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O PROBLEMA TEÓRICO-FILOSÓFICO DA CRISE CAPITALISTA: O DEBATE DE GUY DEBORD COM E. BERNSTEIN E R. LUXEMBURGO*

THE THEORETICAL-PHILOSOPHICAL PROBLEM OF THE CAPITALIST CRISIS: GUY DEBORD‘S DEBATE WITH E. BERNSTEIN AND R. LUXEMBURG

RESUMO

Este artigo trata do fundamento econômico da teoria crítica apresentada por Guy Debord em “A sociedade do espetáculo” (1967). Nesse ponto, a tese fundamental dessa teoria é que o capitalismo avançado teria dominado as tendências à crise pela atuação estatal. Essa atuação não expressaria a autonomia da política sobre a economia, mas, antes, o movimento autônomo da economia fetichista atuando conscientemente no Estado. Acompanhando Debord, o artigo tenta mostrar como essa concepção teórica retoma os termos filosóficos do debate de Rosa Luxemburgo e Eduard Bernstein sobre a crise capitalista, no início do século XX, posicionando-se de uma maneira muito própria diante dessa questão.

Palavras-chave:
Sociedade do espetáculo; Crise capitalista; Contratendências; Guy Debord

ABSTRACT

This article deals with the economic foundation of the critical theory presented by Guy Debord in “The society of the spectacle” (1967). At this point, the fundamental thesis of this theory is that advanced capitalism would have dominated the crisis tendencies through State action. This action would not express the autonomy of politics over the economy, but rather the autonomous movement of the fetishist economy acting consciously in the State. Following Debord, the article tries to show how this theoretical conception retakes the philosophical terms of Rosa Luxemburg and Eduard Bernstein’s debate on the capitalist crisis, in the beginning of the 20th century, positioning itself in regard to this issue in a very unique way.

Keywords:
Society of the spectacle; Capitalist crisis; Counter tendencies; Guy Debord

A Célia Zannetti.

Guy Debord (1998b, p. 95)DEBORD, G. “Notes pour servir à l’histoire de l’I.S. de 1969 a 1971. La Véritable Scission dans l’Internationale”. Paris: Fayard, 1998b. pretende haver retomado “a crítica da economia política compreendendo precisamente e combatendo ‘a sociedade do espetáculo’”. Essa é uma tese central à teoria crítica do assim chamado “espetáculo”, teoria que o apresenta como uma forma histórica assumida pelo capitalismo moderno. O espetáculo constitui-se de um modo de produção (o capitalista), concebido criticamente na teoria debordiana sob o ponto de vista da totalidade, o ponto de vista do que Marx (1984b)MARX, K. “O capital: Crítica da economia política, Vol. III, Livro III, Tomo I.” Trad. R. Barbosa e F. R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984b. (Os economistas). chama de processo global de produção capitalista. Em outras palavras, o espetáculo constitui-se no terreno da economia. Essa afirmação é um ponto pacífico na recepção brasileira da obra de Debord desde o final dos anos 1990, sob o impacto do livro de Jappe (1999)JAPPE, A. “Guy Debord”. Trad. bras. I. Poleti. Petrópolis: Vozes, 1999., cujo principal esforço é justamente restabelecer esse traço da teoria crítica do espetáculo, discutindo sua atualidade à luz da crise colapsar da sociedade produtora de mercadoria (tendo como referência Kurz, 1992KURZ, R. “O colapso da modernização: Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial”. Trad. bras. K. E. Barbosa. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1992.).1 1 Em seu livro, Jappe adapta a Debord a interpretação kurziana de dois Marx (o da crítica do valor e o da luta de classes, supostamente ainda engajado na modernização capitalista). O presente artigo, embora se oriente por outra interpretação tanto de Marx quanto de Debord, não trata polemicamente dessas interpretações de Kurz e Jappe. Para uma discussão crítica sobre essas interpretações, ver Aquino (2006).

Neste artigo, pretendo expor as bases econômicas da teoria crítica do espetáculo, reconstruindo-as conceitualmente. Antes de tudo, penso que essa reconstrução deva ser feita a partir de uma questão fundamental à crítica da economia política, tal como ela se desenvolve com base e a partir de Marx, que são as tendências da economia capitalista à crise. Desse modo, a compreensão sobre o problema teórico da crise econômica capitalista no pensamento de Debord diz respeito à reivindicada posição da teoria crítica do espetáculo no projeto histórico da crítica da economia política. Essa questão, da qual poderei apresentar aqui apenas uma formulação inicial, se torna particularmente necessária diante da posição debordiana de que o capitalismo espetacular teria conseguido “compensar o efeito das tendências à crise” (SdS, § 82).2 2 Assim serão feitas no corpo do texto as referências de “A sociedade do espetáculo” (Debord, 1998a).

Neste texto, pretendo apresentar e explicar essa posição de Debord, sem que, com isso, a tome como fechada e atual; tampouco, pretendo justificá-la. Essa tese, comum naquele momento, e mesmo posteriormente, a outras correntes da autonomia operária, parece ter sido desmentida pelo desenvolvimento capitalista posterior, já a partir de poucos anos depois de anunciada (refiro-me à crise econômica que, de modo intermitente e cada vez mais grave, se desenvolve desde os anos 1970). Desse modo, a tentativa deste artigo é contribuir para uma recepção mais integral, ou um desvio mais bem baseado, do pensamento de Debord entre nós.

1. O espetáculo e o processo global de produção capitalista

O espetáculo constitui-se, para Debord, num modo de produção, que inclui a produção (em sentido estrito) e sua reprodução (ampliada), pela mediação da circulação do capital (sob a forma da mercadoria e do dinheiro). Em termos marxianos, diz respeito, portanto, ao processo global de produção capitalista. Este o sentido da reivindicação debordiana da categoria da totalidade para a compreensão do espetáculo: “O espetáculo, compreendido em sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente” (SdS, §6) (Debord, 1998aDEBORD, G. “La société du spectacle”. Paris: Gallimard, 1998a.). O espetáculo é, portanto, uma produção de relações sociais que, segundo a forma social da produção assalariada de mercadorias, se alargam da produção ao todo da vida social. É a afirmação da produção mercantil como modo de produção que, na extensão prática de suas relações ao todo do vivido, produz sua justificação: é, assim, “a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e seu consumo/consumação corolário/a [consommation corollaire]” (idem).

O elemento fundamental desse alargamento da forma-mercadoria, e sua inteira forma social, é que o tempo quantitativo, que é o tempo próprio ao trabalho abstrato constitutivo do valor, se torna a forma histórica do tempo vivido mesmo fora da produção em sentido estrito: “O espetáculo é também [e Debord poderia ter dito melhor: por isso mesmo] a presença permanente dessa justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna” (idem). Amplia-se aí o uso do tempo-mercadoria, com o tempo vivido fora do trabalho sendo também um tempo da e sob a mercadoria e, por isso mesmo, tempo de “inatividade [que] não é em nada liberada da atividade produtiva”, pois “depende dela [e] é submissão inquieta e admirativa às necessidades e aos resultados da produção; é ela mesma um produto de sua racionalidade” (SdS, § 27). Essa é justamente a questão do assim chamado tempo livre no capitalismo moderno, como consumo (realização monetária) de mercadorias: “Não pode haver liberdade fora da atividade, e no quadro do espetáculo toda atividade é negada, exatamente como a atividade real foi integralmente captada para a edificação global desse resultado [da produção]” (idem). Como replicação fora da produção da mesma lógica mercantil dada na produção, o uso da totalidade do tempo constitui o espetáculo não apenas como modo de produção, mas como formação econômico-social: “o espetáculo não é nada mais do que o sentido da prática total de uma formação econômico-social, seu uso do tempo” (SdS, § 11).

Como formação socioeconômica, o espetáculo baseia-se numa tese que é conceitual e histórica: o autodesenvolvimento da economia capitalista-mercantil, que dispõe de forças produtivas desenvolvidas, resulta, nas condições do capitalismo moderno, numa abundância mercantil. Se o espetáculo “submete a si os homens vivos na medida em que a economia os submeteu totalmente” (SdS, § 17), se, no mesmo passo, ele é a “ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia” (idem), ou ainda, “o momento em que a mercadoria atingiu a ocupação total da vida social” (SdS, § 42) (e são muitas as passagens no mesmo sentido), é porque se conforma aí uma “abundância econômica” (§ 50), própria a um momento do desenvolvimento capitalista em que “o capital não é mais o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação o desenvolve [o estende, o mostra, l’étale] até a periferia sob formas de objetos sensíveis” (idem).

