Resumo
Num primeiro momento, este estudo atualiza e reconstrói, sob alguns aspectos, a análise realizada por Soares (2008) sobre o fenômeno da mudança na identificação racial que vem ocorrendo no Brasil desde o início dos anos 2000. Num segundo momento, expandindo tal análise, investiga-se a existência de diferenças regionais nesse processo. Os resultados mostram que os aumentos observados na porcentagem de negros no total do país e nas suas cinco macrorregiões foram devidos quase que exclusivamente à mudança ocorrida no modo como as próprias pessoas se veem. Quanto ao efeito da mudança na identificação racial sobre o aumento no número de negros, verificou-se que este varia consideravelmente de região para região, sendo mais forte no Sul e Sudeste. Por fim, argumenta-se que qualquer análise intertemporal, a partir dos anos 2000, que envolva autodeclaração de cor ou raça, é potencialmente afetada por esse processo de mudança na identificação racial.
Palavras-chave
Brasil; Macrorregiões; Identificação racial
Abstract
First, this study updates and reconstructs the analysis carried out by Soares (2008) on the phenomenon of change in racial identification that has been occurring in Brazil since the early 2000s. Second, this analysis is expanded to include research into the existence of regional differences in this process. Results show that increases in the percentage of black population in Brazil, and in all of its five macro-regions were due almost exclusively to the change in the way people see themselves. As for the effect of the change in racial identification on the increase in the number of blacks, it was found that this varies considerably from region to region, being stronger in the South and Southeast major regions. Finally, the paper argues that any intertemporal analysis, starting in the 2000s, involving self-declaration of color or race, is potentially affected by this process of change in racial identification.
Key words
Brazil; Macro-regions; Racial identification
Resumen
Inicialmente, considerando a Brasil en su conjunto, este estudio actualiza y reconstruye, en algunos aspectos, el análisis de Soares (2008) sobre el fenómeno de cambio en la identificación racial que ha estado ocurriendo en el país desde principios de la primera década del siglo XXI. Posteriormente, el análisis se expande para investigar las diferencias regionales en dicho proceso. Los resultados muestran que los aumentos observados en el porcentaje de negros en Brasil en su conjunto y en sus cinco macrorregiones se deben casi exclusivamente a cambios en la forma en que las personas se ven a sí mismas. Con relación al efecto del cambio en la identificación racial sobre el aumento del número de personas negras, se encontró que esto varía considerablemente de una región a otra, y es más fuerte en las regiones del sur y sudeste de Brasil. Finalmente, se argumentó que cualquier análisis intertemporal, a partir de la primera década del siglo XXI, que implique la autodeclaración de color o etnia-raza se ve potencialmente afectado por este proceso de cambio en la identificación racial.
Palabras clave
Brasil; Macrorregiones; Identificación racial
Introdução
Em Escravidão, Gomes (2019, cap. 17)GOMES, F. Escravidão. Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. São Paulo: Globo Livros, v. 1, 2019. apresenta números estarrecedores sobre o tráfico de negros africanos que se estendeu por mais três séculos e meio. Entre 1500 e 1867, cerca de 12,52 milhões de seres humanos foram embarcados para a travessia do Atlântico em cerca de 36 mil viagens de navios negreiros. Desses, por volta de 10,7 milhões chegaram vivos à América. O Brasil, sozinho, recebeu 4,9 milhões de cativos, o que representa algo em torno de 47% do total desembarcado em todo o continente americano entre 1500 e 1850.
Como resultado desse processo, os dados do Censo Demográfico de 1890 apontam que, na época da abolição da escravidão, os negros representavam 56% da população brasileira. No Censo de 1940, o próximo a coletar informação sobre a cor das pessoas, a participação dos negros havia caído para 35,8% (HENRIQUES, 2001HENRIQUES, R. Desigualdade racial no Brasil: a evolução das condições de vida na década de 90. Brasília: Ipea, 2001. (Texto para discussão, n. 807)., p. 5). A explicação para essa drástica redução foi a massiva entrada de imigrantes europeus no país entre as décadas finais do século 19 e iniciais do século 20. De 1890 a 1930 foram cerca de 3,4 milhões de imigrantes, o suficiente para mudar a composição racial da população brasileira, que era de pouco mais de 14 milhões de pessoas em 1890 (SOARES, 2008, p. 97SOARES, S. S. D. A demografia da cor: a composição da população brasileira de 1870 a 2007. In: THEODORO, M. (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea, 2008. p. 97-117.).
Por volta de 1950, no entanto, a imigração já havia deixado de ser um elemento importante na recomposição demográfica da população brasileira (TELLES, 2003TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Ford, 2003.). Desde então, a nossa dinâmica demográfica passou a ser determinada basicamente pelos regimes de mortalidade e fecundidade (SILVA, 1992SILVA, N. V. Cor e pobreza no centenário da abolição. In: HASENBALG, C. A.; SILVA, N. D. V. (ed.). Relações raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992. cap.5, p. 119-137.). Entre 1940 e 1980, a participação dos negros na população brasileira aumentou 8,6 pontos percentuais, alcançando 44,4% no final deste período (HENRIQUES, 2001HENRIQUES, R. Desigualdade racial no Brasil: a evolução das condições de vida na década de 90. Brasília: Ipea, 2001. (Texto para discussão, n. 807)., p. 5). As duas décadas seguintes foram marcadas por grande estabilidade, com a proporção de negros se mantendo em torno de 45% entre 1980 e 2000 (JESUS, 2020JESUS, J. G. Negros em movimento: migração e desigualdade racial no Brasil. 2020. 147f. Tese (Doutorado) – Departamento de Economia, Sociologia e Administração, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2020., p. 47).
