Resumo
O artigo aborda a representação da identidade local como termo orientador da produção romanesca e da crítica e da historiografia literária no Brasil e na América Latina. Comentam-se as teses de Roberto Echevarría sobre o romance latino-americano, que permitem situar num quadro geográfico mais amplo as proposições de Flora Süssekind sobre o romance brasileiro. As proposições de Echevarría e Süssekind orientam uma leitura da desconstrução, empreendida nas décadas de 1980 e 1990, do “paradigma da nacionalidade”. Sugere-se a exaustão daquele gesto crítico, dada a mudança recente na relação da literatura brasileira e latino-americana com a representação da identidade local. Defende-se que esta mudança demanda uma nova abordagem historiográfica: como estratégia para revelar padrões históricos ainda invisíveis, defende-se o revigoramento da crítica voltada para a análise da singularidade das obras. Por fim, a leitura de alguns autores contemporâneos sintetiza as proposições sugeridas.
Palavras-chave:
romance brasileiro contemporâneo; romance latino-americano contemporâneo; história literária brasileira; crítica literária brasileira
Abstract
The essay debates the representation of local identity as a guiding theme of the novel, as well as of critique and literary history in Brazil and Latin-America. We comment the theses of Roberto Echevarría about the Latin-American novel, which place on a wider geographical frame the propositions by Flora Süssekind about the Brazilian novel. Echevarría’s and Süssekind’s propositions orient our reading of the deconstruction, made in the 1980s and 90s, of the “nationality paradigm”. We then suggest the exhaustion of that critical gesture, given the recent changes in the representation of local identity in Brazilian and Latin-American literature. We argue that such changes demand a new historiographical approach: as a strategy to reveal historical patterns that are still invisible, we defend an analytical focus on the singularities of individual works. Finally, the readings of some contemporary authors synthesize the propositions forwarded.
Key words:
contemporary brazilian novel; contemporary latin-american novel; brazilian literary history; brazilian literary critique
As últimas décadas testemunharam um esforço intenso, ainda que localizado, de investigação da atuação da nacionalidade na formação da literatura e da tradição crítica brasileira. Na condição de conteúdo, forma ou missão, a nacionalidade teria sido um termo definidor da nossa literatura (e em especial da nossa narrativa): como conteúdo, pela recorrência do padrão realista na representação da paisagem natural e da realidade social; como forma, nas tentativas de adequar a estética da literatura à particularidade histórico-cultural do país (como no romantismo da geração de 1830 e na “antropofagia”); como “missão” (para resgatarmos a formulação de Nicolau Sevcenko (2003SEVCENKO, Nicolau (2003). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras.), na aproximação da literatura à vida social e política. A nacionalidade teria orientado a temática e o debate sobre a estética e a função social da literatura brasileira, fazendo da representação da particularidade local um termo de definição da sua especificidade; com isso, as disciplinas com as quais o nosso sistema literário preferencialmente dialogou foram aquelas que têm no Brasil o seu objeto principal - como é o caso da sociologia, da antropologia, da história, da geografia, da análise econômica.
Por muito tempo, porém, esta atuação sistêmica do paradigma da nacionalidade permaneceu nublada, até que a sua desconstrução a trouxe à tona nos anos 1980. Neste movimento, também a nossa historiografia literária foi relida. Um dos maiores sucessos da crítica recente (em Luiz Costa Lima, Alcir Pécora, João Adolfo Hansen, João Cezar de Castro Rocha) esteve na dissecação da atuação do paradigma da nacionalidade conjuntamente na literatura e na crítica literária brasileiras, apontando a constituição de um sistema literário que, a partir de meados do século XIX (quando a pressão pela afirmação do Brasil como nação independente agregrou a literatura ao esforço de teorização da nossa singularidade nacional), teria se habituado a esperar da literatura brasileira a representação do dado local. A representação da identidade teria se estabilizado, assim, tanto como uma prática literária quanto como uma expectativa crítica de “longa duração”, o que a teria levado a se comportar como o tipo de representação que a filósofa Ruth Millikan (2005MILLIKAN, Ruth Garret (2005). Language: a biological model. Oxford: Oxford University Press.) denominou de pushmi-pullyu, ato de fala que é simultaneamente diretivo e descritivo - isto é, que descreve algo indicando, ao mesmo tempo, aquilo que este algo deve ser. Interessa a Millikan o exemplo da mãe que diz à criança que “não se come a comida com a mão”: ao mesmo tempo em que a frase descreve objetivamente um padrão de comportamento, ela diz à criança como ela deve se comportar. Esta ambiguidade entre a descrição e a prescrição esteve presente tanto no arroubo de Sílvio Romero contra a pouca “brasilidade” de Machado de Assis, quanto na sua posterior “correção” por Roberto Schwarz: em ambos os casos - e à revelia da pertinência de uma outra leitura - atuava a expectativa de que um autor brasileiro se dedicasse ao Brasil, assim afirmando o seu pleno pertencimento à nossa tradição literária.
Nas últimas décadas, a constatação desta conversão de uma tendência majoritária numa norma não declarada se deu por meio de um procedimento crítico, que escavou pressupostos, desmistificou verdades, acusou padrões, desnaturalizou relações. Paralelamente, um impulso para destravar aquele quadro histórico veio da própria produção literária, que deixou, discretamente, de manifestar um elo umbilical com a nacionalidade: discretamente, num gesto que sequer parecia estar sendo teorizado, a literatura brasileira cumpria a demanda, colocada pelo giro reflexivo da crítica, de que ela “passasse a outra coisa”. Com isso o problema se volta, agora, para a crítica: diante desta novidade na produção literária, como deve a historiografia acompanhá-la? Enquanto se permanece no giro crítico, não se acompanha o novo comportamento da literatura - mas como abordar a mudança?
