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A literatura juvenil brasileira no início do século XXI: autores, obras e tendências

Brazilian youth literature at the beginning of the XXI century: authors, books and trends

Resumo

O artigo apresenta um estudo sobre a literatura juvenil brasileira publicada na primeira década do século XXI, por meio da análise de obras premiadas pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e pela Câmara Brasileira do Livro, que outorga o prêmio Jabuti. A partir de dados sistematizados por Marisa Lajolo e Regina Zilberman, apresenta-se um breve panorama da literatura infantojuvenil brasileira entre o período de 1890 a 1980, contextualização que permite o delineamento do percurso e das tendências do gênero ao longo do tempo. Após, com base nos estudos desenvolvidos por Teresa Colomer, expõem-se os principais traços da literatura juvenil atual, os quais são cotejados com as características das narrativas juvenis brasileiras premiadas entre os anos de 2001 e 2009. Por meio da leitura, da observação, da análise e da comparação das obras que integram o corpus, procura-se demonstrar as características da literatura juvenil brasileira produzida na primeira década do século XXI, de maneira a responder quais as principais tendências do gênero e qual sua posição no cenário nacional. Verificase o surgimento de um bom número de autores novos, a diversidade de temáticas trabalhadas e o aumento da complexidade narrativa.

Palavras-chave:
literatura juvenil brasileira contemporânea; Teresa Colomer

Abstract

The present research offers a study on Brazilian youth literature published in the first decade of this century, by analyzing the books awarded by National Foundation of Children’s and Youth Books, and Brazilian Book Chamber, which awards the prize Jabuti. Based on systematized data by Marisa Lajolo and Regina Ziberman, it shows a brief overview of Brazilian children’s and youth literature from 1890 to 1980, the context of which allows tracing the paths and trends of the genre over time. After that, based on studies developed by Teresa Colomer, this study discusses the main features of the current juvenile narratives awarded from 2001 to 2009. Through reading, observation, analysis and comparison of works that make up the corpus, this research aims to show the characteristics of the Brazilian youth literature produced in the first decade of the XXI century, in order to answer what are the main trends of the genre and what is its position in the national scenery. We can observe a number of new authors who have turned up, the diversity of themes worked, and the increase of the narrative complexity.

Key words:
brazilian contemporary youth literature; Teresa Colomer

Breve panorama histórico (1890-1980)

A literatura infantojuvenil brasileira, já há algumas décadas, é contemplada com obras críticas que propõem leituras diacrônicas, a partir de uma visão de conjunto, com vistas a contribuir para os estudos historiográficos sobre o gênero1 1 O presente artigo é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada Adriana Falcão, Flávio Carneiro, Rodrigo Lacerda e a literatura juvenil brasileira no início do século XXI, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisa recebeu a orientação da profa. Dra. Regina Zilberman e contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). . É o caso de livros como História da literatura infantil (1959SALEM, Nazira (1959). História da literatura infantil. Portugal: Mestre Jou.), de Nazira Salem; Literatura infantil brasileira: ensaio de preliminares para a sua história e suas fontes (1968ARROYO, Leonardo (1968). Literatura infantil brasileira: ensaio de preliminares para sua história e suas fontes. São Paulo: Melhoramentos.), de Leonardo Arroyo; A literatura infantil (1981COELHO, Nelly Novaes (1981). A literatura infantil. São Paulo: Ática.) [desdobrado, a partir de 1984______(1984). Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Ática., em dois volumes, dos quais um é o Panorama histórico da literatura infantil/juvenil], de Nelly Novaes Coelho; Literatura infantil brasileira: história & histórias (1984______(1984). Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Ática.) e Um Brasil para crianças (1986______ (1986). Um Brasil para crianças. São Paulo: Global.), ambos de Marisa Lajolo e Regina Zilberman; e, mais recentemente, Como e por que ler a literatura infantil brasileira (2005ZILBERMAN, Regina (2005). Como e por que ler literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva.), de Regina Zilberman.

Na obra de 1984, Lajolo e Zilberman recuperam quase um século de história - de 1890 a 1980 - por meio do levantamento de títulos e autores, relacionando-os a ciclos da cultura brasileira. O primeiro ciclo (1890-1920) correspondente ao período em que o Brasil passa por um processo de acelerada urbanização e assiste ao nascimento de massas urbanas consumidoras de produtos industrializados, engloba as produções anteriores a Monteiro Lobato (1882-1948). Trata-se de traduções e adaptações, cujas primeiras edições são portuguesas, ou mesmo brasileiras, mas com enfoque adulto. Com a intenção de apresentar no texto situações exemplares de aprendizagem, o conteúdo dessa literatura é ditado pelo modelo europeu, patriótico, ufanista e de exaltação da natureza, e a forma preocupada com a limpidez e a correção da linguagem. Desenvolvem-se, pois, uma visão deformada da realidade brasileira e uma prática que “geralmente descamba na ênfase ostensiva das virtudes do texto e das boas intenções do autor” (Lajolo e Zilberman, 1985LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina (1985). Literatura infantil brasileira: história & histórias. 2. ed. São Paulo: Ática ., p. 44)2 2 Optou-se por atualizar a grafia das citações, as quais estarão de acordo com o novo acordo ortográfico, firmado em 2009. . É nas primeiras décadas do século XX que se solidifica a produção de uma literatura infantojuvenil brasileira, na qual se constata a presença de protagonistas infantis, embora retratados de forma estereotipada, representantes de um projeto educativo e ideológico que via na escola e nos textos destinados a crianças e jovens aliados imprescindíveis para a formação de cidadãos.

