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Hemangioma de coroide e o desafio do diagnóstico diferencial

Resumo

O hemangioma de coroide é um tumor benigno relativamente raro, que se apresenta de forma circunscrita ou difusa, sendo esta última normalmente associada à Síndrome de Sturge-Weber. Os tumores circunscritos manifestam-se de forma insidiosa, com o diagnóstico realizado comumente após o aparecimento de sintomas secundários. Apresentam como diagnóstico diferencial lesões graves e potencialmente letais, como melanoma de coroide e doença metastática. Neste relato descrevemos o caso de um hemangioma intraocular nodular avançado associado a descolamento hemorrágico da retina, evidenciando o desafio do diagnóstico diferencial devido às semelhanças clínicas e radiológicas compartilhadas pelos tumores.

Descritores:
Hemangioma; Neoplasias da coroide; Neoplasias oculares; Tumor benigno; Tumor vascular

Abstract

Choroidal hemangioma is a fairly rare benign vascular tumor that can manifest in either circumscribed or diffuse type; the latter one is usually related to Sturge-Weber Syndrome. The circumscribed tumors have an insidious presentation and diagnosis is commonly made after the onset of secondary symptoms. Serious and potentially lethal lesions, such as choroidal melanoma and metastatic disease, may represent a differential diagnosis. In this report, we describe an advanced case of nodular hemangioma associated with hemorrhagic retinal detachment. This case highlights the challenge of differential diagnosis in intraocular tumors, due to their similar clinical and radiologic features.

Keyword:
Hemangioma; Choroidal neoplasms; Eye neoplasms; Benign tumor; Vascular tumor

Introdução

O hemangioma da coroide é um tumor vascular benigno de frequência pouco habitual (1 caso para cada 40 melanomas da coroide),(11 Shields CL, Shields JA. Choroidal hemangioma. Semin Ophthalmol. 1993;8(4):257-64.) composto de grandes vasos dilatados da coroide. Pode ocorrer em duas formas clínicas e histopatológicas distintas, como um tumor circunscrito, sem associações extraoculares, ou de forma difusa, o qual está associado com variações da Síndrome de Sturge-Weber.(22 Shields JA, Shields CL. Intraocular tumors: a text and atlas. Philadelphia: Saunders W.B.; 1991. Vascular tumors of the uvea. p.239-59.) O primeiro surge entre a segunda e a quarta décadas de vida como uma elevação séssil bem circunscrita e de coloração vermelho alaranjada, localizada nas camadas mais profundas da retina. A maioria (95%) é posterior ao equador (mais frequentemente na mácula ou justa papilar) e pode complicar com descolamento exudativo da retina, cursando com baixa acuidade visual (BAV) se acometer a região macular.(33 Anand R, Augsburger JJ, Shields JA. Circumscribed choroidal hemangiomas. Arch Ophthalmol. 1989;107(9):1338-42.) Em contrapartida, o tipo difuso é geralmente diagnosticado ao nascimento como manifestação da Síndrome de Sturge-Weber e, clinicamente, aparece como uma massa mal definida de cor vermelha que envolve mais da metade da coroide.(44 De Potter P. Choroidal hemangioma. In: Guyer Dr, Yannuzzi LA, Chang S, Shields JA. Greew WR, editors. Retina-vitreous-macula. Philadelphia: W.B. Saunders; 1999:1083-1091) Mais de 90% dos casos notificados foram em pacientes caucasianos, mas não há predileção por sexo.(55 Shields CL, Honavar SG, Shields JA, Cater J, Demirci H. Circumscribed choroidal hemangioma: clinical manifestations and factors predictive of visual outcome in 200 consecutive cases. Ophthalmology. 2001;108(12):2237-48.)

Histologicamente, as lesões são classificadas de acordo com os tipos de vasos dentro do tumor, incluindo os tipos cavernosos, capilares ou mistos. O tipo cavernoso é composto de vasos calibrosos separados por tecido conjuntivo circunscrito, enquanto que o tipo capilar é composto de vasos de pequeno calibre separados por tecido conjuntivo frouxo. O tipo misto apresenta características capilares e cavernosas. Em uma série de casos de hemangiomas coroideos circunscritos, as formas cavernosas e mistas foram as mais prevalentes, enquanto o tipo capilar representou apenas uma pequena porcentagem dos casos. Já os casos de hemangiomas difusos associados à Síndrome de Sturge-Weber todos eram do tipo misto.(66 Karimi S, Nourinia R, Mashayekhi A. Circumscribed choroidal hemangioma. J Ophthalmic Vis Res. 2015;10(3):320-8.,77 Witschel H, Font RL. Hemangioma of the choroid. A clinicopathologic study of 71 cases and a review of the literature. Surv Ophthalmol. 1976;20(6):415-31.)