Não há resposta simples, assim como não há comprovação simples da hipótese da diminuição da importância da nacionalidade para a nossa literatura. Mas um percurso sucinto, focalizado sobre o gênero romanesco, permitirá lançar algumas sugestões. Nas próximas páginas comentaremos, de saída, as teses de Roberto González Echevarría sobre a história do romance latino-americano. Elas nos permitirão situar, num quadro geográfico mais amplo, as proposições de Flora Süssekind sobre o romance brasileiro, que nos inspiraram a escrever os parágrafos iniciais deste texto. Paralelamente a Echevarría, Süssekind fez no Brasil um trabalho semelhante ao dele, em suas implicações para a desconstrução do paradigma da nacionalidade: após ampliarmos, com Echevarría, o quadro para a narrativa latino-americana, sobre Süssekind falaremos num segundo momento, já atinando para as diferenças entre um e outro assim como para os limites aos quais parece chegar, hoje, o momento crítico que eles inauguraram. Daí que, num terceiro momento, passemos a falar sobre o desafio que a mudança na relação da literatura brasileira e latino-americana com o “Brasil” e a “América Latina” impõe, hoje, à historiografia literária: como estratégia para revelar padrões históricos ainda invisíveis, defenderemos o revigoramento da crítica voltada para o enfrentamento da singularidade das obras. Ao final, faremos alguns comentários sobre autores contemporâneos, como estratégia de síntese das proposições sugeridas.
Echevarría e a narrativa latino-americana
Logo no início de Mito y archivo, sua história da narrativa latino-americana, Roberto Echevarría ensaia uma teoria geral do romance. Por ela, o romance teria se produzido historicamente a partir da imitação de discursos contemporâneos revestidos de autoridade, isto é, portadores de verdades socialmente sancionadas e conceituadas. Ao não situar a sua origem no epos - como Lukács ou Auerbach -, Echevarría explicava o romance como um gênero literário não derivado de outros gêneros literários, a sua história tendo sido pautada, pelo contrário, por uma recusa em obedecer à sua origem literária: ela teria sido a história da mimese dos discursos aos quais cada época creditava maior autoridade (e, portanto, maior poder de representar fidedignamente a realidade).
Por esta teoria, o romance jamais constituiu - porque não poderia constituir - uma categoria unívoca. Os romances não formariam uma classe de objetos a compartilhar propriedades comuns: ao se processarem no diálogo com o exterior (com a não literatura) e não com a história imanente do gênero (o cânone literário), eles se tornam muito diferentes entre si. Também a história do romance se estilhaça em inúmeras histórias locais, peculiares a ambiências nacionais ou linguístico-culturais precisas - pois em cada época e lugar o romance imitaria discursos e fontes de autoridade diferentes. A sua história se desgarraria ainda da história da poesia, rompendo a unidade da história literária: se as relações entre o romance e os outros discursos contextualmente relevantes são mais determinantes para a sua história do que a sua relação com a sua própria história imanente, o mesmo não acontece com a poesia, que seria mais orientada pelo seu próprio cânone e histórico de problemas. Para a poesia seria decisivo o diálogo com a sua própria história; poetas seriam mais frequentemente “historiadores” e “teóricos” da poesia do que romancistas o são do romance. Seguindo compassos diferentes, a narrativa seria dispersiva, centrífuga, em contraste com a maior endogenia da poesia; com isso, a própria unificação de uma e outra sob o conceito comum de “literatura” se mostraria equívoca para a definição do romance: “Gostaria de ver o romance como parte de toda a economia textual de um determinado período, não daquele preferencialmente literário” (Echevarría, 2000ECHEVARRÍA, Roberto González (2000). Mito y archivo: una teoría de la narrativa latinoamericana. México: Fondo de Cultura Económica., p. 33).
Mimetizando outros discursos dentro de constelações sociais particulares, sem se desenvolver a partir das suas formas prévias, o romance não teria apresentado uma evolução linear e progressiva. Isso permite a Echevarría postular que, apesar de originalmente europeu, o romance teria, na América Latina, deixado de ser europeu: a lei (no período colonial), a ciência (no século XIX) e a antropologia (na primeira metade do século XX) teriam sido as fontes de autoridade a servir como referência para a sua produção, conferindo-lhe certa especificidade em relação à situação europeia. Na América Latina, seria mesmo mais correto tratar da narrativa ao invés do romance, pois o romance não teria, na versão da modernidade representada pela experiência histórica latino-americana, se autonomizado como gênero da mesma maneira que na Europa. Lá, em meio a um processo tumultuoso de afirmação, o romance mais cedo se estabeleceu como uma forma específica de discurso; aqui, numa ambiência social que pouco estimulava aquela autonomia, a narrativa (especialmente antes do século XIX) teria sido dominada por gêneros não ficcionais - nos quais ainda assim, tal como no romance, expressavam-se verdades “paralelas” ao se colocar os procedimentos dos discursos sancionados a serviço de causas imprevistas: ao se engendrar uma autoridade sui generis por meio da imitação das formas, dos usos e das linguagens oficialmente representadoras do real por discursos que excediam os seus domínios de vigência. Este prisma permitia a Echevarría situar Garcilaso de la Vega, Domingo Sarmiento e Euclides da Cunha numa história da narrativa que agregava, indistintamente, obras ficcionais e não ficcionais.
