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Fatores associados à ansiedade em residentes multiprofissionais em saúde durante a pandemia por COVID-19

RESUMO

Objetivo:

Estimar a prevalência e os fatores associados à ansiedade entre residentes multiprofissionais em saúde durante a pandemia da COVID-19.

Métodos:

Estudo transversal, realizado em julho de 2020 com residentes multiprofissionais em saúde (n = 67) de um hospital universitário. Utilizou-se a Beck Anxiety Inventory para avaliação da ansiedade. Analisaram-se os dados usando teste qui-quadrado, razão de verossimilhança e análise múltipla mediante regressão de Poisson com variância robusta.

Resultados:

A proporção de ansiedade moderada/grave foi de 31,30%, que apresentou associação significante com trabalhar em setores envolvendo COVID-19 e diretamente com casos suspeitos/confirmados de COVID-19. Na análise múltipla, observou-se prevalência de ansiedade nos participantes que precisaram de acompanhamento psicológico após entrada na residência e que usavam psicotrópicos.

Conclusão:

Os resultados parecem indicar que os residentes tiveram sua saúde mental prejudicada durante a pandemia, porém a manutenção das variáveis no modelo também sugere que buscaram ajuda para o controle da ansiedade.

Descritores:
Ansiedade; Internato e Residência; Hospitais Universitários; Pandemia; Infecções por Coronavírus

ABSTRACT

Objective:

To estimate the prevalence and factors associated with anxiety among multiprofessional health residents during the COVID-19 pandemic.

Methods:

Cross-sectional study, conducted in July 2020 with multiprofessional health residents (n = 67) from a university hospital. We used the Beck Anxiety Inventory to assess anxiety. Analyzing data through the chi-square test, likelihood ratio, and multiple analysis using Poisson regression with robust variance.

Results:

The proportion of moderate/severe anxiety was 31.3%, which showed significant association with working in sectors involving COVID-19 and directly with suspected/confirmed cases of COVID-19. During the multiple analysis, we found prevalence of anxiety in participants who needed psychological support after entering their residence and those who used psychotropic meds.

Conclusion:

The results seem to indicate that residents had their mental health impaired during the pandemic, but the maintenance of the variables in the model also suggests that they sought help to control anxiety.

Descriptors:
Anxiety; Internship and Residence; University Hospitals; Pandemic; Coronavirus Infections

RESUMEN

Objetivo:

Estimar prevalencia y factores relacionados a la ansiedad entre residentes multiprofesionales en salud durante la pandemia de COVID-19.

Métodos:

Estudio transversal, realizado en julio de 2020 con residentes multiprofesionales en salud (n = 67) de un hospital universitario. Utilizó la Beck Anxiety Inventory para evaluación de ansiedad. Analizaron los datos usando prueba chi-cuadrado, razón de verosimilitud y análisis múltiple mediante regresión de Poisson con variación robusta.

Resultados:

Proporción de ansiedad moderada/grave fue de 31,30%, que presentó relación significante con trabajar en sectores envolviendo COVID-19 y directamente con casos sospechosos/confirmados. En el análisis múltiple, observó prevalencia de ansiedad en los participantes que precisaron de acompañamiento psicológico después de entrada en la residencia y que usaban psicotrópicos.

Conclusión:

Resultados parecen indicar que residentes tuvieron su salud mental perjudicada durante la pandemia, pero la manutención de las variables en el modelo también sugiere que buscaron ayuda para el control de la ansiedad.