Debord explica essa abundância mercantil pela “expansão econômica” do capitalismo nas décadas que sucederam a segunda guerra; ela é, e assim ele a apresenta, a “economia se movendo por si mesma” (SdS, § 32). Esse desenvolvimento autônomo da economia, como acumulação do poder do trabalho que se constitui em poder separado do trabalhador (valor econômico, capital), que, em busca de autovalorização (acumulação), se faz expansão econômica, abundância de produtos mercantis e, no mesmo movimento, ocupa toda a vida social, é concebido por Debord nos termos marxianos do “fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por ‘coisas suprassensíveis ainda que sensíveis’, que se realiza absolutamente no espetáculo” (SdS, § 36). A natureza fetichista da mercadoria (Marx, 1983, pp. 70-78MARX, K. “O capital: Crítica da economia política, Vol. I, Livro I, Tomo I”. Trad. R. B. e F. R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os economistas)), ao inverter a relação sujeito-objeto, produtor-produto, homem-coisa, institui relações econômicas autonomizadas que, sob a forma do valor-capital, ganham vida própria diante dos homens em virtude do seu processo contínuo de valorização nas condições da concorrência capitalista. No dizer de Marx (ibidem, pp. 129 e 130), a “circulação do dinheiro como capital é [...] uma finalidade em si mesma [...]”, e, por isso mesmo, “o valor se torna aqui sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica sua própria grandeza [...], se autovaloriza”.3 3 “[C]omo o objetivo que move as ações de cada capitalista é o lucro, quanto maior o diferencial de valor entre o que adiantou e o que recebeu de volta, maiores serão seus ganhos. Por conta disso, todos são empurrados a revolucionar constantemente as condições de produção, o que acaba por transformá-los em prisioneiros da necessidade de acumular por acumular. Entretanto, quanto mais se entregam a essa corrida pela valorização, tanto mais o movimento do capital se impõe como ente autônomo em confronto com as previsões e cálculos do capitalista individual. E assim, tanto mais o capital adquire existência independente, a ponto de se transformar em algo idêntico a si mesmo, que se compara consigo mesmo nas diferentes fases do seu movimento cíclico” (Teixeira, Santos, 2020). Em outras palavras, tornando-se sujeito de seu próprio processo de autovalorização, o capital é a economia que se move segundo seus próprios fins, como produção social regida pelas leis fetichistas da produção/reprodução do valor, que está presente na expansão econômica e em sua abundância mercantil, que é o conteúdo do espetáculo.

Já aqui podemos identificar algumas categorias fundamentais à teoria econômica do espetáculo: capital acumulado, produção concentrada, expansão econômica, abundância mercantil, todas fundadas na natureza fetichista da economia capitalista-mercantil. Impulsionada por seu caráter fetichista, a economia move-se autonomamente, já que o capital é valor que só se mantém como tal se permanece em perpétuo movimento de autovalorização, do que resultam a expansão econômica e a abundância mercantil.

Ora, do ponto de vista do debate clássico (e tenho em vista, principalmente, a polêmica entre Eduard Bernstein e Rosa Luxemburgo), uma questão se impõe: o problema da realização monetária da mercadoria produzida, na qual se encontra o valor a mais que lhe é acrescentado em sua produção assalariada. Em outras palavras, se Debord se refere ao movimento autônomo da economia capitalista-mercantil, enquanto “desenvolvimento econômico infinito” (SdS, § 51), é legítimo perguntar pelas condições em que esse desenvolvimento se dá mediante a reprodução ampliada do capital (justamente como o faz Luxemburgo (1985)LUXEMBURGO, R. “A acumulação do capital: Contribuição ao estudo econômico do imperialismo”. Trad. M. V. Lisboa. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os economistas)), reprodução que só se efetiva pela realização monetária da mais-valia materializada nas mercadorias produzidas (que devem, pois, ser vendidas), possibilitando ao capital, assim acumulado, dar início a um novo ciclo D-M-D’. Este ciclo, como expõe Marx (1984a, p. 25 ss)MARX, K. “O capital: Crítica da economia política, Vol. II, Livro II, Tomo I”. Trad. R. B. e F. R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984a. (Os economistas)., divide-se em dois momentos independentes: D-M, o de compra de meios de produção e força de trabalho, e M-D’, de venda das mercadorias produzidas, já acrescida do mais-valor, donde justamente a necessidade econômica de sua nova transformação em dinheiro. É nesse hiato entre o primeiro e o segundo momentos do ciclo do capital, cuja unidade, contudo, é condição para que um novo ciclo se inicie (dando prosseguimento, assim, à reprodução/acumulação indefinidas do capital), que se inscreve a possibilidade da crise de superprodução de capitais e mercadorias. Essa crise manifesta a superioridade da capacidade produtiva do capital em face da capacidade do mercado de absorver e realizar monetariamente as mercadorias produzidas, já acrescidas de mais-valor; manifesta, portanto, a não equivalência, que, contudo, é imanente e necessária à produção do capital, entre a massa salarial em circulação e a massa de valor disponível em forma de mercadoria em busca de realização monetária. A crise econômica, assim entendida, expressa “a contradição interna existente entre a produção privada e o consumo, de um lado, e o nexo social de ambos, de outro”; expressa, pois, “contradições gerais da produção capitalista” (Luxemburgo, 1985, p. 17LUXEMBURGO, R. “A acumulação do capital: Contribuição ao estudo econômico do imperialismo”. Trad. M. V. Lisboa. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os economistas)). O debate no interior da social-democracia alemã na passagem do século XIX ao XX entre Rosa e Bernstein diz respeito justamente a essa questão, com a primeira sustentando a tese da inevitabilidade da crise, ao termo de determinado processo acumulativo do capital, e o segundo defendendo que a modernização do capitalismo havia desenvolvido, de modo imanente à própria economia capitalista, contratendências à crise. Voltarei a essa questão.

Debord tinha plena consciência desse problema, tal como fora elaborado por Rosa Luxemburgo e Eduardo Bernstein no debate da social-democracia alemã, de modo que se posiciona em face dele, posição esta que compõe a própria teoria crítica do espetáculo. No que diz respeito à pergunta mais geral sobre as possibilidades de contratendências à crise econômica do capitalismo, Debord toma explicitamente partido pela posição bernsteiniana; e o faz, de início, pela mediação de dois conceitos.

O primeiro deles é o de “sobrevivência aumentada”. Determinado pela necessidade da reprodução ampliada do capital, o

desenvolvimento incessante da potência econômica sob a forma da mercadoria [...] chega cumulativamente a uma abundância na qual a questão primeira da sobrevivência está sem dúvida resolvida, mas de uma maneira que ela deve se reencontrar sempre; é a cada vez posta de novo num grau superior (SdS, § 40).

Entendamos: as forças produtivas garantem a satisfação das carências constitutivas da ‘primeira sobrevivência’ (modifico um pouco os termos do próprio Debord), que está assim resolvida pela capacidade produtiva da sociedade, mas a abundância de mercadorias reconstitui a sobrevivência, ou constitui uma ‘segunda sobrevivência’, jamais resolvida, pois a cada vez se apresenta, em “grau superior”, como ainda carente, dada a produção de produtos mercantis sempre mais diversos e renovados. Por isso, a privação se reinstaura de outra forma: “se a sobrevivência consumível é alguma coisa que deve aumentar sempre, é porque ela não cessa de trazer consigo a privação”, uma “privação tornada mais rica” (SdS, § 44). Essa sobrevivência aumentada, que contém a privação, sob a “necessidade [nécessité] do desenvolvimento econômico infinito”, constitui-se pela substituição da “satisfação das primeiras carências [besoins] humanas sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de pseudocarências [pseudo-besoins] [...]” (SdS, § 51).