Ao longo de quatro séculos, o que teria motivado a narrativa latinoamericana a se espelhar na lei, na ciência e na antropologia? O que ela teria buscado naqueles discursos - que verdades locais, não representadas, buscava-se representar pela imitação daqueles instrumentos oficiais de representação? Teria havido, historicamente, algum grande tema cujo tratamento a narrativa latino-americana procurou revestir da autoridade que apenas outros discursos possuíam? A resposta já consta no título do livro de Echevarría: entre o período colonial e o início do século XX, a narrativa latino-americana teria se lançado ao trabalho de fundar, mediante a imitação da lei, da ciência e da antropologia, os mitos de origem do nosso continente. Dito de outra forma, o romance latino-americano teria como marca de origem o lançar-se à busca da representação da origem - origens de povos, origens de nações.
Este é o tema central de Echevarría: a formação do romance latino-americano como instância de representação de uma origem - nacional, cultural, etnológica... - que, ao moldar a identidade, seria ainda atuante no presente. Para o autor, esta seria a sua marca histórica de longa duração, onde nos interessa particularmente a conclusão que ele oferece da sequência cumprida entre a colônia e a primeira metade do século XX: encerrado este longo ciclo, a década de 1960 teria testemunhado a exaustão daquele padrão. Nenhum discurso continuaria a cumprir, a partir de então, aquela função diretiva, sendo substituídos pelo “arquivo” como termo de orientação da produção romanesca. Com o termo, Echevarría remete a um arquivo virtual da história do romance latino-americano em sua representação dos “mitos” de origem: um arquivo de formas, de temas, de personagens e padrões explicativos, que teria passado a ser explorado pelos romancistas dos anos 1960 e 1970 - autores que, tendo deixado de se lançar à busca da identidade e passado a tematizar a própria identidade enquanto busca, tomavam como matéria romanesca o arquivo histórico de “mitos” que haviam funcionado, na história da literatura latino-americana, como explicação da origem. A este “arquivo” pertenciam todas as formas e estratégias historicamente adotadas para a construção literária da identidade, assim como os vários “mitos” de origem representados literariamente. Dele, tal como de qualquer arquivo, as referências do passado podiam ser retiradas e livremente utilizadas pelo autor contemporâneo, produzindo fortes efeitos de simultaneidade. Se o romance latino-americano se obcecara, historicamente, com a representação de uma origem que explicasse o presente de povos e nações, a partir dos anos 1960 aquelas explicações ressurgiam como questões - a serem deixadas em aberto. Naquele histórico de gestos de explicação, “fatos” não se dissociavam de “mitos”: o romance latino-americano teria adquirido, sob o topos do “arquivo”, uma inédita consciência-de-si, ao passar a ver como mitos as antigas “verdades” da origem. Ele teria se tornado um observador em segundo grau da sua própria história, que ele passaria a utilizar livremente como referência: não mais se orientando por discursos portadores de “verdades” e compreendendo a si mesmo como ficção, ele teria se colocado a dialogar com o seu próprio histórico de representações.
Hoje, passados mais de vinte anos da publicação das teses de Echevarría, podemos ler o seu conceito do “arquivo” como a descrição de uma simultaneidade de verdades a atuar num vácuo histórico de autoridade, tese que servia bem a um tempo em que, subitamente, autoridades se erodiam, “grandes narrativas” se esvaziavam, a dispersão se tornava a norma... Na dobra inaugurada pelo pós-estruturalismo, nenhuma verdade possuía autoridade suficiente para impor a sua própria inevitabilidade, o que favorecia a investigação de pressupostos inquestionados, de pré-conceitos não investigados, de rotinas acomodadas... E então se pôde desnaturalizar a autoridade de certas disciplinas na orientação da nossa produção romanesca e da nossa crítica literária - levando-nos ao caso brasileiro, conforme apresentado no trabalho pioneiro de Flora Süssekind.
Süssekind: o caso brasileiro
À sua maneira, Echevarría nos ajuda a compreender a recorrência da análise sociológica no estudo da literatura brasileira. Por que a filosofia e a filologia não se tornaram, aqui, tão importantes para o estudo da literatura nacional quanto nas universidades europeias? Que a sociologia e a historiografia (e principalmente a mistura de uma e outra) tenham aqui predominado, isso se explicaria pela dedicação da literatura brasileira à representação da realidade nacional - o que ocorria desde antes da criação da sociologia como disciplina acadêmica, mas que, com a profissionalização do quadro universitário no século XX, a transformaria num instrumento quase “imediato” para a interpretação da nossa literatura.
Da perspectiva atual, moldada pelo impacto da teoria literária a partir da década de 1970, explicita-se aquilo que a sociologia ocultava ao tratar a literatura como “documento histórico”: hoje entendemos que um romance não exatamente “representa” a realidade, mas sim a constrói. A literatura não “representa”, mas “cria” ativamente o mundo sobre o qual ela aparentemente “fala a respeito”. Hoje esta nota parece óbvia, mas ela não o era em 1984, quando Flora SüssekindSÜSSEKIND, Flora (1984). Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé. publicou Tal Brasil, qual romance?, livro que convergia com Echevarría ao mostrar que também o romance brasileiro se colocara como missão histórica “definir” e “explicar” a nação e a sua sociedade. Esta tese fica ainda mais clara quando lida contiguamente a O Brasil não é longe daqui, obra que Süssekind_____ (1990). O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Companhia das Letras. publicaria em 1989, um ano antes de Mito y archivo.