Descriptores:
Ansiedad; Prácticas y Residencia; Hospitales Universitarios; Pandemia; Infecciones por Coronavirus

INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019, surgiram os primeiros casos de Coronavirus Disease 2019 (COVID19) em Wuhan, na China, causada pela síndrome respiratória aguda grave por coronavírus 2 (SARS-CoV-2). A nova doença foi considerada pandêmica pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020(11 World Health Organization (WHO). Novel Coronavirus (2019-nCoV) SITUATION REPORT - 3 [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 18]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200123-sitrep-3-2019-ncov.pdf
https://www.who.int/docs/default-source/...
). No Brasil, o primeiro caso foi identificado em 25 de fevereiro de 2020; e, de acordo com o Ministério da Saúde, até o dia 21 de agosto de 2020, o país já registrava 3.532.330 casos e 113.358 óbitos(22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde: Boletim Epidemiológico Especial Doença pelo coronavírus Covid-19 [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 17]. Available from: http://saude.gov.br/images/pdf/2020/July/08/Boletim-epidemiologico-COVID-21-corrigido-13h35.pdf
http://saude.gov.br/images/pdf/2020/July...
).

Os profissionais de saúde que ocupam a linha de frente assistencial encaram inúmeros desafios que impactam negativamente sua saúde física e mental, como o risco de contaminação que pode gerar doença e morte, níveis de ansiedade intensos, distúrbios do sono, medo de contaminar colegas e familiares, isolamento social, falta de insumos hospitalares e equipamentos de proteção individual(33 Souza DG. The COVID-19 pandemic beyond Health Science s: reflections on its social determination. Ciênc Saud Colet. 2020;25(suppl 1):2469-2477. https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.1.11532020
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4 Medeiros EA. A luta dos profissionais de saúde no enfrentamento da COVID-19. Acta Paul Enferm. 2020;33:1-5. https://doi.org/10.37689/acta-ape/2020EDT0003
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-55 Galhardi CPG, Freire NP, Minayo MCS, Fagundes MCM. Fato ou Fake? uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Cienc Saude Colet[Internet]. 2020. Preprint [cited 2020 Aug 20]. Available from: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/fato-ou-fake-uma-analise-da-desinformacao-frente-a-pandemia-da-covid19-no-brasil/17733
http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/...
).

Nesse mesmo cenário, as residências multiprofissionais em saúde, instituídas no Brasil desde 1975, orientadas para atuação com base nas necessidades locais e regionais do Sistema Único de Saúde, fornecem profissionais-estudantes que fortalecem e compõem as equipes de saúde de muitos hospitais que possuem programas de residência e que atendem pacientes suspeitos e confirmados de COVID-19(66 Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Residência Multiprofissional em Saúde da Família [Internet]. 2020[cited 2020 Nov 20]. Available from: https://aps.saude.gov.br/ape/nasf/residenciamultiprofissional/
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). No intuito de conciliar o processo ensino-aprendizagem com a resposta imediata à pandemia, o Conselho Nacional de Saúde do Brasil orientou que as atividades teórico-práticas dos residentes, no momento atual, devem acompanhar a reorganização dos serviços, redes, políticas e ações do setor saúde na resposta rápida à COVID-19(77 Ministério da Saúde (BR). Recomendação do Conselho Nacional de Saúde N. 018 de 26 de março [Internet]. 2020[cited 2020 Nov 20]. Available from: http://conselho.saude.gov.br/images/Recomendacoes/2020/Reco018.pdf.
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).

