementar a sensação de segurança:

A intervenção proporcionou um afastamento da Segurança Pública do Estado das interferências políticas, gerando uma maior segurança jurídica para que as Secretarias Intervencionadas pudessem se organizar de forma mais adequada para o atendimento de suas atividades, como também permitiu que se executassem as ações necessárias para o combate à criminalidade de forma mais efetiva. Para os órgãos intervencionados os impactos foram significativos, haja vista que fazia bastante tempo que não recebiam recursos e prioridades como ocorreu nesse período (...) Fruto de todo o planejamento feito, coordenado e executado pelo GIFRJ, os índices de redução da criminalidade demonstraram o impacto positivo das medidas implementadas pela Intervenção na gestão da segurança pública do estado (BRASIL, 2019, p. 48).

O que se observa na análise dos dados é que há uma retórica evidente de prover segurança associada ao desenvolvimento, ancorada no discurso da eficácia e eficiência, porém isso não se traduz em resultados substanciais que trazem estabilidade e segurança para a população. Como exposto na sessão anterior, o Relatório de gestão (2019, p. 41) considera que a intervenção produziu um impacto positivo sobre a sensação de segurança da população fluminense e que o investimento nos OSP é um indicador positivo de desenvolvimento (BRASIL, 2019, p. 49).

Em contrapartida, o Observatório da Intervenção7 7 O Observatório da Intervenção foi organizado pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) após o assassinato da vereadora Marielle Franco, com o objetivo de coletar dados junto à população sobre as ações da intervenção federal. Após o fim da operação, o grupo transformou-se no Observatório da Segurança, a fim de dar continuidade às pesquisas na área da segurança pública no Rio de Janeiro. (2019) faz um levantamento mais aprofundado sobre o número de mortes e índices de violência. Segundo a organização, em algumas das Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP), como a 18ª, que compreende os bairros de Anil, Cidade de Deus, Jacarepaguá, Curicica, Gardênia Azul, Taquara e Tanque, houve um aumento de até 44% nos números de letalidade violenta em relação a 2017. O Observatório constatou ainda que, em relação a 2017, houve um aumento em 56,6% nos tiroteios de 63,6% no número de pessoas mortas por chacinas e de 36% no número de mortes por agentes do Estado. Na capital o aumento no número de mortes por agentes do Estado foi de 1,9%; porém, na Baixada Fluminense e no interior do estado, foi de 60,8% e 82,6%, respectivamente (OBSERVATÓRIO DA INTERVENÇÃO, 2019OBSERVATÓRIO DA INTERVENÇÃO. Intervenção federal: Um modelo para não copiar. Rio de Janeiro: Observatório da Intervenção; Cesec, 2019. Disponível em: http://www.observatoriodaintervencao.com.br/dados/relatorios1/
http://www.observatoriodaintervencao.com...
, pp. 5-9). Ou seja, se, por um lado, os OSP receberam os devidos treinamentos, materiais e capacitação e os crimes contra o patrimônio foram reduzidos, por outro, parte da população continua vítima pela violência estatal.

Conclusão

É possível concluir que a interpretação da agenda pela RSS no Brasil é fortemente influenciada pela tradição autoritária do país e pelo protagonismo militar na definição do que é segurança, o que permite às Forças Armadas brasileiras interpretar e atualizar conteúdos da DSN em um contexto democrático. Nesse processo, há uma inversão dos objetivos que originalmente pautariam uma reforma do setor de segurança, visto que, em vez de consolidar o controle civil, conceber segurança a partir da população e readequar a atuação das forças de segurança em uma democracia, o caso brasileiro caminha na direção contrária: reforça a autonomia militar e o entendimento brasileiro de que a segurança é pensada a partir do Estado, visando à conservação da ordem, e de que a ameaça a ser combatida é a própria população.

A ideia de um setor de segurança amplo que atenda às múltiplas dimensões da segurança, na prática brasileira reafirma o entendimento de que é necessário empregar todas as agências do Estado para garantir a segurança nacional. O caso da intervenção federal no Rio de Janeiro é interessante para ilustrar a adaptação brasileira da RSS, pois a condução e supervisão civil, que seriam pilares da RSS, são reduzidas à chancela das autoridades civis do Executivo, enquanto as Forças Armadas assumem o papel principal de planejamento, execução e validação das ações.

Nesse sentido, a busca pela eficácia e eficiência - cada vez mais frequentes no léxico contemporâneo de gestão capitalista -, que deveriam contribuir para a prestação de contas, são usadas como argumento de logística por parte das Forças Armadas, negligenciando-se, assim, a valorização da transparência e accountability. Pelo modelo da RSS, a percepção das múltiplas ameaças como fenômenos complexos que atingem as populações de diferentes formas seria uma postura adotada para pensar políticas de segurança cuja centralidade é a população. O que se observa no caso brasileiro é que essa postura permite reviver a localização de ameaças no seio populacional e no limite, entender a população em si como ameaça potencial ou manifesta.

