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Manuel Correia de Andrade: a mata, o agreste e o sertão

Manuel Correia de Andrade: the forest, the wild and the hinterland

RESUMO

O objetivo deste artigo é descrever o processo de elaboração de conceitos pelo geógrafo Manuel Correia de Andrade. Ao tratar da concepção de Nordeste, foi apresentando a divisão em três regiões: a zona da mata quente e úmida, o sertão quente e seco, sujeito a secas periódicas, e uma zona de transição, o agreste. Este é o fundamento da dualidade tradicional, antagônica mas complementar: o Nordeste da cana-de-açúcar e o do gado, divididos pelo Nordeste da pequena propriedade e da policultura. Tais são as três regiões cujo nome foi consagrado pela tradição e reiterado pela ciência: o “extremo Nordeste” de Gilberto Freyre e o “reino sagrado” de Ariano Suassuna.

PALAVRAS-CHAVE
Geografia; Manuel Correia; sertão.

ABSTRACT

The objective of this article is to describe the process of developing concepts by geographer Manuel Correia de Andrade. When dealing with the conception of the Northeast, he presented the division into three regions: the hot and humid forest zone, the hot and dry hinterland, subject to periodic droughts, and a transition zone, the wilderness. This is the foundation of the traditional duality, antagonistic but complementary: the Northeast of sugar cane and cattle, divided by the Northeast of small property and polyculture. These are the three regions whose name was consecrated by tradition and reiterated by science: the “extreme Northeast” of Gilberto Freyre and the “sacred kingdom” of Ariano Suassuna.

KEYWORDS
Geography; Manuel Correia; backcountry.

Manuel Correia de Oliveira Andrade procedia de família distinta da zona da mata norte de Pernambuco. Era parente do notável conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira, chefe do gabinete conservador que foi o responsável pela assinatura e promulgação da Lei Áurea, em 1888, e de vários outros políticos pernambucanos do século XX.

Seu pai, Joaquim, era proprietário de engenho no vale do Siriji, quase na fronteira com o agreste setentrional, no qual produzia e vendia açúcar e aguardente aos tropeiros, aos matutos que vinham do agreste e do sertão. Como o revela o próprio Manuel Correia (ANDRADE, 2006ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Entrevista. Tempo Tríbio, v. 1, n. 1. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2006., p. 10).

Sobre esse vale ele fez sua tese de concurso para lecionar no Ginásio Pernambucano, intitulada O vale do Siriji: um estudo de geografia regional. Para tanto, utilizando-se dos seus contatos familiares, percorreu de jipe todo o vale, tendo como base o engenho de seu pai, conforme depoimento dado a Araújo (2002ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de (Org.) O fio e a trama: depoimento de Manuel Correia de Andrade. Recife: Ed. UFPE, 2002., p. 107).

Seu conhecimento do sertão seria como o que aquele outro menino da zona da mata norte, de região inclusive vizinha à sua, Carpina, atribuía ao rio Capibaribe:

Por trás do que lembro,

ouvi de uma terra desertada,

vaziada, não vazia,

mais que seca, calcinada.

De onde tudo fugia,

onde só pedra é que ficava,

pedras e poucos homens

com raízes de pedra, ou de cabra.

Lá o céu perdia as nuvens,

derradeiras de suas aves;

as árvores, a sombra,

que nelas já não pousava.

Tudo o que não fugia,

gaviões, urubus, plantas bravas,

a terra devastada

ainda mais fundo devastava

(MELO NETO, 1994MELO NETO, João Cabral de. O rio. In: MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 120).

No entanto, Manuel Correia, homem da zona da mata, preocupava-se com o Nordeste e com o Brasil como um todo. Trabalhava com o conceito de mosaico regional, evidenciando as inúmeras diferenciações internas tanto da zona da mata quanto do agreste e do sertão (IUMATTI, 2008IUMATI, Paulo Teixeira. Saberes populares no Nordeste. In: CAVALCANTI, Clovis; RIBEMBOIM, Jacques; RIVAS, Leda (Org.). Manuel Correia de Andrade: um homem chamado Nordeste. Recife: Bagaço, 2008, p. 133-141., p. 134).

Com efeito, para ele, a origem das paisagens geográficas era muito complexa, e ninguém podia admitir a exclusividade de um elemento na elaboração dos quadros paisagísticos. Mas em cada região se notava um elemento a sobressair, que servia como identificação regional para o homem prático. Foi nesse sentido que Manuel Correia valorizou os saberes vindos da prática, do cotidiano e do modo de vida da população trabalhadora, que estão no cerne da sua pesquisa e interpretação. A ponto de, conforme revelação sua em outra entrevista, um vaqueiro de uma fazenda de São Bento do Una ter exercido tanta influência na sua formação quanto Caio Prado Júnior (IUMATTI, 2008IUMATI, Paulo Teixeira. Saberes populares no Nordeste. In: CAVALCANTI, Clovis; RIBEMBOIM, Jacques; RIVAS, Leda (Org.). Manuel Correia de Andrade: um homem chamado Nordeste. Recife: Bagaço, 2008, p. 133-141., p. 134-135).

Diz o próprio Manuel Correia:

Sendo muito complexa a origem das paisagens geográficas, ninguém ousaria admitir exclusividade da ação de um elemento na elaboração dos quadros paisagísticos, até mesmo a dominância dificilmente poderia ser comprovada de forma científica. Entretanto, em cada região se nota que um elemento se sobressai, levando o homem prático que moureja a terra a citá-lo, sempre que quer distinguir as várias áreas que compõem o mosaico regional. Assim, na Amazônia, há uma referência constante ao rio e ao seu regime. Na realidade, é “o rio que comanda a vida”, como já salientou em feliz expressão Leandro Tocantins, o homem está sempre a distinguir as várzeas, anualmente inundadas, da “terra firme” que fica a salvo das inundações, mesmo quando o Amazonas transborda em suas grandes cheias. Em São Paulo, onde a cultura cafeeira era a principal riqueza agrícola, o homem do campo, o técnico e até mesmo o cientista estão sempre preocupados com o tipo de solo e em suas explanações distinguem logo as áreas onde dominam as terras roxas daquelas onde predominam os solos derivados de arenito ou das rochas cristalinas. Há, desse modo, constante preocupação do homem em distinguir as áreas capazes de produzir bem o café daquelas que se destinarão às outras atividades agrícolas que, dentro de nossa organização econômico-social, tornam-se mais rendosas. (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 24-25).