De acordo com os dados do Censo de 2000, os negros representavam 44,7% dos residentes no país. Fazendo as contas, entre 1940 e 2000, a proporção de negros na população brasileira aumentou em torno de 0,15 ponto percentual em cada ano. Em 2010, de acordo com os dados do Censo, a população brasileira era formada por 50,7% de negros. Verifica-se que, entre 2000 e 2010, a proporção de negros aumentou 6,0 pontos percentuais, isto é, 0,60 ponto percentual em cada ano. Soares (2008) foi pioneiro na análise dessa surpreendente aceleração no crescimento relativo da população negra observada a partir dos anos 2000.
Conforme ressaltado, a razão pela qual 56% dos brasileiros eram negros em 1890 foi uma massiva imigração forçada de negros africanos para o Brasil. A razão do embranquecimento da população até 1940 foi outra onda massiva de imigração, desta vez de brancos europeus. Ademais, cabe relembrar o fato de a população brasileira ter permanecido relativamente fechada desde então. Ora, se não houve fenômenos migratórios relevantes, qual seria então a explicação do enegrecimento da população brasileira a partir de 1940 e, principalmente, do forte aumento observado a partir dos anos 2000? Essa foi a questão norteadora do estudo realizado por Soares (2008).
Há três possíveis explicações. A primeira diz respeito ao fato de a taxa de fecundidade das mulheres negras ser maior do que a das brancas. A segunda estaria associada à miscigenação e outros fatores que envolvem a identificação racial ao nascer. Finalmente, como no Brasil o critério de identificação racial é o de autoatribuição, nada garante que as pessoas mantenham a mesma cor ou raça ao longo da vida. Assim, como terceira explicação, estaria ocorrendo um forte processo de mudança na identificação racial no Brasil (SOARES, 2008, p. 99).
Dispondo dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Soares (2008) analisa uma a uma as possibilidades. De acordo com esses dados, entre 2001 e 2007, a proporção de negros na população brasileira aumentou extraordinários 4,1 pontos percentuais (0,7 ponto percentual ao ano), passando de 45,7% para 49,8% e superando a proporção de brancos. As análises de Soares (2008) mostram que a rápida mudança observada na composição étnico-racial da população brasileira, neste período, deveu-se quase que exclusivamente à mudança ocorrida no modo como as próprias pessoas se veem, ficando os elementos de cunho mais estritamente demográfico em segundo plano.
Nas conclusões, Soares (2008, p. 116) afirma que “poucas vezes nas Ciências Sociais há um fenômeno com uma explicação tão clara quanto o escurecimento da população brasileira” observado a partir dos anos 2000. De acordo com o autor:
A história é bastante clara e simples. Até o início dos anos 1990, a população negra vinha aumentando de modo relativamente lento e vegetativo devido a uma taxa de fecundidade um pouco mais alta [e também à miscigenação e outros fatores que envolvem a identificação racial ao nascer]. [Na segunda metade dos anos 1990, no entanto, iniciou-se] um processo de mudança em como as pessoas se veem. As pessoas passaram a ter menos vergonha de dizer que são negras; passaram a não precisar se branquear para se legitimarem socialmente (SOARES, 2008, p. 116).
Soares (2008) também estava correto ao afirmar que, ao que tudo indicava, esse processo não havia terminado. Já se passou mais de uma década desde a publicação do estudo de Soares e novos dados sobre o tema foram disponibilizados ano a ano pelo IBGE. Nesse contexto, são dois os objetivos do presente estudo. O primeiro, considerando o nível geográfico do Brasil, é atualizar e reconstruir sob alguns aspectos a análise realizada por Soares (2008). O segundo é expandir tal análise, investigando a existência de diferenças regionais nesse processo de mudança na identificação racial.
Fluidez racial no Brasil
“Ele não é negro, pois se fosse não seria chefe”. Essa foi a resposta obtida pelo viajante francês Saint Hilaire, que esteve no Brasil entre 1816 e 1819, ao perguntar a um subalterno se o chefe da tropa, que encontrara enquanto andava pelo interior de Minas Gerais, era negro (apud SCHWARCZ, 2006SCHWARCZ, L. M. Raça como negociação: sobre teorias raciais em finais do século XIX no Brasil. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2006., p. 49). Resposta quase idêntica a essa também foi ouvida no Nordeste pelo viajante inglês Henry Koster, que viveu no Brasil de 1809 a 1815, ao indagar a um transeunte, descrito por ele como homem de cor, se certo capitão-mor seria mulato. O transeunte lhe respondeu: “Era, porém já não é!” E justificou: “Pois, senhor, capitão-mor pode ser mulato?” (apud HOFBAUER, 2000HOFBAUER, A. Ideologia do branqueamento – racismo à brasileira? In: VI CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO, 2000, Porto. Actas do VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Porto, 2000. v. II. p. 1-10., p. 5).
No contexto da escravidão, havia uma enorme resistência contra qualquer tentativa de essencializar os limites de cor ou de raça (HOFBAUER, 2000HOFBAUER, A. Ideologia do branqueamento – racismo à brasileira? In: VI CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO, 2000, Porto. Actas do VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Porto, 2000. v. II. p. 1-10., 2007HOFBAUER, A. Branqueamento e democracia racial: sobre as entranhas do racismo no Brasil. In: ZANINI, M. C. C. (org.). Por que “raça”? Breves reflexões sobre a questão racial no cinema e na antropologia. Santa Maria: EDUFSM, 2007.). Isso porque as negociações individuais e contextuais das fronteiras e das identidades atuavam no sentido de abafar e inibir reações coletivas por parte dos negros, bem como dividir aqueles que poderiam se organizar em torno de uma reivindicação comum (JESUS, 2020JESUS, J. G. Negros em movimento: migração e desigualdade racial no Brasil. 2020. 147f. Tese (Doutorado) – Departamento de Economia, Sociologia e Administração, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2020., p. 13).
