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A INFLUÊNCIA DOS ATORES NA DEFINIÇÃO DE LÓGICAS INSTITUCIONAIS: UM EXAME DOS GASTOS DOS PLANOS DE SAÚDE PRIVADOS

RESUMO

A definição de quais gastos podem ser incorridos no campo da saúde privada é uma empreitada que envolve uma competição entre múltiplas lógicas. As operadoras privadas de saúde no Brasil reclamam que as despesas médicas aumentaram durante a última década no Brasil os beneficiários também reclamam, pois arcam com os reajustes de valores decorrentes. O estudo analisou como os atores do campo privado da saúde influenciam a configuração dos gastos em saúde, quais elementos interferem nisso, e identificou um modelo de lógicas institucionais que melhor expresse essas definições no campo institucional. A pesquisa é explicativa por meio de pesquisa documental e entrevistas com executivos das organizações da área que permitiram a coleta de dados. Os resultados mostraram que as lógicas concorrem com um discurso no qual cada ator entende que os demais são responsáveis pelos aumentos das despesas e são contra a divulgação de dados e transparência para preservar a concorrência de mercado. O caso mostra uma coalizão que pode empregar o seu poder para manipular o reajuste das mensalidades, porque outros atores preferem evitar um confronto; essa alternativa não resolve o problema a respeito das despesas do setor, mesmo considerando que elas estão se tornando insustentáveis.

Palavras-chaves:
lógica institucional; saúde privada; despesas com saúde; coalizões de poder; divulgação de dados

ABSTRACT

The definition of which expenses can be incurred in the private health field is an endeavor that involves a dispute between multiple logics. Private health operators in Brazil complain that medical expenses have increased during the last decade in Brazil, as do beneficiaries, who bear the fee readjustments that ensue. The study analyzed how the actors in the private health field influence the configuration of health care expenditures and the elements that interfere, identifying a model of institutional logic that best expresses these definitions in the field. The research is explanatory using archival data and interviews with executives of the organizations in the field. The results showed that the logics compete in the field with a discourse in which each actor understands that the others are responsible for the increase in expenses, and are against data disclosure and transparency to safeguard market competition. This case shows a coalition that is able to exercise its power to manipulate the readjustment of fees, because other actors will rather avoid confrontation in an alternative that does not solve the problem about the sector’s expenses, even with the acknowledgment that it is becoming unsustainable.

Keywords:
institutional logic; private health; health expenditures; power coalitions; data disclosure

RESUMEN

La definición de qué gastos se pueden considerar/incluir? en el campo de la salud privada es una tarea que implica una disputa entre múltiples lógicas. Las operadoras privados de salud en Brasil se quejan de que los gastos médicos han aumentado durante la última década en Brasil, al igual que los beneficiarios, quienes asumen los consiguientes reajustes de tarifas. El estudio analizó cómo los actores del campo privado de la salud influyen en la configuración del gasto en salud, qué elementos interfieren, identificando un modelo de lógica institucional que mejor expresa estas definiciones en el campo. La investigación es explicativa y utiliza datos documentales y entrevistas a ejecutivos de las organizaciones del rubro para la recolección de datos. Los resultados mostraron que las lógicas compiten con un discurso en el que cada actor entiende que los demás son responsables del aumento de los gastos y están en contra de la divulgación de datos y la transparencia para salvaguardar la competencia en el mercado. El caso muestra una coalición que es capaz de ejercer su poder para manipular el reajuste de las cuotas mensuales, porque otros actores prefieren evitar un enfrentamiento, en una alternativa que no resuelve el problema de los gastos del sector, incluso teniendo en cuenta que este se está volviendo insostenible.

Palabras Clave:
lógica institucional; salud privada; gastos en salud; coaliciones de poder; divulgación de datos

INTRODUÇÃO

O crescimento dos gastos com saúde tornou-se uma preocupação para famílias, empresas e governo. O Instituto de Estudos de Saúde Suplementar, o IESS, organização sem fins lucrativos patrocinada por operadoras de saúde privadas e que realiza pesquisas para o setor, publicou dados que mostram um aumento nominal de 140% nas despesas com assistência médica entre 2011 e 2019 (IESS, 2018Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2018). Análise Especial do Mapa Assistencial da Saúde Suplementar no Brasil entre 2011 e 2017. https://www.iess.org.br/sites/default/files/2021-04/ES19-ANÁLISE%20DO%20MAPA%20ASSISTENCIAL%20DA%20SAÚDE%20SUPLEMENTAR%20NO%20BRASIL%20ENTRE%202011%20E%202017.pdf
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; 2022aInstituto de Estudos de Saúde Suplementar (2022a). Análise Especial do Mapa Assistencial da Saúde Suplementar no Brasil entre 2016 e 2021. https://www.iess.org.br/taxonomy/term/1731
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). Em contrapartida, dados da agência reguladora do setor (Agência Nacional de Saúde Suplementar, ANS), com base nas informações oferecidas pelas operadoras, mostram um aumento nominal de 154% no mesmo período (Associação Nacional de Hospitais Privados [ANAHP], 2022Associação Nacional de Hospitais Privados. (2022). Taxa de sinistralidade, receita de contraprestações e despesa assistencial das operadoras do Brasil. https://www.anahp.com.br/dados-do-setor/
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). Com uma alegada margem de lucro cada vez mais estreita para absorver os gastos crescentes, os atores do setor de saúde privada discordam sobre as razões do aumento à medida que competem por novas formas de custear suas atividades (Martins, 2021Martins, P. R. (2021, sep 24). Pandemia impulsiona startups de saúde e acelera digitalização do setor. Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2021/09/pandemia-impulsiona-startups-de-saude-e-acelera-digitalizacao-do-setor.shtml
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).

O presente estudo analisa como esses diferentes atores resolvem as contradições das múltiplas lógicas no setor da saúde privada e, assim, como isso influencia a configuração dos gastos em saúde, identificando um modelo de lógicas institucionais que melhor expressa essas definições. É importante compreender os fatores que influenciam as ações e escolhas feitas por cada ator do setor da saúde privada, como essa impactam as terapias adotadas em cada caso e, consequentemente, os gastos relacionados a essas escolhas. As práticas e estruturas prescritas pela lógica assim legitimada orientam os procedimentos médicos que, num determinado momento, apontam o aumento de despesas e os reajustes de honorários. Outros fatores de nível macro ou de campos distintos também podem influenciar esse quadro, tal como a inflação e as taxas de câmbio. Se assumirmos que as lógicas consistem em práticas materiais e elementos culturais e que essas informações estão disponíveis para os atores, estes a levarão em consideração quando em competição pela prevalência de sua lógica (Thornton & Ocasio, 2008Thornton, P. & Ocasio, W. (2008). Institutional logics. In: R. Greenwood, C. Oliver, K. Sahlin & R. Suddaby (Eds.). The Sage handbook of organizational institutionalism (pp. 99-129). Sage.).