Destacamos, então, neste artigo, como a vinculação entre segurança e desenvolvimento amarra essa interpretação brasileira. Pela RSS, o nexo segurança-desenvolvimento parte de uma linguagem imaginada para criar normas de ação efetivas nos ambientes tumultuados de países que passam por algum tipo de calamidade ou convulsão política. A ideia seria conter ondas anômicas de violência - de bandos armados e milícias estatais e paraestatais - e estancar a sangria econômico-financeira, em paralelo com a preservação das populações locais dos revezes impostos pela carência alimentar, sanitária e ambiental.

Os elementos centrais da DSN, elencados por Coelho (2000COELHO, Edmundo C. Em busca de identidade: O exército e a política na sociedade brasileira. Rio De Janeiro: Record, 2000., p. 172) identificam como linha mestra da doutrina o protagonismo das Forças Armadas em termos de ação política, civilizatória e modelo organizacional para o Brasil, assumindo igualmente o binômio segurança e desenvolvimento (um mimetismo do lema da bandeira nacional) como emblema e fonte normativa. No Brasil, segurança e desenvolvimento, a partir da vivência da DSN, foram vividos como segurança contra um inimigo interno que pretendia alterar a ordem social. Aqui, identificou-se segurança nacional com segurança do status quo e segurança do regime em primeiro lugar.

O resgate da DSN, assim, mostra como um projeto pensado nos países ricos encontrou reflexo (e como todo reflexo, os sinais estão invertidos) no Brasil, espaço em que o terreno da segurança e do desenvolvimento já estava pronto, as mentalidades, acostumadas à salvação militar e as instituições e grupos políticos, desejosos de aumentar seu próprio poder e conter as populações com apoio armado institucional. Por fim, é possível vislumbrar a intervenção federal como um corolário das GLOs e operações de pacificação, extrapolando seus formatos e reinserindo o oficialato na administração pública - não é acidental que o interventor, general Braga Netto, tenha sido chefe da Casa Civil, órgão responsável pela coordenação ministerial. Foi uma intervenção protagonizada pelas Forças Armadas sobre uma região instável, na qual se pretendeu reestabelecer os devidos procedimentos civilizacionais de ordem e reconstruir estruturas a fim de consolidar um ambiente seguro, estável e adequado ao status quo. Em outras palavras, há um espírito geral de que a ação civil falhou, restando às Forças Armadas cumprir seu papel de salvaguarda nacional: recuperar o contexto social e psicossocial, levar o desenvolvimento socioeconômico para populações carentes, combater a corrupção das instituições civis e a reafirmar uma visão conservadora da democracia e do Estado de direito.

  • 1
    No original: “identificar condiciones antecedentes, verificar la importância de estas condiciones antecedentes y explicar casos de importância intrínseca”.
  • 2
    Não se ignoram os acréscimos e críticas a esses autores. No entanto, para os efeitos deste artigo, seu recurso é privilegiado, por ocuparem o lugar de clássicos na interpretação da formação histórica e sociológica do Brasil.
  • 3
    Stepan (2001)STEPAN, Alfred. 2001. The New Professionalism of Internal Warfare and Military Role Expansion. In: STEPAN, Alfred. Arguing Comparative Politics. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 23-39. se concentra na influência da contrainsurgência americana. João Roberto Martins Filho (2008), por sua vez, enfatiza que a França foi pioneira nas elaborações sobre táticas de contrainsurgência diante da experiência na Argélia e teve grande influência na formação do oficialato brasileiro.
  • 4
    No original: “On so vast a field of action, traditional armed forces no longer enjoy their accustomed decisive role. Victory no longer depends on one battle over a giver territory”.
  • 5
    Não se pretende desconsiderar o etnocentrismo desses processos, imaginados nos países ricos para serem aplicados nos países pobres. Esses processos, entretanto, precisam ser compreendidos a partir de seu ponto inicial de elaboração.
  • 6
    Forças, fraquezas, oportunidades e ameaças, respectivamente.
  • 7
    O Observatório da Intervenção foi organizado pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) após o assassinato da vereadora Marielle Franco, com o objetivo de coletar dados junto à população sobre as ações da intervenção federal. Após o fim da operação, o grupo transformou-se no Observatório da Segurança, a fim de dar continuidade às pesquisas na área da segurança pública no Rio de Janeiro.

Referências

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  • BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em ciências sociais São Paulo: Hucitec, 1999.
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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2021
  • Aceito
    14 Jun 2022
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