De um modo abrangente, o conceito de fluidez racial se fundamenta na ideia de que as classificações raciais, sejam elas baseadas em auto ou heteroclassificação, em categorias abertas ou fechadas, não são fixas, mas sim construções sociais em perspectivas tanto temporal quanto socioeconômica e contextual (SILVEIRA; TOMAS, 2019SILVEIRA, L. S.; TOMAS, M. C. Fluidez racial na Região Metropolitana de Belo Horizonte: características individuais e contexto local na construção da raça. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 36, p. 1-22, 2019.). Os relatos supracitados sugerem que a fluidez racial marcou desde o início a história do país. Ou, em outras palavras, a classificação racial no Brasil sempre possuiu caráter ambíguo, sendo influenciada por interesses pessoais, relações de poder e contextos sociais específicos.
De acordo com Nogueira (1955)NOGUEIRA, O. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. In: BASTIDE, R. Relações raciais de negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Ed. Anhembi Ltda., 1955., a característica distintiva do preconceito brasileiro é que ele não incide sobre a origem étnica dos indivíduos, como observado em outras partes do mundo, mas sim com base na sua aparência, traços físicos, cor da pele, cabelo, etc. Assim, de acordo com o autor, no Brasil, quanto mais próximo do branco, menores seriam as chances de sofrer as consequências do preconceito racial e maiores as possibilidades de ascender socialmente.
Embora, entre 1950 e 1990, a proporção de negros (pardos e pretos) na população brasileira tenha aumentado, a análise feita por Carvalho, Wood e Andrade (2004)CARVALHO, J. A. M.; WOOD, C.; ANDRADE, F. C. D. Estimating the stability of census-based racial/ethnic classifications: the case of Brazil. Population Studies, London, v. 58, n. 3, p. 331-343, 2004., com base em dados do Censo Demográfico, sugere que, nesse período, houve um processo de migração de categorias mais escuras para categorias mais claras. Na interpretação dos autores, a melhoria nas condições de vida estaria por trás desse processo; embranquecer seria um sinal de mobilidade social ascendente. Na década de 1990, ainda que de forma tímida, já se observa um movimento na direção contrária, o qual foi interpretado por Petrucelli (2002)PETRUCELLI, J. L. A declaração de cor ou raça no Censo 2000: um estudo comparativo. Rio de Janeiro: IBGE, 2002. (Texto para discussão, n. 6). como uma revitalização identitária, hipótese essa corroborada pelas análises de Soares (2008) e Miranda (2015)MIRANDA, V. A resurgence of black identity in Brazil? Evidence from an analysis of recent censuses. Demographic Research, v. 32, n. 59, p. 1603-1630, 2015..
Além da mudança no modo como as próprias pessoas se veem, a fluidez racial também se manifesta ao se contrastarem diferentes métodos de classificação racial. Conforme argumentado por Miranda-Ribeiro e Caetano (2005, p. 6)MIRANDA-RIBEIRO, P.; CAETANO, A. Como eu me vejo e como ela me vê: um estudo exploratório sobre a consistência das declarações de raça/cor entre as mulheres de 15 a 59 anos no Recife, 2002. Belo Horizonte: Cedeplar, Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. (Texto para discussão, n. 250)., por trás da autoclassificação, está a questão da identidade, seja ela oriunda de fenótipos, ancestralidade ou razões culturais. Por outro lado, em muitas situações, o que importa é como o mundo vê o indivíduo em termos da sua cor ou raça, e não como ele próprio se vê. É o caso da discriminação racial no mercado de trabalho. Os resultados apresentados por Telles e Lim (1998) e Bailey, Loveman e Muniz (2013)BAILEY, S. R.; LOVEMAN, M.; MUNIZ, J. O. Measures of “race” and the analysis of racial inequality in Brazil. Social Science Research, v. 42, n. 1, p. 106-119, 2013. sugerem, por exemplo, que a desigualdade racial de rendimento no Brasil é substancialmente maior quando se considera o critério de heteroclassificação vis-à-vis o critério de autoclassificação racial.
Estudo realizado por Muniz (2012)MUNIZ, J. O. Preto no branco? Mensuração, relevância e concordância classificatória no país da incerteza racial. Dados, v. 55, n. 1, p. 251-282, 2012. indica que, no início dos anos 2000, era superior a um terço a inconsistência entre a auto e a heteroclassificação racial no Brasil. Nessa mesma linha e utilizando a mesma base de dados – a Pesquisa Social Brasileira de 2002, que observou a cor ou raça dos indivíduos em seis esquemas diferentes –, Bailey, Loveman e Muniz (2013) mostraram que, dependendo do esquema de classificação adotado, a composição racial do Brasil mudava de maioria branca para maioria negra.
Por meio da contraposição entre auto e heteroclassificação ou das variações classificatórias ao longo do tempo, muitos estudos buscaram entender como as condições socioeconômicas afetam as classificações raciais no Brasil.
As análises de Silva (1999)SILVA, N. V. Diferenças raciais de rendimentos. In: HASENBALG, C.; SILVA, N. V.; LIMA, M. Cor e estratificação racial. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. p. 184-216., Telles (2003) e Osório (2003) indicam que, no Brasil, não só a riqueza embranquece, como, inversamente, a pobreza também escurece. Essa ideia de que “a riqueza embranquece” é um tema clássico na literatura sociológica sobre raça no Brasil. Schwartzman (2007)SCHWARTZMAN, L. F. Does money whiten? Intergenerational changes in racial classification in Brazil. American Sociological Review, v. 72, n. 6, p. 940-963, 2007. investiga, por exemplo, como fatores associados ao status socioeconômico se traduz em ultrapassagem de fronteiras raciais ao longo das gerações. Com base nos dados da PNAD de 2005, os resultados do estudo mostraram que pais não brancos com alto nível de escolaridade têm maior probabilidade de classificar seus filhos como brancos do que pais não brancos com menor escolaridade.