O importante a frisar aqui é que, para Manuel Correia, “o homem está sempre presente, transformando a paisagem”; desafiando as condições naturais e também degradando a natureza, ao tentar capacitá-la para atender às suas necessidades (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 106).

Nesse contexto, se o Brasil nunca possuiu áreas anecumênicas que não pudessem ser aproveitadas, sempre teve que enfrentar outros problemas, como os das imensas áreas de solos pobres cobertos pela floresta equatorial, as enormes áreas de solos silicosos cobertos pelo cerrado e a imensa região semiárida do Nordeste, coberta pela caatinga. Para cada região fazia-se necessária uma metodologia própria de ação, e a adoção de soluções criadas especificamente para o terreno, e não importadas acriticamente da Europa e dos Estados Unidos (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 106). É aqui que entra a valorização do conhecimento prático da população acostumada àquele clima e àquela vegetação.

A extensão e variação de paisagens acarretando diversificação de problemas e de níveis de desenvolvimento faz com que o país esteja a necessitar de soluções flexíveis, que tomem características regionais e atendam aos problemas regionais, desde que essas soluções regionais não venham quebrar a harmonia do todo que é, a um só tempo, uno e heterogêneo (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 4).

O Nordeste e seus quadros naturais

Manuel Correia de Andrade questionou o próprio conceito de Nordeste, pouco estudado e pouco pesquisado por especialistas em ciências naturais e sociais que o tivessem realmente perlustrado. Com efeito, ele considerava o Nordeste uma das regiões geográficas mais discutidas e menos conhecidas do Brasil, a ponto de nem os seus limites naturais e nem a sua extensão serem razoavelmente estabelecidos, e isso porque os seus estudiosos não faziam o trabalho de campo, não trocavam ideias com os seus habitantes, não aplicavam inquéritos, não procuravam analisar e conhecer as características e os problemas regionais (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 23).

Na realidade, conforme o aspecto abordado e o ponto de vista em que se coloca o autor, o Nordeste é apontado ora como a área das secas, que desde a época colonial faz convergir para a região, no momento da crise, as atenções e as verbas dos governos; ora como área dos grandes canaviais que enriquecem meia dúzia em detrimento da maioria da população; ora como área essencialmente subdesenvolvida devido à baixa renda per capita dos seus habitantes ou , então, como a região das revoluções libertárias de que fala o poeta Manuel Bandeira em seu poema Evocação do Recife (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 23).

Para o geógrafo pernambucano, é fundamental caracterizar o Nordeste pelos seus contrastes: o de possuir a leste uma estreita faixa úmida, e a oeste uma grande área de clima semiárido e, entre as duas, uma faixa de transição (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 26).

Nessa região, o elemento que deixou historicamente marcas indeléveis na paisagem e que mais preocupa o homem é o clima, distinguindo-se a zona da mata com o seu clima quente e úmido e duas estações bem definidas, uma chuvosa e outra seca, do sertão, também quente, mas seco e sujeito a secas periódicas, com uma zona de transição no meio, com trechos quase tão úmidos quanto a mata, e outros tão secos quanto o sertão, alternando-se constantemente e a pequena distância: o agreste. Esse é o fundamento da dualidade tradicional do Nordeste, antagônica mas também complementar: o Nordeste da cana-de-açúcar e o Nordeste do gado, divididos pelo Nordeste da pequena propriedade e da policultura. A oeste, um pouco destacado dos demais, vem o Meio-Norte, ainda extrativista e pecuarista. Tais são as quatro regiões, a um tempo naturais e geográficas, cujo nome foi consagrado pela tradição e reiterado pela ciência. Dedicar-nos-emos às três primeiras regiões, que formam o núcleo da nordestinidade: são as que compõem o que Gilberto Freyre (1967)FREYRE, Gilberto. (1967). Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio. denominava o “extremo Nordeste” e que Ariano Suassuna (1971)SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Romance armorial-popular brasileiro. Nota de Rachel de Queiroz e posfácio de Maximiano Campos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. chamava de seu “reino sagrado”: a mata, o agreste e o sertão.

A mata

A primeira dessas regiões, a mata, franja litorânea que se estende com algumas interrupções do Rio Grande do Norte até a Bahia, com uma largura quase sempre inferior a 100 quilômetros, tem esse nome por conta do clima úmido e da floresta que a cobria originalmente. É a área mais dinâmica do Nordeste, na qual se situa a maior parte da sua população. Ela é menor no Rio Grande do Norte e na Paraíba, quase restrita às várzeas dos rios que deságuam no Atlântico (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 105; 1998, p. 26).

Imitando a natureza e seguindo as imposições das suas forças, o homem, ao colonizar a região, derrubou a mata, drenou as várzeas encharcadas e construiu casas, engenhos e canaviais. As cidades surgiram nas encostas, pois o colonizador, se procurava a proximidade dos rios, temia também a invasão das águas durante as enchentes; enchentes sempre violentas pela rapidez com que se apresentavam e pela excessiva oscilação do débito dos rios, de vez que estes, tendo a maior extensão dos seus cursos nas áreas semiáridas do agreste e do sertão, possuem a irregularidade típica dos rios de caatinga. Irregularidade expressa pela ausência d’água no leito durante o estio e pelo transbordamento para a várzea, alagando e encharcando os canaviais, na estação das chuvas (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 26).