O segundo ciclo (1921-1944) é marcado por Monteiro Lobato, que, rompendo com padrões anteriores, mostra-se sensível à “necessidade de se escreverem histórias para crianças numa linguagem que as interessasse” (id., p. 45). Assim como Lobato, também Graciliano Ramos (1892- 1953), Erico Verissimo (1905-1975) e Menotti del Picchia (1892-1988), entre outros, procuraram incorporar, tanto na fala de suas personagens quanto no discurso do narrador, a oralidade sem infantilidade, rompendo os laços de dependência à norma escrita e ao padrão culto, “aproveitando bem a lição modernista” (id., p. 83). De acordo com as autoras,

Os livros para crianças foram profunda e sinceramente nacionalistas, a ponto de elaborarem uma história cheia de heróis e aventuras para o Brasil, seu principal protagonista. Da mesma forma, eles se lançaram ao recolhimento do folclore e das tradições orais do povo (…). Porém, visando contar com o aval do público adulto, a literatura infantil foi preferencialmente educativa e bem comportada, podendo transitar com facilidade na sala de aula ou, fora dessa, substituí-la. (id., p. 54)

Assim, os aspectos mais recorrentes nas obras destinadas a crianças e jovens entre estes dois limites cronológicos (1921-1944) são o nacionalismo, o predomínio do espaço rural, a exploração da tradição popular em lendas e histórias e a inclinação educativa. Além disso, devido à consolidação da classe média e ao avanço da industrialização, há o crescimento do número das obras e das tiragens de livros infantojuvenis, o que demonstra a adesão das editoras ao nicho que se abre. Contudo, a perspectiva com que são focalizados a tradição e o folclore é “antes passadista e conservadora que propriamente revolucionária, inovadora ou crítica” (id., p. 82), estando, por isso, relacionada ao ciclo anterior da literatura infantojuvenil. A exceção, segundo as autoras, fica por conta de Monteiro Lobato e de Graciliano Ramos.

Entre os anos de 1945 e 1964, período marcado pela sedimentação da indústria editorial e pela expansão da escola, aumenta-se a produção de livros em série para atender à demanda dos mediadores entre o livro e a leitura: a família, a escola e o Estado. No entanto, tal profissionalização “adere à produção de obras repetitivas, explorando filões conhecidos e evitando a pesquisa renovadora” (id., p. 87). De uma forma geral, o espaço rural, decadente, foi reabilitado e idealizado, de modo a tematizar um “Brasil arcaico que desaparecia” (id., p. 104), ao passo que a vida urbana foi ignorada. Assim, os textos destinados à infância e à juventude “não denunciam uma realidade, mas a encobrem, sem deixar de transmitir ao leitor os valores que endossam” (id., p. 122).

É no capítulo “Indústria cultural e renovação literária” que Marisa Lajolo e Regina Zilberman, ao abordarem a expansão da literatura infantojuvenil após as décadas de 1960 e 70 e apresentarem os escritores mais representativos e as tendências do início da década de 1980, tematizam a consolidação de um quarto ciclo, contemporâneo à época do “milagre econômico”, marcado pelo estreitamento da dependência brasileira ao mundo ocidental capitalista. É também nessa época que começa a florescer uma vasta produção dirigida aos jovens, além de uma vertente da crítica destinada a estudar os novos títulos.

Como traço marcante da literatura infantojuvenil brasileira do período, tem-se a inversão de seus conteúdos mais típicos. Por meio de uma tendência contestadora, as narrativas tematizam a pobreza, a miséria, a injustiça, a marginalidade, o autoritarismo e o preconceito, e o “cenário urbano passa a ocupar o lugar central” (id., p. 140). A imagem exemplar da criança obediente e passiva é suplantada pela criança capaz de rebeldia e de ruptura com a normatização do mundo dos adultos. Enfraquece, assim, a velha prática de representar nos livros infantojuvenis apenas situações não problemáticas.

Dada a expansão do mercado jovem e a bem-sucedida importação de produtos da indústria cultural, o período em questão também se caracteriza pelo aumento de gêneros e temas como a ficção científica e a narrativa de suspense. Configura-se uma revisão do mundo fantástico tradicional, por meio da publicação de irreverentes e irônicas histórias de fadas. Também se delineia a incorporação da oralidade, a ruptura com a poética tradicional e a incorporação de procedimentos narrativos como a metalinguagem e a intertextualidade. Assim, ao mesmo tempo em que se propõe a falar com realismo da realidade histórica, sem retoques, a narrativa infantojuvenil do período redescobre as fontes do fantástico e do imaginário.