O novo contexto para as residências exige dos residentes raciocínio clínico e atuação nos mais variados cenários. Consequentemente, são necessários maiores esforços físicos e psíquicos, já que eles estão em um período transicional entre o ser estudante e profissional(88 World Health Organization-WHO. Depression and other common mental disorders: global health estimates [Internet]. 2017 [cited 2020 Aug 19]. 24 p. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/254610/1/WHO-MSD-MER-2017.2-eng.pdf
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9 Chick RC, Clifton GT, Peace KM, Propper BW, Hale DF Alseidi AA, et al. Using technology to maintain the education of residents during the COVID-19 Pandemic. J Surg Educ. 2020;77(4):729-32. https://doi.org/10.1016/j.jsurg.2020.03.018
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10 Silva KCL, Lima MEG. A inserção de duas psicólogas residentes em tempos da COVID-19. Cad ESP Ceará [Internet]. 2020 [cited 2020 aug 20];14(1):95-99. Available from: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/316
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-1111 Nunes AS, Lemos PFS, Pires BMFB, Peres EM, Gomes HF, Santos LFM, et al. Atuação dos residentes de Enfermagem no contexto da pandemia de COVID-19: relato de experiência. Research, Society and Development [Internet]. 2020 [cited 2020 aug 19];9(8):1-13. Available from: https://rsdjournal.org/index.php/rsd
https://rsdjournal.org/index.php/rsd...
). No Brasil, estudos versam sobre os ritmos exaustivos do cotidiano das residências em saúde, incluindo nelas a residência multiprofissional, médica e uniprofissional(1212 Fernandes MNS, Beck CLC, Weiller TH, Viero V, Freitas PH, Prestes FC. Sofrimento e prazer no processo de formação de residentes multiprofissionais em saúde. Rev Gaúcha Enferm. 2015;36(4):90-97. https://doi.org/10.1590/1983- 1447.2015.04.50300
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13 Coelho PDLP, Becker SG, Leocádio MASCL, Oliveira MLC, Pereira RSF, Lopes GS. Processo saúde-doença e qualidade de vida do residente multiprofissional. Rev enferm UFPE. 2018;12(12):3492-9. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v12i12a236072p3492-3499-2018
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14 Silva MRA, Silveira PRRM. Estresse ocupacional em enfermeiros residentes de um programa de residência multiprofissional em saúde da família. Rev Bras Inov Tec Saúde. 2017;7(1):25-35. https://doi.org/10.18816/r-bits.v7i1.11681
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15 Balan KCK, Silva DB, Jorge IMP. Avaliação do nível de estresse ocupacional em residentes de um programa de residência multiprofissional em saúde. Rev Bras Inov Tec Saúde [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 18];8(1):52-66. Available from: https://periodicos.ufrn.br/reb/article/view/13631
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16 Martins BG, Silva WR, Maroco J, Campos JLDB. Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse: propriedades psicométricas e prevalência das afetividades. J Bras Psiquiatr. 2019;68(1):32-41. https://doi.org/10.1590/0047-2085000000222
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17 Krefer L, Vayego SA. Prevalência de sintomas depressivos em estudantes universitários. Cad Bras Saúde Mental [Internet]. 2019 [cited 2020 Aug 20];11(28):170-81. Available from: http://stat.entrever.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/2558/5451
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-1818 Silva RMB, Moreira SNT. Estresse e residência multiprofissional em saúde: compreendendo significados no processo de formação. Rev Bras Educ Med. 2019;43(4):157-66. https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n4rb20190031
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), por diversas razões: mudança organizativa das equipes, ressignificação do trabalho, treinamento sobre uma doença pouco conhecida, bem como suas repercussões clínicas, sociais, econômicas e psicossociais(1919 Ornell F, Halpern SC, Kessler FHP, Narvaez JCM. The impact of the COVID-19 pandemic on the mental health of healthcare professionals. Cad Saúde Pública. 2020;36(4):e00063520. https://doi.org/10.1590/0102-311x00063520
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), elevados níveis de estresse, sobrecarga de trabalho, pânico e aumento de sintomas ansiosos(2020 Souza e Souza LP, Souza AG. Enfermagem brasileira na linha de frente contra o novo Coronavírus: quem cuidará de quem cuida? J Nurs Health [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 23];10(4):1-13. Available from: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/18444/11237
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).

Com as transformações provocadas pelo estado de crise sanitária de importância internacional em razão da COVID-19, questiona-se se essas mudanças podem gerar repercussões psicossociais nos residentes multiprofissionais durante esse período e intensificar os sintomas ansiosos. Assim, reconhecendo a importância dos residentes em saúde no âmbito dos serviços de saúde no país, especialmente em um momento de crise sanitária, torna-se necessário identificar níveis ansiosos nessa população em trabalho durante a pandemia, a fim de se fundamentar uma resposta político-institucional oportuna e melhor adaptação ao contexto pandêmico.