Loveman, Muniz e Bailey (2012)LOVEMAN, M.; MUNIZ, J. O.; BAILEY, S. R. Brazil in black and white? Race categories, the census, and the study of inequality. Ethnic and Racial Studies, v. 35, n. 8, p. 1466-1483, 2012. avaliaram como a remoção da categoria pardo do censo ou de outras pesquisas sociais provavelmente afetaria o quadro descritivo da composição racial do Brasil e as estimativas de desigualdade de renda entre e dentro das categorias raciais. Os resultados do estudo indicaram que um formato de pergunta binária forçada (branco e preto) resulta em uma imagem mais branca e racialmente mais desigual do Brasil, por meio do movimento de muitos entrevistados mestiços de renda mais alta para a categoria de brancos. Ademais, as análises apresentadas por Silveira (2019)SILVEIRA, L. S. Reclassificação racial e desigualdade: análise longitudinal de variações socioeconômicas e regionais no Brasil entre 2008 e 2015. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019., Muniz e Bastos (2017)MUNIZ, J. O.; BASTOS, J. L. Classificatory volatility and (in)consistency of racial inequality. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, supl. 1, 2017. e Monk (2013)MONK, E. Color, bodily capital, and ethnoracial division in the U.S. and Brazil. PhD Dissertation. Berkeley, CA: UC Berkeley, 2013. mostram que um mesmo indivíduo pode ser classificado em diferentes categorias de cor ou raça, dependendo da região do país em que se encontra.
Os resultados apresentados por Silveira e Tomas (2019) sugerem, ainda, que não apenas a autoclassificação, mas também a heteroclassificação é influenciada pelas condições socioeconômicas do indivíduo a ser classificado. Quanto melhor a situação socioeconômica dos indivíduos, maiores são as chances de eles serem classificados em categorias “mais claras” pelos entrevistadores.
Para a cidade de Recife, Miranda-Ribeiro e Caetano (2005) constataram uma correlação positiva entre a escolaridade e o “autoescurecimento” das mulheres, isto é, mulheres que se autoclassificam como negras, mas são heteroclassificadas como brancas apresentam, em geral, nível alto de escolaridade, sendo o contrário também verdadeiro. Ainda em se tratando de escolaridade, Marteleto (2012)MARTELETO, L. J. Educational inequality by race in Brazil, 1982-2007: structural changes and shifts in racial classification. Demography, v. 49, n. 1, p. 337-358, 2012., analisando o período 1982-2007, com os dados da PNAD, verificou que a desvantagem educacional entre pardos e pretos diminuiu, tornando o grupo mais homogêneo em termos de atributos educacionais. Na interpretação do autor, pelo menos em parte, a redução da diferença de escolaridade entre pardos e pretos estaria associada a um fenômeno de “escurecimento com a educação”.
À luz da adoção de políticas de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, Francis-Tan e Tannuri-Pianto (2015)FRANCIS-TAN, A.; TANNURI-PIANTO, M. Inside the black box: affirmative action and the social construction of race in Brazil. Ethnic and Racial Studies, v. 38, n. 15, p. 2771-2790, 2015. estimaram o efeito das cotas raciais sobre os padrões de identificação racial de alunos da Universidade de Brasília. Os resultados do estudo sugerem que as cotas raciais inspiraram uma mudança persistente na identificação racial de não negro para negro e de categorias raciais mais claras para mais escuras.
No presente estudo quantificaremos e analisaremos as mudanças que vêm ocorrendo no modo como os próprios brasileiros se veem, isto é, no processo de autoclassificação racial. Conforme colocado por Soares (2008, p. 107), a identidade racial não é mera consequência da cor dos nossos pais. Trata-se de uma construção social para a qual contribui o lugar que as pessoas ocupam na sociedade e, também, como as próprias pessoas se veem. O modo de as pessoas construírem suas próprias identidades não é constante ao longo do tempo; depende de vários fatores, como a posição que ocupam na estrutura social, as mudanças estruturais na sociedade, as mudanças nas suas visões de mundo, ideologias, experiências particulares que os afetaram1 1 Ver Canache et al. (2014). e pode até mesmo ser reflexo da implementação de políticas públicas.
Base de dados e aspectos metodológicos
Na presente pesquisa, os dados analisados foram extraídos das edições disponíveis da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) no período 1995-2015, divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A PNAD é uma pesquisa por amostra probabilística de domicílios da qual podem ser obtidas informações anuais sobre características demográficas e socioeconômicas gerais da população. Neste período, a forma de investigação adotada pela PNAD permaneceu praticamente a mesma, o que permite realizar com segurança comparações intertemporais e reconstruir, sob diversos aspectos, a rede de inter-relações relevantes para a compreensão dos fenômenos socioeconômicos que vêm ocorrendo na história recente do Brasil. De interesse particular para esta pesquisa são as informações sobre cor ou raça.
Aqui não discutiremos em detalhes o sistema de classificação étnico-racial adotado pelo IBGE,2 2 Hasenbalg, Silva e Lima (1999), Petrucelli (2002), Osório (2003) e Petrucelli e Saboia (2013) são ótimas referências sobre esse assunto. mas consideramos importante apresentar, ainda que de forma breve, esse sistema de classificação. Conforme explicado por Osório (2003), todo sistema de classificação social possui dois componentes básicos: as categorias nas quais os indivíduos podem ser classificados; e o método de identificação utilizado para classificar os indivíduos nas categorias predefinidas. Atualmente, no sistema de classificação étnico-racial utilizado pelo IBGE, constam cinco categorias de cor ou raça: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Quanto ao critério de identificação, em princípio, este pode ser determinado por dois métodos – o de autoatribuição ou o de heteroatribuição de pertença (OSÓRIO, 2003OSÓRIO, R. G. O sistema classificatório de cor ou raça do IBGE. Brasília: Ipea, 2003. (Texto para discussão, n. 996)., p.7-8).