Destacam-se, entre outros, autores como Odette de Barros Mott (1913- 1988), Edy Lima (1924), Wander Piroli (1931-2006), Ruth Rocha (1931), Lygia Bojunga (1932), Stella Carr (1932), Ziraldo (1932), João Carlos Marinho (1935), Marina Colasanti (1938), Ana Maria Machado (1942), Mirna Pinsky (1943), Bartolomeu Campos de Queirós (1944) e Sérgio Capparelli (1947). Assim, a literatura infantojuvenil brasileira produzida nas décadas de 1960 e 70 “assume um dos traços mais fortes da herança lobatiana” (Lajolo e Zilberman, 1985LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina (1985). Literatura infantil brasileira: história & histórias. 2. ed. São Paulo: Ática ., p. 125). Ao mesmo tempo em que apresenta traços característicos de tendências de décadas anteriores, conta, também, com um considerável esforço renovador.

O que mudou na literatura juvenil das décadas de 1970 e 80 até hoje? Que tendências se consolidaram? Quais caíram por terra, desapareceram, ou ficaram esquecidas? Quais estão sendo revitalizadas? Historicamente, quase quarenta anos podem não ser tempo suficiente para diagnosticar e precisar as transformações desse período, mas é possível demarcar as trajetórias e, em uma perspectiva da crítica literária, estabelecer as tendências da literatura juvenil produzida atualmente no Brasil.

Caracterização da literatura juvenil contemporânea conforme Teresa Colomer

Em seu estudo, A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual, Colomer se propôs à caracterização de narrativas infantis e juvenis contemporâneas. O universo pesquisado pela autora diz respeito a um corpus total de 201 narrativas, incluídas em 150 obras para crianças e jovens publicadas em primeira edição na Espanha a partir do restabelecimento da democracia no país (1977-1990), e que obtiveram destaque em premiações e em listas elaboradas pela crítica especializada. As obras analisadas foram divididas em blocos, de acordo com a idade e a capacidade interpretativa dos destinatários, e do que se julga ser adequado aos seus interesses: contos para 5-8 anos, contos para 8-10 anos, romances para 10-12 anos e romance juvenil, para 12-15 anos.

Desde os fins da década de 1970, a literatura infantil e juvenil experimentou um “enorme impulso inovador para adequar-se às características de seu público atual” (Colomer, 2003COLOMER, Teresa (2003). A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global., p. 173), formado por leitores integrados em uma sociedade alfabetizada e familiarizados com os sistemas audiovisuais. Trata-se, pois, de crianças e jovens próprios das sociedades contemporâneas, “a quem se destinam textos que refletem as mudanças sociológicas e os pressupostos axiológicos e educativos de nossa sociedade pós-industrial e democrática” (id., p. 174). As características desses novos destinatários demandam “importantes mudanças em relação à narrativa anterior, nos critérios dos autores sobre o que é adequado e pertinente, nos temas que abordam em suas narrativas, na descrição do mundo que oferecem e nos valores que propõem” (id., ibid.). Diante desse contexto, a pesquisadora espanhola detectou fatores que conduzem à necessidade de modelos literários diversificados, os quais afastam as narrativas infantojuvenis atuais “dos pressupostos básicos de simplicidade antes estabelecidos” (id., p. 175).

De fato, durante as décadas de 1960 e 70, as sociedades ocidentais experimentaram importantes mudanças, tanto nas formas de vida, quanto nos valores ideológicos que sustentam a concepção social sobre a educação de crianças e jovens. No Brasil, a modernização ocorrida a partir do restabelecimento democrático (1985) também implicou a difusão de novos valores, mudanças importantes nas formas de vida e um desenvolvimento sem precedentes dos livros para crianças e jovens. Nesse sentido, nas décadas finais do século XX, as narrativas infantis e juvenis passaram a abordar novos temas devido às “mudanças sofridas pela produção editorial de livros para crianças e jovens” (id., p. 104).

As inovações delineadas demandam maior complexidade dos elementos que configuram o discurso narrativo, o qual se afasta dos pressupostos básicos “de uma estrutura simples, um ponto de vista onisciente, uma voz narrativa ulterior e um desenvolvimento cronológico linear” (id., p. 176). Constatam-se “inovações situadas nos temas tratados, no tipo de imaginário, nos personagens, no cenário narrativo ou na incorporação de recursos não-verbais” (id., ibid.).

Ademais, os livros infantojuvenis tiveram de variar seus temas, tanto para refletir os problemas de vida próprios da realidade dos leitores quanto para responder à preocupação educativa que, fruto de novas atitudes morais, debilitava o consenso sobre a preservação da infância e da adolescência como etapas inocentes e incontaminadas, pensamento comum na narrativa de décadas anteriores. Surgem, pois, narrativas mais centradas em “encarar os problemas, do que em ocultá-los” (id., p. 257).

Os gêneros literários predominantes

Ao analisar os romances juvenis contemporâneos, Colomer constata que “os gêneros literários analisados têm uma presença quantitativa muito homogênea entre as narrativas para adolescentes” (id., p. 248). Trata-se de um grupo variado, que abarca obras que tematizam a construção de uma personalidade própria, a vida em sociedade, a ficção científica, o romance policial, narrativas históricas, etc. Contudo, quando se consideram as obras a partir de agrupamentos mais gerais, destaca-se, por ordem quantitativa, o desenvolvimento das seguintes temáticas:

  • A instrospecção psicológica: a tendência mais importante da narrativa juvenil é constituída por narrativas que descrevem a “vivência individual de um protagonista, normalmente associada ao amadurecimento na etapa adolescente” (id., p. 249). Os temas são narrados por meio de uma perspectiva “absolutamente centrada na personagem” (id., ibid.). Trata-se, pois, de uma narração mais intimista e introspectiva, de modo que “o leitor conhece as ações e reflexões do personagem mediante sua própria voz” (id., p. 334).