OBJETIVO

Estimar a prevalência e os fatores associados à ansiedade entre residentes multiprofissionais em saúde de um hospital universitário durante a pandemia por COVID-19.

MÉTODOS

Aspetos éticos

O estudo atendeu às normas éticas da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos em 08 de junho de 2020.

Desenho, período e local de estudo

Estudo transversal, norteado pela ferramenta STROBE, realizado em um hospital universitário de grande porte no estado do Rio Grande do Norte, Brasil, que conta com 242 leitos de internação. Coleta de dados realizada entre 12 e 24 julho de 2020, período no qual o hospital já prestava assistência direta aos casos suspeitos e confirmados de COVID-19. Nesse mesmo intervalo, o Rio Grande do Norte registrava 53.077 casos confirmados de COVID-19 e 1.858 óbitos.

População ou amostra; critérios de inclusão e exclusão

O estudo consiste em um censo realizado com todos os elementos que fazem parte da população-alvo, ou seja, os residentes dos Programas Multiprofissionais em Saúde (Intensiva Adulto, Saúde da Criança, Cardiologia e Atenção Psicossocial) do hospital. Assim, compuseram a amostra todos os residentes multiprofissionais em saúde (n = 67) do 1º e 2º anos. Excluiu-se apenas o residente autor do estudo. A participação foi voluntária.

Protocolo de estudo

Primeiro, utilizou-se um questionário preparado pelos autores, contendo variáveis sociodemográficas (idade, sexo, estado civil, profissão, renda familiar); atuação profissional na residência (programa de residência, ano de residência, satisfação com a residência); perfil de saúde mental (acompanhamento psicológico antes e depois da residência, acompanhamento psiquiátrico antes e depois da residência, uso de psicofármaco); assédios e violência (assédios sexual, psicológico, moral; sofrer violência); e enfrentamento da COVID-19 (atuação em setor COVID-19, treinamento, segurança, uso de equipamento de proteção individual e estratégias de enfretamento psicossocial). Por se tratar de estudo censitário, o questionário não passou por pré-teste com a intenção de não se perder participantes. No entanto, para minimizar diferenças de conteúdo e aparência, o instrumento foi revisado de forma independente por três pesquisadores com experiência em estudos epidemiológicos e ciências atuariais.

Em relação ao instrumento para avaliação da ansiedade e seus níveis, utilizou-se o Beck Anxiety Inventory (BAI), considerado padrão-ouro para mensuração da variável de interesse, validada no Brasil por Cunha(2121 Cunha JA. Manual da versão em português das Escalas Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2016. 171p.) e Quintão, Delgado e Pietro(2222 Quintão S, Delgado AR, Prieto G. Validity Study of the Beck Anxiety Inventory (Portuguese version) by the Rasch Rating Scale Model. Psicol: Reflex Crít. 2013;26(2):305-10. https://doi.org/10.1590/S0102-79722013000200010
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). Trata-se de uma escala de autorrelato que identifica intensidade de sintomas ansiosos em populações psiquiátricas e não psiquiátricas, sem intenção psicodiagnóstica. Constitui-se por 21 itens, cada qual em uma escala de 0 a 3 pontos. O escore final estratifica-se em ansiedade mínima (0-7 pontos), leve (8-15 pontos), moderada (16-25 pontos) e grave (26-63 pontos)(2121 Cunha JA. Manual da versão em português das Escalas Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2016. 171p.). Avaliou-se a confiabilidade do BAI na população deste estudo por meio do coeficiente alfa de Cronbach, obtendo-se valor de 0,926, considerando-se boa a consistência interna.