Os estudos institucionais têm visões diferentes sobre como a lógica promovida por um ator prevalece sobre outras quando existem múltiplas lógicas concorrentes presentes em um campo (Thornton & Ocasio, 2008Thornton, P. & Ocasio, W. (2008). Institutional logics. In: R. Greenwood, C. Oliver, K. Sahlin & R. Suddaby (Eds.). The Sage handbook of organizational institutionalism (pp. 99-129). Sage.). As compreensões divergentes dos atores apontam para uma possível competição entre múltiplas lógicas que constituem um campo institucional (Friedland & Alford, 1991Friedland, R. & Alford, R. R. (1991) Bringing society back in: symbols, practices, and institutional contradictions. In J. DiMaggio & W.W. Powell (Eds.). The new institutionalism in organizational analysis. (Chap. 10, pp. 232-267). London: University of Chicago Press.), no qual podem ocorrer contradições e conflitos (Silva & Crubellate, 2016Silva, F. R. & Crubellate, J. M. (2016). Complexidade institucional: um estudo bibliométrico na publicação recente em teoria institucional. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 15(2), 116-132. https://doi.org/10.21529/RECADM.2016009
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). Existem estudos que falam do domínio de uma lógica sobre outras após um período de competição entre elas (Scott & Meyer, 1994Scott, W. R. & Meyer, J.W. (1994) Institutional environments and organizations: structural complexity and individualism. Sage.). Outros estudos também têm apontado para a hibridização de lógicas quando, após um período, a lógica predominante passa a ser o resultado da combinação de elementos das duas lógicas anteriores (Pache & Santos, 2012Pache, A.V., & Santos, F. (2012). Inside the hybrid organization: selective coupling as a response to competing institutional logics. Academy of Management Journal, 56(4), 972-1001. http://dx.doi.org/10.5465/amj.2011.0405
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). Ainda, outros estudos examinam a coexistência de múltiplas lógicas, caso em que se admite a possibilidade de alternância daquelas que são predominantes ou de combinação de elementos de algumas delas (Waldorff et al., 2013Waldorff, S., Reay, T., & Goodrick, E.A. (2013). Tale of two countries: how different constellations of logics impact action. In M. Lounsbury, E. Boxenbaum (Eds.). Institutional logics in action, 39, 99-129. Emerald Group Publishing.; Greenwood et al., 2011Greenwood, R., Raynard, M., Kodeih, F., Micelotta, E. R., & Lounsbury, M. (2011). Institutional complexity and organizational responses. Academy of Management Annals, 5(1), 317-371. https://doi.org/10.5465/19416520.2011.590299
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).

Analisamos aqui a disputa entre múltiplas lógicas institucionais no setor da saúde privada do Brasil buscando responder como os atores deste setor influenciam a configuração lógica que determina os gastos em saúde privada. A seção de revisão da literatura examina a forma como os modelos de lógicas lidam com a mudança como resultado da influência dos atores do setor da saúde privada. A seção metodologia detalha os procedimentos para coletar as informações em campo e analisá-las, em seguida, a seção de resultados sublinha os conflitos entre as diferentes lógicas apoiadas pelos atores do setor, examinando as despesas médicas regulares e a inclusão de novas tecnologias.

REVISÃO DA LITERATURA

As lógicas institucionais referem-se às práticas e crenças presentes na sociedade moderna que prescrevem a forma como os indivíduos e as organizações se envolvem nas atividades diárias. Embora façam restrições à ação, essas lógicas também são afetadas pela agência independente dos atores que procuram alternativas (Holm, 1995Holm, P. (1995). The dynamics of institutionalization: Transformation processes in Norwegian fisheries. Administrative Science Quarterly, 398-422. https://doi.org/10.2307/2393791
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). A presença de lógicas múltiplas em qualquer contexto pode envolver prescrições contraditórias aos atores que provocam ações para transformar as lógicas existentes, que, por sua vez, fornecem aos indivíduos, grupos e organizações recursos culturais para transformar identidades, organizações e sociedade (Friedland & Alford,1991). Assim, em longo prazo, a complexidade institucional desdobra-se e reforma-se, criando diferentes circunstâncias às quais as organizações devem responder. Não só essa complexidade institucional está em fluxo contínuo, mas as organizações vivenciam-na em diferentes formas e graus, e é importante compreender a relação entre a complexidade institucional e as respostas organizacionais (Greenwood et al., 2011Greenwood, R., Raynard, M., Kodeih, F., Micelotta, E. R., & Lounsbury, M. (2011). Institutional complexity and organizational responses. Academy of Management Annals, 5(1), 317-371. https://doi.org/10.5465/19416520.2011.590299
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).

O presente estudo aborda uma situação que envolve múltiplas lógicas que podem conflitar entre si. A determinação dos gastos com a alocação de recursos no setor da saúde privada envolve disputas e negociações entre as lógicas priorizadas pelos diferentes atores do setor (Friedland & Alford, 1991Friedland, R. & Alford, R. R. (1991) Bringing society back in: symbols, practices, and institutional contradictions. In J. DiMaggio & W.W. Powell (Eds.). The new institutionalism in organizational analysis. (Chap. 10, pp. 232-267). London: University of Chicago Press.; Greenwood et al., 2011Greenwood, R., Raynard, M., Kodeih, F., Micelotta, E. R., & Lounsbury, M. (2011). Institutional complexity and organizational responses. Academy of Management Annals, 5(1), 317-371. https://doi.org/10.5465/19416520.2011.590299
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).

Vários estudos examinaram como uma lógica é habilitada em um contexto. No campo da culinária, o estudo de Rao, Monin e Durand (2003)Rao, H.; Monin N.P., Durand, R. (2003) Institutional change in Toque Ville: Nouvelle cuisine as an identity movement in French gastronomy. American Journal of Sociology, 108(4), 795-843. https://doi.org/10.1086/367917
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sobre a introdução da nouvelle cuisine mostrou que ela substituiu a haute cuisine com a iniciativa de alguns chefs que desenvolveram os elementos que passaram a constituir a nova lógica, desde ingredientes culinários até a criação de novas funções para chefs e outros funcionários. O estudo de Pache e Santos (2012)Pache, A.V., & Santos, F. (2012). Inside the hybrid organization: selective coupling as a response to competing institutional logics. Academy of Management Journal, 56(4), 972-1001. http://dx.doi.org/10.5465/amj.2011.0405
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explora como quatro empresas integraram lógicas comerciais e de bem-estar social concorrentes, e mostrou que essas organizações uniram seletivamente elementos intactos prescritos por cada lógica, resultando em uma nova. Essa estratégia permitiu-lhes projetar legitimidade para os stakeholders externos sem envolver-se em enganos ou negociações dispendiosas. Lounsbury e Crumley (2007)Lounsbury, M. & Crumley, E.T. (2007) New Practice Creation: An Institutional Perspective on Innovation. Organization Studies, 28(7), 993-1012. [https://doi.org/10.1177/0170840607078111]
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explicam processos intraorganizacionais iniciados por gestores de fundos que levaram a mudanças na indústria de investimentos nos EUA. Esses gestores passaram a explorar novas estratégias de investimento que resultaram em retornos promissores. Apesar da resistência da lógica conservadora anterior de investimento que predominava na indústria, eles introduziram novas técnicas analíticas que mais tarde resultaram na criação de toda uma gama de tipos de fundos e na profissionalização destes ex-analistas e, consequentemente, na criação de uma nova lógica de investimento.

Outros estudos abordam as contradições entre lógicas através de uma perspectiva de coexistência matizada. Reay e Hinings (2009)Reay, T.; & Hinings, C. R. (2009) Managing the rivalry of competing institutional logics. Organization Studies. 30(6), 629-65. https://doi.org/10.1177/0170840609104803
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apresentam o caso de um campo estabelecido em que lógicas concorrentes, a dos médicos e das Autoridades Regionais de Saúde, utilizaram mecanismos específicos para gerir tal rivalidade. Nesse estudo, realizado no setor de saúde do Canadá, destaca-se a persistência de duas lógicas: a estatal-pública, e, ao seu lado, a lógica médico-profissional. A colaboração entre elas foi verificada quando os atores mantiveram suas identidades, valores e independência. Através do trabalho associativo, as duas sustentaram estruturas e sistemas temporários para funcionarem juntas e de forma confiável. Foi dado destaque à importância da colaboração entre médicos e governo para resolver contradições relacionadas à coexistência e competição das lógicas.

Além disso, em outro estudo na área da saúde, Goodrick e Reay (2011)Goodrick, E., & Reay, T. (2011). Constellations of institutional logics: Changes in the professional work of pharmacists. Work and Occupations, 38(3), 372-416. https://doi.org/10.1177/0730888411406824
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descreveram e analisaram relações competitivas e cooperativas entre lógicas. O autores mostrarm que os indivíduos não seguiram uma prescrição exclusiva, mas priorizaram, em determinados momentos, uma das lógicas. Alguns autores entenderam que um campo pode adotar uma determinada lógica agregando elementos de outras lógicas presentes (Borum & Westenholtz, 1995Borum, F., & Westenholz, A. (1995) The incorporation of multiple institutional models: Organizations field multiplicity and the role of actors. In W. R. Scott & S. Christensen (Eds.). The institutional construction of organizations (pp. 113-131). Thousand Oaks. Sage.; Waldorff et al., 2013Waldorff, S., Reay, T., & Goodrick, E.A. (2013). Tale of two countries: how different constellations of logics impact action. In M. Lounsbury, E. Boxenbaum (Eds.). Institutional logics in action, 39, 99-129. Emerald Group Publishing.).