No primeiro caso é o próprio entrevistado que escolhe o grupo ao qual pertence, optando por uma das cinco categorias. No segundo caso, dado que nem sempre é possível entrevistar todas as pessoas dos domicílios, seja por estarem ausentes no momento da entrevista seja por incapacidade, como é o caso das crianças e de pessoas em outras situações especiais, essa classificação é feita por outro residente do domicílio. Entretanto, a heteroatribuição é feita por uma pessoa muito próxima daquela a ser classificada, não havendo, portanto, razão para suspeitar que a classificação realizada dessa maneira seja muito diferente daquela que seria autoatribuída. Assim, para todos os efeitos, o critério de classificação utilizado pelo IBGE é o de autoatribuição (OSÓRIO, 2003OSÓRIO, R. G. O sistema classificatório de cor ou raça do IBGE. Brasília: Ipea, 2003. (Texto para discussão, n. 996)., p. 12).
No presente estudo, os pretos e os pardos serão agregados em uma única categoria, a dos negros. Embora não exista tal categoria no sistema de classificação étnico-racial adotado pelo IBGE, a agregação daqueles que se definem como pretos ou pardos em um só grupo – o de negros – tornou-se comum nos estudos produzidos sobre a temática no país. A justificativa principal dessa agregação está assentada em estudos empíricos que mostraram, por meio de uma série de indicadores socioeconômicos, não haver grandes diferenças entre aqueles que se definem como pretos ou pardos (HASENBALG; SILVA; LIMA, 1999HASENBALG, C. A.; SILVA, N. V.; LIMA, M. (ed.). Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999.; GUIMARÃES, 2003GUIMARÃES, A. S. A. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, 2003.).
Na PNAD não é possível acompanhar um determinado indivíduo ao longo do tempo e, portanto, não se pode relacionar eventos ou mudanças na vida de um indivíduo com sua identidade racial. Não é possível saber, por exemplo, se um indivíduo negro que logra uma mobilidade social ascendente tem maior chance de passar a se considerar branco. No entanto, podemos seguir grupos de pessoas. Mais especificamente, podemos identificar grupos de indivíduos de acordo com o ano em que nasceram e seguir uma amostra desse grupo ao longo de todos os anos para os quais temos informação racial na PNAD. Isso se chama análise de pseudocoorte e foi o procedimento usado por Soares (2008) para analisar mudanças na identificação racial no Brasil no período 1992-2007.
A ideia por trás do procedimento é simples. Imagine que estamos considerando os indivíduos nascidos no quinquênio 1946-1950. Dispondo dos dados da PNAD de 1995 a 2015, podemos calcular, ano a ano, a proporção de negros entre os indivíduos nascidos de 1946 a 1950. Na ausência de mudança na identificação racial, tal proporção deveria se manter praticamente constante ao longo do tempo, ou mesmo diminuir, uma vez que a expectativa de vida dos negros é menor do que a dos brancos. Se a proporção de negros aumenta ao longo do tempo é porque indivíduos que se autodeclaravam brancos passaram a se autodeclarar negros.
Para quantificar quão importante é a mudança de identidade racial na alteração da composição racial da população brasileira, Soares (2008, p. 111-112) propõe uma decomposição simples.
Seja Pat a proporção da população total observada em t que pertence à coorte nascida em a. Seja Cnat a porcentagem da coorte nascida em a, com a = {1, 2, ..., k}, que se considera negra no ano t. Então, a porcentagem da população total que se considera negra no ano t é, por definição:
Estabelecendo um dado ano b como base, a porcentagem da população total que se consideraria negra no ano t se a composição racial de cada coorte permanecesse igual à observada em b seria, então:
Com Cnab indicando a porcentagem da coorte nascida em a que se considera negra no ano b.
Foram definidas 20 pseudocoortes: nascidos em 1920 ou antes, de 1921 a 1925, de 1926 a 1930, de 1931 a 1935, de 1936 a 1940, ..., de 1996 a 2000, de 2001 a 2005, de 2006 a 2010 e de 2011 a 2015. Como estamos utilizando os dados da PNAD de 1995 a 2015 e dado o modo como as coortes foram definidas, devemos estabelecer que b pertence ao conjunto {2011; 2012; 2013; 2014; 2015}, pois apenas assim é possível determinar Cnat para todo o período 1995-2015. Por exemplo, se b = 2010, não seria possível determinar a porcentagem da coorte nascida entre 2011 e 2015 que se considerava negra em 2010, pois em 2010 ninguém desta coorte havia nascido ainda, e assim por diante.
Definindo o ano de 2015 como base, a contribuição percentual da mudança na identificação racial para a mudança observada na participação dos negros na população brasileira entre t e 2015 é dada por:
O complemento de Mt,2015 é a parcela da mudança observada na composição racial da população entre t e 2015 associada aos efeitos de fecundidade e à identificação racial ao nascer.