A coleta de dados ocorreu inteiramente on-line, na plataforma Google Forms®. O arrolamento dos participantes se deu por contato telefônico e abordagem em serviço. O link do formulário era enviado por meio do aplicativo WhatsApp® ou por e-mail. Após esclarecimentos e ciência da participação voluntária, métodos e procedimentos, todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Imagético.

Análise dos resultados e estatística

Os dados foram analisados, inicialmente, com descrição das frequências absolutas e relativas no software SPSS, versão 20.0. Avaliou-se a existência de diferença estatisticamente significante entre a variável-desfecho (ansiedade) e as demais variáveis independentes por meio do teste quiquadrado ou teste exato de Fisher de acordo com adequabilidade dos dados e razão de verossimilhança. O nível de confiança empregado foi de 5%.

A análise múltipla foi realizada no pacote estatístico R, pelo modelo de regressão de Poisson com variância robusta. Foram candidatas ao modelo final as variáveis significantes ao nível de 20% na análise bivariada. Os modelos foram comparados via Critério de Informação de Akaike (AIC)(2121 Cunha JA. Manual da versão em português das Escalas Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2016. 171p.2222 Quintão S, Delgado AR, Prieto G. Validity Study of the Beck Anxiety Inventory (Portuguese version) by the Rasch Rating Scale Model. Psicol: Reflex Crít. 2013;26(2):305-10. https://doi.org/10.1590/S0102-79722013000200010
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). O modelo final considerou a significância estatística ao nível de 5%, plausibilidade biológica e epidemiológica, estimando as associações com base nas Razões de Prevalência ajustadas e intervalos de confiança de 95%.

RESULTADOS

A maioria dos residentes multiprofissionais eram do sexo feminino, na faixa etária de 21 a 25 anos, viviam sem companheiro, eram enfermeiros, integravam o programa de residência de Terapia Intensiva Adulta e estavam no primeiro ano da residência. Em relação à renda familiar, houve distribuição de frequência igualitária entre receber apenas a bolsa da residência e receber entre quatro a dez salários mínimos. Destaca-se que mais de 80% dos participantes relataram grau de satisfação razoável, bom e excelente com a residência. Ainda, 31,30% dos residentes necessitaram de acompanhamento psicológico após entrar na residência, 14,90% fazem uso de medicação psicotrópica e 31,30% (IC95% 20,19-42,40%) apresentavam níveis de ansiedade classificados como moderado e grave (Tabela 1).

Tabela 1
Caracterização dos residentes multiprofissionais em saúde segundo variáveis sociodemográficas, profissionais e intensidade da ansiedade, 2020

Maior proporção dos pesquisados foi escalada para setores com casos confirmados ou suspeitos de COVID-19 (59,70%), e 67,20% prestaram assistência a esses pacientes. Além disso, a maioria recebeu treinamento específico para assistir casos suspeitos e confirmados de COVID-19 (77,60%). No entanto, a maior proporção destes não sentia segurança técnica e científica para prestar cuidados a pacientes COVID-19 (59,70%). Durante a pandemia, 68,70% dos residentes relataram ter sofrido assédio, sendo os de maior expressividade o psicológico (37,30%) e o moral (44,8%) (Tabela 2).

Tabela 2
Caracterização dos residentes multiprofissionais em relação as variáveis de assédio em serviço e enfrentamento à COVID-19, 2020

Verificou-se que maior proporção de níveis de ansiedade moderado/grave nos residentes mais jovens (p = 0,004), assim como nos residentes que precisaram de atendimento psicológico após a entrada na residência (p = 0,001), usavam psicofármacos (p = 0,006), trabalharam em setores com casos suspeitos/confirmados de COVID-19 (p = 0,05) e diretamente com casos suspeitos/confirmados (p = 0,03) (Tabela 3).