Süssekind descreve um sistema literário brasileiro regido, historicamente, por uma simbiose entre a produção romanesca e a crítica literária: entre a descrição e a prescrição, a crítica teria compactuado com a tendência majoritária do nosso romance ao determinar como telos da literatura brasileira a representação, de cunho objetivante, da realidade nacional (nas variadas finalidades político-críticas que este programa abrigou ao longo do tempo). A simbiose entre a crítica e a literatura teria fomentado um realismo objetivo, que anulava a sua própria ficcionalidade ao tratar o texto como um meio neutro para a expressão de conteúdos que desta forma apareceriam na literatura, assim como se manifestavam na realidade. Tal seria a feição estética, variável, mas dominante em sua longa duração, do romance brasileiro devotado à representação do Brasil (seja num viés crítico, elegíaco, utópico, idealista...): ao colocarem como expectativa normativa a representação objetiva da realidade nacional, a crítica e a historiografia teriam fomentado uma estética orientada para a acurada representação visual (pictórica, telescópica, microscópica, fotográfica) da paisagem natural e social, executada por narradores que se punham à distância da realidade imediata para falar sobre o Brasil a partir de um lugar heterogêneo a ele - mesmo que se tratasse de autores brasileiros, escrevendo para brasileiros. Um Brasil visto de fora e apresentado ao leitor conterrâneo teria, portanto, ditado o padrão das narrativas brasileiras do “mito” (pelo menos a partir do século XIX, período coberto pela autora).
Aí se nota, porém, uma diferença fulcral entre Süssekind e Echevarría: ao passo que o cubano partiu de uma teoria geral do romance que permitia compreender a história da narrativa latino-americana como um caso específico dentro de uma trajetória global multifacetada - o que dava à sua leitura um prisma descritivo -, Süssekind criticava o romance e o sistema literário brasileiro. Echevarría tratava como uma característica historicamente contingente aquilo que, em Süssekind, aparecia como uma arbitragem normativa. A sua desconstrução dos pressupostos epistêmicos subjacentes à nossa história literária assumia um viés denunciador, pelo qual se desvelava o motto que, subjacente à produção literária, trabalhava para podá-la em sua variedade, ambição e envergadura - limitando a literatura brasileira a um lugar paroquial na literatura ocidental.
Quinze anos após o trabalho inicial de Süssekind, constatava-se a extensão assumida, na academia brasileira, pelo tipo de abordagem que ela havia lançado. Em meio às comemorações do quinto centenário do Brasil, a coletânea Nenhum Brasil existe, remetendo agora ao conjunto da produção intelectual brasileira, daria à desconstrução da representação da identidade um caráter de fait accompli:
dada a incompletude constitutiva do objeto - o “Brasil” que ainda não é ou nunca foi de todo -, a linguagem assume um inesperado papel decisivo. Em outras palavras - pois é delas de que se trata -, como o objeto não provê uma referência estável, cabe à linguagem recobrir sua insuficiência com um número sem-fim de interpretações daquilo que deveria fazer do brasil, Brasil. (Rocha e Araújo, 2003ROCHA, João Cezar de Castro e ARAÚJO, Valdei Lopes de (Orgs.) (2003). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora., p. 23)
Posta desta maneira, a questão transcendia o âmbito local: os organizadores tratavam as aporias da identidade como um problema que “acompanha toda e qualquer nação moderna”. A palavra “brasil” - tal como “índia”, “frança” ou “argentina” - seria, ao fim e ao cabo, um “significante livre” a ser preenchido pelas sucessivas interpretações de uma realidade irredutível à estabilização. A cada interpretação, prevaleceria o gesto nominalista que define, intradiscursivamente, o que a coisa é: com esta nota, ao anular-se a possibilidade de se estabelecer o Brasil como “essência” enterrava-se o paradigma do “mito”, cujas manifestações eram esvaziadas de potencial descritivo e explicativo ao serem situadas, na condição de interpretações contingentes, numa longa cadeia de interpretações contingentes. Mas aí o gesto crítico chegava ao seu limite: após a denúncia do déficit de objetividade das narrativas (brasileiras e latino-americanas) do “mito”, chegava-se à denúncia do déficit de objetividade do próprio real a ser objetivado: existe “brasil”, um significante livre a ser preenchido com alguma definição, mas nenhum Brasil, pois sob tal significante não haveria nada que pudesse ser univocamente definido - nenhuma definição resistiria ao cotejo do real empírico supostamente definido.
Nisso, porém, confundia-se a identidade com a ontologia. A identidade pressupõe uma estabilização de atributos que o real, de fato, raramente permite, a sua (ao menos relativa) arbitrariedade justificando a sua desconstrução. Mas isso nada diz sobre a insistência de uma realidade situada para além da observação humana - dizemos insistência, por acreditarmos (inspirados por Alain Badiou) que o real se comporta como uma provocação permanente à nomeação daquilo que, nele, escapa ao domínio da linguagem normalizada. Nesta condição o real existe, ainda que não possa ser fixado em identidade alguma - e o Brasil, é claro, também existe. Ao se prender ao discurso e deixar o real em segundo plano, a desconstrução se limita ao momento negativo da crítica: no caso em questão, isso significa deixar em aberto o momento positivo da proposição de orientações (críticas, historiográficas) alternativas àquelas consagradas sob o regime do “mito”.
Isso interessa porque hoje, à revelia de quaisquer expectativas da crítica, o nosso romance parece estar-se dissociando da sua trajetória histórica. “Brasil” e “América Latina” têm-se tornado proporcionalmente menos importantes para o romance brasileiro e latino-americano: as proposições de Süssekind e Echevarría parecem ter vindo não apenas no momento em que as velhas verdades perdiam força, mas em que também a representação da identidade nacional começava a esmorecer como objetivo predominante da nossa produção romanesca (levando consigo a centralidade dos discursos orientadores). Assim a desconstrução do “paradigma da nacionalidade”, tão importante nas décadas de 1980 e 1990, chega a um ponto de saturação: após a virada que ela produziu, seria o caso de passarmos, agora, à investigação da(s) lógica(s) que rege(m) uma produção não mais orientada pelos termos que regeram a história anterior da nossa literatura.