Ocasio e Radoynovska (2016)Ocasio, W., & Radoynovska, N. (2016) Strategy and commitments to institutional logics: organizational heterogeneity in business models and governance. Strategic Organization, 14(4), 287-309. https://doi.org/10.1177/1476127015625040
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distinguem entre escolhas organizacionais feitas em contextos de pluralismo lógico e complexidade. Dessa forma, múltiplas lógicas afetam os contextos durante todo o tempo, sem dominância. No caso do pluralismo, os atores podem enfrentar diferentes prescrições lógicas a seguir, mas entendem que é possível encontrar uma combinação de elementos distintos entre elas pra compor um modelo ou estratégia de negócio baseado na perspectiva da coexistência. No caso da complexidade, por outro lado, pressupõe a contestação interna, o questionamento público, a introdução de novas lógicas, que conduzem a um ajustamento estratégico e guarda semelhanças com os casos de iniciativas assumidas pelos atores.

Greenwood et al. (2011)Greenwood, R., Raynard, M., Kodeih, F., Micelotta, E. R., & Lounsbury, M. (2011). Institutional complexity and organizational responses. Academy of Management Annals, 5(1), 317-371. https://doi.org/10.5465/19416520.2011.590299
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enfatizam que durante essas disputas alguns atores se organizam em coalizões e se tornam mais poderosos que outros, então, as decisões organizacionais passam a não ser simplesmente uma função de quem participa, mas ganha importância também o grau relativo de influência de um grupo dentro da organização ou de um campo. Alguns grupos tornam-se mais poderosos do que outros e, como resultado, as respostas organizacionais a múltiplas lógicas institucionais provavelmente refletem os interesses do grupo mais influente.

O presente estudo se propôs a pesquisar o setor da saúde privada brasileira para examinar como as lógicas prescrevem as atividades deste setor e são, por sua vez, manipuladas pelos atores para definir os procedimentos médicos previstos que melhor se adequam a cada um deles. A estrutura de despesas será consequência desta definição. O artigo analisou a compreensão dos atores sobre a configuração das práticas que determinam os gastos no setor da saúde privada.

METODOLOGIA DE PESQUISA

O objetivo deste trabalho é compreender a participação dos atores na resolução das contradições decorrentes das múltiplas lógicas na determinação dos procedimentos médicos, do uso de tecnologias e de medicamentos no tratamento de doenças que ditam a configuração atual das despesas no setor da saúde privada.

Contexto empírico

O setor de saúde privada é composto por agentes que podem ser organizações de diversos tipos, como planos de saúde, seguradoras, cooperativas e entidades filantrópicas. Elas fazem a intermediação entre beneficiários e prestadores de serviços médicos autorizando consultas, exames e procedimentos afins. Figuram entre os principais atores deste setor os prestadores de serviços privados e públicos como hospitais, clínicas, laboratórios e indústria farmacêutica; a agência reguladora ANS (que define as diretrizes do setor às operadoras e beneficiários), associações profissionais e sindicatos.

Estes agentes têm protestado junto à ANS por conta do aumento dos gastos com a saúde. A discussão se intensificou pois, como afirma o IESS, o Brasil tem uma das dez maiores variações de custos médicos do mundo (IESS, 2019Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2019). Brasil tem uma das 10 maiores VCMH do mundo. https://www.iess.org.br/publicacao/blog/brasil-tem-uma-das-maiores-variacoes-de-custo-medico-hospitalar-no-mundo
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). O superintendente da ABRAMGE (Associação Brasileira de Planos de Saúde que representa as operadoras, mas não as seguradoras) confirma que as despesas estão crescendo em relação à receita: “o resultado (operacional das companhias) está longe de um cenário positivo” (Casemiro, 2023Casemiro, L. (2023, Sep 1). Planos de saúde encerram 1º semestre com lucro de R$ 1,45 bi, apesar de perdas na operação. Extra. https://extra.globo.com/economia/noticia/2023/09/planos-de-saude-encerram-1o-semestre-com-lucro-de-r-145-bi-apesar-de-perdas-na-operacao.ghtml
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). Porém, curiosamente, até o ano de 2021 não haviam números disponíveis nas bases de dados do setor relacionados às diversas terapias envolvendo exames, medicamentos, internações, consultas e tratamentos. Os dados disponíveis são agregados e, como tal, não permitem um estudo estatístico sobre as diferentes despesas médicas do setor. Tais agregados de despesas dificultam a identificação das médias e dos outliers das terapias, e, consequentemente, dificulta a análise dos motivos associados a uma dispersão significativa. Esses dados são essenciais e sua falta impossibilita análises, monitoramento constante ou auditoria. O mapa de dados assistenciais da ANS é alimentado periodicamente pelas operadoras de planos de saúde e não é auditado (Lara, 2022Lara, N. (2022). Análise Especial do Mapa da Saúde Suplementar no Brasil entre 2016 e 2021. IESS, Instituto de Estudos da Saúde Suplementar. https://www.iess.org.br/sites/default/files/2022-09/analise-mapa-assistencial-2016-a-2021%20-%20v3.pdf
https://www.iess.org.br/sites/default/fi...
). Em março do ano de 2022, as despesas de saúde eram compostas por internações (60%), consultas médicas (9%), exames (12%), terapias (13%) e outros serviços ambulatoriais (7%) (IESS, 2022bInstituto de Estudos de Saúde Suplementar (2022b). VCMH/IESS Variação de Custos Médico-Hospitalares. Retrieved Nov. 13, 23, from https://www.iess.org.br/vcmhiess
https://www.iess.org.br/vcmhiess...
).

Ao contrário dos índices de variação de preços da economia, a alteração dos custos médico-hospitalares (VCMH) inclui a frequência de utilização pelos beneficiários e a variação de preços imposta pelas operadoras de planos de saúde (IESS, 2019Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2019). Brasil tem uma das 10 maiores VCMH do mundo. https://www.iess.org.br/publicacao/blog/brasil-tem-uma-das-maiores-variacoes-de-custo-medico-hospitalar-no-mundo
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). A metodologia utilizada para calcular esse índice é baseada em uma amostra de 10% de todas as despesas, incluindo as de internação, consultas, tratamentos, exames e cirurgias realizadas pelos beneficiários de planos individuais (uma das modalidades de planos comercializados). O índice de custos médico-hospitalares (VCMH) é a única referência, calculada pelo IESS (Instituto de Estudos Privados de Saúde), que é disponibilizada ao público e utilizada pela ANS (no ano de 2019 foi introduzida uma nova fórmula ponderada que considera além das despesas assistenciais também a inflação da economia) para definir o reajuste anual nos pagamentos dos planos individuais, estabelecendo parâmetros ao setor de saúde privada.

No ano de 2012, a ANS passou a coletar estatísticas de despesas das operadoras de planos de saúde por conta do número recorde de reclamações de beneficiários individuais referente a reajustes de tarifas (Yazbek, 2014Yazbek, P. (2014). Como reclamar do seu plano de saúde ou seguro da forma certa. Exame.com. https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/como-reclamar-do-seu-plano-de-saude-ou-seguro-da-forma-certa/
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). A ANS considera como custos assistenciais a soma dos gastos relacionados à prestação direta de serviços de saúde informados pelas operadoras. Estas, por sua vez, informam os dados sem qualquer fiscalização do órgão, que não se aprofunda na distribuição dos diferentes tickets de despesas, suas médias e valores atípicos (ANS, 2021Agência Nacional de Saúde Suplementar. (2021). Painel contábil da saúde suplementar. ANS. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNjRiYTM0MjUtYjFhMy00NTI3LWE4ZGQtMDg4YzdlMzYwZjViIiwidCI6IjlkYmE0ODBjLTRmYTctNDJmNC1iYmEzLTBmYjEzNzVmYmU1ZiJ9
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). Ao discutir o modelo de remuneração por serviço (pagamento por cada procedimento de uma terapia) praticado no setor, o IESS confirmou o problema com a seguinte observação sobre um modelo alternativo: “Uma dificuldade na implementação deste (novo) modelo (Capitation, “...um modelo de remuneração de médicos e outros provedores de serviços de saúde pelo qual é estabelecido um valor fixo por paciente registrado (per capita [ANS, 2019Agência Nacional de Saúde Suplementar (2019). Guia para implementação de modelos de remuneração baseados em valor. https://www.gov.br/ans/pt-br/arquivos/assuntos/gestao-em-saude/projeto-modelos-de-remuneracao-baseados-em-valor/guia_modelos_remuneracao_baseados_valor.pdf
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, p.28]) é a definição do valor per capita, devido à falta de base de dados estatísticos.” (IESS, 2017Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2017). Modelos de remuneração: o problema não é falta de alternativas. https://www.iess.org.br/publicacao/blog/modelos-de-remuneracao-o-problema-nao-e-falta-de-alternativas-0
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).