  • A denúncia social: “consiste na descrição e denúncia de situações de exploração econômica e de repressão social” (id., p. 250).

  • Os jogos de ambiguidade sobre a realidade: corresponde à inserção da fantasia nas narrativas para adolescentes, “através dos modelos de forças misteriosas, de ficção científica e de fantasia moderna” (id., p. 251).

O quadro desenvolvido pela autora é elucidativo das tendências da literatura infantojuvenil contemporânea. Em cada faixa de idade, Colomer procurou detectar “fórmulas mais homogêneas destinadas a responder às fantasias e necessidades psicológicas que se consideram predominantes nelas” (id., p. 177). Grifamos a coluna correspondente aos gêneros mais desenvolvidos nas narrativas juvenis, alvos de nossa análise:

Quadro 1
Gêneros narrativos predominantes na narrativa infantil e juvenil contemporânea segundo a idade do público

As inovações temáticas

Conforme Colomer, as maiores inovações temáticas ocorrem na literatura dirigida aos leitores maiores de dez anos: “Nada menos que 67,17 por cento das obras [romances juvenis] do corpus abordam temas pouco habituais na narrativa anterior, o que torna evidente que este é um dos eixos mais claros de renovação desta literatura” (id., p. 257). Como resultado global, a narrativa para adolescentes é a mais inovadora: “o desenvolvimento recente da literatura juvenil, assim como seu propósito de atrair a atenção de um público adolescente, conduziu, sem dúvida, à introdução de temas com pouca ou nenhuma tradição na ficção infantil e juvenil” (id., p. 282). Seguindo uma ordem quantitativa, a autora lista as inovações temáticas mais comuns na ficção destinada aos jovens leitores:

  • “A abordagem de temas sociais próprios da sociedade moderna” (id., p. 283), como o racismo, a (in)tolerância entre culturas, situações de exploração econômica e repressão política, corresponde à inovação temática mais numerosa nos romances juvenis.

  • O segundo elemento quantitativo de inovação temática diz respeito à “descrição de conflitos psicológicos, com bastante frequência sem elementos distanciadores que os suavizem” (id., ibid.). Muitos dos conflitos abordados - o amor, a repercussão afetiva da conduta dos pais, o enfrentamento da enfermidade e da morte, entre outros -implicam a descrição do mundo interior das personagens, que relatam como sentem os conflitos afetivos ou os inerentes à condição humana.

  • Outro tipo de inovação temática bastante extensa abarca obras que “contêm temas considerados impróprios” (id., p. 284), ou seja, conflitos considerados inadequados por sua dureza, tratados sempre por meio de uma perspectiva realista, sem atenuantes fantásticas, referindo-se tanto à dor individual (a cegueira, a depressão, a morte ou a anorexia), à violência social ou a problemas familiares, como o divórcio.

As personagens, o tempo, o espaço, a fragmentação e a complexidade narrativas

Com relação às personagens das narrativas juvenis contemporâneas, a pesquisadora espanhola constata que há uma “tendência de assumir uma ficção protagonizada por personagens em correspondência direta com as características emocionais e psicológicas de seus destinatários” (id., p. 293). A presença tradicional dos antagonistas tem sofrido mudanças. Segundo a autora, “o desvio principal é a inexistência de antagonistas concretos (…). quando aparecem (…), quase a metade deles não apresenta nenhuma conotação negativa estável. Ou são oponentes meramente funcionais, ou se reconvertem (…), ou são desmistificados ao se colocarem a serviço do humor e da superação de problemas psicológicos” (id., p. 297-8). Quanto ao cenário temporal e espacial mais recorrente nas narrativas juvenis, há a predominância da “vida urbana e atual, também como consequência da vontade de proximidade às formas predominantes de vida dos destinatários” (id., p. 304).

No que diz respeito à fragmentação narrativa, a autora afirma que a partir dos dez anos aumentam “a autonomia entre as unidades narrativas e a inclusão de diferentes formas textuais, questões favorecidas pela maior extensão das narrativas e a premissa de que os leitores têm um conhecimento textual mais diversificado” (id., p. 319). Com relação à complexidade narrativa na literatura juvenil, a autora conclui que “mais da metade das obras se afasta também das pautas de simplicidade narrativa por sua perspectiva focalizada, praticamente sempre situada no protagonista da história. (…) A focalização se combina majoritariamente com o uso do narrador interno da história” (id., p. 333-4).

Literatura juvenil brasileira contemporânea Obras premiadas entre 2001 e 2009

A pesquisa de Teresa Colomer se circunscreve às narrativas juvenis espanholas. Contudo, as características identificadas pela autora também se fazem presentes - com algumas peculiaridades - na literatura juvenil brasileira.