O agreste

Manuel Correia era originário da zona da mata, mas foi ao agreste que dedicou uma obra exclusiva. Trata-se de A pecuária no Agreste pernambucano, tese com a qual participou do concurso para provimento da cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife, publicada em 1961. Na introdução, ele explica que havia escolhido o agreste e a sua pecuária por conta da necessidade de que as paisagens do Nordeste, subdesenvolvidas e pouco estudadas, fossem analisadas a fim de que os economistas e administradores dispusessem do conhecimento básico da região, “necessário à elaboração e aplicação de planos de desenvolvimento” (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 7). E justificava: “isto porque não adianta a esquematização de programas econômicos e de organização administrativa se por acaso se desconhece a realidade a que se aplicarão uns e outros” (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 7).

E o agreste era à época a área do território pernambucano que mais contribuía para o abastecimento do Estado, graças à sua agricultura, mais diversificada que a da mata, e à sua pecuária, mais desenvolvida que a do sertão.

E pôs-se em campo, na companhia de colegas e alunos, fazendo diversas excursões, observando a paisagem, colhendo fotografias, aplicando inquéritos e entrevistando pessoas dos mais diversos níveis econômicos e culturais (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 8). Entre eles, aquele vaqueiro de São Bento do Una cuja influência seria tão importante quanto a de Caio Prado Júnior na sua formação.

Manuel Correia revelaria anos depois:

Agora, a escolha de A pecuária no agreste de Pernambuco foi porque eu sempre gostei muito de boi, de vaca. Meu pai era criador de gado, um introdutor do gado zebu em Pernambuco, e achava a pecuária uma coisa interessante. Então, tinha duas opções: um estudo sobre o Cariri, no Ceará, ou a pecuária no agreste de Pernambuco. Raciocinei: a pecuária vai ser mais fácil, porque me instalo em Caruaru. Era mais fácil, naquela época, em 1960, com a dificuldade transporte, ir para Caruaru que ir para o Crato. O Crato era muito longe. Hoje, já não é tanto. Então, fui para Caruaru. E mesmo os meus alunos podiam sair comigo nos fins de semana, sem problemas com o trabalho. No Crato, seria mais difícil. Não me arrependo inclusive porque essa tese contribuiu muito para o convite do Caio Prado, para eu escrever A terra e o homem no Nordeste. (apud ARAÚJO, 2002ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de (Org.) O fio e a trama: depoimento de Manuel Correia de Andrade. Recife: Ed. UFPE, 2002., p. 108).

Já nessa tese Manuel Correia demonstrou uma das preocupações que o conduziriam durante sua vida intelectual: a de analisar o quadro natural e sobretudo as modificações nele feitas pelo homem (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 10). Começou ele assim por distinguir no quadro natural do agreste três vales fluviais paralelos, o do Capibaribe, o do Ipojuca e o do Una (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 10). Nesse sentido,

[...] região de transição entre a mata e o sertão, possuidor de um relevo bastante movimentado, possui o agreste as paisagens mais diversas: umas tão úmidas quanto a mata, pois possuem água durante todo o ano, ora são ilhadas, ora são verdadeiros prolongamentos desta; outras tão secas quanto o sertão - a caatinga; e outras ainda tipicamente de transição - o agreste propriamente dito ou “encosto de brejo”. (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 35).

As maiores extensões do agreste estavam assim recobertas por caatingas e padeciam de falta de água, mas existiam também os brejos, áreas mais úmidas situadas em maiores altitudes e nos vales dos pequenos rios (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 40 e 42).

Sua conquista e ocupação foi concomitante e posterior às guerras holandesas, já que, antes disso, se havia tentado penetrar o interior pernambucano apenas acompanhando o rio São Francisco, ou seja, arrodeando de certa maneira o que seria o agreste. Tal se devia ao obstáculo natural representado pela escarpa da Borborema, que separa da zona da mata as áreas de caatinga do planalto. Esse isolamento começou a ser rompido por conta da crescente internação dos luso-brasileiros durante o período holandês, ou para escapar aos confiscos batavos, ou no caso das tropas encarregadas de emboscadas que vinham da Bahia para destruir os engenhos e que deviam procurar na volta os caminhos mais difíceis, mais inacessíveis ao inimigo, que se situavam justamente no que seria o agreste (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 52). O devassamento continuou por conta das guerras contra o Quilombo dos Palmares, cujas fronteiras a oeste se estendiam também pelo agreste, e que foram palco das refregas entre os quilombolas, os bandeirantes paulistas e os soldados pernambucanos (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 52-53).

Já o futuro agreste setentrional foi percorrido, ainda no século XVII, pelos combatentes pernambucanos na Guerra dos Bárbaros, travada entre criadores de gado e indígenas dos vales do Açu, Apodi e Jaguaribe, os quais subiram o vale do Capibaribe ou do Ipojuca a fim de atingir o alto curso dos afluentes do São Francisco, Moxotó e Pajeú, ou do Paraíba do Norte, até atingir o Piranhas e o rio Açu (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 53).

A exploração do agreste e o quase desaparecimento do elemento indígena que, pacificado, foi reduzido em algumas aldeias, como aconteceu aos xucurus de Ororobá, permitiram que essa área passasse a ser dividida em sesmarias e distribuída a “pessoas de posses” que as requeressem (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 53).