Os números disponibilizados pelo IESS mostram o número total de procedimentos e o total de despesas com saúde, não identificando quais as especialidades médicas nem especificando procedimentos ou medicamentos que utilizam mais recursos. A ANS possui um banco de dados de despesas mais detalhado (ANS, 2022; 2021Agência Nacional de Saúde Suplementar. (2021). Painel contábil da saúde suplementar. ANS. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNjRiYTM0MjUtYjFhMy00NTI3LWE4ZGQtMDg4YzdlMzYwZjViIiwidCI6IjlkYmE0ODBjLTRmYTctNDJmNC1iYmEzLTBmYjEzNzVmYmU1ZiJ9
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiN...
), mas que apresenta apenas os valores médios e totais de determinados procedimentos. Conforme mencionado anteriormente, o controle de despesas das seguradoras e operadoras do setor de saúde privada no Brasil é muito recente.

Embora os médicos possam prescrever tratamentos aos seus pacientes de forma autônoma, a ANS tem a competência de estabelecer uma lista de procedimentos e tratamentos que as operadoras de planos de saúde devem oferecer aos seus beneficiários. Por outro lado, os médicos enfrentam a velocidade da introdução de novas tecnologias (Gillum, 2013Gillum, R. F. (2013). From papyrus to the electronic tablet: A brief history of the clinical medical record with lessons for the digital age. The American Journal of Medicine, 126(10), 853-857. https://doi.org/10.1016/j.amjmed.2013.03.024
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), e às vezes o profissional tem que se ater ao seu conhecimento técnico para a indicação de um tratamento específico, não constante na lista obrigatória.

Ressalta-se a importância do monitoramento da sustentabilidade do setor para a economia do país, uma vez que o setor da saúde privada proporciona 3,6 milhões de empregos diretos e indiretos, que representam 8,1% da força de trabalho e geram 9,2% do PIB nacional brasileiro (IESS, 2020Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2020). Despesas das operadoras sobem mesmo com queda de beneficiários. https://www.iess.org.br/publicacao/blog/despesas-das-operadoras-sobem-mesmo-com-queda-de-beneficiarios
https://www.iess.org.br/publicacao/blog/...
).

Não parece haver consenso entre os próprios médicos sobre como proceder em cada caso tratado sendo que os custos variam de acordo com as diferentes estruturas de serviços médico-hospitalares oferecidos pelos prestadores (hospitais, laboratórios, clínicas e outros). Portanto, para uma mesma enfermidade podem haver prescrições e tratamentos diferentes e, consequentemente, valores de gastos distintos. A medicina baseada em evidências, MBE, tem tentado modificar esta conduta introduzindo o conceito da melhor evidência atual disponível, que promove a padronização das terapias, porém, não obteve sucesso até o presente momento (Sackett et al., 1995Sackett, D. L. (1995). The need for evidence-based medicine. J Roy Soc Med, 88, 620-624.). Outra questão relevante, levantada em alguns estudos, tem apontado para o fato de as operadoras de planos de saúde centrarem as suas relações com os prestadores sob aspectos comerciais e financeiros, especialmente pagamentos ou deduções de despesas. Desse modo, deixam de negociar padrões de qualidade nos procedimentos, o que em longo prazo poderia resultar em menores custos assistenciais (Gerschman, Ugá, Portela & Lima, 2012Gerschman, S., Ugá, M. A. D., Portela, M., & Lima, S. M. L. (2012). O papel necessário da Agência Nacional de Saúde Suplementar na regulação das relações entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços. Physis Revista de Saúde Coletiva, 22(2), 463-476. https://doi.org/10.1590/S0103-73312012000200004
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).

Fontes de dados

A metodologia adotada foi de natureza qualitativa explicativa, pois trata-se da mais indicada para compreender os motivos que os atores do setor de saúde privada oferecem para explicar suas escolhas de terapias e procedimentos, e os gastos decorrentes (Yin, 2001Yin, R. K. (2001). Estudo de caso: Planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.).

Os dados resgatados de arquivos ajudaram a construir os roteiros para entrevistar executivos representantes dos principais atores do setor de saúde privada. O período analisado foi o compreendido entre os anos de 2010 a 2020, uma vez que a base de dados de saúde privada no Brasil teve seu início no ano de 2006 (ANS, 2020aAgência Nacional de Saúde Suplementar (2020a). Dados consolidados da saúde suplementar. Rio de Janeiro.). As fontes de dados utilizadas na pesquisa de arquivo são apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1
Pesquisa de arquivos

Em campo, foi utilizado um roteiro semiestruturado para explorar como os atores entendem, participam e influenciam a definição de tratamentos e tecnologias, determinando as indicações de exames e procedimentos que resultarão em gastos. O roteiro também explorou se os entrevistados reconhecem os valores implícitos em suas escolhas e a configuração atual dos gastos.

Os entrevistados representam os principais atores do setor ou sua associação de classe, que participam com influência direta nos gastos do setor de saúde privada brasileira, seja gerando as despesas ou pagando pelo serviço. As diferentes declarações, as informações das associações setoriais e da mídia, permitem a triangulação das lógicas pesquisadas (Creswell, 2010Creswell, J. W. (2010). Projeto de pesquisa métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Brasil. Artmed.). Os participantes selecionados foram os dois principais hospitais brasileiros: Hospital Sírio Libanês e Hospital Israelita Albert Einstein, cujos representantes entrevistados foram o presidente e o vice-presidente de inovação e tecnologia, respectivamente; duas entidades da classe médica: AMB e CREMESP, cujos representantes entrevistados foram o diretor técnico e o diretor de tesouraria; um membro do conselho da Bradesco Saúde (operadora de seguros) e dos Laboratórios Fleury, o superintendente da Fenasaúde; e por fim dois profissionais do PROCON, instituição pública de defesa do consumidor, sendo um fiscal e um assessor técnico. As entrevistas tiveram duração média de uma hora, onde a mais curta durou 37 minutos (CREMESP) e a mais longa, uma hora e quarenta e dois minutos (Bradesco Saúde).

Análise de dados

Para efetuar a análise da dinâmica entre os atores do setor da saúde privada, codificamos os trechos captados pelas entrevistas que detalharam como são tratados as práticas, os valores, as competências e os recursos, e os apresentamos na Tabela 2. Essas práticas, valores, competências podem ser identificados com uma lógica profissional, pública/estatal, de mercado ou de defesa do consumidor (associada à lógica familiar), com base na caracterização das lógicas da sociedade de Goodrick e Reay (2011)Goodrick, E., & Reay, T. (2011). Constellations of institutional logics: Changes in the professional work of pharmacists. Work and Occupations, 38(3), 372-416. https://doi.org/10.1177/0730888411406824
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.