Cabe ressaltar que foram realizadas depurações nas amostras da PNAD. Uma primeira foi a eliminação dos estrangeiros. Estes representavam 0,48% dos residentes no país em 1995 e 0,38% em 2015. Ademais, como até 2003 a PNAD não cobria a área rural da antiga região Norte, a fim de manter a comparabilidade ao longo do tempo, nas edições da PNAD de 2004 a 2015 foram desconsiderados os dados referentes àquela área. Os indivíduos residentes na área rural da antiga região Norte representavam 2,1% do total do país em 2004 e 1,98% em 2015. Cabe também ressaltar que todas as estimativas apresentadas neste trabalho foram feitas ponderando-se cada observação pelo respectivo fator de expansão fornecido pelo IBGE.
Resultados e discussão
No período 1995-2015, observa-se um aumento expressivo da população brasileira. Em 20 anos, o país saltou do patamar de pouco mais de 150 milhões e ultrapassou 200 milhões de habitantes. O Gráfico 1 mostra a evolução da participação percentual dos negros e dos brancos na população brasileira neste período, revelando a grande mudança ocorrida na nossa composição racial, com os negros se tornando maioria. Em 1995, 54,39% dos indivíduos da população brasileira se autodeclaravam brancos, 45,10% negros e a parcela remanescente, 0,51%, indígenas ou amarelos. Em 2015, as proporções referentes aos dois primeiros grupos praticamente se inverteram, com os negros passando a representar 53,52% da população residente do país, os brancos 45,74% e os amarelos e indígenas 0,74%.
O Gráfico 2 mostra, para o período 1995-2015, a evolução da porcentagem de negros nas coortes nascidas nos quinquênios 1941-1945, 1951-1955, 1961-1965, 1971-1975, 1981-1985 e 1991-1995. Na coorte mais velha (1941-1945), estamos considerando indivíduos que tinham de 50 a 54 anos em 1995 e de 70 a 74 anos em 2015 e, na coorte mais nova (1991-1995), aqueles que possuíam de 0 a 4 anos em 1995 e de 20 a 24 anos em 2015.
Evolução da porcentagem da população de negros, segundo coortes de nascimento Brasil – 1995-2015
Note-se que, em geral, quanto mais nova é a coorte, maior tende a ser a participação dos negros nela. Conforme colocado por Soares (2008, p. 109), isso em si não é surpresa, sendo coerente com uma explicação baseada na taxa de fecundidade ou na miscigenação. O que é surpreendente é o fato de a mesma coorte tornar-se mais negra ao longo do tempo. Esse comportamento deve-se à mudança na forma como as próprias pessoas se veem. Na ausência de mudanças na identificação racial, seria esperado que essas porcentagens se mantivessem relativamente constantes, aos níveis observados em 1995, ou ainda uma redução nas mesmas, uma vez que a taxa de mortalidade entre os negros é maior do que entre os brancos. Mas o que se observa é um significativo aumento da porcentagem de negros em todas as coortes.
Soares (2008) analisou esse fenômeno até 2007. No Gráfico 2 podemos observar sua continuidade nos anos subsequentes. Também fica claro, conforme já havia ressaltado Soares (2008), que é a partir dos anos 2000 que o processo de mudança na identificação racial se intensifica. Entre 2001 e 2015, a proporção de negros na coorte 1941-1945 passou de 40,65% para 45,75%, ou seja, a cada ano 0,364 ponto percentual da coorte deixava de se identificar como branca e passava a se identificar como negra. No caso das quatro coortes seguintes, as cifras variaram entre 0,368 e 0,564 ponto percentual ao ano no mesmo período. Em se tratando da coorte 1991-1995, observa-se uma mudança significativa na identificação racial desde 1995. Esta começa 46,93% negra e termina 56,80% negra, isto é, a cada ano cerca de 0,5 ponto percentual da coorte deixava de se identificar como branca e passava a se identificar como negra.
O Gráfico 3 mostra, para o período 1995-2015, a evolução da porcentagem observada e simulada da população negra brasileira. A porcentagem simulada seria aquela que se observaria caso a composição racial da população dentro de cada coorte se mantivesse ao longo de todo o período igual à verificada em 2015. Entre 2001 e 2015, nota-se um aumento de 7,24 pontos percentuais na porcentagem de negros na população brasileira. Na ausência de mudança na identificação racial, esse acréscimo teria sido de apenas 0,659 ponto percentual. Com base na expressão (3), estima-se que 90,9% do aumento observado na porcentagem de negros na população brasileira, entre 2001 e 2015, deve-se à mudança na forma como as pessoas se veem, isto é, à mudança na identificação racial. Os 9,1% remanescentes são atribuídos aos efeitos de fecundidade e identificação racial ao nascer. Considerando o período 1995-2015, o aumento na porcentagem de negros na população brasileira foi de 8,42 pontos percentuais, sendo 81,6% do mesmo devido à mudança na identificação racial. Assim, verifica-se que a rápida mudança observada na composição étnico-racial da população brasileira, a partir dos anos 2000, ocorreu quase que exclusivamente em função da mudança no modo como as próprias pessoas se veem, ficando os elementos de cunho mais estritamente demográficos em segundo plano.
Até este ponto, o que fizemos foi basicamente atualizar e reconstruir, sob alguns aspectos, a análise realizada por Soares (2008). Daqui em diante expandiremos tal análise, investigando a existência de diferenças regionais nesse processo de mudança na identificação racial.
A Tabela 1 mostra a distribuição das populações total, negra e branca residentes, segundo as grandes regiões geográficas do Brasil, em 1995, 2001 e 2015. A forte concentração da população brasileira nas regiões Sudeste e Nordeste está enraizada na dinâmica dos grandes ciclos econômicos experimentados pelo país ao longo de sua história, como os da cana-de-açúcar, do ouro, do algodão e do café (FURTADO, 2007FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), sendo reflexo também do processo de industrialização e de seus efeitos dinamizadores sobre os demais setores da economia da região Sudeste, responsáveis pela atração de caudalosos fluxos migratórios para a mesma, sobretudo no decorrer da segunda metade do século 20 (BAENINGER, 2015BAENINGER, R. Migrações internas no Brasil: tendências para o século XXI. Revista do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense, Florianópolis, v. 4, n. 7, p. 9-22, 2015.).