O regime da grande propriedade deu margem à exploração da pecuária extensiva produtora de carne, de couro e animais de tração. Aqui, e a exemplo de Capistrano de Abreu, Manuel Correia dá a sua descrição da vida do vaqueiro e da civilização do couro:

Os vaqueiros mantinham ativa vigilância para evitar que o gado fosse atacado por animais selvagens, bem como para curar as bicheiras. Em certas épocas do ano, vaqueiros de várias fazendas se reuniam para fazer a vaquejada, reunindo o gado nos currais para a ferra e a separação dos que deviam ir para o litoral, a fim de serem abatidos, ou para os engenhos a fim de serem amansados para o carro. Não havia preocupação de melhor alimentação para o gado, nem de seleção de animais com o objetivo de aumentar seu valor econômico. (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 55).

E mais adiante:

Nos pedidos de doação de terras preocupavam-se os futuros sesmeiros com que suas sesmarias se estendessem até às serras, nos brejos, pois as pessoas que ficassem a tratar do gado necessitavam de gêneros alimentícios para o próprio abastecimento. As serras teriam as suas matas em parte destruídas para que pudessem ser cultivados o milho, o feijão, a fava, a mandioca, a macaxeira e até a cana de açúcar. Garantiam nos interflúvios, distantes dos leitos dos grandes rios, a água na estação seca e algumas delas, as mais setentrionais e menos úmidas, seriam usadas para refrigério do gado durante o verão, quando as colheitas já estivessem concluídas e o pasto e a água estivessem desaparecidos da caatinga. (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 55).

Os vaqueiros, os tratadores do gado, os moradores e os tangerinos cuidavam do próprio abastecimento, pois a distância das áreas dominantemente agrícolas era grande, não permitindo o transporte de gêneros. Só os animais, mercadorias que se autotransportavam, eram facilmente levados do agreste para a mata, ou da mata para o agreste (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 58).

Subsidiariamente havia aqueles que se dedicavam ao beneficiamento dos produtos da pecuária, curtindo couros e solas e tangendo gado para as capitais de Pernambuco e da Bahia. Além desses, os que se dedicavam a pequenas lavouras nos brejos (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 59). A população acabaria por se concentrar aí, deixando a caatinga para a pecuária extensiva (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 62), movimento que de certa forma foi reforçado na segunda metade do século XIX com a cultura do café nas encostas das serras, o grande responsável pelo quase desaparecimento do que ele denominava “mata serrana” (ANDRADE, 1961ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano. Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961., p. 39).

Manuel Correia também tratou do agreste em sua obra maior, A terra e o homem no Nordeste. Nela ele aprofundou algumas das questões tratadas na tese sobre a pecuária no agreste, e acrescentou alguns comentários novos, feitos talvez a partir de uma maior reflexão sobre o tema, como aquele relativo à instabilidade do equilíbrio que mantém a faixa de separação entre a mata e o agreste, que recuava sobretudo em direção a este último em função do desmatamento das florestas existentes (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 32).

Deu uma ênfase maior também ao desenvolvimento da cultura do algodoeiro a partir do início do século XIX, quando, graças aos estudos de Arruda Câmara, foi possível retirar óleo da semente do algodão, e de 1841 a 1850, quando foram introduzidas as primeiras mudas de algodão herbáceo. O algodoeiro invadiu a partir daí não somente as terras da caatinga, mas até mesmo as da cana-de-açúcar (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 145).

Desse modo, o agreste essencialmente pecuário do século XVIII tornou-se dominantemente agrícola nos séculos XIX e XX; a agricultura, com a melhoria das condições básicas, o aumento da densidade demográfica e a construção de boas estradas que ligam a região às capitais de estado, assim como a maior divisão de propriedade, vai cada vez se diversificando, tornando a região policultora e contribuindo, de forma superior à mata e ao sertão, para o abastecimento das grandes cidades nordestinas. A pecuária vai perdendo cada vez mais maiores áreas, entretanto, vai-se tornando uma atividade econômica altamente compensadora, pois vai passando dos padrões culturais mais extensivos para os intensivos, vai-se especializando na produção de leite e de carne, intensificando a engorda dos animais (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 151).

Tratou também com maior destaque da questão da luta contra os indígenas, responsável em boa medida pelo desbravamento do agreste pela aniquilação do poderio dos povos indígenas, cujos remanescentes foram obrigados a se recolher às serras, aos brejos altos menos acessíveis e menos cobiçados (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 139). Após o fim das guerras contra os quilombolas e contra os indígenas, começaram a se constituir grandes fazendas, uma vez que as sesmarias atingiam às vezes extensão superior a 10 mil hectares. Nessas propriedades, nas extensões aplainadas, predominava a criação extensiva, o gado alimentando-se da milhã, do capim-de-cheiro e do mimoso; já nas áreas úmidas de brejo havia as culturas de subsistência; e a água provinha do leito dos rios durante a estação chuvosa, e de cacimbas escavadas durante a estação seca. “Formavam, assim, estabelecimentos com economia própria que se autoabasteciam, pois era uma área onde, devido à movimentação do relevo, se tornava difícil abastecer-se com produtos de outra região”. Só o gado se autotransportava (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 139).

A pecuária, desse modo, foi a responsável pela conquista da maior porção do território do que seria o Nordeste, complementando a área úmida agrícola com uma atividade econômica indispensável ao desenvolvimento da zona açucareira e ao abastecimento das cidades (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 173).

Carreou para o sertão os excedentes de população nos períodos de estagnação da indústria açucareira e aproveitou a energia e a capacidade de trabalho daqueles que, por suas condições econômicas e psicológicas, não puderam integrar-se na famosa civilização da casa grande e da senzala. Permitiu assim a formação daquilo que Djacir Meneses chamou de O Outro Nordeste, do Nordeste das caatingas e do gado que, a um só tempo, se opõe e complementa o Nordeste do massapê e da cana-de-açúcar (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 174).