Tabela 2
Algumas Características das Lógicas Encontradas no Setor da Saúde Privada

Partimos do princípio de que, sempre que se observa uma contradição entre lógicas, a prevalecente é a que determina a forma como as despesas médicas são feitas, o que indica o tipo de participação cada ator teve nela. Então, por exemplo, um novo procedimento médico que passa a ser praticado por todos os profissionais, mesmo com a resistência das operadoras de saúde, demonstra que os primeiros conseguiram impor a sua lógica. Porém, as operadoras talvez consigam limitar tal procedimento a determinadas condições, caso em que se pode dizer que a lógica predominante, apresentada no exemplo, será composta pela combinação de condições de duas lógicas. Existe ainda a possibilidade de dois atores, privilegiando lógicas diferentes, coligarem-se em torno de uma questão específica, tal como a introdução de novas tecnologias, que é quando a lógica profissional dos médicos normalmente estará de acordo com a lógica familiar dos beneficiários.

RESULTADOS E ANÁLISE

A evolução das receitas (mensalidades pagas pelos beneficiários de planos de saúde) mostra que as operadoras tiveram um crescimento entre os anos de 2012 a 2021 de 42%, (considerando o índice de inflação IPCA [IBGE, 2022Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2022). Inflação. https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php
https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao...
]). Do lado das despesas, o aumento no mesmo período foi de 44% (ANS, 2022bAgência Nacional de Saúde Suplementar (2022b). Dados gerais. https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/perfil-do-setor/dados-gerais
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). O lucro operacional das operadoras de planos de saúde tem sido positivo na última década, embora tenha sofrido um declínio entre os anos de 2014 a 2019 devido à crise econômica, que causou uma redução no número de beneficiários (BRASIL, 2022a). Do início do ano de 2018 até o primeiro trimestre do ano de 2020, quando foi confirmada a pandemia da Covid-19, o lucro operacional cresceu 178% (ANS, 2022cAgência Nacional de Saúde Suplementar (2022c). Dados consolidados por conta de resultado. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNjViNzQ2NmQtYWFiNy00MzQ0LWJjODUtOGI3OWNlY2ZjNDgwIiwidCI6IjlkYmE0ODBjLTRmYTctNDJmNC1iYmEzLTBmYjEzNzVmYmU1ZiJ9
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).

Já o IESS aponta aumento de 16,9% no índice VCMH durante o único ano de 2018 (IESS, 2019Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2019). Brasil tem uma das 10 maiores VCMH do mundo. https://www.iess.org.br/publicacao/blog/brasil-tem-uma-das-maiores-variacoes-de-custo-medico-hospitalar-no-mundo
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) e em reclamações sobre as despesas crescentes, dada a redução no número de beneficiários (IESS, 2020Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2020). Despesas das operadoras sobem mesmo com queda de beneficiários. https://www.iess.org.br/publicacao/blog/despesas-das-operadoras-sobem-mesmo-com-queda-de-beneficiarios
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). No entanto, de acordo com os dados fornecidos pela ANS, o número total de beneficiários aumentou entre os anos de 2020 a 22 de 47,4 para 50,1 milhões (BRASIL, 2022). Outros fatores levantados na pesquisa de arquivo, como gastos extraordinários com judicializações, fraudes, desperdícios e outras ineficiências (Conselho Nacional de Justiça, 2019Conselho Nacional de Justiça. (2019). Demandas judiciais relativas à saúde crescem 130% em dez anos. https://www.cnj.jus.br/demandas-judiciais-relativas-a-saude-crescem-130-em-dez-anos/
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) também podem ter afetado os números econômico-financeiros finais das operadoras.

A discriminação dos dados por itens assistenciais - exames, terapias, cirurgias, consultas médicas e internações (IESS, 2020Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (2020). Despesas das operadoras sobem mesmo com queda de beneficiários. https://www.iess.org.br/publicacao/blog/despesas-das-operadoras-sobem-mesmo-com-queda-de-beneficiarios
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) passou a ser divulgada apenas a partir do ano de 2020, mas ainda não é analisada estatisticamente de acordo com as diferentes terapias médicas (exemplo: infarto), o que pode indicar despesas médias e atípicas. Este estudo conseguiu discernir, nas falas dos entrevistados, o entendimento deles sobre a forma como as despesas são incorridas, a inclusão de novos procedimentos, a divulgação das despesas e o modelo de remuneração do setor, principais tópicos que explicam a alocação de despesas.

Influência dos atores nas despesas incorridas

Eram esperados pontos de vista contrastantes entre os atores, no entanto, existia a probabilidade de que conhecessem e conseguissem representar a distribuição das rubricas de despesas em um tratamento específico, o que não foi o caso. Em suma, os médicos prescrevem o que consideram adequado, apoiados nos diagnósticos. Dessa forma, o ator 3 (CREMESP, órgão federal sem fins lucrativos que fiscaliza a ética profissional médica) entende que “o que mais impacta nos custos são os procedimentos e internações que envolvem cirurgias e exames complementares (…), mas são despesas regulares e deve existir uma gestão adequada. Essas despesas são obrigatórias. Não há como escapar delas”.

As operadoras de planos de saúde reclamam que os médicos prescrevem procedimentos independentemente dos custos envolvidos. Segundo o ator 1 (Fenasaúde, federação que representa 15 grupos de operadoras de planos de saúde privados e operadoras de seguros):

Os médicos usam suas informações privilegiadas e sua meta de renda mensal para solicitar mais procedimentos e exames, principalmente se houver um terceiro agente pagando por isso. Isso induz a demanda, há uma meta de renda. É ainda promovido um incentivo para que as pessoas fiquem internadas mais do que o necessário (…). Ator 1

Contudo, mais razões para o crescimento das despesas foram mencionadas em outras declarações. O ator 4 (Bradesco Saúde, seguradora de saúde) explica a complexidade da inflação médica. Segundo ele, há outro aspecto que pesa na combinação dos fatores de custo: As pessoas estão vivendo mais. Numa outra perspectiva, o ator 7 (AMB, associação sem fins lucrativos que tem como missão defender a dignidade profissional dos médicos e a qualidade nos cuidados de saúde à população) mencionou preocupações com a sustentabilidade do setor. Ele também mencionou que o CREMESP tem conhecimento da “máfia das próteses” (transplantes não necessários) e que os casos devem ser comunicados aos respectivos conselhos regionais de medicina, o que acrescenta às despesas a questão da propina. O ator 8 (Hospital Israelita Albert Einstein) revelou sua preocupação com os pacientes, mas não com seus gastos: “trabalhamos e atuamos de forma independente neste contexto, sem limites de gastos para estabelecer valores na prática médica, de acordo com os melhores protocolos do nosso hospital”. O ator 2 (Hospital Sírio-Libanês) diz que o somatório dos gastos depende de qual elo da cadeia é observado: “O problema hoje é no sistema, existem uns (operadoras e fornecedores) que vão muito bem, e outros que vão muito mal (economicamente).”

A agência governamental de defesa do consumidor expressou um ponto de vista formal. O PROCON (atores 5 e 6) declarou que os custos são inerentes ao negócio e, portanto, não devem ser uma preocupação do governo ou dos beneficiários, e que, em vez disso, as operadoras devem arcar com os riscos. O Idec (2022Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (2022). Não ao reajuste abusivo de planos de saúde! Linha do tempo. https://idec.org.br/reajuste-de-planos-de-saude/linha-do-tempo
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), associação independente de consumidores sem fins lucrativos, tem questionado reiteradamente a ANS sobre sua metodologia de reajuste de tarifas.

Em termos de despesas, cada ator do setor atribui a responsabilidade pelos elevados gastos à outros atores e suas ações. A lógica profissional dos médicos conflita diretamente com a das operadoras de planos de saúde, que por sua vez os culpa principalmente pelos gastos excessivos, o que evidencia a inclinação das operadoras para uma lógica de mercado e suas práticas. Os médicos veem os procedimentos cirúrgicos com internação como as principais despesas, além da ocorrência de desperdício e suborno, que pode ser um problema de fornecedor ou de aquisição. A lógica dos hospitais também conflita com a das operadoras pela menor preocupação com os gastos, priorizando as melhores práticas. As organizações de defesa do consumidor posicionam-se a favor dos beneficiários implicando uma lógica familiar que exige mais transparência e padronização dos reajustes, e que, consequentemente, obriga a um controle mais objetivo das despesas.