Novas descrições
Antes de mais nada, consolidemos as razões da prevalência da identidade como tema predominante na literatura e na pesquisa social brasileira e latino-americana. Na condição de invenções europeias que inauguraram versões da Europa semelhantes e diferentes da matriz, as unidades latinoamericanas foram, desde o início, fatos histórico-geográficos carentes de definição: o pensamento importado da metrópole encontrou, aqui, realidades rebeldes ao seu poder explicativo, legando ao observador enigmas permanentes - as unidades latino-americanas foram, historicamente, fatos à demanda de teorias que os explicassem.
Aí não poderia ser maior o contraste com o “irmão do norte”: os Estados Unidos tiveram a sua origem fundada num conjunto de documentos de sua própria lavra (a declaração de independência, a constituição, o Bill of Rights), que ainda hoje atuam como termo regulador (ideal-normativo) para o processamento da sua história (e da sua literatura, que não abordaremos aqui). Os Estados Unidos têm aquilo que nos falta: um conjunto de ideias que, ao serem consecutivamente reinterpretadas, organizam a discussão sobre a identidade não ao redor de realidades concretas, mas de valores abstratos:
Os norte-americanos reverenciam a Constituição daquele país. Para o bem ou para o mal, tratam-na como um conjunto normativo e diretivo mais ou menos permanente, inseparável da identidade da República. Quando há necessidade de mudança na Constituição, em vez de emendá-la, prefere-se fazer de conta de que o texto constitucional significaria algo até então não percebido. (Unger, 2005UNGER, Roberto Mangabeira (2005). Necessidades falsas. São Paulo: Boitempo., p. 42)
Enquanto os Estados Unidos têm como patrimônio comum um conjunto de textos que conduz o debate orientado pela sua letra, as nações ao sul do rio Grande, carentes de escrituras fundadoras que cumprissem tal função ideal-normativa, teriam se dedicado à produção de textos que suprissem aquela lacuna. Nos Estados Unidos, um mesmo conjunto de textos fornece a chave interpretativa para um país em permanente transformação ao longo do tempo (interna e externamente); na América Latina, textos foram produzidos para interpretar lugares rapidamente criados como unidades políticas e logo dispostos como novidades históricas: caberia aos textos explicar ou/e intervir na realidade, numa tarefa afim àquela que as ciências (e as ciências sociais, em particular) assumiram a partir do século XIX. Sob este prisma, ao invés de corroborar a tese da vacuidade do “brasil” como referente, a comparação com o caso norte-americano nos mostra duas respostas diferentes ao apelo do real à nomeação: lá como aqui, é insuficiente confundir a volubilidade da “identidade” com a indicação da inessência, diante da realidade das experiências histórico-geográficas que estimularam tantas interpretações sucessivas.
Mas hoje parece que o romance latino-americano vive uma descontinuidade histórica - pelo menos quando lido à luz das teses de Süssekind e Echevarría. Não é que “tudo” tenha se transformado. Pelo contrário, muito continua igual - mas já não se constatam as mesmas tendências dominantes. Muitas obras continuam a representar a realidade sociopolítica do “Brasil” e da “América Latina”, mas é menos frequente a literatura sobre o Brasil ou sobre a América Latina - e é menos presente o realismo objetivante. Sem estabelecer qualquer corte dramático com a produção anterior, parece que um novo ciclo se iniciou nos anos 1980 (ou mesmo, e mais provavelmente, na passagem dos anos 1960 para os 1970). Sub-repticiamente, ele pode ter atuado como motivação e condição de possibilidade para que Süssekind e Echevarría olhassem de forma compreensiva e sintética as linhas anteriores de desenvolvimento do romance brasileiro e latinoamericano - mas após algumas décadas de uma produção romanesca divergente da anterior, não basta mais investigar a fundação epistêmica do ciclo passado.
Em sintonia, pois, com os romances posteriores ao paradigma da nacionalidade, novas historiografias poderiam surgir. Mas “estabelecer” pura e simplesmente um modelo historiográfico é uma tarefa quixotesca: se é verdade que está em curso um novo momento do romance latinoamericano, uma historiografia sensível às suas especificidades - e à sua diversidade - deverá se desenvolver com alguma lentidão, propondo generalizações apenas mediante o cotejo reiterado da singularidade das obras. Pois o primeiro passo deveria ser mesmo este: cotejar a singularidade, apreciá-la sem submetê-la à generalização, deixar que ela fale antes de enquadrá-la em linhagens, em tendências... Isso seria sobrepor, inicialmente, a crítica à historiografia, revigorando a análise do particular diante da dificuldade de leitura do quadro histórico sincrônico.