O sertão

No que se refere ao sertão propriamente dito, Manuel Correia (1984) dele tratou em monografia temática e especializada, preparada para a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), relativa ao Sertão Sul. Nessa obra, antes de passar para a parte técnica propriamente dita, o geógrafo pernambucano comentou que a impressão generalizada, mesmo entre as elites culturais, era a de que o sertão era uma grande área relativamente hostil à presença do homem, onde dominava um clima seco e uma vegetação de caatinga. Trata-se, porém, de uma ideia inteiramente falsa, e o grande escritor Euclides da Cunha tinha sido muito feliz ao intitular o seu livro Os sertões. Isso porque não existe identidade entre a palavra sertão e o clima semiárido. Uma vez que essa palavra foi usada, no início do período colonial, para designar áreas despovoadas, ainda não ocupadas pelo colonizador, o termo sertão era uma corruptela da palavra deserto, desertão, não no sentido climático, mas no sentido demográfico, e tanto eram consideradas como sertanejas as áreas secas como as úmidas, distantes do litoral (ANDRADE, 1984ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Sertão Sul. Recife: Sudene. Coord. Planej. Regional. Dir. Pol. Especial, 1984., p. 39).

Manuel Correia tratou do sertão também na sua obra máxima, A terra e o homem no Nordeste (1998). Primeiro, sob o ponto de vista geográfico e climatológico, considerando que o sertão era a área mais extensa do Nordeste, indo, na costa norte, quase até a praia, encontrando-se em algumas áreas o facheiro, cactácea típica do sertão, a apenas 50 metros de distância do mar (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 38).

Outro fator geográfico distintivo dos sertões eram as regiões serranas, que formavam blocos esparsos dentro do conjunto sertanejo e que, se ocupavam parcela modesta da extensão regional, tinham importância grande por funcionarem como concentradoras de população e como centros de produção agrícola (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 42).

Também era bem característica a ribeira do São Francisco. Na sua margem direita estava o Raso da Catarina, uma das áreas mais secas e despovoadas dos sertões. O rio tinha um regime muito irregular, porquanto fosse o único permanente na área por ele atravessada, já que seu volume de água oscilava consideravelmente entre o inverno - ali a estação seca, no seu médio e alto curso, e o verão, estação das chuvas, quando a cheia inundava as áreas ribeirinhas, alargando consideravelmente o seu leito e ocupando antigos roçados, fazendas e até ruas e praças das cidades marginais (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 44).

Manuel Correia contemplou nessa obra também o sertão nos seus aspectos histórico e sociológico. Assim, observou que o sertão nordestino foi integrado à colonização portuguesa graças a movimentos populacionais oriundos de dois focos, Salvador e Olinda, que “comandaram a arremetida para os sertões à cata de terra onde se fizesse a criação de gado, indispensável ao fornecimento de animais de trabalho - bois e cavalos - aos engenhos e ao abastecimento dos centros urbanos em desenvolvimento” (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 44).

A ocupação do sertão foi feita portanto a partir das regiões açucareiras pernambucana e baiana, “mas não se limitou a atender às necessidades dessas regiões, mas também ao mercado externo, com a exportação de couros e, em seguida, de algodão” (ANDRADE, 1997ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Pernambuco imortal: evolução histórica e social de Pernambuco. Recife: Cepe, 1997., p. 89).

Desses dois centros se originaram a conquista e a ocupação dos sertões, a corrente pernambucana e a corrente baiana se encontrando em diversas frentes, e enfrentando em diversos momentos a reação de grupos indígenas.

Observe-se que esses grupos indígenas habitavam o sertão desde antes do Descobrimento, expulsos que haviam sido do litoral pelos tupis. Eram os tapuias, os de “língua travada”, diferente da língua geral da costa (ANDRADE, 1997ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Pernambuco imortal: evolução histórica e social de Pernambuco. Recife: Cepe, 1997., p. 76). Nesse sentido,

Os vários grupos indígenas que dominavam as caatingas sertanejas não podiam ver com bons olhos a penetração do homem branco que chegava com gado, escravos e agregados e se instalava nas ribeiras mais férteis. Construía casas, levantava currais de pau a pique e soltava o gado no pasto, afugentando os índios para as serras ou para as caatingas dos interflúvios, onde havia falta d’água durante quase todo o ano. (ANDRADE, 1997ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Pernambuco imortal: evolução histórica e social de Pernambuco. Recife: Cepe, 1997., p. 169).

E Manuel Correia não deixava de lado o aspecto sociológico:

Nesses sertões desenvolveu-se uma civilização sui generis. Aí os grandes sesmeiros mantinham alguns currais nos melhores pontos de suas propriedades, dirigidos quase sempre por um vaqueiro que, ou era escravo de confiança, ou um agregado que tinha como remuneração a quarta dos bezerros e potros que nasciam. Outras áreas eram dadas em enfiteuse, os sítios, que correspondiam a uma légua em quadro e eram arrendados a dez mil-réis por ano aos posseiros. As grandes distâncias e as dificuldades de comunicação fizeram com que aí se desenvolvesse uma civilização que procurava retirar do próprio meio o máximo, a fim de atender às suas necessidades. Assim, na alimentação usava-se principalmente a carne e o leite [...] frutos silvestres e alguns produtos de uma incipiente lavoura de subsistência [...]. Os mais variados utensílios domésticos e móveis eram feitos de couro. [...] Este sistema dominou por séculos o sertão e, quando Spix e Martius percorreram o Nordeste, ao chegarem ao Piauí ainda encontraram, até nas fazendas de propriedade do governo imperial, o sistema de criação extensivo enunciado por Antonil. [...] Sistema idêntico, apenas sem a existência de escravos, encontramos em 1960 na chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte, e ainda é dominante nos altos sertões de Pernambuco, Piauí e Bahia. (ANDRADE, 1997ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Pernambuco imortal: evolução histórica e social de Pernambuco. Recife: Cepe, 1997., p. 170 e 171).