Houve uma demonstração generalizada da consciência, por parte dos entrevistados, de que a situação das despesas não é sustentável (dado o número crescente de novas tecnologias, abrangência dos procedimentos contidos na função, envelhecimento da população, etc.). A maioria dos atores contribuiu com sugestões de como reduzir gastos: renegociação de despesas envolvendo hospitais, operadoras e fornecedores, propostas de revisão tributária, análise da cadeia de suprimentos, papel dos corretores de saúde no custo final de medicamentos e equipamentos, e criação de políticas de prevenção. Uma discussão emergente foi o impacto da rolagem de gastos devido ao escopo cumulativo dos procedimentos, em que novos tratamentos são aprovados pelos comitês de saúde sem a extinção dos antigos. Além disso, foram abordados diferentes níveis de assistência: primária, secundária e terciária. Eles focam no atendimento ao paciente de acordo com a complexidade exigida para cada ação.

A disputa se estabelece entre lógicas de mercado distintas defendidas pelas operadoras e pelos prestadores de serviços médicos. Estão presentes no setor lógicas priorizadas pelos médicos e demais profissionais, uma pública por parte da ANS, e uma familiar por parte dos consumidores. Cada uma delas parece influenciar as decisões sobre os procedimentos aplicados e adotados, mas é preciso considerar o poder de alguns atores e a aparente falta de envolvimento de outros para explicar o porquê de determinados gastos (por exemplo, o CREMESP sugere que hospitais e laboratórios são responsáveis pelo aumento dos custos; as operadoras, por sua vez, reclamam dos médicos).

Influência dos atores na inclusão de novos procedimentos médicos

A incorporação de novas tecnologias no setor da saúde também é fonte de gastos, regulados pela ANS por meio dos ciclos de atualização da Lista de Procedimentos e Eventos em Saúde. Os requisitos de informação obrigatórios para atualização da Lista são a apresentação de Avaliação Técnico Científica ou Revisão Sistemática com a descrição das evidências científicas sobre a eficácia, precisão e segurança da tecnologia em saúde proposta, bem como o estudo de Avaliação Econômica em Saúde e Análise de Impacto Orçamentário (ANS, 2020bAgência Nacional de Saúde Suplementar (2020b). Fluxo das etapas de atualização do rol. ANS. https://www.ans.gov.br/participacao-da-sociedade/atualizacao-do-rol-de-procedimentos/fluxo-das-etapas-de-atualizacao-do-rol
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).

O ator 1 (Fenasaúde) deixou claro que a ANS é em grande parte influenciada pelos “grupos mais poderosos” para a adoção de novos procedimentos técnicos: só “a pressão do grupo mais poderoso” é que conta. O ator 2 (Hospital Sírio-Libanês) diz: “o operador decide a importância do procedimento”. O ator 3 (CREMESP): “o médico tem a última palavra”. O ator 4 (Bradesco): “essa discussão é aberta e não pacífica, e o governo não deveria interferir nas relações entre a operadora e o paciente; ou temos um mercado livre ou não”. O ator 5 (PROCON) defende o consumidor “que sempre perde a batalha para o sistema ou para a operadora”. O ator 6 (PROCON), por sua vez, afirma que “a lógica das decisões é política, não técnica”. O ator 8 (Hospital Israelita Albert Einstein): “Tenho meus próprios critérios e lógicas médicas, que sigo. Eu simplesmente não posso ser antiético”. O ator 7 (AMB) destacou uma prática muito comum e influente dos fabricantes de medicamentos que consiste em convidar profissionais para visitar as instalações de produção da empresa, mesmo no exterior. O diretor de tecnologia da AMB considera essa prática pior do que os simpósios médicos financiados pela indústria, pois ao menos neles são discutidas questões técnicas. Além desses temas, em raro acordo, todos os atores entrevistados reclamaram da pequena participação nas decisões do COSAÚDE (Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar) que é o comitê permanente de regulação sanitária da ANS, órgão que reúne os principais atores do setor para discutir a lista de procedimentos e outros assuntos relacionado ao setor e é responsável pela inclusão de procedimentos, o que ocorre a cada dois anos (em agosto de 2022, a Câmara dos Deputados estabeleceu que a lista de procedimentos médicos da ANS não deveria ser obrigatória, implicando que novos procedimentos poderiam ser considerados para cobertura pelas operadoras de saúde).

A inclusão de novos procedimentos envolve também acusações, caso em que atores ou grupos específicos são vistos como detentores de poder (nas declarações anteriores, por exemplo, a Fenasaúde culpa os médicos; o PROCON, por sua vez, vê os beneficiários como a parte mais fraca) para decidir sobre a inclusão de técnicas no rol de procedimentos obrigatórios e, assim, influenciar os gastos (ANS, 2020bAgência Nacional de Saúde Suplementar (2020b). Fluxo das etapas de atualização do rol. ANS. https://www.ans.gov.br/participacao-da-sociedade/atualizacao-do-rol-de-procedimentos/fluxo-das-etapas-de-atualizacao-do-rol
https://www.ans.gov.br/participacao-da-s...
). O fato de serem mencionadas as agências reguladoras (ANS reguladora do mercado de planos de saúde e ANVISA para medicamentos e fármacos), as operadoras de planos de saúde, os médicos e a indústria farmacêutica indicam sua influência sobre os procedimentos, propondo que elementos de todas as lógicas privilegiadas possam ser encontrados na justificativa de novos procedimentos.

Divulgação de despesas

Os entrevistados confirmaram que a agência reguladora recebe informações agregadas das operadoras sobre os custos das terapias. Os itens que constituem despesas com internação não são previstos, pois a ANS tem competência apenas para regular as operadoras de planos de saúde, mas não os prestadores de serviço do setor, o que dificulta distinguir quais são os grandes custos e o que os justifica. A baixa transparência econômica do setor é motivo de queixas por parte de vários entrevistados. O ator 1 (Fenasaúde): “A ANS não tem limite técnico de custo-efetividade, é muito dependente de avaliações subjetivas e pressões de grupos de interesse, quando deveria ser mais técnica e mais transparente”.

Os atores elencaram diversas causas para os relatórios de dados de despesas deficientes: problemas de transparência e divulgação (atores 1 Fenasaúde, 3 Cremesp e 4 Bradesco Saúde), falta de divulgação de dados (ator 6 PROCON), falta de auditoria de dados (ator 5 PROCON). O ator 2 (Hospital Sírio-Libanês) e o ator 8 (Hospital Israelita Albert Einstein) indicaram que mantêm bases de dados independentes sobre custos de tratamentos para fins de governança corporativa. O ator 8 lembrou que a ANS não mantém dados de despesas pois não é possível que as operadoras tenham todos os dados referentes as despesas de tratamento, uma vez que o prestador (o hospital) não disponibiliza os seus dados e só possui aqueles relativos à admissão do paciente e aos procedimentos realizados. Nas palavras do ator 8: “Você consegue muita informação, mas não tudo. Só quem tem controle é quem faz o procedimento clínico no paciente. Só o Einstein (hospital) tem esse (controle) no Brasil”. O mesmo ator admitiu que o setor da saúde exagera na utilização da tecnologia: “Muito disto é verdade em (em termos de) utilização excessiva (no setor), a fraude existe. As queixas são reais”.

Outras impressões importantes sobre custos foram fornecidas pelo ator 1 (Fenasaúde): “Ele (o médico) sente que não está onerando o beneficiário (quando recomenda um tratamento caro), a preocupação é conseguir o rendimento que deseja”. Essa afirmação reforça que os médicos trabalham com alto nível de autonomia para recomendar tratamentos e pressionar pela inclusão de novos. Sobre a informação pública das despesas, o ator 1 explicou: “A operadora tem que enviar dados e publicar balanços trimestralmente, e (…) por outro lado os hospitais, clínicas e laboratórios estão alheios a esse movimento. Este é um tema muito importante”.

As declarações sugerem que as operadoras e prestadores estão conscientes do problema gerado pela falta de divulgação, mas mantêm o foco na gestão de seus negócios individuais independentemente das dificuldades crescentes que isso traz ao mercado, com os reajustes de tarifas e a diminuição da capacidade dos consumidores para absorvê-los. Esta postura sugere que eles têm o poder de evitar qualquer divulgação.