Seria então necessária uma nova ênfase na descrição. Em que pese o seu inevitável verniz interpretativo e valorativo, o trabalho da descrição favorece que a singularidade fale por si mesma. Ele favorece a invenção de vocábulos novos, que são exigidos para a apreensão do imprevisto - e um vocabulário novo será necessário para fugirmos à dicotomia entre a hermenêutica da nacionalidade e a sua desconstrução crítica. Um bom início estaria em incorporar à análise aquilo que foi historicamente tratado como inessencial ao sentido do romance: roupas, comidas, deslocamentos pelo território, climas, corpos, diferenças de velocidade, formas, geometrias... Ao invés de procurar “centros”, poderíamos investigar como as coisas se espalham pela superfície, como elas se interconectam construindo os eventos do enredo - poderíamos, em outras palavras, observar a ação constitutiva do acaso na arquitetura romanesca. A dinâmica do acaso é, afinal, essencial à diegese romanesca, seja nos encontros travados pelos personagens em meio às suas trajetórias, seja no enamoramento, seja no acidente ou na morte... O acaso teria sido mesmo um elemento fundador do gênero na Antiguidade; no romance grego
os acontecimentos podem vir regulados pelo acaso e não por regras de necessidade ou verossimilhança. A lógica que preside o romance grego é a da Týche (a Fortuna dos romanos), segundo a qual jovens se apaixonam em encontros casuais, viagens são povoadas de sobressaltos e, até mesmo, um homem se transforma, por engano, em animal! (Brandão, 2005BRANDÃO, Jacyntho Lins (2005). A invenção do romance. Brasília: EdUnB., p. 222)
O romance grego seria “o reino da Týche, entendida como a casualidade ou, (...) talvez de modo mais acurado: como o mero acontecimento” (id., p. 223). A Týche não seria, portanto, bem traduzida como “acaso”, termo que não faz jus à sua dimensão produtiva: ela é a contingência que, plena de consequências, determina, apesar da sua aleatoriedade, o desenrolar da diegese.
Sob a Týche, a narrativa não é plenamente determinada por um sentido que lhe seja externo e preexistente: no romance grego, “o valor da representação não depende de sua coesão com o que está por trás, mas está na própria representação” (id., p. 258). Decerto o lapso cultural e espaçotemporal que nos separa da Antiguidade é grande demais para tomarmos o romance antigo como paradigma para a análise do romance atual. Mas a única aproximação permitida - a localização sob um gênero comum - já é inspiradora: no âmbito da descrição, cuja defesa vínhamos ensaiando, a lógica da Týche permite ignorar, ao menos provisoriamente, as fontes “externas” de explicação da obra, deixando que a sua complexidade imanente assuma o proscênio. Pode-se deixar, momentaneamente, de pensar no seu entorno histórico-social e deixar que a sua singularidade apareça na sua ordenação, única e complexa, de uma realidade que, “externa”, aparece, na obra, internalizada pelos processos ficcionais da localização, da sincronização e da historização - da produção literária dos lugares, do tempo presente e do tempo passado.
Identidade local e padrão realista de representação: diluição atual
Apreciar a singularidade das obras diante da retração da representação da identidade local: duas possibilidades aparecem aí, pois junto às obras contemporâneas que não têm a identidade como tema há outras tantas que continuam, sim, a tê-la. Neste último caso, fora da orientação pelo “mito” ou pelo “arquivo”, de que maneiras o romance latino-americano localiza o presente que situa a América Latina em relação a si mesma e à sua história? Como se comporta uma América Latina não mais lida a partir do estabelecimento de um passado original ou, então, a partir de um giro autorreflexivo sobre aquele tipo de orientação? Noutra relação com o tempo, como se comporta uma América Latina não mais comprometida com o futuro, com o melhoramento ou a superação das suas limitações - uma América Latina que, mesmo quando criticada na literatura, não aparece atrelada atavicamente a um passado que a explique nem confrontada com a necessidade da mudança?
Num caso, tem-se o romance que não apresenta como tema a representação de uma unidade latino-americana qualquer; no outro, está o romance que preserva aquela temática, sem dar prosseguimento aos seus padrões históricos de processamento. Decerto a somatória das duas possibilidades não abrange a totalidade da produção romanesca recente; além disso, a falta de espaço não nos permite demonstrar com exaustividade a hipótese da diferença entre o romance latino-americano contemporâneo e as suas versões anteriores: não podemos conferir peso quantitativo ao argumento da redução da presença, nas últimas décadas, dos romances do “mito” e do “arquivo”, dos romances “tal e qual o Brasil”. Focalizando o caso brasileiro, porém, uma breve menção a nomes pode ajudar a substanciar a hipótese da rarefação do “Brasil” como tema. Pensemos em A obscena senhora D, de Hilda HilstHILST, Hilda (2001). A obscena senhora D. São Paulo: Globo., em Lavoura arcaica, de Raduan NassarNASSAR, Raduan (2009). Lavoura arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras., em Relato de um certo Oriente, de Milton HatoumHATOUM, Milton (2008). Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia de Bolso., em Harmada, de João Gilberto NollNOLL, João Gilberto (2003). Harmada. São Paulo: W11., em A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr ScliarSCLIAR, Moacyr (2007). A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia de Bolso., em Um crime delicado, de Sérgio Sant’AnnaSANT’ANNA, Sérgio (1997). Um crime delicado. São Paulo: Companhia das Letras.: neles, a presença do “Brasil” não segue a toada do quadro analisado por Süssekind; mesmo que o Brasil esteja presente, aquelas obras não são sobre o Brasil. Decerto o realismo de cunho objetivante segue forte em Luiz Ruffato, em Paulo Lins e até mesmo nos desvãos de À mão esquerda, de Fausto WolffWOLFF, Fausto (1997). À mão esquerda. Belo Horizonte: Leitura.. Mas a nossa hipótese não prevê o “desaparecimento” do campo estudado por Süssekind, e sim a sua diminuição sistêmica - sugerindo a dificuldade que a autora teria em formular, a partir do panorama literário atual, as teses que, nos anos 1980, possuíam imediata pertinência.