Nessa última passagem, o importante me parece ser a distinção entre necessidade econômica e carências humanas. Com base nela, o conceito de pseudocarências nomeia a submissão da esfera das carências (na qual se situam o valor de uso e seu consumo) à esfera da necessidade econômica (da reprodução ampliada do capital, na qual se inclui a realização monetária do valor mercantil). Longe de qualquer naturalismo das carências humanas, esse conceito visa a explicar por que as carências constitutivas da segunda sobrevivência já não se situam no terreno dos desejos, das fantasias, das tradições culturais e suas rupturas etc. (cf. SdS, § 30), ou ainda, de um “desenvolvimento orgânico das carências sociais” (SdS, § 68), mas são carências produzidas pela necessidade econômica (por isso, pseudocarências); diz, assim, que quando as carências constituídas historicamente podem satisfazer materialmente, a necessidade econômica da reprodução do capital se impõe, produzindo carências à sua imagem. Tomada a categoria da necessidade em seu sentido filosófico forte (oposto à contingência e, no limite, à possibilidade), as pseudocarências, que sob ela se constituem, expressam a natureza fetichista da forma-mercadoria.

Mas algo mais se passa aí: seria própria às relações sociais produzidas pela economia mercantil, quando esta assume a totalidade da vida social, a correspondente produção de carências adequadas e submetidas à necessidade econômica da realização monetária do valor; e, portanto, em decorrência da produção planejada, calculada, dirigida pelos diversos níveis de especialização e gestão do sistema produtivo. Não se trata, pois, de manipulação dos desejos, das fantasias etc., mas da produção social de carências (e todas as carências, mesmo as imediatamente naturais, são sempre socialmente elaboradas), com base na produção de seus meios de satisfação no interior da reprodução cíclica do capital. É assim que, “Mobilizando todo uso e se assenhorando do monopólio da satisfação, [o valor de troca] findou por dirigir o uso. O processo de troca se identificou a todo uso possível e o reduziu a seus efeitos [à sa merci]” (SdS, § 46).

Este seria um primeiro e importante fator a contra-atuar às tendências da crise de superprodução, pois, na submissão da carência à necessidade econômica, garante a realização monetária do valor mercantil. O espetáculo, como uma totalidade de relações sociais produzidas na experiência mercantil, produz forma de sensibilidade, inclinações, tendências etc.; repito, ele é o sens (ao mesmo tempo, a orientação, o critério de julgamento, o sentimento, a sensibilidade) da “prática total de uma formação econômico-social” (SdS, § 11). Desse modo, quando as primeiras carências estão satisfeitas, a produção mercantil, enquanto produção mercantil de meios de satisfação, torna-se também produção de novas carências, determinadas não apenas pelas possibilidades produtivas da época, mas pelas necessidades econômicas do conjunto do sistema, que dominam aquelas possibilidades. “A esse ponto da ‘segunda revolução industrial’”, diz Debord de uma maneira desajeitada, “o consumo alienado se tornou para as massas um dever suplementar à produção alienada” (SdS, § 42). Essa não é uma crítica sociológica (tampouco moral) do assim chamado consumismo, mas uma tese no terreno da crítica da economia política sobre o consumo mercantil como continuação da produção (apesar do uso equívoco da expressão “dever suplementar”). Se a contrapartida do trabalhador ao primeiro momento do ciclo do capital (D-M) é vender sua força de trabalho, no segundo momento (M-D), ele precisa comprar as mercadorias produzidas; ele “deve”, porque o ciclo reprodutivo do capital disso necessita. Daí a afirmação de que “o grau de abundância atingido na produção de mercadorias exige uma colaboração excedente do operário” (SdS, § 43).4 4 A abundância mercantil produz uma espécie de subjetivação (no sentido foucaultiano); produz o espectador, o trabalhador assalariado antecipadamente carente da próxima novidade mercantil, diante da qual é tão passivo quanto o é no trabalho, et pour cause.

O segundo conceito importante nas contratendências às crises de superprodução, e que vem em complemento ao de sobrevivência aumentada, é o da “baixa tendencial do valor de uso”.5 5 É a Debord que Mészáros (2002) deve o conceito de “taxa de utilização decrescente”, embora não tenha a, digamos, ‘gentileza’ de reconhecê-lo. Todo esse fenômeno e sua função econômica (e, igualmente, suas desastrosas consequências ecológicas) vêm sendo discutida nos últimos anos sob a expressão de “obsolescência programada” (Martinez, s/d). Esse fenômeno auxilia a realização monetária do valor das novas mercadorias, segundo o ritmo e a quantidade das forças produtivas em constante desenvolvimento; em consequência, favorece que a reprodução ampliada do capital, estando garantida, imponha sempre, a cada ciclo, novas carências de consumo. Ele se determina tanto pela inovação tecnológica permanente (que deixa meios de produção e meios de consumo direto rapidamente obsoletos) quanto pela necessidade econômica de que os produtos, retirados da circulação mercantil e dirigidos ao uso, sejam o mais rapidamente substituídos por outros, o que retroalimenta o consumo mercantil. Isso se dá pelo caráter de bugiganga das mercadorias produzidas em massa, que rapidamente se deterioram, e pela forma de socialização mercantil, cuja interação, mediada pelas imagens (em sentido amplo), requer dos indivíduos sua participação no consumo mercantil abundante. Desse modo, a baixa tendencial do valor de uso compõe (ou complementa) a sobrevivência aumentada, reinstaurando a carência (logo, a privação, a penúria): “é uma nova forma de privação no interior da sobrevivência aumentada, a qual não é mais liberada da antiga penúria, já que exige a participação dos homens, como trabalhadores assalariados, no prosseguimento infinito de seu esforço” (SdS, § 47).

Tanto esse conceito como o de sobrevivência aumentada procuram responder ao debate do entreguerras no interior do marxismo sobre a crise econômica, no qual se encontra não apenas a tese da crise de superprodução (terreno no qual se dá toda a discussão entre Luxemburgo e Bernstein). A recepção crítica a “Acumulação do capital” (1913), de Rosa Luxemburgo, teve como um de seus efeitos a retomada, contra ela, da tese marxiana da lei tendencial de queda da taxa de lucros, como explicação das crises. Essa tendência se constitui pelo desenvolvimento das forças produtivas do capital e, nele, o aumento da proporção do capital constante (parte do capital D que compra meios de produção) em relação ao capital variável (parte do capital D que compra força de trabalho); haveria, assim, um aumento do que Marx chama de “composição orgânica do capital”. Da diminuição proporcional da compra de força de trabalho (e consequente eliminação do trabalho vivo no processo produtivo com sua substituição por meios de produção) decorre a diminuição proporcional da produção de mais-valia (cuja substância é o trabalho abstrato) em relação ao capital total, diminuindo a taxa de lucros (cuja fórmula é justamente o percentual da mais-valia produzida na composição do capital total: capital constante + capital variável + mais-valia produzida) (v. Marx, 1984b, p. 163 ssMARX, K. “O capital: Crítica da economia política, Vol. III, Livro III, Tomo I.” Trad. R. Barbosa e F. R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984b. (Os economistas).).6 6 Como explica Kurz (2010), essas duas teorias existem em Marx, mas em níveis (ou instâncias) distintas de sua exposição do processo global de produção capitalista: “Em Marx, existem dois níveis diferentes da teoria da crise, que não estão teoricamente unificados. O primeiro nível refere-se às contradições da circulação do capital: à disparidade entre compras e vendas, bem como à desproporcionalidade com esta relacionada entre os ramos da produção. O segundo nível, nos Grundrisse e no terceiro volume de O Capital, refere-se muito mais fundamentalmente à relação entre a produtividade e as condições da valorização, ou seja, à falta de produção da própria mais-valia, ao tornar-se supérfua demasiada força de trabalho”. (No entreguerras, essa última tese foi sustentada por Henryk Grossmann e, no segundo pós-guerra, Paul Mattick, dentre outros).