Ao analisar narrativas infantojuvenis publicadas no Brasil na década de 1990, Gloria de Souza diagnosticou uma fase de amadurecimento e revitalização literária, marcada pelo “surgimento de um bom número de autores novos, pela diversidade de temáticas trabalhadas e pela utilização de recursos até então exclusivos da literatura geral” (2006SOUZA, Gloria Pimentel Correia Botelho de (2006). A literatura infantojuvenil brasileira vai muito bem, obrigada!. São Paulo: DCL., p. 14). Tal constatação pode ser confirmada por meio da análise das obras premiadas pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FLNIJ).

A concessão do prêmio da FNLIJ (ver site) teve início em 1974. Até 1978, contemplava apenas a categoria “Criança”. A partir de 1978, passa a abranger, também, a categoria “Jovem”. Até 2000, foram premiados os autores Lygia Bojunga (1978, 1980, 1985), Marina Colasanti (1979, 1992, 1993), Ana Maria Machado (1981, 1982), João Ubaldo Ribeiro (1983), Eliane Ganem (1984), Roseana Murray (1986), Jorge Miguel Marinho (1987, 1993), Bartolomeu Campos de Queirós (1988, 1991), Paulo Rangel (1989), Isabel Vieira (1990), Sonia Rodrigues Mota (1994), Luiz Raul Machado (1995), Maria Lúcia Simões (1996), Nilma Gonçalves Lacerda (1997), Pauline Alphen (1998), Gustavo Bernardo (1999), Luís Carlos de Santana (1999) e Joel Rufino dos Santos (2000). Lygia Bojunga e Bartolomeu Campos de Queirós ainda foram condecorados na categoria “Jovem hors-concours”. Lygia recebeu a referida premiação nos anos de 1996 (por duas obras) e 1999; Bartolomeu, nos anos de 1995 e 1996.

Com exceção de Marina Colasanti e Bartolomeu Campos de Queirós, os autores contemplados com o prêmio da FNLIJ entre os anos de 2001 e 2008 ainda não haviam sido premiados em anos anteriores:

Quadro 2
Ganhadores do prêmio da FNLIJ

A concessão do prêmio Jabuti3 3 Disponível em <http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/edicoes-anteriores/>. Acesso em 12 jan. 2010. , por sua vez, teve início em 1959. Até o ano de 1992, foram premiados, na categoria “Literatura juvenil”, os autores Isa Silveira Leal (1962 e 1969), Lucia Machado de Almeida (1968), Lucilia Junqueira de Almeida Prado (1972), Haroldo Bruno (1980), Carlos Moraes (1981), João Carlos Marinho (1982), Bartolomeu Campos de Queirós (1983), Jane Tutikian (1984), Giselda Laporta Nicolelis e Ganymedes José (1985), Mustafa Yazbek (1986), Vivina de Assis Viana (1989), Ricardo Azevedo (1991) e Stella Carr (1992). Nos anos de 1963-67, 1970-71, 1973-79, 1987 e 1988 a categoria não foi contemplada com premiações.

Entre os anos de 1993 e 2004, as categorias “Literatura infantil” e “Literatura juvenil” fundiram-se, e as premiações passaram a contemplar a categoria “Infantil ou Juvenil”. Em 1993, foram premiados os autores Ângela Carneiro, Marina Colasanti, Lygia Bonjuga e Ângelo Machado; em 1994, Marina Colasanti, Luiz Antonio Aguiar e Jorge Miguel Marinho; em 1995, Mirna Pinsky e Sergio Capparelli; em 1996, Graziela Bozano Hetzel, Alberto Martins e Darcy Ribeiro; em 1997, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e José Paulo Paes; em 1998, Nilma Gonçalves Lacerda, Katia Canton, Maria Tereza Louro e Luciana Sandroni; em 1999, Ricardo Azevedo e Lourenço Cazarré; em 2000, José Paulo Paes, Ângela Lago e Ana Maria Machado.

Com exceção de Ângela Lago, Ricardo Azevedo, Bartolomeu Campos de Queirós, Sérgio Capparelli e Jorge Miguel Marinho, os autores contemplados com o prêmio Jabuti entre os anos de 2001 e 2009 ainda não haviam sido premiados em anos anteriores. Vale lembrar que, a partir de 2005, a categoria “Infantil ou Juvenil” desmembrou-se, novamente, em “Infantil” e “Juvenil”.

Quadro 3
Ganhadores do prêmio Jabuti

Tipologia das obras juvenis brasileiras premiadas entre 2001 e 2009

A partir das premiações concedidas pela FNLIJ e pela CBL, que outorga o prêmio Jabuti, e das características das narrativas juvenis atuais evidenciadas por Colomer, podemos estabelecer uma tipologia da literatura juvenil brasileira na primeira década do século XXI, entre os anos de 2001 e 2009. O quadro 4, na página ao lado, atenta, pois, para algumas das possibilidades de mapeamento das tendências temáticas de algumas obras literárias juvenis publicadas no Brasil nos últimos anos. Vale lembrar que nenhum dos livros premiados pode ser enquadrado em uma única linha, dada a multiplicidade de temas que abordam.