Distribuição das populações total, negra e branca residentes, segundo as grandes regiões geográficas Brasil – 1995-2015
Em milhões de pessoas
A região Sudeste, a mais populosa do país, concentrava, em 1995, 43,60% da população nacional, cifra um pouco maior do que a observada em 2015 (42,72%). O Nordeste, por sua vez, concentrava, nesses respectivos anos, 29,40% e 28,30% dos brasileiros residentes. Assim, no período 1995-2015, somadas, as populações das duas regiões representavam mais de 70% do total nacional. Seguindo a ordem, o Sul aparece na terceira posição e, assim como nos casos do Sudeste e Nordeste, no período em questão, verifica-se uma redução da sua participação no total nacional, passando de 15,38% em 1995 para 14,55% em 2015. Em contrapartida, as regiões Norte e Centro-Oeste, as menos populosas do país, aumentaram suas participações, passando, respectivamente, de 4,77% para 6,72% e de 6,85% para 7,71%, no mesmo período.
As informações sobre as populações negra e branca são intrigantes e vão ao encontro do que foi discutido sobre o processo de mudança na identificação racial experimentado pelo país a partir dos anos 2000. Em 1995 a população brasileira correspondia a pouco mais de 151 milhões de habitantes, aumentou para cerca de 172 milhões em 2001 e ultrapassou os 200 milhões em 2015. No caso da população negra, esta aumentou de 68,17 milhões em 1995 para 79,6 milhões em 2001 e para 107,06 milhões em 2015. Em se tratando da população branca, em 1995 era de 82,2 milhões, em 2001 havia aumentado para 91,46 milhões e em 2015 chegou a 91,49 milhões. Entre 1995 e 2001 a população negra teve um incremento de 11,41 milhões de pessoas e a branca de 9,26 milhões. Novamente, essa diferença em si não seria surpresa, sendo coerente com uma explicação baseada na taxa de fecundidade ou na identificação racial ao nascer. Entretanto, no período 2001-2015, a população negra aumentou em 27,48 milhões de pessoas e a branca em menos de 300 mil, valor inferior ao observado para amarelos e indígenas, cujo aumento no período foi de cerca de 560 mil. Em termos percentuais, do aumento total de pessoas na população brasileira neste período, cerca de 97,9% corresponde ao incremento da população negra. A única explicação para o que acaba de ser apresentado é que parte das pessoas deixou de se classificar como branca e passou a se classificar como negra.
O Gráfico 4 mostra a evolução do contingente de negros e brancos na população brasileira no período 1995-2015, podendo-se verificar a incrível estabilidade da população branca a partir de 2001 e o substancial e incrivelmente linear crescimento da população negra ao longo de todo o período, a uma taxa média geométrica de 2,28% ao ano.
Esse tipo de comportamento é observado, em maior ou menor grau, em todas as grandes regiões do país. Entre 2001 e 2015, tanto no Norte quanto no Nordeste, a população branca aumentou em cerca de 300 mil pessoas, ao passo que o incremento na população negra foi de 3,18 milhões na primeira e de 6,45 milhões na segunda região. No Sul e Centro--Oeste, o aumento na população branca foi de 800 mil e 750 mil pessoas e, na negra, de 2,56 milhões e 2,53 milhões, respectivamente. No Sudeste a situação se mostrou ainda mais marcante, com aumento de 12,77 milhões de pessoas na população negra e redução de 2,13 milhões na população branca neste período.
Com base nos dados apresentados na Tabela 1, pode-se verificar também que houve aumento na participação relativa dos negros em todas as grandes regiões do país. Entre 2001 e 2015, a participação dos negros elevou-se em 10,37 pontos percentuais no Sudeste, em 6,95 pontos percentuais no Sul, em 4,55 pontos percentuais no Centro-
-Oeste, em 4,52 pontos percentuais no Norte e em 2,81 pontos percentuais no Nordeste. A seguir, com base na metodologia descrita anteriormente, analisaremos em que medida as mudanças na composição étnico-racial das populações das cinco grandes regiões devem-se ao processo de mudança na identificação racial e em que medida esse processo difere entre as mesmas. Antes, porém, cabem alguns comentários.
Na análise para o Brasil como um todo, foi argumentado que, desde meados do século 20, a população brasileira permaneceu relativamente fechada (TELLES, 2003TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Ford, 2003.). Nesse sentido, no período que estamos analisando, a migração internacional não teve praticamente nenhum efeito na determinação ou na mudança de sua composição étnico-racial. Por outro lado, desde a década de 1940, a história do país é marcada por um intenso e ininterrupto movimento da população e, portanto, de negros e brancos, no território nacional. É bem verdade que, de lá para cá, nosso padrão migratório enfrentou diversas mudanças; não se observa mais, como outrora, uma definição clara dos rumos da migração no Brasil. Mas as trocas migratórias inter-regionais continuam em patamares expressivos, sendo os fluxos mais volumosos compostos, agora, de idas-e-vindas, refluxos, reemigrarão, etc. (BAENINGER, 2015BAENINGER, R. Migrações internas no Brasil: tendências para o século XXI. Revista do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense, Florianópolis, v. 4, n. 7, p. 9-22, 2015.; BRITO; RIGOTTI; CAMPOS, 2012BRITO, F. A.; RIGOTTI, J. I.; CAMPOS, J. A mobilidade interestadual da população no Brasil no início do século XXI: mudança no padrão migratório? Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG, 2012. (Texto para discussão, n. 465).).