O conceito da baixa tendencial do valor de uso não é apenas um desvio da tese marxiana da lei tendencial da queda da taxa de lucros, mas estabelece com ela uma posição polêmica (que é também uma polêmica com o chamado marxismo tradicional) na descrição do capitalismo desenvolvido. Para Debord, nas condições do capitalismo espetacular, o desenvolvimento das forças produtivas não atua no sentido da crise econômica imanente, nem mesmo daquela concebida pelo aumento da composição orgânica do capital: nas condições de abundância mercantil e de ocupação da totalidade do uso pela forma-mercadoria, amplia-se, ao contrário de diminuir, o tempo de trabalho social exercido como trabalhomercadoria (e, portanto, como produção e manutenção do valor). Para explicar essa tese, cuja importância reside também em porque se refere à composição de classe do proletariado, preciso fazer duas longas citações.

Com a automação, que é ao mesmo tempo o setor mais avançado da indústria moderna e o modelo em que se resume perfeitamente sua prática, é preciso que o mundo da mercadoria domine [surmonte] essa contradição: a instrumentação técnica que suprime objetivamente o trabalho deve ao mesmo tempo conservar o trabalho como mercadoria, e único lugar de nascimento da mercadoria (SdS, § 45).

Essa é, digamos assim, a tendência de autoconservação das relações sociais mercantis, seu conatus irrenunciável, diante do contraditório movimento de eliminação técnica do trabalho e manutenção social do trabalho assalariado. Mas como, efetivamente, fazê-lo? A resposta que Debord dá a essa questão (do aumento da composição orgânica do capital) serve também para responder à outra tese clássica sobre a crise (a de superprodução):

Para que a automação, ou qualquer outra forma menos extrema de aumento da produtividade do trabalho, não diminua o tempo de trabalho social necessário à escala da sociedade, é necessário [il est nécessaire] criar novos empregos. O setor terciário, os serviços, são o imenso alongamento das linhas de etapas [lignes d’étapes] do exército da distribuição e do elogio das mercadorias atuais; mobilização de forças supletivas que encontra oportunamente, na facticidade mesma das carências relativas a tais mercadorias, a necessidade de uma retaguarda de uma tal organização do trabalho (idem).

A imagem das lignes d’étapes é militar e envia-nos à organização, própria ao antigo regime, dos locais de armazenamento de víveres, alimentação e descanso de tropas e regimentos em campanha militar (Biloghi, 1994BILOGHI, D. “Logistique et ancien régime : les étapes du roi et de la province de Languedoc aux XVIIe et XVIIIe siècles». Études sur l’Hérault, Nr. 10, 1994, pp. 69-72 [Online]. Disponível em: http://www.etudesheraultaises.fr/wp-content/uploads/1994-09-logistique-et-ancien-regime-les-etapes-du-roi-et-de-la-province-de-languedoc-aux-xviiie-et-xiiie-siecles.pdf (Acessado em 11 de agosto de 2019).
http://www.etudesheraultaises.fr/wp-cont...
); o alinhamento das etapas é, em consequência, a organização da sucessão de tropas nesses locais (cidades), o alongamento dessas linhas de etapas sendo seu aumento ou acréscimo. Desse modo, o que a imagem nos sugere é que, nos e por meio dos serviços, o trabalho assalariado se amplia, ao invés de diminuir; o desenvolvimento das forças produtivas, que elimina trabalho na produção, amplia-o nos chamados serviços, que são o prolongamento e a extensão daqueles. Há, assim, uma proletarização generalizada na sociedade, devido à “extensão da lógica do trabalho em fábrica que se aplica a uma grande parte dos ‘serviços’ e das profissões intelectuais” (SdS, § 114).

Contudo, essas contratendências às crises econômicas do capitalismo – a sobrevivência ampliada e, junto a ela, a baixa tendencial do valor de uso das mercadorias – precisam ser explicadas, pois sugerem uma forma de organização tal do capitalismo desenvolvido, em que os “fatores” econômicos precisam estar racionalizados. O que as explica, e que, assim, se constitui na principal tese econômica em que se baseia toda a teoria crítica exposta em A sociedade do espetáculo, é que “a intervenção constante do Estado conseguiu compensar o efeito das tendências à crise” (SdS, § 82). Essa tese é reafirmada 20 anos depois nos Comentários: entre as principais características da nova forma do espetáculo (o espetacular integrado) se encontram, ainda, a “renovação tecnológica incessante” e a “fusão econômico-estatal”. A contracorrente dos mais recentes discursos, até mesmo da esquerda radical, de um recuo do Estado no terreno econômico em virtude do estágio a que chegara a internacionalização do capital e das políticas assim chamadas “neoliberais”, Debord (1992, p. 26)DEBORD, G. “Commentaires sur la société du spectacle”. Paris: Gallimard, 1992. afirma:

A fusão econômico-estatal é a tendência mais manifesta desse século; e aí tornou-se, no mínimo, o motor do desenvolvimento econômico mais recente. A aliança defensiva concluída entre essas duas potências lhes assegurou os maiores benefícios comuns, em todos os domínios: se pode dizer de cada uma que ela possui a outra; e é absurdo opor uma à outra, ou distinguir suas razões e suas desrazões. Essa união se mostrou também extremamente favorável ao desenvolvimento da dominação espetacular, que, precisamente, desde sua formação, não foi outra coisa. (Comm., V) (1992, p. 26, itálicos meus).

A possibilidade de contratendências à crise no pensamento de Debord precisa ser mais bem discutida. Antes, porém, de fazê-lo no próximo tópico, convém retomar, em traços rápidos, a que estágio chegou essa exposição. No que diz respeito à questão teórica da crise capitalista, Debord dialoga principalmente, embora não apenas, com a tese da superprodução de capitais e mercadorias; portanto, com aquela teoria da crise que se manifesta na reprodução ampliada do capital, dada a necessidade de realização monetária da mais-valia materializada nas novas mercadorias em cada novo ciclo da produção capitalista. O capitalismo moderno teria domado os efeitos das tendências à crise pela intervenção do Estado. É nesse quadro que o desenvolvimento autônomo da economia, incorporando o Estado à sua racionalidade, e submetendo-o a ela, manifestase numa expansão econômica, baseada em forças produtivas desenvolvidas, e que traz consigo uma extensão das relações mercantis, do trabalho-mercadoria (o salariado) e de sua lógica passiva ao conjunto da vida social.

Desse modo, a natureza fetichista da produção mercantil, longe de ser administrada pelo Estado, propriamente adequa à necessidade econômica o lugar do Estado no processo global da produção capitalista; e, ao fazê-lo, melhor realiza o domínio do valor de troca sobre o valor de uso, de modo que assim garante a realização monetária das mercadorias produzidas. Esse processo se efetiva, segundo a própria lógica do duplo expansão econômica/ abundância mercantil, por meio da inclusão do desenvolvimento tecnológico na extensão das relações mercantis-capitalistas aos serviços (fortalecendo o salariado e, portanto, a proletarização), o que amplia a abundância mercantil; e, pela falsificação permanente dos valores de uso em bugigangas, dada a queda tendencial do valor de uso, retroalimenta a reprodução capitalista de mercadorias e a realização monetária de seu valor.7 7 Algumas dessas teses econômicas, a começar pelas contratendências à crise pela participação econômica do Estado, estão presentes em O movimento revolucionário sob o capitalismo moderno, de Cornelius Castoriadis, escrito em 1959 e publicado nos nos 31 (dezembro de 1960), 32 (abril de 1961) e 33 (dezembro de 1961) de Socialismo ou barbárie. Essas datas são importantes, pois margeiam o período em que Debord se aproximou de Socialismo ou barbárie, tendo chegado mesmo a tornar-se um de seus membros durante alguns meses. Um confronto teórico entre A sociedade do espetáculo e O movimento revolucionário sob o capitalismo moderno, a fim de indicar seus pontos de encontro e ruptura, escapa a este texto. Cf. Castoriadis (1979), Thomas (2014), Quiriny (2009), Bourseiller (1999).