Muitas das características destacadas por Teresa Colomer referentes à narrativa juvenil atual têm correspondência direta na literatura juvenil publicada no Brasil nos primeiros anos do século XXI. Contudo, as narrativas brasileiras possuem traços específicos, que não foram contemplados pelo estudo da pesquisadora espanhola. De maneira sintética e panorâmica, e valendo-nos da temática predominante em cada obra, é possível que visualizemos o delineamento das seguintes linhas ou tendências:

Linha de introspecção psicológica

Predominam, no Brasil, narrativas juvenis pautadas pela introspecção psicológica, que exploram o “espaço interior” das personagens, geralmente adolescentes. Conjugadas ao tema, estão duas inovações temáticas representativas da literatura juvenil publicada nos últimos anos: a descrição de aspectos psicológicos dos protagonistas e a abordagem de conflitos familiares, amorosos, bem como a tematização de questões polêmicas e presentes na vida do jovem atual, como a morte, a enfermidade, a dor e a solidão, entre outros.

Em O rapaz que não era de Liverpool (prêmio FNLIJ 2006 e Barco a Vapor 2005), de Caio Riter, Marcelo, jovem de quinze anos, narra as emoções e os sustos vividos por ocasião da descoberta de sua adoção. Adeus conto de fadas (1o lugar Jabuti 2007), antologia de minicontos de Leonardo Brasiliense, contempla jovens em situações cotidianas, que relatam suas emoções e experiências relacionadas, entre outros, à escolha da profissão, aos problemas com a imagem e à gravidez precoce.

Laura Bergallo, em Alice no espelho (3o lugar Jabuti 2007), enfoca a ditadura a modelos estéticos a que se submetem várias adolescentes, que, à custa de sacrifícios de toda ordem, sentem-se obrigadas ao enquadramento a padrões físicos e comportamentais, considerados adequados para a integração ao meio social. Sérgio Capparelli, por sua vez, no livro de poemas O duelo do Batman contra a MTV (1o lugar Jabuti 2005), dedica-se à abordagem das relações entre pais e filhos. Em Tão longe… Tão perto (2o lugar Jabuti 2008), Silvana de Menezes dá vazão a conflitos familiares e temas considerados delicados, como a morte e a doença. A distância das coisas (3º lugar Jabuti 2009), de Flávio Carneiro, também segue uma linha introspectiva e intimista, na qual cabe ao jovem protagonista atuar, também, como investigador.

Quadro 4
Temáticas predominantes nas obras premiadas pela FNLIJ e pelo Jabuti entre 2001 e 2009

As temáticas desenvolvidas por tais narrativas vão ao encontro da constatação de Cyana Leahy-Dios referente aos assuntos que, atualmente, têm sido alvo de interesse dos jovens:

De forma ampla e generalizada, os principais interesses dos jovens adultos e adolescentes em todos os tempos têm sido o conhecimento do próprio corpo, as relações sociais, afetivas, amorosas e sexuais, as dificuldades de relacionamento em família e com amigos. Publicações recentes tratam de preconceitos raciais, sexuais, de gênero, sociais, financeiros; de problemas em família, separação dos pais, abuso sexual, dificuldades de diálogo, disputas entre irmãos; de iniciação sexual, gravidez e aborto, da prevenção de doenças sexualmente transmissíveis; de crianças e adolescentes em situação de rua, de problemas políticos etc. (Leahy-Dios, 2005LEAHY-DIOS, Cyana (2005). “A educação literária de jovens leitores: motivos e desmotivos”. In: RETTENMAIER, Miguel (Org.); RÖSING, Tania M. K. (Org.). Questões de literatura para jovens. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo., p. 40)

Assim, a tendência predominante nas narrativas juvenis brasileiras contemporâneas explora, de maneira geral, temáticas acerca do amadurecimento e da aprendizagem humana de jovens protagonistas que buscam o conhecimento de si mesmos e dos outros. Questões comportamentais e familiares são também abordadas com frequência, por meio de enredos que cedem espaço para assuntos polêmicos, como o preconceito, a adoção e a morte.

Linha de denúncia social

Temáticas centradas na denúncia social também obtêm destaque nas narrativas juvenis brasileiras. Trata-se de uma ficção preocupada em conciliar literatura e denúncia e que se debruça sobre a crítica social, a partir da representação dos conflitos que assolam o país, em particular os grandes centros urbanos. Em sua maioria, são histórias que internalizam, na personagem juvenil, as várias crises do mundo social. A violência, a corrupção, o narcotráfico e a miséria são, dentre outros tantos, temas recorrentes nessa produção.

Em Eles não são anjos como eu (2o lugar Jabuti 2005), de Marcia Kupstas, a história é narrada a partir do ponto de vista de um anjo da guarda, que aborda a problemática social do uso de drogas (no caso, o crack) e do abandono de crianças e velhos. Mohamed, um menino afegão (prêmio FNLIJ 2002), de Fernando Vaz, apresenta ao leitor o desconhecido cenário afegão, os valores islâmicos e a visão de um menino que luta para sobreviver e compreender a irracionalidade da guerra. Assim, além de dialogar com a história islâmica, a obra aborda conflitos étnicos e sociais da sociedade contemporânea.