Tabela 3
Distribuição das variáveis sociodemográficas, profissionais, perfil de saúde e de enfrentamento da COVID-19 segundo níveis de ansiedade, 2020

Na análise múltipla, evidenciou-se que necessitar de acompanhamento psicológico após entrar na residência (RPa = 1,48) e fazer uso de psicotrópico (RPa = 1,92) aumentaram as chances de serem classificados com níveis de ansiedade moderado e grave (Tabela 4).

Tabela 4
Associação das variáveis "acompanhamento psicológico" e "uso de psicofármacos" com níveis de ansiedade entre residentes multiprofissionais em saúde de um hospital universitário durante pandemia da COVID-19, em um modelo de regressão múltipla, 2020

DISCUSSÃO

Observou-se prevalência de ansiedade entre os residentes multiprofissionais em saúde que compuseram este estudo, principalmente nos níveis moderado e grave, o que por sua vez pode acarretar prejuízos psicossociais e laborais nesses indivíduos em médio e longo prazos e reverberar, negativamente, na assistência prestada aos pacientes COVID-19.

Em períodos não pandêmicos, outros estudos estimaram a prevalência de níveis de ansiedade em residentes multiprofissionais(2525 Rotta DS, Pinto MH, Lourenção LG, Teixeira PR, Gonsalez EG, Gazetta CE. Níveis de ansiedade e depressão entre residentes multiprofissionais em saúde. Rev Rene. 2016;17(3):372-7. https://doi.org/10.15253/2175-6783.2016000300010
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) e em residentes médicos(2626 Lourenção LG, Teixeira PR, Gazetta CE, Pinto MH, Gonsalez EG, Rotta DS. Níveis de ansiedade e depressão entre residentes de pediatria. Rev Bras Educ Méd. 2017;41(4):557-63. doi 10.1590/1981-52712015v41n4rb20160092
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) no Brasil com o mesmo instrumento utilizado neste estudo e verificaram, respectivamente, 28% e 22,9% de níveis moderado e grave, taxas menores do que no presente estudo, podendo sugerir que o período pandêmico aumenta a intensidade da ansiedade.

Os níveis de ansiedade se exacerbam em momentos de crise por diferentes motivos em profissionais de saúde. Especificamente, em momentos de epidemias e pandemias, os recursos adaptativos são muito mais exigidos do que em momentos de normalidade sanitária. Esse contexto pode ser percebido entre os residentes deste estudo que estavam atuando diretamente com os casos confirmados e suspeitos de COVID-19, pois apresentaram maior prevalência de níveis moderado e grave de ansiedade em relação aos que não estavam atuando diretamente nos setores de COVID-19 no momento da coleta de dados.

Para além da assistência direta aos pacientes, outros estudos documentaram a participação de residentes de enfermagem que atuaram em processos de educação popular em saúde com a população geral e realização de testagem rápida em modelo drive-thru(2727 Medved IV, Gomes JS, Biliu KS, Guirra PSB, Almeida VC. Atuação do enfermeiro residente em testagem rápida para COVID-19: um relato de experiência. Health Resid J [Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 20];1(2):1-12. Available from: https://escsresidencias.emnuvens.com.br/hrj/article/view/31/20
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) e de residentes em saúde coletiva que treinaram equipes e profissionais de saúde para uso correto de equipamentos de proteção individual (paramentação e desparamentação) no contexto da pandemia(2828 Medeiros FL, Abrantes EMS. Residência em saúde coletiva na ação sobre EPIS: cenário de pandemia. Cad ESP Ceará [Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 20];14(1):114-7. Available from: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/354/222
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). Portanto, destaca-se que esses contextos de atuação somam-se ao receio de que faltem equipamentos de proteção individual, sobrecarga de trabalho, desgaste emocional cotidiano por terem que lidar com diversos fatores estressores, desesperança, medo da morte de si e de pessoas próximas e medo de ser infectado e de infectar os outros(2929 Wang C, Pan R, Wan X, Tan Y, Xu L, Ho CS, et al. Immediate psychological responses and associated factors during the initial stage of the 2019 coronavirus disease (COVID-19) epidemic among the general population in China. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(5):e1729. https://doi.org/10.3390/ijerph17051729
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), aumentando os níveis de ansiedade.