Ao analisar a evolução econômica do sertão, Manuel Correia observa certa semelhança com a do agreste. Mas adverte: “dizemos semelhança e não identidade porque as dificuldades de comunicação do sertão com a região da mata eram bem maiores que as do agreste”. O sertão era mais “ilhado”, mais afastado dos progressos que se faziam na região mais desenvolvida (ANDRADE, 1998ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998., p. 180).

Manuel Correia tratou também do sertão no seu livro Paisagens e problemas do Brasil, livro que teve sete edições e que ele queria ter refeito, mas não conseguiu (ANDRADE, 2006ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Entrevista. Tempo Tríbio, v. 1, n. 1. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2006., p. 19). Começou por uma afirmação bombástica:

O sertão é a mais famosa região do Nordeste pela sua originalidade e pela propagação de notícias sensacionalistas de suas secas periódicas nos jornais brasileiros e estrangeiros. O sertão e as secas têm sido objeto de uma vasta literatura compreendendo reportagens, artigos de jornal, ensaios científicos e romances [...]. A literatura oral e de cordel tem tomado seus aspectos e os seus problemas com preferência. Estendendo-se desde o litoral norte até a porção setentrional de Minas Gerais, o sertão [..,] se apresenta em sua maior extensão como uma superfície aplainada, ora em função do nível do mar [...] ora em função de níveis de base regionais como o trecho drenado pelo rio São Francisco. (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 112-113).

Tratando das caatingas, comenta que elas cobriam extensas porções do território nordestino, no chamado sertão. Tratava-se de uma associação vegetal típica do clima semiárido, “adaptada às suas difíceis condições naturais” e compreendendo árvores como o juazeiro e o umbuzeiro, acumuladoras de água na estação chuvosa para consumo no estio, bem como árvores e arbustos que perdiam as folhas na estação seca a fim de evitar a evaporação, cactáceas como o mandacaru, o facheiro, a coroa de frade e o quipá e bromeliáceas como a macambira e o caroá (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 15).

Na estação das chuvas, como um milagre, tudo reverdece e o capim brota rapidamente do solo, modificando-se completamente a paisagem. Mas quando o estio se prolonga e os rios e lagoas secam, a vegetação perde as folhas e os animais caminham quilômetros à procura de água e de alimentos, a caatinga torna-se uma paisagem verdadeiramente desoladora e repulsiva ao homem. (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 15).

Afirma ainda que a perda das folhas é uma adaptação das plantas às condições climáticas. “Mal começa a estação chuvosa toda a vegetação seca se recobre de folhas em poucos dias” e a “caatinga fica um oceano de verdura”. Passado o inverno, as arvores e os arbustos perdem as folhas, para armazenar água, e verdes ficam apenas os cactos e certas árvores como o juazeiro, o umbuzeiro e a quixabeira (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 113).

Os primeiros povoadores do sertão, pouco numerosos e preocupados com a pecuária, só procuravam as serras nas épocas de seca ou para fazer pequenos roçados de lavoura de subsistência. Também nelas se refugiavam, em princípio, os indígenas. Mas as serras foram ocupadas com o adensamento da população, sobretudo com o advento da lavoura de café, tornando-se os pontos de maior concentração da população sertaneja (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 115).

O grande problema que aflige o sertanejo e que celebrizou o sertão, porém, é constituído [...] pelas secas, que desde a época colonial flagelam periodicamente a região. Nos primeiros tempos, sendo diminuta a população e pequeno o rebanho, ela não constituía a calamidade que a caracteriza em nossos dias. Esta população migrava com os animais e os pertences para as serras ou as margens do rio São Francisco e esperava estoica por um ano chuvoso. Os recursos eram suficientes para mantê-la, as notícias se propagavam vagarosamente, e não havia uma opinião pública capaz de sensibilizar-se pelo acontecido. (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 116).

Um outro sertão

Manuel Correia nessa obra dedica sua atenção também a um outro sertão, que não o nordestino, aquele coberto pelos cerrados, “típicos dos climas subúmidos e dos solos silicosos”, que ocupavam enormes extensões, expandindo-se pelo Brasil central e por áreas do Meio-Norte, do Nordeste e do Sudeste (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 7). Trata-se do sertão central brasileiro, palco da marcha para o oeste. Esse sertão foi conquistado por Portugal e integrado ao Brasil somente no século XVIII, por conta das incursões dos sertanistas para prear índios e procurar ouro. A preação de índios contribuiu em princípio para o despovoamento da região, cuja população indígena foi logo a seguir substituída pelos arrivistas que vinham se dedicar à exploração de ouro e de outros metais e pedras preciosas. Após a crise nessa exploração, a pecuária, o extrativismo vegetal, a pesca e a agricultura de subsistência funcionaram como retentores da população cabocla e de origem lusitana, mas não em nível suficiente para garantir a defesa do território contra invasões estrangeiras, o que foi constatado, da forma mais cruel, durante a Guerra do Paraguai. A essa escassez populacional se somava a dificuldade de comunicação com o centro do poder, feita sobretudo pelos rios Paraguai e Paraná e pelo oceano, passando por terras estrangeiras (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 176).

Durante os primeiros 40 anos do século XX, entretanto, houve um grande crescimento da população do sertão central, começando-se a se falar insistentemente de uma marcha para o oeste, objeto da preocupação da intelectualidade brasileira e de diretrizes governamentais de Getúlio Vargas, com o objetivo de disciplinar e incentivar o povoamento do oeste, conquistando verdadeiramente áreas que já se achavam politicamente integradas ao país, embora não participassem satisfatoriamente da economia nacional. (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 177).

Paralelamente ocorreu a intensificação dos trabalhos do Serviço de Proteção aos Índios, iniciados pelo marechal Rondon, que propiciava contatos com tribos que viviam completamente afastadas da civilização e também contribuía para o desenvolvimento regional, buscando evitar lutas entre eles e os migrantes que avançavam rumo a oeste (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 177).