O modelo atual de taxa de remuneração por serviço

O ator 1 (Fenasaúde) esclareceu que o modelo de compensação de taxa por serviço (Pagamento por cada serviço prestado) dá força ao desperdício e induz o aumento da procura: “no modelo de taxa por serviço puro, o risco está todo do lado do operador, porque o outro lado é gratuito para gerar procedimentos e não compartilha nada. Para reverter isso, o contrato teria que ser de acordo com o número de pessoas atendidas”. O ator 2 (Hospital Sírio-Libanês) concorda que é preciso criar um modelo de pagamento que leve em conta essas variáveis. O ator 3 (CREMESP) é o único que considera adequado o modelo de remuneração, com uma ressalva importante, pois entende necessária a revisão da classificação dos procedimentos médicos. O ator 4 (Bradesco) acredita que a operadora não pode interferir na decisão médica, mas pode negociar metas de número de pacientes atendidos em alguma medida de produtividade a ser negociada entre as partes. Os atores 5 e 6 (PROCON) entendem que os médicos, em geral, são mal remunerados e sugerem que essa pode ser uma das causas da solicitação excessiva de exames. Explicam ainda que o atual modelo de remuneração leva as operadoras a resolver todos os problemas aumentando as tarifas dos planos. O ator 7 (AMB) reconhece a preocupação com a sustentabilidade do setor. Este ator menciona a importância de rever o sistema de taxa por serviço adotado em vez de abordar apenas a gestão de remuneração, que se preocupa com a comunicação e troca operador-provedor no nível de governança corporativa do prestador de serviço, enquanto o modelo de remuneração do sistema pode influenciar a produtividade e os custos de toda a cadeia de saúde privada. O ator 8 (Hospital Israelita Albert Einstein) considera importante substituir o sistema de taxa por serviço e defende a coparticipação dos beneficiários devido a um uso consciente dos custos por parte deles, sugerindo a adoção do sistema de taxa por valor (ANS define taxa por valor como “um modelo de remuneração que busca estimular a qualidade e a eficiência dos serviços prestados por meio do pagamento baseado em resultados e desempenho (“O P4P (pagamento por desempenho) caracteriza-se por uma remuneração ajustada ao desempenho dos prestadores de serviços, … que deve estar associada a outro modelo específico. Desta forma, o P4P ajusta o valor dos recursos a serem pagos ao prestador de serviços de saúde com base no seu desempenho através de um método existente…” [ANS, 2019Agência Nacional de Saúde Suplementar (2019). Guia para implementação de modelos de remuneração baseados em valor. https://www.gov.br/ans/pt-br/arquivos/assuntos/gestao-em-saude/projeto-modelos-de-remuneracao-baseados-em-valor/guia_modelos_remuneracao_baseados_valor.pdf
https://www.gov.br/ans/pt-br/arquivos/as...
, p.24]), em oposição ao pagamento pela quantidade de serviços” [ANS, 2019Agência Nacional de Saúde Suplementar (2019). Guia para implementação de modelos de remuneração baseados em valor. https://www.gov.br/ans/pt-br/arquivos/assuntos/gestao-em-saude/projeto-modelos-de-remuneracao-baseados-em-valor/guia_modelos_remuneracao_baseados_valor.pdf
https://www.gov.br/ans/pt-br/arquivos/as...
, p.24]) , que é o adotado pelo ator.

O modelo de remuneração por serviço foi institucionalizado há muitos anos e as críticas a ele só começaram recentemente. Uma lógica de mercado apoiada sobretudo pelas operadoras de saúde parece orientar este comportamento, o que se explica pela percepção de que as receitas poderão estar crescendo mais lentamente do que as despesas. Mas, como observado, alguns entrevistados parecem também preferir outra fórmula de compensação. Nenhum ator, contudo, parece confiante quanto à proposta de sistema e parâmetros a adotar.

DISCUSSÃO

O estudo se propôs a analisar como os atores do setor da saúde privada influenciam a configuração dos gastos, identificando um modelo de lógica institucional que melhor expressa essas definições no setor.

Existem alguns discursos principais em confronto. O primeiro, expressando uma lógica de mercado, responsabiliza os médicos pelo aumento dos gastos com saúde através do excesso de indicações de exames, tratamentos e outros procedimentos. Este discurso tem sido apoiado principalmente pelas operadoras de planos de saúde. Ao mesmo tempo, os prestadores de serviços médicos, devido ao modelo adotado de taxa por serviço, também são criticados pelas operadoras por gastos exagerados devido, por exemplo, a hospitalizações prolongadas, uso abusivo de produtos e cobranças elevadas. Este último combina aspectos da lógica profissional médica e dos ganhos econômicos de uma lógica de mercado e é visto como diferente da lógica de mercado das operadoras que resistem ao aumento das despesas em prol do desempenho econômico. Esse entendimento por parte das operadoras, implica que uma coligação de médicos e prestadores de serviços médicos tenha o poder de impor procedimentos, medicamentos, internamentos e muito mais, o que determinaria as despesas do setor.

Outro discurso foi enfatizado pelos médicos, que expressam uma lógica profissional ao considerar os procedimentos médicos como a prática regular, no sentido de zelar, em primeiro lugar, pelos bons resultados do ponto de vista da medicina. Um exemplo são as críticas que a AMB recebe por favorecer a introdução do que é visto por outros atores como procedimentos desnecessários (ainda não suficientemente testados ou já tendo equivalentes na lista de procedimentos), em detrimento de novas tecnologias em tratamentos médicos.

Uma lógica familiar, expressa pelas organizações de defesa do consumidor, resiste ao aumento do pagamento de taxas e favorece a inclusão dos mais novos procedimentos médicos. Uma lógica pública é expressa por medidas normalizadas de duas agências reguladoras, que são por vezes reprimidas pela influência política e atividades de marketing das empresas (Friedland & Alford, 1991Friedland, R. & Alford, R. R. (1991) Bringing society back in: symbols, practices, and institutional contradictions. In J. DiMaggio & W.W. Powell (Eds.). The new institutionalism in organizational analysis. (Chap. 10, pp. 232-267). London: University of Chicago Press.; Lok, 2010Lok, J. (2010) Institutional Logics as Identity Projects. Academy of Management Journal, [S. l.], 53, 1350-1385.).

A complexidade relacionada com a questão das despesas tem a ver com o fato de diferentes atores contestarem a definição de quais os procedimentos devem ser realizados, mas cada um vê a sua lógica como a correta e tenta evitar a lógica dos outros atores, tratando-as como responsáveis por despesas insustentáveis. Os médicos entendem isso como sua capacidade de decidir qual tratamento adotar. Indivíduos e organizações de consumidores defendem os melhores e mais modernos tratamentos, enquanto as operadoras se limitam ao que é economicamente razoável. Em contrapartida, a agência reguladora tem que equilibrar as necessidades de sustentabilidade dos consumidores e das empresas.

As múltiplas lógicas descritas são manipuladas pelos atores para fazer valer os procedimentos aprovados e, consequentemente os gastos, com o discurso adicional sobre divulgação de dados e transparência. Aqui é clara a relutância dos hospitais e operadoras de plano de saúde em abrirem as suas bases de dados, sob o argumento de que a concorrência no mercado deve ser salvaguardada. Para preservar o mercado livre, de acordo com estes atores, uma organização não deveria ter acesso aos detalhes das estruturas de custos dos seus concorrentes ou fornecedores. Isto leva a um conflito entre diferentes lógicas de mercado (profissionais médicos, operadoras, companhias de seguros, hospitais), em que os atores do setor responsabilizam outros pelo aumento dos custos da saúde privada. No que diz respeito à questão da transparência, a coligação de poder composta por prestadores e operadoras evita a divulgação dos seus dados, o que consequentemente resulta em sucessivos ajustes de tarifas pela falta de visão clara sobre as despesas do setor. Isso ocorre em virtude da regulamentação que as operadoras e os seguros devem seguir e que tendem a aumentar os seus custos, e também porque essas organizações entendem que os gráficos de despesas, desperdícios e fraudes produzidos pelo sistema estão fora do seu alcance e devem ser absorvidos pelos beneficiários.