Em relação ao medo de contaminar-se pelo novo coronavírus, esse sentimento pode ser provocado, por exemplo, pela evidência divulgada no Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde brasileiro de que, até o dia 4 de julho, havia 173.440 casos de síndrome gripal (SG) por COVID-19 em profissionais da área da saúde de todo o país(3030 Ministério da Saúde (BR). Pesquisa analisa impacto psicologico da Covid em profissionais da saúde [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 23]. Available from: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/saude-mental-pesquisa-analisa-impacto-psicologico-do-enfrentamento-a-covid-19-em-profissionais-da-saude
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). Logo, exige-se dos residentes multiprofissionais em saúde atenção redobrada tanto na prestação de cuidados assistenciais aos pacientes, incluindo o uso adequado de equipamentos de proteção individual, quanto no cumprimento de todos os outros protocolos institucionais, cabendo aos gestores das instituições garantir todo o aparato a esses residentes.

Verificou-se que a maior proporção de níveis de ansiedade moderado e grave estava presente nos residentes mais jovens, o que pode relacionar-se com o menor tempo de formação acadêmica e menor experiência profissional, somado ao processo inicial de desenvolvimento de habilidades durante o percurso da residência enquanto espaço de aprendizagem. Transtornos psicológicos e elevados sinais ansiosos são maiores no 1º ano de formação dos residentes, quando os profissionais estão em fase de adaptação às novas rotinas de trabalho e, em razão disso, apresentam maior insegurança na execução de procedimentos e menor resiliência para lidar com problemas típicos da área de saúde(3131 Hurst C, Kahan D, Ruetalo M, Edwards S. A year in transition: a qualitative study examining the trajectory of first year residents' well-being. BMC Med Educ. 2013;13(96):1-9. https://doi.org/10.1186/1472-6920-13-96
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).

Quanto mais ansioso o indivíduo se apresenta, menores são os níveis de resiliência, necessária nesse momento de pandemia, pois é da resiliência que se manifestam a superação de situações e momentos complexos ou de risco e a garantia da continuidade de um desenvolvimento emocional saudável. A resiliência é um processo dinâmico que permite à pessoa se adaptar, apesar da presença de estressores. Ela abrange mecanismos emocionais, cognitivos e socioculturais que reforçam atributos pessoais, estratégias de enfrentamento e habilidades(3232 Sousa VFS, Araujo, TCCF. Estresse ocupacional e resiliência entre profissionais de saúde. Psicol: Ciênc Prof. 2015;35(3):900-15. https://doi.org/10.1590/1982-370300452014
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). Assim, parte dos residentes multiprofissionais apresentou níveis de ansiedade considerados como mínimo e leve; e, apesar dos fatores estressores e das dificuldades no contexto pandêmico, os residentes se utilizam de modelos adaptativos pessoais, profissionais, cognitivos e comportamentais que os fazem lidar com a ansiedade de forma menos exacerbada.

A necessidade dos residentes que apresentaram maiores níveis de ansiedade moderado e grave em ter acompanhamento psicológico após a entrada na residência multiprofissional pode relacionar-se com questões intrínsecas ao modelo vigente das residências no Brasil, em que há elevada jornada semanal de educação/trabalho de 60 horas semanais, entre atividades teóricas e práticas, com duração de 24 meses, contemplando apresentação de relatórios, rodízios em diversos setores do hospital(3131 Hurst C, Kahan D, Ruetalo M, Edwards S. A year in transition: a qualitative study examining the trajectory of first year residents' well-being. BMC Med Educ. 2013;13(96):1-9. https://doi.org/10.1186/1472-6920-13-96
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). Esse modo de execução das residências em saúde somase aos fatores estressores da pandemia da COVID-19, desencadeando os elevados níveis de ansiedade e fazendose necessário suporte psicológico, que podem resultar em absenteísmo, maiores custos ao serviço de saúde e sequelas permanentes na saúde mental dos residentes(3333 Franco GP, Barros ALBL, Nogueira-Martins LA, Zeitoun SS. Burnout en residentes de enfermería. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(1):12-8. https://doi.org/10.1590/S0080-62342011000100002
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).