Para o diagnóstico, além da avaliação biomicroscópica, vários exames complementares, como o ultrassom (US), a angiofluresceinografia, a Ressonância magnética (RM) e a tomografia de coerência óptica (OCT), podem ser utilizados na diferenciação do hemangioma da coroide com outros tumores.(88 Rodrigues LD, Serracarbassa LL, Nakashima Y, Serracarbassa PD. [Choroidal hemangioma with extensive retinal detachment treated with posterior vitrectomy: case report]. Arq Bras Oftalmol. 2007;70(3):533-6. Portuguese.) Em especial, o padrão ultrassonográfico dos hemangiomas coroidais é característico, aparecendo no modo bidimensional (B-scan) como uma massa acústica sólida em forma de cúpula elevada e no modo amplitude (A-scan) como um pico inicial alto que corresponde à superfície do tumor anterior e alta refletividade interna, entre 50% e 100%. Isso se deve a múltiplos canais vasculares ao longo destes tumores. Ambas as características são úteis para distinguir o hemangioma coroideo do melanoma coroideo, que geralmente é acusticamente côncavo com reflexão interna média a baixa.(99 Singh AD, Kaiser PK, Sears JE. Choroidal hemangioma. Ophthalmol Clin North Am. 2005;18(1):151-61.,1010 Long RS. Problems of diagnosis and treating choroidal hemangiomas. Ophthalmol Times. 1981;6:144.) Na RM, os hemangiomas coroidais geralmente mostram hiperintensidade de sinal em relação ao vítreo em imagens ponderadas em T1 e hiperintensidade ou isointensidade de sinal em imagens ponderadas em T2, além de apresentarem importante realce após a administração do agente paramagnético (gadolínio). Esses achados são úteis para a diferenciação com o melanoma da coroide e as metástases que apresentam alto sinal nas imagens ponderadas em T1 e baixo sinal nas imagens ponderadas em T2.(55 Shields CL, Honavar SG, Shields JA, Cater J, Demirci H. Circumscribed choroidal hemangioma: clinical manifestations and factors predictive of visual outcome in 200 consecutive cases. Ophthalmology. 2001;108(12):2237-48.,66 Karimi S, Nourinia R, Mashayekhi A. Circumscribed choroidal hemangioma. J Ophthalmic Vis Res. 2015;10(3):320-8.) No entanto, essas características não são patognomônicas para os hemangiomas de coroide e foram encontrados em alguns melanomas coroidais, o que dificulta o diagnóstico diferencial de certeza.(1010 Long RS. Problems of diagnosis and treating choroidal hemangiomas. Ophthalmol Times. 1981;6:144.) Essa dificuldade diagnóstica pode ser observada em estudos que demonstram que a cada 5-10% dos olhos enucleados como melanoma de coroide na realidade apresentavam um hemangioma coroideo.(1111 Ferry AP. Lesions mistaken for malignant melanoma of the posterior uvea. A clinicopathologic analysis of 100 cases with ophthalmoscopically visible lesions. Arch Ophthalmol. 1964;72(4):463-9.,1212 Shields JA. Lesions simulating malignant melanoma of the posterior uvea. Arch Ophthalmol. 1973;89(6):466-71.)

O tratamento pode contemplar a simples observação da lesão, indicada em casos assintomáticos que não apresentem fluido subretianiano. Já nas lesões sintomáticas e naquelas que apresentam risco de acometimento visual, são indicados diferentes tratamentos, incluindo terapia fotodinâmica (PDT), braquiterapia em placa, radioterapia por feixes externos, radiocirurgia estereotáxica, termoterapia transpupilar, fotocoagulação a laser, propranolol oral e terapia antiangiogênica intravítrea. Nos casos mais avançados, com evolução para perda visual e glaucoma neovascular, pode haver necessidade de enucleação.(66 Karimi S, Nourinia R, Mashayekhi A. Circumscribed choroidal hemangioma. J Ophthalmic Vis Res. 2015;10(3):320-8.)

Neste relato demonstramos um caso de hemangioma intraocular nodular avançado associado a descolamento hemorrágico da retina, evidenciando a dificuldade no diagnóstico diferencial pelos exames de imagem.

Relato do caso

Paciente do sexo masculino, 43 anos, com relato de BAV progressiva no olho esquerdo (OE) há 1 ano, associado a episódios moderados de dor ocular e hiperemia conjuntival ipsilateral, evoluindo com piora súbita da dor e da visão há 1 semana. Sem relato de outras comorbidades ou história familiar de transtornos oculares.

