Acessibilidade / Reportar erro

Microcirculação e Doença Cardiovascular

Palavras-chave
Microcirculação/fisiologia; Humanos; Doenças Cardiovasculares/fisiopatologia; Endotélio Vascular/fisiologia; Vasodilatação/fisiologia; Fatores de Risco; Diagnóstico por Imagem

A microcirculação humana apresenta aspectos que a tornam única em relação à sua capacidade de ajustar a oferta de oxigênio e nutrientes às demandas metabólicas de todas as células do organismo, promovendo ajustes no tônus vascular e a liberação de diferentes substâncias vasoativas.11 Gutterman DD, Chabowski DS, Kadlec AO, Durand MJ, Freed JK, Ait-Aissa K, et al. The human microcirculation: regulation of flow and beyond. Circ Res. 2016; 118(1)157-72. A resposta vasodilatadora dependente do endotélio de seres humanos varia de acordo com a idade, gênero, leito vascular envolvido, e presença de doença aterosclerótica. As células musculares lisas vasculares sofrem hiperpolarização e relaxamento diferenciados quando expostas ao óxido nítrico (ON), prostaciclina e fatores hiperpolarizantes derivados do endotélio (FHDE), entre outros, sob influência dos fatores descritos acima.22 Durand MJ, Gutterman DD. Diversity in mechanisms of endothelium-dependent vasodilation in health and disease. Microcirculation. 2013; 20(3)239-47.

Na última década, a importância da avaliação da função microvascular tornou-se evidente na investigação da fisiopatologia das doenças cardiovasculares e na estratificação do risco cardiovascular.33 Virdis A, Savoia C, Grassi G, Lembo G, Vecchione C, Seravalle G, et al. Evaluation of microvascular structure in humans: a 'state-of-the-art' document of the Working Group on Macrovascular and Microvascular Alterations of the Italian Society of Arterial Hypertension. J Hypertens. 2014; 32(11)2120-9. Neste contexto, a microcirculação cutânea tem sido considerada como um leito vascular acessível e representativo na avaliação da reatividade microvascular sistêmica.44 Holowatz LA, Thompson-Torgerson CS, Kenney WL. The human cutaneous circulation as a model of generalized microvascular function. J Appl Physiol (1985). 2008; 105(1)370-2. De fato, existem evidências demonstrando a existência de uma associação entre a reatividade microvascular cutânea e a função microcirculatória em diferentes leitos vasculares, tanto com relação aos mecanismos subjacentes quanto na intensidade da resposta vasodilatadora dependente de endotélio.44 Holowatz LA, Thompson-Torgerson CS, Kenney WL. The human cutaneous circulation as a model of generalized microvascular function. J Appl Physiol (1985). 2008; 105(1)370-2. Portanto, a avaliação da reatividade microvascular cutânea tem sido proposta como um marcador de prognóstico em doenças crônicas, assim como da ação de medicamentos na função endotelial microvascular.55 Roustit M, Cracowski JL. Assessment of endothelial and neurovascular function in human skin microcirculation. Trends Pharmacol Sci. 2013; 34(7)373-84.

A avaliação da microcirculação em humanos foi inicialmente realizada com técnicas invasivas como a angiocoronariografia; porém, com a evolução das técnicas de imagens, tornou-se possível o diagnóstico não-invasivo das anormalidades microcirculatórias nas doenças cardiovasculares. Nesse sentido, têm-se empregado desde técnicas de ultrassonografia, como o ecocardiograma de estresse, passando pela cintilografia miocárdica de perfusão (sendo, ambos, métodos que não avaliam diretamente o fluxo sanguíneo miocárdico, mas que são empregados para detectar isquemia, considerada, na ausência de doença coronariana obstrutiva epicárdica, uma evidência de doença microvascular), até técnicas mais dispendiosas como a tomografia por emissão de pósitrons (PET). O reconhecimento da importância prognóstica da disfunção microvascular coronariana impulsionou os estudos a ela relacionados, embora não seja possível, até o presente momento, a visualização direta de suas anormalidades estruturais; estas são passíveis de avaliação somente através do fluxo miocárdico ou da reserva de fluxo coronariano (RFC).66 Camici PG, d'Amati G, Rimoldi O. Coronary microvascular dysfunction: mechanisms and functional assessment. Nat Rev Cardiol. 2015; 12(1)48-62.