Tem-se, assim, uma tendência realista, que apresenta um sentido político e ideológico, na medida em que denuncia as questões mais prementes de uma sociedade cada vez mais urbanizada e com grandes desigualdades econômicas e sociais. O adolescente, enquanto leitor, é chamado a vivenciar problemas que, abordados pela literatura, possibilitam, muitas vezes, a construção de respostas pessoais para os conflitos vividos.

Linha da fantasia

Se há lugar para uma vertente mais realista, a literatura juvenil brasileira publicada no início do século XXI também cede espaço para a fantasia, embora com menor recorrência. Constitui-se, em sua maioria, por narrativas nas quais o maravilhoso e o fantástico estão em sintonia com a realidade. Enquanto os contos de Marina Colasanti em Penélope manda lembranças (prêmio FNLIJ 2001) expõem situações inusitadas pautadas pelo insólito e pelo mágico, Luna Clara & Apolo Onze (prêmio FNLIJ 2002), de Adriana Falcão, mescla elementos fantásticos e humorísticos, retratados por meio de uma história de amor.

Linha das relações amorosas

A tematização das relações amorosas integra boa parte das narrativas premiadas, sendo preponderante em Fábulas do amor distante. Nas demais, é apenas uma das muitas temáticas abordadas, apresentando papel secundário.

Linha de narrativas policiais, investigativas

Menos comuns do que as vertentes apresentadas até então, as obras de cunho policial, com certo clima detetivesco, geralmente envolvem a elucidação de crimes, desaparecimentos e/ou sequestros, em que jovens protagonistas costumam ser os principais investigadores.

Em O dia em que Felipe sumiu (3o lugar Jabuti 2006), Milu Leite, ao mesmo tempo em que trata de questões ecológicas, incorpora elementos do romance policial. Na narrativa, Felipe e sua turma transformam-se em um bando de detetives para encontrar o amigo que, há dias, está desaparecido.

Linha de terror e de suspense

Entre as obras juvenis premiadas nos últimos anos, há apenas uma que, ao fazer uso de elementos fantasmagóricos e góticos, dedica-se à assombração, ao suspense e ao terror. Trata-se de Cidade dos deitados (2o lugar Jabuti 2009), de Heloisa Prieto, em que, por meio da voz de uma garota, a autora conduz o leitor por uma cidade habitada por seres, aparentemente, de outro mundo.

Linha de revalorização da cultura popular

Outra expressão que tem sido valorizada no mercado editorial juvenil publica obras com influências africanas ou indígenas, tendência relacionada à revalorização da cultura popular, por intermédio da recuperação bem-humorada de contos, lendas e mitos, aliada à redescoberta do índio, não mais idealizado como no período romântico. Daniel Munduruku, com mais de trinta livros editados, lidera um movimento de divulgação da cultura indígena. No premiado Crônicas de São Paulo: um olhar indígena (prêmio FNLIJ 2004), discorre sobre os significados dos nomes de origem indígena de lugares de São Paulo e reflete sobre os povos que participaram da construção da cidade. A cada crônica, o autor apresenta relatos de sua história e cultura.

Na linha de revalorização da cultura popular, Ricardo Azevedo, em No meio da noite escura tem um pé de maravilha (2o lugar Jabuti 2003), apresenta dez contos que, por meio de situações fantasiosas, retratam o imaginário popular brasileiro. Em Contos de enganar a morte (2o lugar Jabuti 2004), também composto por narrativas de caráter popular, o autor apresenta quatro histórias que retratam as peripécias vividas por heróis que não querem morrer e os truques que utilizam para escapar da morte.

A narrativa juvenil brasileira contemporânea conta, também, com outras duas fortes tendências, de grande representatividade, pouco mencionadas no estudo de Teresa Colomer, ou indicadas como pouco recorrentes: as obras de cunho histórico e aquelas em que as referências intertextuais configuram o elemento principal de organização dos textos.

Linha do romance histórico

Destacam-se, atualmente, narrativas juvenis contemporâneas elaboradas com base em fatos ou momentos históricos, a partir de dados registrados nos anais da história oficial. Cunhataí: um romance da Guerra do Paraguai (prêmio FNLIJ 2003), de Maria Filomena Bouissou Lepecki, retrata a Guerra do Paraguai, rediscutindo acontecimentos marcantes da história tradicional. Era no tempo do rei: um romance da chegada da corte (prêmio FNLIJ 2007), de Ruy Castro, promove o encontro de uma das figuras mais importantes da história do Brasil, Dom Pedro I, filho de Dom João VI, com o protagonista de um dos clássicos da literatura nacional, Leonardo, de Memórias de um sargento de milícias, escrito por Manuel Antônio de Almeida em 1852. Em Chica e João (1o lugar Jabuti 2001), Nelson Cruz registra a figura de Chica da Silva e seu casamento com o ouvidor João Fernandes de Oliveira. A narrativa O barbeiro e o judeu da prestação contra o sargento da motocicleta (1o lugar Jabuti 2008), de Joel Rufino dos Santos, é ambientada no final da Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), pano de fundo para o autor abordar temas como o nazismo, a ditadura e a intolerância religiosa.

Linha da intertextualidade

Constantemente, as narrativas juvenis brasileiras fazem referência a manifestações artísticas próprias da tradição culta, sobretudo a literária, que se supõem reconhecíveis para os leitores e que se entendem como adequadas para sua formação literária básica.