É claro que tanto Süssekind quanto Echevarría sabiam que as suas proposições não poderiam ter pretensões totalizantes: nelas dificilmente caberiam, por exemplo, Macedonio Fernández e Clarice Lispector. Era a um corpus majoritário que eles se referiam - mas hoje este corpus nos falta, e diante desta falta torna-se ociosa a historiografia que denunciava a sua presença. Uma boa opção estaria agora em investigar como a localidade passou a ser construída: a manutenção do velho foco ajudaria a discernir a sua transformação atual, evidenciando a diferença histórica. Toda mínima diferença receberia destaque, mesmo que não se possa conferir-lhe, de imediato, algum lugar histórico preciso. Com esta ênfase na diferença, logo se percebe que, na representação contemporânea da identidade local, a contingência da localidade ou/e a sua instabilidade interpretativa tomaram o lugar da identidade fixa.
Vejamos um exemplo. No fragmento da “América Latina” presente em 2666, de Roberto Bolaño, o horror aparece como stasis: a rotina de feminicídios de Ciudad Juárez - ficcionalizada no romance como Santa Teresa -, com as suas centenas (talvez milhares) de mulheres assassinadas desde a década de 1990 - violadas, estranguladas, mutiladas -, aparece numa sequência iterativa de eventos, descritos detalhadamente. A narrativa de Bolaño não é, porém, realista. A sua descrição visual dos acontecimentos não se orienta pelo princípio de seleção que caracteriza o “efeito de real” barthesiano, qual seja: a seleção de elementos que, tipologicamente representativos do fragmento de realidade representado, dotam a representação de uma semelhança forte com a realidade familiar ao leitor. Em Bolaño, a descrição dos crimes é pericial, numa minúcia de detalhes que elimina do realismo o crivo da seleção: enquanto o realismo opera os elementos do real de maneira a conferir-lhes uma unidade semelhante a certa realidade conhecida - o real sendo manipulado para melhor se aproximar do conhecimento prévio do leitor -, Bolaño expõe o fato em sua concretude. Desse modo, enquanto o “efeito de real” implicitamente propulsiona algum posicionamento sobre a realidade representada, a iteração de Bolaño provoca um vazio interpretativo: ela não fala sobre aquele fragmento do real, mas o apresenta tal como ele é. A sua diferença em relação ao realismo objetivante analisado por Süssekind não poderia ser maior: ao passo que a “objetividade” deste último implicava distanciar-se do representado para melhor dissecá-lo, interpretá-lo e analisá-lo, a apresentação dos crimes de Santa Teresa/Ciudad Juárez os entrega em si mesmos, sem buscar moldá-los, no momento preciso da exposição, por um quadro explicativo qualquer:
Em meados de novembro, Andrea Pacheco Martínez, de treze anos, foi raptada ao sair da escola técnica secundária 16 (...) Quando a encontraram, dois dias depois, seu corpo mostrava sinais inequívocos de morte por estrangulamento, com ruptura da hioide. Tinha sido violentada anal e vaginalmente. Os pulsos apresentavam tumefações típicas de amarradura. Os tornozelos também estavam lacerados, com o que se deduziu que também tivera os pés amarrados. (Bolaño, 2010BOLAÑO, Roberto (2010). 2666. São Paulo: Companhia das Letras., p. 378-9)
A moça vestia short curto e uma blusa amarela, imitação de seda, com uma grande flor negra estampada no peito e outra, vermelha, nas costas. Quando chegou às dependências da perícia, o legista viu, espantado, que por baixo do short usava calcinha branca com lacinhos ao lado. Fora isso, tinha sido violentada anal e vaginalmente, e a morta havia sido provocada por politraumatismo craniencefálico, mas também havia notado duas facadas, uma no tórax e outras nas costas, que a tinham feito perder sangue, mas que não eram necessariamente mortais. O rosto (...) estava irreconhecível. (id., p. 385-6)
Tal como lemos em Brandão a respeito do romance grego - e apesar das diferenças enormes entre os dois casos -, aqui o interesse da representação está nela mesma, e não em algo que, exterior à narrativa, concorresse para explicá-la. Os exemplos foram pinçados ao acaso do quarto capítulo de 2666, em que inúmeras passagens como estas se sucedem por mais de 250 páginas. A iteração é crua, insistente. Em vários momentos a narrativa intromete algum elemento - um personagem ou uma possível explicação das causas - que promete dar outro curso à sucessão de assassinatos: algo ou alguém externo a Santa Teresa que, ex-machina, iria solucionar a situação. Mas as esperanças duram pouco, sendo interrompidas sem grandes acordes. A sucessão de vítimas sugere uma diversidade de assassinos, que agiriam fora de qualquer plano comum; contra a esperança despertada por alguma intromissão salvadora, as autoridades não se esforçam para enfrentar o problema. Página após página, o leitor é apresentado aos cadáveres: sabe-se que muitas das vítimas eram imigrantes que trabalhavam nas fábricas das multinacionais da região, mas isso não pode ser generalizado; a participação da polícia e de traficantes incide em muitos casos, mas tampouco explica o fenômeno; a certa altura, sugere-se a atuação de um cartel pornográfico especializado na filmagem de práticas sexuais que culminam no assassinato - o que tampouco se coloca como explicação suficiente. Os casos se sucedem, e sugere-se que eles continuarão se sucedendo em meio à indiferença, ao cinismo e à falta de importância social das vítimas. E à medida que ele vai se repetindo, no instante fortemente visual da sua apresentação, Bolaño nos coloca diante do horror em sua pura presença, em sua pura fisicalidade. A sua dimensão social, que é suspensa no instante breve da sua apresentação, é resgatada a intervalos regulares, onde o horror é sobreposto ao pano de fundo da normalidade inercial da corrupção política e da vida cotidiana que se continua a viver em Santa Teresa. Esta relação de figura e fundo entre o horror e a normalidade coloca o leitor na América Latina de Roberto Bolaño: o seu romance põe o leitor numa América Latina que, recortada num fragmento presente, está suspensa do seu passado e do seu futuro, dispondo-se, fora de qualquer interpretação ou explicação aparente, numa duração indefinida. Apresentada, tal América Latina não é decifrada, e assim não recebe um ponto final, um fechamento, uma síntese.