A RFC, ou a relação entre o fluxo sanguíneo miocárdico em hiperemia, no pico do estresse, e o fluxo sanguíneo miocárdico em repouso,77 Gould KL, Kirkeeide RL, Buchi M. Coronary flow reserve as a physiologic measure of stenosis severity. J Am Coll Cardiol. 1990; 15(2)459-74. avalia toda a hemodinâmica da circulação coronariana, desde as artérias epicárdicas até a microcirculação, integrando função endotelial e do músculo liso vascular.77 Gould KL, Kirkeeide RL, Buchi M. Coronary flow reserve as a physiologic measure of stenosis severity. J Am Coll Cardiol. 1990; 15(2)459-74. Uma RFC reduzida já demonstrou ser preditora independente de mortalidade, inclusive em pacientes com coronárias epicárdicas normais.88 Zeiher AM, Drexler H, Wollschlager H, Just H. Endothelial dysfunction of the coronary microvasculature is associated with coronary blood flow regulation in patients with early atherosclerosis. Circulation. 1991; 84(5)1984-92. A RFC pode ser avaliada por PET,99 Herzog BA, Husmann L, Valenta I, Gaemperli O, Siegrist PT, Tay FM, et al. Long-term prognostic value of 13N-ammonia myocardial perfusion positron emission tomography added value of coronary flow reserve. J Am Coll Cardiol. 2009; 54(2)150-6. mas, devido à disponibilidade limitada do método, sua avaliação tornou-se possível, recentemente, através da cintilografia miocárdica (SPECT) em gama-câmaras de estado sólido, como as de telureto-cádmio-zinco (CZT), de maior sensibilidade e melhores resoluções temporal e espacial.1010 Ben-Haim S, Murthy VL, Breault C, Allie R, Sitek A, Roth N, et al. Quantification of Myocardial Perfusion Reserve Using Dynamic SPECT Imaging in Humans: A Feasibility Study. J Nucl Med. 2013; 54(6)873-9.

Conforme mencionado anteriormente, a avaliação da função microcirculatória sistêmica pode ser realizada através de técnicas que medem o fluxo microvascular na pele, de maneira não invasiva. Na clínica médica, as principais metodologias utilizadas atualmente são baseadas na utilização de luz laser, incluindo as técnicas de laser Doppler e o laser speckle com contraste de imagens (LSCI).1111 Cracowski JL, Roustit M. Current methods to assess human cutaneous blood flow: an updated focus on laser-based-techniques. Microcirculation. 2016; 23(5)337-44. Essas técnicas são usualmente associadas com estímulos fisiológicos ou farmacológicos que permitem a avaliação da reatividade microvascular dependente ou independente do endotélio.1212 Souza EG, De Lorenzo A, Huguenin G, Oliveira GM, Tibirica E. Impairment of systemic microvascular endothelial and smooth muscle function in individuals with early-onset coronary artery disease: studies with laser speckle contrast imaging. Coron Artery Dis. 2014; 25(1)23-8. O estímulo fisiológico costuma ser a hiperemia reativa pós-oclusiva do antebraço, induzindo uma resposta vasodilatadora dependente do endotélio. Os estímulos farmacológicos mais utilizados são a infusão cutânea, através de micro-iontoforese, de acetilcolina (vasodilatação dependente de endotélio) ou de nitroprussiato de sódio (vasodilatação independente de endotélio).1212 Souza EG, De Lorenzo A, Huguenin G, Oliveira GM, Tibirica E. Impairment of systemic microvascular endothelial and smooth muscle function in individuals with early-onset coronary artery disease: studies with laser speckle contrast imaging. Coron Artery Dis. 2014; 25(1)23-8.

Neste contexto, realizamos recentemente um estudo com a técnica de LSCI, no qual demonstramos que a resposta vasodilatadora dependente de endotélio da microcirculação cutânea está reduzida em pacientes com doença arterial coronariana de início precoce, em comparação com indivíduos saudáveis.1212 Souza EG, De Lorenzo A, Huguenin G, Oliveira GM, Tibirica E. Impairment of systemic microvascular endothelial and smooth muscle function in individuals with early-onset coronary artery disease: studies with laser speckle contrast imaging. Coron Artery Dis. 2014; 25(1)23-8. Além disso, a resposta microvascular relacionada com a dilatação do músculo liso vascular também se encontrava reduzida nesses pacientes, em paralelo a aumentos significativos da espessura médio-intimal das artérias carótidas.1212 Souza EG, De Lorenzo A, Huguenin G, Oliveira GM, Tibirica E. Impairment of systemic microvascular endothelial and smooth muscle function in individuals with early-onset coronary artery disease: studies with laser speckle contrast imaging. Coron Artery Dis. 2014; 25(1)23-8. Em outro estudo, demonstramos que a função endotelial microvascular sistêmica está comprometida de maneira semelhante em pacientes com cardiopatia isquêmica ou com a cardiopatia crônica da doença de Chagas.1313 Borges JP, Mendes F, Lopes GO, Sousa AS, Mediano MFF, Tibirica E. Is endothelial microvascular function equally impaired among patients with chronic Chagas and ischemic cardiomyopathy? Int J Cardiol. 2018; 265:35-37.