Em O Mário que não é de Andrade (prêmio FNLIJ 2001), Luciana Sandroni resgata, por meio de um claro tom biográfico, a trajetória de um dos maiores nomes da cultura e da literatura brasileira no século XX, Mário de Andrade. Em No longe dos Gerais (3o lugar Jabuti 2005), Nelson Cruz, impressionado com as imagens que surgem do texto de João Guimarães Rosa e fascinado pelo “laboratório” vivenciado pelo escritor durante viagem realizada em 1952, dá vazão ao olhar de um menino presente em uma boiada.

Por sua vez, Moacyr Scliar, em Ciumento de carteirinha (2o lugar Jabuti 2007), partindo do pressuposto de que movido pelo amor - ou pelo ciúme - o homem é capaz de cometer as maiores loucuras, retrata a história do ciumento Queco, que, envolvido em uma competição escolar em torno de Dom Casmurro, de Machado de Assis, e com ciúme de Júlia, uma antiga namorada que estava de caso com outro garoto, resolve forjar uma carta do próprio autor para provar a culpa da enigmática Capitu.

Lis no peito: um livro que pede perdão (1o lugar Jabuti 2006), de Jorge Miguel Marinho, dialoga com a obra de Clarice Lispector e faz uso da intertextualidade para retratar o amor entre jovens. Heroísmo de Quixote (2o lugar Jabuti 2006), de Paula Mastroberti, dialoga com o clássico Dom Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes y Saavedra. A obra também busca conexões com o romance O idiota, de Dostoiévski, além de realizar várias referências visuais à cultura pop, como super-heróis em quadrinhos, o cinema de ação e as músicas de David Bowie. O fazedor de velhos (1º lugar Jabuti 2009), de Rodrigo Lacerda, apresenta uma experiência integral de leitura vivida desde a primeira infância, que, seguramente, influencia a formação e as preferências do adulto leitor.

Assim, uma vertente bastante significativa da literatura juvenil brasileira alude a referências culturais que se supõe compartilhadas entre os narradores e os leitores. As relações intertextuais presentes nas narrativas, por meio das quais se amplia o diálogo entre formas artísticas e culturais, são, pois, aspectos que traduzem uma visão contemporânea da literatura juvenil.

A análise das temáticas preponderantes nas narrativas juvenis brasileiras contemporâneas permite afirmar que, atualmente, configuram-se novos modelos na representação literária do mundo, os quais supõem a renovação dos padrões literários existentes. Os gêneros literários predominantes e as inovações temáticas delineadas encontram-se em estreita relação, de tal maneira que a mudança efetuada nesses aspectos implica alterações nos tipos de desfecho produzidos, na atuação do narrador, na caracterização das personagens e nos cenários narrativos utilizados. Da mesma forma, configura-se um aumento da complexidade narrativa, por meio da adoção de perspectivas focalizadas, vozes narrativas intradiegéticas e anacronismos na ordem do discurso. Incrementa-se, também, o grau de participação outorgado ao leitor na interpretação da obra. A exigência de uma leitura mais participativa deriva de muitas das características adotadas pelas obras atuais, como a utilização de referências intertextuais. Além disso, cabe salientar que a narrativa juvenil se afasta do discurso unívoco e controlado pelo narrador.

Observa-se, pois, uma fase de amadurecimento dessa literatura, dado o surgimento de um bom número de autores novos e da diversidade de temáticas trabalhadas. O período analisado supõe uma época especialmente ativa na modernização da narrativa juvenil, processo presidido pela ênfase em sua função literária. O impulso experimental ampliou os limites em relação aos condicionamentos anteriores sobre o que se considera adequado e compreensível em obras dirigidas a jovens. A criação de um produto cultural menos protetor em relação a seus destinatários e mais inovador em suas características configura um novo itinerário de formação literária para a adolescência. A narrativa juvenil consolida-se como literatura escrita, e isso implica maior permeabilidade em relação à literatura de adultos, especialmente em relação à narrativa psicológica. Um número significativo de autores experientes e premiados, com reconhecimento de público e de crítica, garante, ao lado de novos autores, uma produção constante e de reconhecida qualidade estética.

Os resultados obtidos se oferecem como dados objetivos, suscetíveis de serem contrastados com futuras análises de outros períodos ou de divisões do corpus por literaturas específicas. Assinalamos alguns títulos e autores - com certeza de que eles poderão abrir a porta para uma maior divulgação e um maior conhecimento da literatura juvenil brasileira atual.

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  • ZILBERMAN, Regina (2005). Como e por que ler literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva.
  • 1
    O presente artigo é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada Adriana Falcão, Flávio Carneiro, Rodrigo Lacerda e a literatura juvenil brasileira no início do século XXI, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisa recebeu a orientação da profa. Dra. Regina Zilberman e contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    Optou-se por atualizar a grafia das citações, as quais estarão de acordo com o novo acordo ortográfico, firmado em 2009.
  • 3
    Disponível em <http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/edicoes-anteriores/>. Acesso em 12 jan. 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010

Histórico

  • Recebido
    Jul 2010
  • Aceito
    Set 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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