2. Teoria crítica e a questão da crise

Em sua discussão sobre a crise, Debord parte de um diagnóstico contemporâneo: houve crises, não há mais, pois as tendências que conduzem a elas foram domadas na estrutura do capitalismo contemporâneo. É isso que caracteriza fundamentalmente a nova fase da produção capitalista, a época da abundância mercantil e da participação reguladora do Estado na economia. Essa determinação, que é central ao espetacular difuso (e, em sequência, ao integrado), é comum ao capitalismo burocrático (espetacular concentrado),8 8 O conceito de capitalismo burocrático também é devido a Castoriadis (2007), que igualmente estende, como o fará Debord, essa característica estatizante da economia capitalista burocrática aos países industrializados do Ocidente. no qual, em que pese a subprodução mercantil, há a mesma fusão econômicoestatal das economias capitalistas mais avançadas. Por isso, não é à toa que as referências às crises do passado ocorram, em A sociedade do espetáculo, sempre relacionadas de algum modo ao espetacular concentrado, até mesmo em sua forma fascista, explicando, por elas, o surgimento momentâneo deste nos países capitalistas desenvolvidos (aos quais é próprio o espetacular difuso). É assim quando Debord diz que o “espetacular concentrado pertence essencialmente ao capitalismo burocrático, ainda que possa ser importado como técnica do poder em economias mistas mais atrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismo avançado” (SdS, § 64, itálicos meus). Ou, ainda, quando explica o fascismo como “uma defesa extremista da economia burguesa ameaçada pela crise e pela subversão proletária”; e, justamente quanto a isso, ele apresenta a teoria do caráter racionalizador do Estado na economia em crise: o fascismo é “o estado de sítio na sociedade capitalista, pela qual essa sociedade se salva, e se dá uma primeira racionalização de urgência fazendo intervir massivamente o Estado em sua gestão” (SdS, § 109, itálicos meus).

Que o espetacular concentrado e, nele, o fascismo possam surgir como técnicas do poder em épocas de crise capitalista, é porque nessas conformações políticas o Estado se torna um elemento racionalizador da economia, debelando seus desajustes estruturais e suas crises. No que diz respeito aos países capitalistas industrializados, o fascismo constituiu-se numa primeira tentativa de racionalização da economia de mercado, com a intervenção massiva do Estado. “Mas uma tal racionalização”, adverte Debord, “é ela própria agravada pela imensa irracionalidade de seu meio [moyen]”, pois este meio de racionalização, o fascismo, é também “a forma mais onerosa [coûteuse] de manutenção da ordem capitalista” (idem). Por isso mesmo, precisou ser substituído, em face das necessidades econômicas, já na fase espetacular, por “formas mais racionais e potentes [fortes] dessa ordem” (idem).

Todas essas passagens apontam para a tese do domínio das tendências à crise nas condições do capitalismo moderno, pela intervenção do Estado, entendida como racionalização da e imanente à economia. A questão, contudo, é justamente a da força dessas contratendências à crise de superprodução, com a ampliação econômica e racionalização política do mercado, e que foi objeto do debate clássico entre Rosa Luxemburgo e Eduard Bernstein. Como é sabido, este defendia haver “possibilidades de ajustamento na economia moderna”, como diz o título de um subcapítulo de sua obra clássica sobre o tema (Bernstein, 1997, p. 74BERNSTEIN, E. “Socialismo evolucionário”. Trad. bras. M. Teles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed.: Instituto Teotônio Vilela, 1997.);9 9 Trata-se de Die Voraussetzung des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie [As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia], de 1901, vertida ao português brasileiro por Socialismo evolucionário. e elenca duas classes de contratendências, uma econômica e técnica, relativa à “extensão do mercado mundial, em conjunto com uma extraordinária brevidade de tempo necessário para a transmissão de notícias e para os transportes”; outra, institucional, organizacional, “com a elasticidade do moderno sistema de crédito e a aparição dos cartéis industriais” (ibidem, p. 78). Enfim, essa racionalização imanente à economia de mercado, com o avanço das técnicas de informação e de transportes, com a emergência de associações industriais com capacidade de concentração e planejamento da produção, teria, eis as hipóteses em favor das quais Bernstein argumenta, “aumentado as possibilidades de ajustamento das perturbações”, “de modo que as crises comerciais gerais, semelhantes às mais antigas, tenham de ser encaradas como improváveis” (idem). Como na argumentação de Rosa é muito forte a natureza anárquica da produção nas condições da concorrência capitalista, em que cada capitalista individual tem controle apenas de sua própria produção, Bernstein considera que a organização jurídico-institucional do crédito, apoiado em sistemas de transportes e informações mais ágeis e rápidas, assim como a racionalização da produção nas associações capitalistas, têm como consequência que “o sistema de créditos está hoje sujeito a menos, não a mais contradições conducentes à paralisação geral da produção e assim é que, portanto, ocupa um lugar subalterno como fator de formação da crise” (ibidem, p. 82); igualmente, “as associações de fabricantes fazem face a tal infação de produção”, tendo “capacidade para influenciar as relações entre a atividade produtiva e a situação de mercado, no sentido da diminuição do perigo de crises” (ibidem, pp. 82-83).

Não pretendo reconstruir aqui o debate Luxemburgo-Bernstein. A evocação das posições desse último tem como objetivo situar a posição teórica de Debord quanto às contratendências à crise, contratendências que, assim como em e para Bernstein, são possíveis numa racionalização imanente ao próprio desenvolvimento capitalista, em seus aspectos técnico-produtivos e institucionaislegais (e, antes de tudo, para Debord, o Estado); racionalização imanente que, para este último, se explica pela natureza fetichista do automovimento da economia. Este mesmo retoma as posições de Bernstein em sua reflexão crítica do que chama de “economicismo” (économisme), manifesto na tentativa, que seria própria à social-democracia alemã entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, de transformar a crítica da economia política em ciência e, portanto, de assegurar, por meio de previsões científicas, a inevitabilidade da crise capitalista, da necessidade econômica da passagem do poder ao proletariado e da transformação socialista da sociedade.

Debord enfrenta essa questão, primeiramente, no âmbito da teoria da história, adotando, portanto, uma argumentação diretamente política: “O amadurecimento das forças produtivas não pode garantir um tal poder [ao proletariado], mesmo pelo desvio da despossessão crescente que traz consigo” (SdS, § 88). Na concepção social-democrata, da qual decorria toda sua tática política, conduzida cotidianamente em lutas por reformas no interior do sistema, a previsão da crise capitalista era central; dela dependia, num esquema de natureza econômica, a superação da atual ordem, na medida em que esta, na crise, se demonstrasse incapaz de conter o desenvolvimento das forças produtivas e as reivindicações operárias. Mas e se a crise generalizada da economia capitalista não for de fato um dado previsível, uma certeza científica? Se essa tática política, que depende da crise e da incapacidade econômica do capitalismo de se reformar, demonstrar-se falsa justamente porque, de algum modo, o sistema consegue contra-atuar às tendências à crise? Em outras palavras, para que essa tática “preserve alguma coisa de revolucionário, precisaria que o capitalismo se encontrasse oportunamente incapaz de suportar esse reformismo que ele tolerava politicamente na sua [dos social-democratas] agitação legalista” (SdS, § 96). A continuidade imediata dessa passagem deve ser citada em separado, pois é fundamental lhe prestar atenção: “é uma tal incompatibilidade que a ciência deles garantia; e que a história desmentia a cada instante” (idem).

Esse desmentido histórico da previsão científica da impossibilidade do capitalismo de absorver e realizar as reivindicações operárias refere-se, primeiramente, ao capitalismo avançado do segundo pós-guerra, o capitalismo da abundância mercantil em que as tendências à crise estão controladas. Mas, para Debord, não é menos verdade com relação ao próprio momento em que a social-democracia desenvolvia essa tática, conduzida por, ele assim as caracteriza, ilusões ideológicas numa futura crise generalizada da economia capitalista. O reformismo da tática social-democrata estaria justamente nisso, em que as lutas por conquistas operárias no interior da ordem de modo algum levariam ao confronto do proletariado com o capitalismo, estando este em condições de absorvê-las e realizá-las; em consequência, o confronto revolucionário, assim como a crise que o ocasionaria, constituíam a ideologia revolucionária de uma efetiva prática reformista. É este o modo como “a história” desmentiu o que aos social-democratas sua “ciência garantia”.