Recentemente, adaptamos a técnica de LSCI para a avaliação não invasiva da reatividade da microcirculação peniana.1414 Verri V, Brandao AA, Tibirica E. Penile microvascular endothelial function in hypertensive patients: effects of acute type 5 phosphodiesterase inhibition. Braz J Med Biol Res. 2018; 51(3)e6601. Nesse estudo, demonstramos que a LSCI pode ser utilizada na avaliação dos efeitos de medicamentos inibidores da fosfodiesterase tipo 5 na microcirculação peniana de pacientes com hipertensão arterial e disfunção erétil.1414 Verri V, Brandao AA, Tibirica E. Penile microvascular endothelial function in hypertensive patients: effects of acute type 5 phosphodiesterase inhibition. Braz J Med Biol Res. 2018; 51(3)e6601.

A rarefação da microcirculação tem sido associada a doenças cardiovasculares e metabólicas, incluindo hipertensão arterial, diabetes, obesidade e síndrome metabólica.1515 Karaca U, Schram MT, Houben AJ, Muris DM, Stehouwer CD. Microvascular dysfunction as a link between obesity, insulin resistance and hypertension. Diabetes Res Clin Pract. 2014; 103(3)382-7. Também já foi demonstrado que as alterações da função microvascular na pele estão correlacionadas ao aumento do risco da doença arterial coronariana.1616 IJzerman RG, de Jongh RT, Beijk MA, van Weissenbruch MM, Delemarre-van de Waal HA, Serne EH, et al. Individuals at increased coronary heart disease risk are characterized by an impaired microvascular function in skin. Eur J Clin Invest. 2003; 33(7)536-42. Além disso, a rarefação da microcirculação ao nível dos leitos capilares está relacionada a lesões de órgãos-alvo, o que foi sugerido pela existência de uma associação entre doença miocárdica e redução da densidade capilar, assim como de outra associação entre hipertrofia do ventrículo esquerdo e disfunção microvascular cutânea, independentemente dos níveis de pressão arterial sistêmica.1717 Strauer BE. Significance of coronary circulation in hypertensive heart disease for development and prevention of heart failure. Am J Cardiol. 1990; 65(14)34G-41G.,1818 Strain WD, Chaturvedi N, Hughes A, Nihoyannopoulos P, Bulpitt CJ, Rajkumar C, et al. Associations between cardiac target organ damage and microvascular dysfunction: the role of blood pressure. J Hypertens. 2010; 28(5)952-8. Em estudo recente, demonstramos que a densidade capilar cutânea, assim como o recrutamento capilar dependente de endotélio, estão reduzidos em pacientes com doença arterial coronariana de início precoce.1919 Tibirica E, Souza EG, De Lorenzo A, Oliveira GM. Reduced systemic microvascular density and reactivity in individuals with early onset coronary artery disease. Microvasc Res. 2015; 97:105-8.

Portanto, a detecção precoce de doença cardiovascular subclínica, através da avaliação da densidade e da reatividade microcirculatória por meio de técnicas não invasivas, poderia representar uma oportunidade de intervenção precoce e, em consequência, de prevenção de eventos cardiovasculares.2020 Arcêncio L & Evora, PRB. The Lack of clinical applications would be the cause of low interest in an endothelial dysfunction classification. Arq Bras Cardiol. 2017; 108(2):97-99 Ainda, a avaliação microcirculatória poderia ser útil na avaliação dos efeitos crônicos de medicamentos de ação cardiovascular, tornando-se atraente não apenas em contextos de pesquisa, mas também na prática clínica.

Desse modo, acreditamos que a avaliação da microcirculação será cada vez mais empregada na prática cardiovascular, tanto para fins de diagnóstico e de prognóstico, como para testar novas intervenções terapêuticas.