Além do acompanhamento psicológico, observou-se a utilização de psicofármacos pelos residentes que demonstraram níveis mais elevados de ansiedade. Atualmente, em especial com a modernização dos psicofármacos e diminuição dos efeitos colaterais, houve aumento de seu uso em toda a população brasileira. Em profissionais da saúde, devido às demandas laborais, à sobrecarga que normalmente é exigida no trabalho, aos fatores pessoais que se somam ao fácil acesso à prescrição desses medicamentos, tornou-se comum, por exemplo, o consumo de ansiolíticos(3434 Oliveira EB, Araújo PMR, Maia MPQ, Cabral JL, Brito DM, Figueredo EP. Estresse ocupaci-onal e consumo de ansiolíticos por trabalhadores de enfermagem. Rev Enferm UERJ. 2015;22(5):615-621. https://doi.org/10.12957/reuerj.2014.15510
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).

Ademais, a ansiedade pode apresentar diversas manifestações nos residentes multiprofissionais enquanto durar a pandemia da COVID-19 no Brasil e para além desse momento pandêmico, com reflexos diretos na vida pessoal e profissional, podendo fragilizá-los e fazer eclodir diversos outros comportamentos mal adaptativos. Portanto, é fundamental que esses residentes e todos os outros profissionais que compõem o universo hospitalar, no qual os programas de residência estão inseridos, possam priorizar estratégias que minimizem os fatores desencadeantes da ansiedade e que vislumbrem a resiliência.

Limitações do estudo

Os limites do estudo estão principalmente na característica do método adotado, que retratou os níveis de ansiedade da população estudada apenas no momento que a coleta de dados foi realizada. Além disso, não é possível estabelecer relação de causa e efeito entre a variável-desfecho e as variáveis independentes; caso isso fosse feito, poder-se-ia incorrer em viés de causalidade reversa.

Contribuições para área de saúde

Diante da importância dos residentes multiprofissionais em saúde para a qualidade da assistência durante a pandemia da COVID-19, é importante que a instituição de saúde e a comunidade científica conheçam os efeitos do período pandêmico da adaptação dos participantes aos efeitos ansiogênicos, a fim de se ofertarem respostas rápidas e imediatas no manejo clínico e psicossocial com vistas à redução de níveis de ansiedade e de outros fatores que possam interferir na saúde mental e formação desses residentes.

CONCLUSÃO

Evidenciou-se que os residentes multiprofissionais em saúde apresentaram níveis de ansiedade elevados durante a pandemia da COVID-19, associados às seguintes variáveis: faixa etária, necessidade de acompanhamento psicológico após entrada na residência, em uso de psicofármaco, trabalhando em setor COVID-19 e diretamente com casos suspeitos e confirmados. No modelo ajustado, permaneceram as variáveis “necessitar de acompanhamento psicológico depois do ingresso na residência” e “fazer uso de psicotrópico”. Juntos, esses fatores parecem indicar que os residentes tiveram sua saúde mental prejudicada durante a pandemia, no entanto a manutenção dessas variáveis no modelo também sugere que buscaram ajuda para controle da ansiedade. Resta saber se esse suporte é proveniente das políticas institucionais da saúde do trabalhador ou se parte de uma busca individual.

  • FOMENTO
    Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, Hospital Universitário Onofre Lopes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2020
  • Aceito
    06 Dez 2020
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