Assim, o poder de alguns atores do setor aparentemente determina o resultado da competição entre as lógicas (Greenwood, Suddaby & Hinings, 2002Greenwood, R., Suddaby, R., & Hinings, C. R. (2002). Theorizing change: The role of professional associations in the transformation of institutionalized fields. Academy of Management Journal, 45(1), 58-80. https://journals.aom.org/doi/abs/10.5465/3069285
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; Scott & Meyer, 1994Scott, W. R. & Meyer, J.W. (1994) Institutional environments and organizations: structural complexity and individualism. Sage.). Como foi demonstrado, apesar das preocupações com a sustentabilidade do setor, as taxas dos beneficiários continuam sendo reajustadas pela ANS, que utiliza como base um índice produzido por uma entidade ligada às operadoras de planos de saúde e, portanto, tem sua capacidade de decisão limitada.

Esta circunstância indica que outros intervenientes poderosos, tais como profissionais e prestadores médicos, parecem não querer ou ser incapazes de assumir uma posição mais firme na participação da determinação de despesas, aparentemente insensíveis aos crescentes problemas futuros que o setor poderá enfrentar.

O caso do setor da saúde privada mostra que os atores cooperam em diversas questões relacionadas defendendo as lógicas de coligações, por exemplo, sobre a introdução de inovações, mas não cooperam adequadamente para permitir a estimativa precisa das despesas médicas (Reay & Hinings, 2009Reay, T.; & Hinings, C. R. (2009) Managing the rivalry of competing institutional logics. Organization Studies. 30(6), 629-65. https://doi.org/10.1177/0170840609104803
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). As operadoras de planos de saúde têm redirecionado as vendas para uma categoria em que não sejam condicionadas pelos percentuais de reajuste da ANS. Prestadores e fornecedores não discutem os números com as operadoras de planos de saúde e com a ANS, que abre caminho para reajustes tarifários com base nos valores apurados pelo instituto vinculado às operadoras. Nem prestadores e fornecedores, nem operadoras e agências reguladoras promovem uma nova lógica no setor (embora novos modelos de remuneração sejam propostos) (Lounsbury & Crumley, 2007Lounsbury, M. & Crumley, E.T. (2007) New Practice Creation: An Institutional Perspective on Innovation. Organization Studies, 28(7), 993-1012. [https://doi.org/10.1177/0170840607078111]
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; Ocasio & Radoynovska, 2016Ocasio, W., & Radoynovska, N. (2016) Strategy and commitments to institutional logics: organizational heterogeneity in business models and governance. Strategic Organization, 14(4), 287-309. https://doi.org/10.1177/1476127015625040
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). Este caso traz um exemplo onde uma coligação de atores tem o poder de manipular um aspecto do mercado, nomeadamente o reajuste de taxas, porque outros atores preferem evitar o confronto, numa alternativa que não resolve o problema das despesas do setor, dado o reconhecimento de que está se tornando insustentável.

Como mostraram as principais questões abordadas no estudo, as lógicas adotadas em cada uma delas diferiram principalmente porque uma coalizão diferente de atores impôs, com seu poder, a forma como deveriam funcionar (Greenwood et al., 2011Greenwood, R., Raynard, M., Kodeih, F., Micelotta, E. R., & Lounsbury, M. (2011). Institutional complexity and organizational responses. Academy of Management Annals, 5(1), 317-371. https://doi.org/10.5465/19416520.2011.590299
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). Por exemplo, na questão da divulgação de despesas, os hospitais e operadoras mantiveram a opção de não divulgar os dados de suas contas, exceto os valores agregados enviados à ANS. Isto é possível porque as empresas privadas não têm de apresentar dados privados num mercado capitalista. Este caso apresenta, portanto, características de colaboração lógica em alguns momentos e competição em outros (Goodrick & Reay, 2011Goodrick, E., & Reay, T. (2011). Constellations of institutional logics: Changes in the professional work of pharmacists. Work and Occupations, 38(3), 372-416. https://doi.org/10.1177/0730888411406824
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; Reay & Hinings, 2009Reay, T.; & Hinings, C. R. (2009) Managing the rivalry of competing institutional logics. Organization Studies. 30(6), 629-65. https://doi.org/10.1177/0170840609104803
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). Nesses períodos, a lógica predominante que orientava as ações combinava elementos de diferentes lógicas (Borum & Westerholtz, 1995Borum, F., & Westenholz, A. (1995) The incorporation of multiple institutional models: Organizations field multiplicity and the role of actors. In W. R. Scott & S. Christensen (Eds.). The institutional construction of organizations (pp. 113-131). Thousand Oaks. Sage.; Waldorff et al., 2013Waldorff, S., Reay, T., & Goodrick, E.A. (2013). Tale of two countries: how different constellations of logics impact action. In M. Lounsbury, E. Boxenbaum (Eds.). Institutional logics in action, 39, 99-129. Emerald Group Publishing.; Ocasio & Radoynovska, 2016Ocasio, W., & Radoynovska, N. (2016) Strategy and commitments to institutional logics: organizational heterogeneity in business models and governance. Strategic Organization, 14(4), 287-309. https://doi.org/10.1177/1476127015625040
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).

CONCLUSÃO

Este estudo lança questão sobre a influência dos atores na determinação da configuração lógica que orienta as despesas da saúde privada no Brasil, uma vez que as taxas se tornaram uma preocupação para as famílias e empresas que oferecem o benefício aos seus empregados, e também para as operadoras de planos de saúde que afirmam que as despesas estão crescendo mais do que as receitas.

A revisão da literatura indicou diferentes modelos teóricos para analisar a situação. A perspectiva da lógica múltipla sugere especificamente que os atores podem desejar contestar as práticas e crenças das lógicas prevalecentes e introduzir com sucesso uma nova perspectiva num campo. Outro tipo de análise é a de uma coexistência entre diferentes lógicas, onde podem colaborar para resolver as suas contradições.

As entrevistas e os dados de arquivo indicaram que múltiplas lógicas coexistem no setor da saúde privada brasileira. Em relação à questão dos gastos, parece haver uma convivência incômoda entre os atores do setor, pois eles têm que colaborar para que as terapias sejam realizadas. Porém, este não é o caso quando se trata das despesas, pois não é fornecida a especificação dos gastos para que seja feita uma análise justa do desempenho do setor e os reajustes das taxas possam ser calculados com base em dados verificáveis. .

O estudo também contribui ao elencar os principais fatores que impactam no aumento dos gastos assistenciais. Os assuntos levantados pelos atores serviram de base para futuras análises de pesquisas. Além disso, o impacto do aumento das despesas gera conflitos e insatisfação, desde os beneficiários dos planos de saúde até aos maiores prestadores de serviço da área. As questões apresentadas sugerem quais fatores devem ser estudados e abordados, entre eles, aqueles frequentemente apontados como críticos pela maioria dos atores do setor, de acordo com as entrevistas: o modelo de remuneração por serviço, o custo inerente às novas tecnologias, solicitações de serviços e exames desnecessários, envelhecimento populacional, fraudes, desperdício de produtos e desconhecimento da base de dados detalhada da ANS sobre tratamentos por especialidade médica.

Por fim, foi possível observar que a transparência, a análise da governança e o modelo de compensação indicam direções para resolver o problema do aumento dos gastos com saúde e podem reduzir os atritos entre os atores, contribuindo para a harmonização do setor. O presente estudo é limitado pela amostra de entrevistas e, portanto, para ampliar seu alcance, futuras pesquisas devem buscar interlocução com outros representantes dos principais atores, como da agência reguladora de saúde privada, médicos individuais, outros hospitais e órgãos de defesa do consumidor, ampliando a compreensão de como são definidas as despesas do setor.

  • Avaliado pelo sistema double-anonymized peer review. Editor Associado ad hoc: Mario Aquino Alves
  • Avaliadores: João Marcelo Crubellate , Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Administração, Maringá, PR, Brasil. O/a segundo/a avaliador/a não autorizarou a divulgação de sua identidade e relatório de avaliação.https://orcid.org/0000-0003-1446-8248
  • Relatório de revisão por pares está disponível neste link.
  • Versão traduzida

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2022
  • Aceito
    16 Out 2023
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