References

  • 1
    Gutterman DD, Chabowski DS, Kadlec AO, Durand MJ, Freed JK, Ait-Aissa K, et al. The human microcirculation: regulation of flow and beyond. Circ Res. 2016; 118(1)157-72.
  • 2
    Durand MJ, Gutterman DD. Diversity in mechanisms of endothelium-dependent vasodilation in health and disease. Microcirculation. 2013; 20(3)239-47.
  • 3
    Virdis A, Savoia C, Grassi G, Lembo G, Vecchione C, Seravalle G, et al. Evaluation of microvascular structure in humans: a 'state-of-the-art' document of the Working Group on Macrovascular and Microvascular Alterations of the Italian Society of Arterial Hypertension. J Hypertens. 2014; 32(11)2120-9.
  • 4
    Holowatz LA, Thompson-Torgerson CS, Kenney WL. The human cutaneous circulation as a model of generalized microvascular function. J Appl Physiol (1985). 2008; 105(1)370-2.
  • 5
    Roustit M, Cracowski JL. Assessment of endothelial and neurovascular function in human skin microcirculation. Trends Pharmacol Sci. 2013; 34(7)373-84.
  • 6
    Camici PG, d'Amati G, Rimoldi O. Coronary microvascular dysfunction: mechanisms and functional assessment. Nat Rev Cardiol. 2015; 12(1)48-62.
  • 7
    Gould KL, Kirkeeide RL, Buchi M. Coronary flow reserve as a physiologic measure of stenosis severity. J Am Coll Cardiol. 1990; 15(2)459-74.
  • 8
    Zeiher AM, Drexler H, Wollschlager H, Just H. Endothelial dysfunction of the coronary microvasculature is associated with coronary blood flow regulation in patients with early atherosclerosis. Circulation. 1991; 84(5)1984-92.
  • 9
    Herzog BA, Husmann L, Valenta I, Gaemperli O, Siegrist PT, Tay FM, et al. Long-term prognostic value of 13N-ammonia myocardial perfusion positron emission tomography added value of coronary flow reserve. J Am Coll Cardiol. 2009; 54(2)150-6.
  • 10
    Ben-Haim S, Murthy VL, Breault C, Allie R, Sitek A, Roth N, et al. Quantification of Myocardial Perfusion Reserve Using Dynamic SPECT Imaging in Humans: A Feasibility Study. J Nucl Med. 2013; 54(6)873-9.
  • 11
    Cracowski JL, Roustit M. Current methods to assess human cutaneous blood flow: an updated focus on laser-based-techniques. Microcirculation. 2016; 23(5)337-44.
  • 12
    Souza EG, De Lorenzo A, Huguenin G, Oliveira GM, Tibirica E. Impairment of systemic microvascular endothelial and smooth muscle function in individuals with early-onset coronary artery disease: studies with laser speckle contrast imaging. Coron Artery Dis. 2014; 25(1)23-8.
  • 13
    Borges JP, Mendes F, Lopes GO, Sousa AS, Mediano MFF, Tibirica E. Is endothelial microvascular function equally impaired among patients with chronic Chagas and ischemic cardiomyopathy? Int J Cardiol. 2018; 265:35-37.
  • 14
    Verri V, Brandao AA, Tibirica E. Penile microvascular endothelial function in hypertensive patients: effects of acute type 5 phosphodiesterase inhibition. Braz J Med Biol Res. 2018; 51(3)e6601.
  • 15
    Karaca U, Schram MT, Houben AJ, Muris DM, Stehouwer CD. Microvascular dysfunction as a link between obesity, insulin resistance and hypertension. Diabetes Res Clin Pract. 2014; 103(3)382-7.
  • 16
    IJzerman RG, de Jongh RT, Beijk MA, van Weissenbruch MM, Delemarre-van de Waal HA, Serne EH, et al. Individuals at increased coronary heart disease risk are characterized by an impaired microvascular function in skin. Eur J Clin Invest. 2003; 33(7)536-42.
  • 17
    Strauer BE. Significance of coronary circulation in hypertensive heart disease for development and prevention of heart failure. Am J Cardiol. 1990; 65(14)34G-41G.
  • 18
    Strain WD, Chaturvedi N, Hughes A, Nihoyannopoulos P, Bulpitt CJ, Rajkumar C, et al. Associations between cardiac target organ damage and microvascular dysfunction: the role of blood pressure. J Hypertens. 2010; 28(5)952-8.
  • 19
    Tibirica E, Souza EG, De Lorenzo A, Oliveira GM. Reduced systemic microvascular density and reactivity in individuals with early onset coronary artery disease. Microvasc Res. 2015; 97:105-8.
  • 20
    Arcêncio L & Evora, PRB. The Lack of clinical applications would be the cause of low interest in an endothelial dysfunction classification. Arq Bras Cardiol. 2017; 108(2):97-99

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2018
  • Revisado
    01 Ago 2018
  • Aceito
    02 Ago 2018
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br