A importância crescente da região centro-oeste e o interesse despertado fizeram com que renascesse revigorada a velha ideia de se transferir do Rio de Janeiro para o centro do país a capital do Brasil. De fato, esta ideia de uma capital central procurando integrar na civilização litorânea as regiões pouco desbravadas do sertão era bastante antiga e havia sido defendida pelos Inconfidentes Mineiros [...] por Hipólito da Costa no seu Correio Brasiliense [...] pelo chanceler Veloso da Silveira em memorial ao príncipe regente dom João em 1810; pelas instruções do governo aos deputados brasileiros às Cortes de Lisboa e, após a Independência, em 1823, pelo próprio José Bonifácio de Andrada e Silva [...] Durante o Império a ideia foi defendida, entre outros, pelo visconde de Porto Seguro - o grande historiador Francisco Adolfo Varnhagen -, pelo conselheiro Tomás Coelho, quando ministro da Agricultura, e pelo senador pernambucano Holanda Cavalcanti. (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 178).

O assunto foi objeto de artigo específico na Constituição republicana de 1891, o 3º, que estipulou a demarcação de uma área no Planalto Central para a construção da futura capital, o que foi cumprido já no ano seguinte, pela famosa comissão Cruls2 2 Instituída em 1892 pelo presidente Floriano Peixoto com o nome de Comissão Exploradora do Planalto Central para demarcar o local onde seria instituída a capital do país, passou a ser conhecida como Comissão Cruls por ter sido chefiada pelo astrônomo e geógrafo belga Luiz Cruls, diretor do Observatório Nacional (CRULS, [1893] 2012). . A Constituição de 1934 determinava a realização dos estudos necessários para a mudança, mas a de 1937 não falava diretamente na transferência. Já a Constituição de 1946 foi explícita ao determinar a realização de trabalhos preliminares para a mudança, no seu artigo, 4º, dando inclusive prazo para o presidente da República designar as comissões respectivas (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 178-179).

Cedido o território à Federação pelo estado de Goiás, coube ao presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira

[...] determinar a organização da companhia que construiria a nova capital [...] e pôr a obra em execução. [...] E o brasileiro que já se acostumara a construir capitais artificiais - Teresina, Aracaju e Belo Horizonte no século XIX e Goiânia no século XX - passou a construir em ritmo acelerado a capital do país que recebeu o nome sugerido pelo próprio patriarca da Independência - Brasília. Em quatro anos a cidade foi construída. (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 179).

Brasília provocou uma série de impactos positivos e negativos sobre a vida do país. Entre os aspectos positivos, permitiu uma mais efetiva expansão para o oeste abrindo à vida econômica grandes áreas então pouco conhecidas e possibilitou a abertura de estradas que integraram o país. O Centro-Oeste - Goiás em particular - foi revitalizado. Entre os aspectos negativos, Manuel Correia menciona dois, datados: o fato de a capital não haver ainda sido inteiramente transferida, havendo grande número de repartições federais no Rio de Janeiro, e o fato de sua localização, distante das regiões mais povoadas e mais desenvolvidas, isolar o governo federal do Brasil econômico (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 180). Mas fez uma profecia que vem se revelando cada vez mais correta: com o tempo Brasília foi chamando a si as funções governamentais que ainda permaneciam no Rio de Janeiro, com algumas exceções, e foi ampliando a sua área de influência. “Sua grande missão será contribuir para que o Brasil se integre em si mesmo, para que o Brasil econômico se expanda pelo território que forma o Brasil político”, concluiu ele (ANDRADE, 1970ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970., p. 181).

Considerações finais

A partir da empatia com os habitantes do local pesquisado, que falta em muitos cientistas, Manuel Correia chegou às suas conclusões: primeiro, que o homem está sempre presente, modificando a paisagem. E está presente de forma diferenciada segundo o lugar, tanto que se faz necessária, para cada região, uma metodologia própria de ação e soluções específicas e flexíveis.

Para ele, o Nordeste era pouco estudado e pesquisado por quem o tivesse efetivamente “perlustrado”. Os estudiosos não faziam pesquisa de campo, não trocavam ideias com seus habitantes, não procuravam analisar e conhecer as características e os problemas regionais.

Não faziam o que ele sempre fez questão de fazer, buscando caracterizar o Nordeste por seus contrastes, pela dualidade tradicional, antagônica mas complementar, que se expressava nos conceitos criados pela tradição mas adotados pela ciência, de duas zonas extremas, a mata e o sertão, intermediadas por uma de transição, o agreste, como regiões geográficas e quadros naturais, que constituíam o núcleo da nordestinidade, se podemos usar essa expressão, que eram características do que Gilberto Freyre (1967)FREYRE, Gilberto. (1967). Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio. denominava o “extremo Nordeste” e do que Ariano Suassuna (1971)SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Romance armorial-popular brasileiro. Nota de Rachel de Queiroz e posfácio de Maximiano Campos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. chamava seu “reino sagrado”.

A zona da mata, primitivamente coberta pela floresta - donde o nome -, área historicamente mais desenvolvida, abrigava a maior parte da população.

O agreste, a que ele dedicou um de seus primeiros grandes livros - que merece uma nova edição com urgência -, zona de transição, tinha agricultura mais diversificada que a da mata e a pecuária mais desenvolvida que a do sertão.

Essa obra, A pecuária no agreste pernambucano (1961), é tão importante que, segundo o próprio Manuel Correia, foi o que motivou Caio Prado Júnior a lhe fazer o convite para escrever sua obra mais conhecida, A terra e o homem no Nordeste (1998). Nela, o autor já demonstrava uma preocupação que acompanharia toda a sua vida intelectual, a de analisar o quadro natural e sobretudo as modificações que o homem lhe impunha. Tratava assim de vários aspectos: das variadas paisagens do agreste, algumas tão úmidas quanto as da mata, outras tão secas quanto as do sertão, e por fim também aquelas caracteristicamente de transição.