Como não é possível deixar de ver nesse último diagnóstico certa proximidade da posição de Bernstein contra a ortodoxia científica da social-democracia, Debord o traz ao texto: “Essa contradição, da qual Bernstein [...] teve a honestidade de querer mostrar a realidade [...] somente deveria, contudo, ser demonstrada sem réplica pelo próprio movimento histórico” (SdS, § 97). Que contradição? Contradição não entre as reivindicações operárias e o que delas o sistema pode suportar, bem entendido; mas a contradição entre a previsão científica de que o capitalismo, tendendo à crise, não pode suportar essas reivindicações e a história que a desmente seguidamente. Bernstein teve a honestidade de querer mostrar essa contradição, afirmando, em sua posição reformista sem ideologia revolucionária, que a crise não era inevitável, embora possível, e que o capitalismo podia suportar as reivindicações sindicais dos operários (na Alemanha, como na Inglaterra). Foi isso que o desenvolvimento histórico, que resultou no capitalismo desenvolvido do espetáculo, demonstrou sem réplica. E em que consiste a honestidade de Bernstein? Em que “negara que uma crise da produção capitalista viesse milagrosamente forçar a mão aos socialistas, que somente queriam herdar da revolução por essa sagração legítima” – a crise (idem).

Evidentemente, Debord não concorda com as conclusões políticas que Bernstein tira da compreensão de que as crises podem ser contratendenciadas; ao contrário, chega a posições opostas.10 10 Esse inesperado encontro de Debord com Bernstein no âmbito do diagnóstico do capitalismo, quanto às tendências e contratendências à crise, Quiriny (2012) também o reconhece em Castoriadis: “suas orientações políticas são, seguramente, estritamente opostas às de Castoriadis, mas suas críticas a Marx assemelham mui largamente com a sua” (§6). Mais ainda: “A crítica de Castoriadis, no detalhe como na lógica de conjunto, recupera diversos elementos do revisionismo [de Bernstein]” (§7). Quiriny refere-se justamente a O movimento revolucionário sob o capitalismo moderno. O que lhe interessa é, antes de tudo, mostrar teoricamente que seu próprio diagnóstico do capitalismo espetacular se funda num movimento imanente à economia em sua natureza fetichista; e, por isso, faz uma discussão sobre o próprio estatuto teórico da crítica da economia política (a “teoria de Marx”, SdS, § 81), questão que está diretamente ligada à concepção da história. De modo simples, pois segurar no rabo da macaca neste ponto me levaria para muito longe, não é possível, para Debord, qualquer previsão científica11 11 Bernstein (1997, p. 81) lembra que “a fórmula de crises, em e para Marx, não era um quadro do futuro, mas do presente, do dia de hoje, que se esperava poder a vir repetir-se no futuro, sempre em formas mais nítidas e com maior acuidade”. Com isso, busca situar historicamente e justificar cientificamente seu diagnóstico das tendências presentes do capitalismo ao ajustamento, à adaptação; e, portanto, contra a previsão científica de futura crise. sobre crises generalizadas, pois a teoria crítica da sociedade não é uma ciência; como teoria histórica da práxis humana e das contradições, ela é “uma compreensão da luta, não da lei” (idem). O que essa frase quer dizer, do ponto de vista da explicação do espetáculo, é que este, sendo o resultado do desenvolvimento fetichista da economia, é antes de tudo resultado da derrota das revoluções operárias do início do século XX, que abriram franco para que o movimento autônomo da produção mercantil prosseguisse; e resultado, igualmente, das lutas sindicais, cujas reivindicações são absorvidas e realizadas no capitalismo da abundância mercantil (pleno emprego, salários altos etc.).

Nesse sentido, o pensamento de Marx, quanto a seu estatuto teórico, liga-se legitimamente ao pensamento científico num aspecto, e somente: “a compreensão racional das forças que se exercem realmente na sociedade. Mas está fundamentalmente além do pensamento científico, que é nele conservado somente porque ultrapassado” (idem). As tentativas de previsões científicas das crises econômicas, nas quais a social-democracia depositou todo o seu otimismo político e a garantia científica de seu sucesso histórico, negligenciam justamente o “papel da história na própria economia” (SdS, § 82); desprezam, pois, o impacto, nela, das lutas de classes, de suas vitórias parciais, de suas derrotas históricas, de sua recuperação para a lógica do sistema; ignoram, enfim, “o processo global que modifica seus próprios dados científicos de base” (idem). O que decorre daí é “a vaidade [no sentido de serem vãos] dos cálculos socialistas que acreditavam ter estabelecido a periodicidade exata das crises” (idem).

É sintomático que, ao retomar o debate interno à social-democracia no início do século, Debord não se refra ao papel que, nele, teve Rosa Luxemburgo, por quem mantém um profundo respeito.12 12 Basta lembrar que lhe reconhece haver descoberto, em sua denúncia da repressão social-democrata ao movimento revolucionário de 1918/1919, “o segredo das novas condições criadas por todo o processo anterior”, “a organização espetacular da defesa da ordem existente”: “A representação revolucionária do proletariado nesse estágio se tornara ao mesmo tempo o fator principal e o resultado central da falsificação geral da sociedade” (SdS, § 101). Mas, nesse debate, a posição ortodoxa revolucionária da social-democracia foi manifesta justamente, e ao melhor, por Rosa Luxemburgo, em cujo argumento, mais em termos de concepção de história do que em teoria crítica econômica, Debord busca posicionar-se. Defendendo-a contra Bernstein, Luxemburgo (2015, p. 23)LUXEMBURGO, R. “Reforma ou revolução?” Trad. bras. de Lívio Xavier. 3ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015. argumenta que “a teoria socialista afirmava até agora que o ponto de partida da transformação socialista seria uma crise geral e catastrófica”; sendo essa a “ideia fundamental” (conceitual), cuja “forma exterior” (histórica) pode dar-se ou não com uma crise comercial, ela explica que “o regime capitalista, devido às suas próprias contradições internas, prepara para si mesmo o momento em que tem de ser desmantelado, em que se tornará simplesmente impossível” (idem). Para Rosa, Bernstein elimina, em sua teoria da racionalização imanente do capitalismo pelos cartéis, pela organização de crédito etc., um pressuposto fundamental da crítica da economia política, que são essas contradições internas, imanentes ao sistema, das quais a primeira e mais importante é a “anarquia crescente da economia capitalista” (idem), pois “a necessidade histórica da revolução socialista manifesta-se antes de tudo na anarquia crescente do sistema capitalista, anarquia que o leva a um impasse” (ibidem, p. 24).13 13 Cada capitalista individual, ao ter controle apenas sobre sua própria produção, desarticula-a de outros ramos da produção capitalista, bem como a mantém, inclusive aí mesmo, separada das possibilidades do mercado de absorvê-la. É o que constituiria a inevitabilidade da crise, expressão da contradição entre as forças produtivas e suas relações de troca privadas (mercantis), contradição na qual a capacidade produtiva da sociedade capitalista se defronta com a capacidade do mercado de realizar a mais-valia produzida (Luxemburgo, 1985; 2015). Daí, a consequência necessária do diagnóstico bernsteiniano: “Se admitirmos com Bernstein que o desenvolvimento capitalista não conduz à sua própria ruína, então o socialismo deixa de ser objetivamente necessário” (idem).

Ora, é essa necessidade objetiva, com base nas contradições internas, imanentes ao capitalismo, que, para Rosa Luxemburgo, constitui o elemento “científico” do socialismo; por isso, como também o fará, embora por outro motivo, Benjamin em 1940, ela denuncia a natureza neokantista – que, a rigor, é reconhecida pelo próprio Bernstein na conclusão de seu livro – da posição bernsteiniana, para quem o socialismo se constituiria, então, num “ideal, repousando sua força de persuasão unicamente nas perfeições que se lhe atribuem” (Luxemburgo, 2015, p. 26LUXEMBURGO, R. “Reforma ou revolução?” Trad. bras. de Lívio Xavier. 3ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.). E, assim como intuirá Debord, para quem Bernstein é o social-democrata “mais francamente ligado à metodologia da ciência burguesa” (SdS, § 97), Rosa Luxemburgo (2015, p. 26)LUXEMBURGO, R. “Reforma ou revolução?” Trad. bras. de Lívio Xavier. 3ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015. denuncia sua posição teórica como “uma explicação do programa socialista por intermédio da ‘razão pura’ [...] uma explicação idealista, ao passo que a necessidade objetiva do socialismo, isto é, a explicação do socialismo por toda a marcha do desenvolvimento material da sociedade, cai”. Disse que Debord apenas intui, embora acertadamente, porque não distingue claramente, como o faz Rosa, a concepção neokantista de ciência daquela que, reivindicada pelos fundadores da crítica economia política, se reivindica dialética; e se mantém, como o faz o próprio Bernstein, embora com posicionamento oposto deste, na oposição entre ciência e dialética.14 14 O debate sobre o estatuto teórico da crítica da economia política permanece sempre aberto. Marcos Müller (1982), num ensaio absolutamente central para essa questão, refete sobre ela ao se perguntar pelo uso, em e por Marx, da dialética como “um método que pretende ser teoria stricto sensu, ciência, não só no sentido do paradigma moderno de ciência, mas também no sentido hegeliano, dentro do pressuposto materialista de uma realidade prévia e irredutível à sua reconstrução lógica no pensamento”. A ler!