Não seria isso semelhante à apresentação do índio brasileiro em Nove noites, de Bernardo CarvalhoCARVALHO, Bernardo (2007). Nove noites. São Paulo: Companhia de Bolso., em que o contato entre o índio e o branco é marcado pela vivência de uma diferença crua e intransponível, que elimina a figura do “índio” como elemento definidor da nossa essência? A dureza, a dificuldade do contato, a frequente manipulação do branco pelo índio - que transforma os “índios” tão-somente em “pessoas” -, a hostilidade que separa tribos diferentes - eliminando o “índio” como categoria unitária - vão sendo apresentadas de maneira a presentificar a dificuldade do contato com indivíduos e grupamentos apenas ambiguamente brasileiros. Num interior vasto e distante, Nove noites presentifica a experiência de um “Brasil” que, apresentado em sua plena intensidade e jamais teorizado, se revela estranho, hostil e não possuidor de algum significado preciso. Em sua pulsação plena, é um “Brasil” que, tal como a “América Latina” de Bolaño, está imerso e entregue à contingência do tempo, fora de qualquer vínculo necessário com algum passado ainda atuante ou com a necessidade moral da sua transformação: tal “Brasil” é a própria experiência do contato com uma alteridade que, apesar de brasileira, não pertence ao “Brasil” que a experiência prévia (do narrador, do leitor) toma por comum. Naquela experiência do contato, pulsam as reações de um narrador que interpreta as realidades que encontra apenas a partir da sua experiência em encontrá-las.
Em Carvalho como em Bolaño, pouco resta do padrão realista (em sua carga interpretativa, ou mesmo ideológica), ou das narrativas do “mito” e do “arquivo”. Em meio ao pessimismo - quase niilismo de Bolaño -, a “América Latina” de 2666 se agrega à angústia de Amalfitano (o professor da Universidade de Santa Teresa), à Europa espiritualmente dilacerada pelo trauma da Guerra de Benno Von Archimboldi (o escritor alemão), à irrelevância, à insegurança e ao medo em que vivem Pelletier, Espinoza, Morini e Norton (os especialistas na obra de Archimboldi)... Obliquamente associado ao menosprezo sádico pela vida universalizado durante a Segunda Guerra, o feminicídio de Santa Teresa assume um contorno “histórico”, “civilizacional” ou “humano” que não se confunde com a sua delimitação geográfica: um grande vazio ronda o universo ficcional de Bolaño, em meio ao qual a “América Latina”, em sua forte presença, é um elemento entre tantos outros, não mais atuando como centro orientador.
Não seria exatamente esta a mudança? A rarefação do tema orientador, não seria ela o índice de uma mudança profunda? Na obra de Bernardo Carvalho, o contato com o índio seria seguido - em MongóliaCARVALHO, Bernardo (2005). Mongólia. São Paulo: Companhia das Letras. - pelo contato de um brasileiro com uma alteridade radicalmente heterogênea, chegando a um romance - O filho da mãeCARVALHO, Bernardo (2009). O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras. - em que o elemento brasileiro praticamente desaparece. É uma estória de temática estrangeira, passada em terra estrangeira - uma estória russa, de temática pertinente à Rússia contemporânea, contada por um narrador que não se comporta como brasileiro: dentro dos limites da nossa erudição, não saberíamos apontar outro romance brasileiro que tenha anulado com tanta força a nossa tendência histórica à endogenia.
Esta diluição da temática local talvez indique a transição da endogenia para uma apresentação mais contingente do Brasil e da América Latina, pela qual eles constariam como locais de desenvolvimento de enredos e narrativas pelo fato óbvio de que o romance, como gênero, se produz numa relação intensa com o imediato contexto sócio-histórico: qual foi o romancista que não ficcionalizou a sua própria realidade imediata? Da mesma maneira, hoje, as histórias de Lourenço Mutarelli e Daniel Galera continuam, tais como as de Dionélio Machado e Graciliano Ramos, a acontecer no Brasil - mas este “Brasil” não atua como instância determinante do enredo. A sua “realidade social” não determina os sucessos das personagens; a sua “origem” e “identidade histórica” não são tematizadas ou responsabilizadas pelos acontecimentos da diegese. Não se apresentam, tampouco, as peculiaridades de algum Brasil específico a ser mostrado ao público geral - seja ele “regional”, como o de João Simões Lopes Neto, “mítico”, como o de Guimarães Rosa, “folclórico”, como o de Ariano Suassuna... -, mas apenas a impessoalidade da vida de classe média da cidade grande, em sua generalidade quase cosmopolita.
Teria se desvanecido a endogenia? Menos voltados para si mesmos, teríamos hoje um Brasil e uma América Latina mais conscientes do seu pertencimento genérico, que mitiga as suas especificidades num mundo cada vez mais horizontalizado? Outrora a investigação da identidade mantinha como pano de fundo a experiência contrastante do mundo desenvolvido do Atlântico Norte. Hoje, quando as diferenças diminuem na homogeneização dos lugares e na universalização dos modos de vida, a literatura se encharca da experiência individual: o indivíduo singular - muitas vezes deslocado, vivendo momentos-limite -, se torna o seu foco mais recorrente. Não mais o painel ou a panorâmica, mas a pequena história individual toma a cena - história que se mostra circunstancialmente local, e não essencialmente local.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2011
Histórico
-
Recebido
Maio 2011 -
Aceito
Jul 2011