Tratava também da sua conquista e ocupação durante as guerras holandesas, posterior portanto ao início da conquista do sertão: o agreste foi arrodeado por conta do obstáculo representado pelo planalto da Borborema. Mencionava também a perseguição e a eliminação dos grupos indígenas, que haviam possibilitado a instalação da pecuária extensiva, produtora de carne, de couro e de animais de tração, e que deu origem à civilização do couro consagrada por Capistrano de Abreu. Havia também a agricultura de subsistência nos brejos, onde acabou por se concentrar a população, deixando a caatinga para a pecuária. Nesse contexto, chamava a atenção para o desmatamento, que fazia o agreste avançar sobre a zona da mata.

Manuel Correia tratou do sertão em monografia técnica especializada, feita para a Sudene e dedicada ao que denominou Sertão Sul, na qual, na introdução, comentou que não existia identidade entre a palavra sertão e o clima semiárido, repetindo a etimologia tradicional, a meu ver equivocada, que deriva sertão de deserto e desertão, mas acertou a princípio em especificar que o seu sentido era mais demográfico que climático, havendo áreas sertanejas tanto úmidas quanto secas, distantes do litoral e pouco habitadas. Digo a princípio porque os estudos mais recentes indicam que o sertão não era tão deserto quanto se imaginava, havendo ali muitos habitantes indígenas. Esse fato foi apontado pelo próprio Manuel Correia em outra passagem. Ele também informou que, na costa norte do Nordeste, o sertão se estende até o litoral, já que não há zona da mata nem agreste no Ceará, por exemplo.

Mas o fato é que, na maior parte das ocasiões, ele trata do sertão semiárido, área mais extensa do Nordeste, cuja colonização havia sido feita a partir de Olinda e de Salvador, ou seja, a partir das regiões açucareiras pernambucana e baiana, mas que não se havia limitado a atender a essas duas áreas, tendo se dedicado também ao mercado externo, primeiro dos couros, depois do algodão.

Tratava-se de uma civilização que procurava retirar do próprio meio o máximo, autarquicamente, reduzindo-se ao mínimo a dependência externa para a sua sobrevivência, e que se prolongou até a segunda metade do século XX em algumas áreas.

Manuel Correia comentava que existe certa semelhança entre a evolução econômica do agreste e a do sertão, mas apenas uma semelhança, porque as dificuldades de comunicação eram muito maiores entre o sertão e a zona da mata do que entre esta e o agreste.

O sertão é, assim, a mais famosa região do Nordeste, pela sua originalidade e pela propagação de notícias sensacionalistas sobre as secas, fenômeno que atinge a região desde os tempos coloniais.

Mas Manuel Correia tratou também de outro sertão, o central, o dos cerrados, palco da marcha para o oeste, que se consubstanciou sobretudo no século XX, conquistando verdadeiramente áreas já politicamente integradas ao país, mas não economicamente. Símbolo maior dessa marcha foi a transferência da capital federal para o sertão central.

Esses são os sertões de Manuel Correia, tanto úmidos quanto secos, distantes e próximos ao litoral, situados no Nordeste, mas não só, e com diferenciações regionais marcantes.

  • 2
    Instituída em 1892 pelo presidente Floriano Peixoto com o nome de Comissão Exploradora do Planalto Central para demarcar o local onde seria instituída a capital do país, passou a ser conhecida como Comissão Cruls por ter sido chefiada pelo astrônomo e geógrafo belga Luiz Cruls, diretor do Observatório Nacional (CRULS, [1893]CRULS, Luiz (1893). Relatório Cruls : (relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil) / Luiz Cruls. Ed. fac-similar. Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. (Edições do Senado Federal, v. 22). Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/574202. Acesso em: out. 2023.
    https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/i...
    2012).

Referências

  • ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A pecuária no agreste pernambucano Tese apresentada para provimento da Cátedra de Geografia Econômica da Faculdade de Ciências Econômicas de Pernambuco da Universidade do Recife. Recife, 1961.
  • ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Paisagens e problemas do Brasil (Aspectos da vida rural brasileira frente à industrialização e ao crescimento econômico). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970.
  • ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Sertão Sul. Recife: Sudene. Coord. Planej. Regional. Dir. Pol. Especial, 1984.
  • ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Pernambuco imortal: evolução histórica e social de Pernambuco. Recife: Cepe, 1997.
  • ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6. ed. Recife : Editora Universitária da UFPE, 1998.
  • ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira. Entrevista. Tempo Tríbio, v. 1, n. 1. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2006.
  • ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de (Org.) O fio e a trama: depoimento de Manuel Correia de Andrade. Recife: Ed. UFPE, 2002.
  • CRULS, Luiz (1893). Relatório Cruls : (relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil) / Luiz Cruls. Ed. fac-similar. Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. (Edições do Senado Federal, v. 22). Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/574202 Acesso em: out. 2023.
    » https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/574202
  • FREYRE, Gilberto. (1967). Nordeste Rio de Janeiro: José Olympio.
  • IUMATI, Paulo Teixeira. Saberes populares no Nordeste. In: CAVALCANTI, Clovis; RIBEMBOIM, Jacques; RIVAS, Leda (Org.). Manuel Correia de Andrade: um homem chamado Nordeste. Recife: Bagaço, 2008, p. 133-141.
  • MELO NETO, João Cabral de. O rio. In: MELO NETO, João Cabral. Obra completa Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
  • SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta Romance armorial-popular brasileiro. Nota de Rachel de Queiroz e posfácio de Maximiano Campos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2023
  • Aceito
    09 Nov 2023
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