À questão, tão fundamental, colocada por Rosa – o que pode ser o projeto de superação do capitalismo por uma sociedade sem classes, se se lhe retira a necessidade histórica fundada nas contradições internas da própria economia –, questão à qual Bernstein responde filosoficamente, por um fundamento ético de caráter kantiano, Debord responde com um diagnóstico central à sua teoria crítica do espetáculo: neste, “o proletariado dos países industriais perdeu completamente a afirmação de sua perspectiva autônoma e, em última análise, suas ilusões, mas não seu ser. Ele não está suprimido. Ele permanece existindo na alienação intensificada do capitalismo moderno” (SdS, § 114). A intensificação das alienações, fundadas na extensão da forma-mercadoria à totalidade do vivido, desde o uso do tempo ao uso do espaço urbano (do que decorrem múltiplas outras formas de crise da sociedade capitalista), em confronto com as forças produtivas que tornam possível a satisfação não mercantil das carências humanas, é, para Debord, a base objetiva da crítica revolucionária, que, não se constituindo em ciência, tampouco se constitui em ideal (ou mesmo utopia). Essa extensão intensificada da alienação mercantil, fundada no trabalho assalariado, constitui as condições da formação, como classe, da “maioria de trabalhadores que perdeu todo poder sobre o uso da vida, e que, desde que saibam, se definem como o proletariado, o negativo em obra nessa sociedade” (idem). Coerente com sua crítica do estatuto científico da teoria crítica, e sem negar a natureza fetichista (autônoma) da economia mercantil, Debord reconhece apenas na luta de classes, e com base nas condições presentes do capitalismo moderno, a força histórica capaz de tornar necessária a superação do capitalismo.15 15 Dois anos depois, em “O começo de uma época”, editorial do último número da revista Internationale Situationniste (nº 12, p. 3), a IS (1997, p. 571), ele diz que o movimento de ocupações, em maio de 1968, “foi o retorno repentino do proletariado como classe histórica, ampliado [élargi] a uma maioria de assalariados da sociedade moderna”.

O momento histórico em que Debord elabora sua teoria crítica é, como todos sabemos, o de reconstrução e expansão do capitalismo europeu, que, na base política de um pacto entre Estado, capitalistas e organizações operárias tradicionais (sindicatos, partidos), de uma orientação teórica keynesiana e de uma política internacional de alargamento de crédito, conduziu ao chamado “estado de bem-estar social”. Poucos anos depois da publicação de A sociedade do espetáculo, no início dos anos 1970, fenômenos indicam o ressurgimento da crise econômica, que, de modo intermitente, mas tendencial e agravante, se prolonga até os nossos dias. O diagnóstico de Debord sobre o controle das tendências imanentes à crise econômica demonstrou-se, por aí, falso; igualmente, sua justificativa teórica do “desenvolvimento não perturbado do capitalismo moderno” (SdS, § 65).

Em seu favor, contudo, podemos lembrar que, no próprio livro de 1967, justamente quando afirma a impossibilidade de previsão científica da crise, ele recusa “o mesmo gênero de raciocínio [científico] que vê nesse equilíbrio [do capitalismo moderno] uma harmonia econômica definitiva” (SdS, § 82). Ampliando um pouco mais a defesa de sua teoria, dessa vez num momento em que a crise econômica do capitalismo já poderia ser largamente reconhecida, Debord (1997, p. 9)DEBORD, G. “A sociedade do espetáculo; Comentários sobre a sociedade do espetáculo”. Trad. E. S. Abreu. Rio de Janeiro: 1997. afirma no Prefácio à edição francesa de 1992 de A sociedade do espetáculo: “Uma teoria crítica como esta não se altera, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais do longo período histórico que ela foi a primeira a definir com precisão”.

A questão que, sem dúvida, resta é justamente a de saber em que medida permanecem, nesse longo período histórico de crise capitalista, “as condições gerais” que essa teoria teria sido “a primeira a definir com precisão”. Pela exposição acima feita, creio que, quanto a isso, dois aspectos permanecem inseparáveis no pensamento de Debord: o primeiro é a crítica da natureza fetichista da economia capitalista, a “economia se movendo por si mesma” (SdS, § 32), modo como nele se manifesta a tese marxiana de que a “circulação do dinheiro como capital é [...] uma finalidade em si mesma” (Marx, 1983, p. 129MARX, K. “O capital: Crítica da economia política, Vol. I, Livro I, Tomo I”. Trad. R. B. e F. R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os economistas)), processo no qual “o valor se torna [...] sujeito” (ibidem, p. 130); o segundo, nele inseparável, é a tese, expressa nas considerações históricas do surgimento do espetáculo e de sua possível superação, de que essa dominação da economia tem como condição determinados resultados da luta de classes, sendo esta, portanto, o elemento da “luta” a ser compreendida no plano histórico, em substituição à tese marxista vulgar da “lei”. Por pouco, pois abstratas, que sejam, abrem caminho para um diálogo ainda a ser realizado com a atual discussão sobre a crise, diálogo que ultrapassa os limites do presente artigo.