A o exame oftalmológico, apresentava acuidade visual em olho direito (OD) de 20/25 e em OE ausência de percepção luminosa. Na biomicroscopia, o OD estava dentro do habitual, com pressão intraocular e mapeamento de retina normais. O OE apresentava hiperemia conjuntival 1+/4, córnea com edema leve, rubeose de íris, além de pressão intraocular de 50 mmHg e presença de uma membrana delgada e móvel em vítreo anterior, compatível com a retina descolada (Figura 1). A fundoscopia do OE apresentava hemorragia vítrea densa, não sendo possível visualização das estruturas intraoculares. A US do OE foi evidenciou presença de membrana móvel de alta refletividade na cavidade vítrea sugestivas de descolamento total da retina e presença de lesão sólida expansiva hiperecogênica, em forma de cúpula na região nasal, medindo 9,1 x 10,3 mm de altura e comprimento ântero-posterior, respectivamente (Figura 2). Foram solicitados exames sistêmicos laboratoriais e de imagem para rastreio, com resultado dentro da normalidade, além de RM de crânio e órbitas para auxílio diagnóstico. Na RM foi observada formação expansiva ovalada acometendo a coriorretina do olho esquerdo, com hipossinal em T1, e intensa impregnação homogênea pelo gadolínio, de limites definidos, medindo 0,8 x 0,9 x 04 cm e sem sinal de extensão extraocular, associado a volumoso descolamento da retina, apresentando conteúdo de alto sinal em T1, de provável conteúdo hemático. Sugeriu-se lesão de natureza neoplásica, incluindo no diagnóstico diferencial o melanoma amelanótico de coroide ou lesão de natureza secundária (Figura 3).

Figura 1
Biomicroscopia do olho esquerdo evidenciando retina descolada em vítreo anterior

Figura 2
Ultrassonografia olho esquerdo demonstrando lesão sólida hiperecogênica extensa em cúpula

Figura 3
Ressonância magnética das órbitas na sequência T1 pós-gadolínio, demonstrando lesão expansiva com intensa impregnação pelo meio de contraste no aspecto medial da coroide à esquerda (seta vermelha), associada a volumoso descolamento hemorrágico de retina do mesmo lado, caracterizado por tênue hipersinal em T1

Diante de lesão com provável origem neoplásica e baixo prognóstico visual, optamos pela enucleação do globo ocular. O exame anatomopatológico revelou uma lesão expansiva com grande riqueza de vasos de diversos calibres, levando ao diagnóstico de hemangioma capilar de túnica média (Figura 4). O paciente foi orientado sobre o quadro e encaminhado para adaptação de prótese ocular.

Figura 4
Estudo histológico evidenciando lesão com grande riqueza de vasos de diversos calibres, confirmando o diagnóstico de hemangioma capilar

Discussão

Embora o hemangioma da coroide seja um tumor intraocular raro, é importante distingui-lo dos demais tumores intraoculares. Muitas vezes, o diagnóstico desse tumor se torna desafiador, com pacientes sendo inicialmente diagnosticados com melanoma de coroide ou lesões metastáticas.(1313 Mashayekhi A, Shields CL. Circumscribed choroidal hemangioma. Curr Opin Ophthalmol. 2003;14(3):142-9.) Exames auxiliares, como US e RM ajudam a diferenciar esse tumor de outras lesões similares. Entretanto, em muitos casos, é desafiador estabelecer um diagnóstico diferencial devido às semelhanças clínicas e radiológicas que tais lesões podem compartilhar.(1414 Berry M, Lucas LJ. Circumscribed choroidal hemangioma: A case report and literature review. J Optom. 2017;10(2):79-83.)

No presente caso, as peculiaridades se somam, pois, além de apresentar uma lesão de aspecto mais agressivo que evoluiu com amaurose, descolamento total da retina e glaucoma neovascular (diferentemente da maioria dos casos, que apresentam uma evolução mais indolente), também não foi possível estabelecer que não se tratava de um tumor de natureza maligna pelos exames de imagem.

Diante da impossibilidade de se excluir uma lesão maligna, bem como o baixo prognóstico visual e do quadro clinico de dor ocular, optou-se pela enucleação do globo ocular, com posterior adaptação de prótese. Atualmente, o paciente se encontra bem clinicamente, com adequada adaptação pós-operatória e estética, e sem queixas.

A análise histopatológica foi compatível com hemangioma capilar de túnica média, evidenciando mais uma singularidade deste caso, visto que nos hemangiomas nodulares os tipos histológicos mais comuns são os cavernosos e os mistos, enquanto o tipo capilar representa apenas pequena porcentagem dos casos (3%), conforme os estudos de Witschel e Font .(77 Witschel H, Font RL. Hemangioma of the choroid. A clinicopathologic study of 71 cases and a review of the literature. Surv Ophthalmol. 1976;20(6):415-31.)

Pelo exposto, a importância desse caso se aplica ao fato de alertar e orientar os profissionais quanto à conduta de investigação e às dificuldades encontradas para o diagnóstico dos hemangiomas de coroide em seus diferentes aspectos clínicos e radiológicos, auxiliando assim ao oftalmologista a conduzir esses casos muitas vezes tão desafiadores.

Referências

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    Rodrigues LD, Serracarbassa LL, Nakashima Y, Serracarbassa PD. [Choroidal hemangioma with extensive retinal detachment treated with posterior vitrectomy: case report]. Arq Bras Oftalmol. 2007;70(3):533-6. Portuguese.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    6 Ago 2019
  • Aceito
    6 Out 2019
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