  • 1
    Em seu livro, Jappe adapta a Debord a interpretação kurziana de dois Marx (o da crítica do valor e o da luta de classes, supostamente ainda engajado na modernização capitalista). O presente artigo, embora se oriente por outra interpretação tanto de Marx quanto de Debord, não trata polemicamente dessas interpretações de Kurz e Jappe. Para uma discussão crítica sobre essas interpretações, ver Aquino (2006)AQUINO, J. E. F. “Reificação e linguagem em Guy Debord”. Fortaleza: EdUece, 2006..
  • 2
    Assim serão feitas no corpo do texto as referências de “A sociedade do espetáculo” (Debord, 1998aDEBORD, G. “La société du spectacle”. Paris: Gallimard, 1998a.).
  • 3
    “[C]omo o objetivo que move as ações de cada capitalista é o lucro, quanto maior o diferencial de valor entre o que adiantou e o que recebeu de volta, maiores serão seus ganhos. Por conta disso, todos são empurrados a revolucionar constantemente as condições de produção, o que acaba por transformá-los em prisioneiros da necessidade de acumular por acumular. Entretanto, quanto mais se entregam a essa corrida pela valorização, tanto mais o movimento do capital se impõe como ente autônomo em confronto com as previsões e cálculos do capitalista individual. E assim, tanto mais o capital adquire existência independente, a ponto de se transformar em algo idêntico a si mesmo, que se compara consigo mesmo nas diferentes fases do seu movimento cíclico” (Teixeira, Santos, 2020TEIXEIRA, F. J. S.; SANTOS, F. J. A. “Dinheiro e moeda em Karl Marx”. In: A terra é redonda, 03 de fevereiro de 2020 [Online]. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/dinheiro-e-moeda-em-karl-marx/ (Acessado em 21 de fevereiro de 2021).
    https://aterraeredonda.com.br/dinheiro-e...
    ).
  • 4
    A abundância mercantil produz uma espécie de subjetivação (no sentido foucaultiano); produz o espectador, o trabalhador assalariado antecipadamente carente da próxima novidade mercantil, diante da qual é tão passivo quanto o é no trabalho, et pour cause.
  • 5
    É a Debord que Mészáros (2002)MÉSZÁROS, I. “Para além do capital: Rumo a uma teoria da transição”. Trad. P. C. Castanheira e S. Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002. deve o conceito de “taxa de utilização decrescente”, embora não tenha a, digamos, ‘gentileza’ de reconhecê-lo. Todo esse fenômeno e sua função econômica (e, igualmente, suas desastrosas consequências ecológicas) vêm sendo discutida nos últimos anos sob a expressão de “obsolescência programada” (Martinez, s/dMARTINEZ, M. “O que é obsolescência programada?” eCycle, s/d [Online]. Disponível em: https://www.ecycle.com.br/1721-obsolescencia-programada (Acessado em 10 de agosto de 2019).
    https://www.ecycle.com.br/1721-obsolesce...
    ).
  • 6
    Como explica Kurz (2010)KURZ, R. “A teoria de Marx, a crise e a abolição do capitalismo”. In: Exit! Crise e crítica da sociedade das mercadorias. 2010 [Online]. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz363.htm (Acessado em 26 de junho de 2021).
    http://www.obeco-online.org/rkurz363.htm...
    , essas duas teorias existem em Marx, mas em níveis (ou instâncias) distintas de sua exposição do processo global de produção capitalista: “Em Marx, existem dois níveis diferentes da teoria da crise, que não estão teoricamente unificados. O primeiro nível refere-se às contradições da circulação do capital: à disparidade entre compras e vendas, bem como à desproporcionalidade com esta relacionada entre os ramos da produção. O segundo nível, nos Grundrisse e no terceiro volume de O Capital, refere-se muito mais fundamentalmente à relação entre a produtividade e as condições da valorização, ou seja, à falta de produção da própria mais-valia, ao tornar-se supérfua demasiada força de trabalho”.
  • 7
    Algumas dessas teses econômicas, a começar pelas contratendências à crise pela participação econômica do Estado, estão presentes em O movimento revolucionário sob o capitalismo moderno, de Cornelius Castoriadis, escrito em 1959 e publicado nos nos 31 (dezembro de 1960), 32 (abril de 1961) e 33 (dezembro de 1961) de Socialismo ou barbárie. Essas datas são importantes, pois margeiam o período em que Debord se aproximou de Socialismo ou barbárie, tendo chegado mesmo a tornar-se um de seus membros durante alguns meses. Um confronto teórico entre A sociedade do espetáculo e O movimento revolucionário sob o capitalismo moderno, a fim de indicar seus pontos de encontro e ruptura, escapa a este texto. Cf. Castoriadis (1979)CASTORIADIS, C. «Le mouvement révolutionnaire dans le capitalisme moderne». In: Capitalisme moderne et révolution, t. II. Paris: Editions 10/18, 1979. pp. 47-202., Thomas (2014)THOMAS, F. «Entretien avec quelques anciens membres de Socialisme ou Barbarie». In: Dissidence: le blog, setembro de 2014 [Online]. Disponível em: https://dissidences.hypotheses.org/5691 (Acessado em 5 de julho de 2019).
    https://dissidences.hypotheses.org/5691...
    , Quiriny (2009)QUIRINY, B. «Socialisme ou Barbarie et l’Internationale Situationniste. Note sur une «meprise»». In: Lieux comuns, maio de 2009 [Online]. Disponível em: https://collectifieuxcommuns.fr/?120-socialisme-ou-barbarie-et-l⟨=fr (Acessado em 12 de agosto de 2019).
    https://collectifieuxcommuns.fr/?120-soc...
    , Bourseiller (1999)BOURSEILLER, C. «Vie et mort de Guy Debord». Paris: Plon, 1999..
  • 8
    O conceito de capitalismo burocrático também é devido a Castoriadis (2007)CASTORIADIS, C. «Les rapports de production en Russie». In: Socialisme ou Barbarie. Anthologie. Paris: Acratie, 2007. pp. 36-52., que igualmente estende, como o fará Debord, essa característica estatizante da economia capitalista burocrática aos países industrializados do Ocidente.
  • 9
    Trata-se de Die Voraussetzung des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie [As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia], de 1901, vertida ao português brasileiro por Socialismo evolucionário.
  • 10
    Esse inesperado encontro de Debord com Bernstein no âmbito do diagnóstico do capitalismo, quanto às tendências e contratendências à crise, Quiriny (2012)QUIRINY, B. «Révolutionnaires et réformistes face au marxisme». In: CAUMIÈRES, P., KLIMIS, S., VAN EYNDE, L. «Socialisme ou Barbarie aujourd’hui : Analyses et témoignages. Nouvelle édition [en ligne]». Bruxelles: Presses de l’Université Saint-Louis, 2012. Disponível em: http://books.openedition.org/pusl/680 (Acessado em 3 de junho de 2019).
    http://books.openedition.org/pusl/680...
    também o reconhece em Castoriadis: “suas orientações políticas são, seguramente, estritamente opostas às de Castoriadis, mas suas críticas a Marx assemelham mui largamente com a sua” (§6). Mais ainda: “A crítica de Castoriadis, no detalhe como na lógica de conjunto, recupera diversos elementos do revisionismo [de Bernstein]” (§7). Quiriny refere-se justamente a O movimento revolucionário sob o capitalismo moderno.
  • 11
    Bernstein (1997, p. 81)BERNSTEIN, E. “Socialismo evolucionário”. Trad. bras. M. Teles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed.: Instituto Teotônio Vilela, 1997. lembra que “a fórmula de crises, em e para Marx, não era um quadro do futuro, mas do presente, do dia de hoje, que se esperava poder a vir repetir-se no futuro, sempre em formas mais nítidas e com maior acuidade”. Com isso, busca situar historicamente e justificar cientificamente seu diagnóstico das tendências presentes do capitalismo ao ajustamento, à adaptação; e, portanto, contra a previsão científica de futura crise.
  • 12
    Basta lembrar que lhe reconhece haver descoberto, em sua denúncia da repressão social-democrata ao movimento revolucionário de 1918/1919, “o segredo das novas condições criadas por todo o processo anterior”, “a organização espetacular da defesa da ordem existente”: “A representação revolucionária do proletariado nesse estágio se tornara ao mesmo tempo o fator principal e o resultado central da falsificação geral da sociedade” (SdS, § 101).
  • 13
    Cada capitalista individual, ao ter controle apenas sobre sua própria produção, desarticula-a de outros ramos da produção capitalista, bem como a mantém, inclusive aí mesmo, separada das possibilidades do mercado de absorvê-la. É o que constituiria a inevitabilidade da crise, expressão da contradição entre as forças produtivas e suas relações de troca privadas (mercantis), contradição na qual a capacidade produtiva da sociedade capitalista se defronta com a capacidade do mercado de realizar a mais-valia produzida (Luxemburgo, 1985LUXEMBURGO, R. “A acumulação do capital: Contribuição ao estudo econômico do imperialismo”. Trad. M. V. Lisboa. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os economistas); 2015LUXEMBURGO, R. “Reforma ou revolução?” Trad. bras. de Lívio Xavier. 3ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.).
  • 14
    O debate sobre o estatuto teórico da crítica da economia política permanece sempre aberto. Marcos Müller (1982)MÜULER, M. L. “Exposição e método dialético em O capital”. Boletim SEAF, Belo Horizonte: Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas, 2, 1982., num ensaio absolutamente central para essa questão, refete sobre ela ao se perguntar pelo uso, em e por Marx, da dialética como “um método que pretende ser teoria stricto sensu, ciência, não só no sentido do paradigma moderno de ciência, mas também no sentido hegeliano, dentro do pressuposto materialista de uma realidade prévia e irredutível à sua reconstrução lógica no pensamento”. A ler!
  • 15
    Dois anos depois, em “O começo de uma época”, editorial do último número da revista Internationale Situationniste (nº 12, p. 3), a IS (1997, p. 571)INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. “Internationale Situationniste (1958-1969)”. Paris: Fayard, 1997., ele diz que o movimento de ocupações, em maio de 1968, “foi o retorno repentino do proletariado como classe histórica, ampliado [élargi] a uma maioria de assalariados da sociedade moderna”.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2021
  • Aceito
    05 Fev 2022
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