O que se deve levar em conta é que, além dos fatores já elencados (taxa de fecundidade, identificação racial ao nascer e mudança na identificação racial), a migração inter-regional pode ter contribuído para as mudanças observadas na composição étnico-racial das populações das cinco regiões, bastando para isso que, no período analisado, os fluxos imigratórios e/ou emigratórios envolvendo as regiões tenham uma proporção de negros distinta da observada anteriormente nas mesmas. Assim, se considerarmos a população de uma região como um todo, com base na expressão (3), o que estaremos estimando é a parcela da mudança observada na porcentagem de negros naquela região associada não apenas à mudança na identificação racial, mas também a potenciais efeitos da migração inter-regional.
Além de a análise ser potencialmente afetada pela composição étnico-racial dos fluxos migratórios, torna-se impraticável seguir uma mesma pseudocoorte ao longo do tempo em determinada região. Imagine que estamos interessados em analisar o fenômeno da mudança na identificação racial no Nordeste e que estamos particularmente interessados em acompanhar, no período 1995-2015, a coorte nascida no quinquênio 1971-1975. Neste período, é muito provável que pessoas nascidas de 1971 a 1975 tenham migrado do Nordeste para as demais regiões e\ou que pessoas nascidas no mesmo quinquênio tenham migrado das demais regiões para o Nordeste. Assim, não estaremos acompanhando amostras de um mesmo grupo de pessoas; a cada ano o grupo do qual é retirada a amostra muda parcialmente, em função das trocas migratórias entre as regiões.
Uma forma de atenuar este problema, e talvez a única possível, diante das limitações dos dados, é “devolver” os migrantes para as regiões de onde vieram. A população da região no ano inicial do período analisado não será modificada, mas, no ano final, estaremos considerando a população da região caso não tivesse ocorrido migração naquele período. De toda forma, como veremos, esses migrantes representam uma parcela pequena da população total. Assim, há razão para acreditar que os resultados obtidos por meio desse procedimento refletem relativamente bem o processo de mudança na identificação racial em cada uma das grandes regiões. Note-se que esse processo de “devolver” os migrantes para as regiões de onde vieram não tem qualquer efeito sobre a análise para o país como um todo.
No período 1995-2015, a PNAD coletou, em todas as suas edições, informações sobre migração. As informações básicas investigadas são: unidade da federação de nascimento; unidade da federação de residência atual; unidade da federação de residência anterior; e duração de residência na unidade da federação atual.3 3 Uma vez que dispomos das informações sobre migração para o nível geográfico de unidade da federação, podemos agregá-las para o nível geográfico de grande região. Essa última informação é particularmente importante, pois os únicos migrantes que nos interessa “devolver” às regiões de onde vieram são aqueles que migraram após o início do período que estaremos analisando. A PNAD traz as seguintes informações sobre a duração de residência na unidade da federação atual: menos de um ano; um ano; dois anos; ...; nove anos; dez ou mais anos de residência. A limitação neste caso é que a análise deve compreender um período de no máximo dez anos. Optamos por 2005-2015.
Como visto, em 2015, após as depurações, a população brasileira era de 200,04 milhões de habitantes. Destes, 27,17 milhões eram migrantes inter-regionais, isto é, residiam ou já haviam residido em uma região distinta daquela de residência atual, representando 13,58% da população brasileira naquele ano. No entanto, do contingente total de migrantes, 70,34% moravam na região de residência atual há dez anos ou mais, ou seja, já residiam lá em 2005. Assim, apenas 29,66% do contingente total de migrantes havia migrado a partir de 2005, sendo estes que “devolveremos” às regiões de onde vieram. Trata-se de cerca de 8,06 milhões de indivíduos, que representam 4,03% da população brasileira em 2015. Vamos denominá-los de migrantes recentes.
“Devolver os migrantes às regiões de onde vieram” significa, em termos práticos, “devolvê-los” às regiões em que residiam anteriormente, que não são, necessariamente, as regiões onde nasceram.4 4 O indivíduo que residia na região de nascimento em 2005 e mudou de região entre 2005 e 2015 será “devolvido” para a região em que nasceu. Porém, se em 2005 o indivíduo residia em uma região diferente daquela em que nasceu e, entre 2005 e 2015, migrou novamente de região, podendo inclusive ter retornado para a região de nascimento, ele será “devolvido” para a região em que residia em 2005, pois, para efeito de análise, o que interessa é apenas o movimento migratório ocorrido no período 2005-2015. Estamos admitindo que esses indivíduos residiam naquelas regiões em 2005, ou, em outras palavras, que entre 2005 e 2015 mudaram de região uma única vez.
A Tabela 2 mostra a distribuição regional da população brasileira, em 2005 e 2015. A última coluna da tabela indica a distribuição regional da população brasileira em 2015, após a “devolução” dos migrantes recentes para as regiões de residência anterior. Comparando-se 2005 e 2015, em termos percentuais, não são observadas grandes mudanças na distribuição regional da população neste período. Verifica-se, também, que a distribuição regional da população brasileira em 2015 muda pouco com a realocação regional dos migrantes. Esse resultado já era esperado, dado o pequeno peso dos migrantes recentes na população total. Note-se, ainda, que a realocação não afeta a população total.
Distribuição da população e estimativa dessa distribuição se não tivesse ocorrido migração inter-regional na década, segundo grandes regiões Brasil – 2005-2015
A Tabela 3 apresenta, para 2005 e 2015, a porcentagem de negros na população do Brasil e de suas cinco grandes regiões. De modo análogo, a terceira coluna indica a porcentagem de negros nas populações das respectivas unidades geográficas, em 2015, após a realocação dos migrantes. Observa-se que a realocação dos migrantes tem pouco efeito na composição racial das populações das cinco regiões e, como deveria ser, nenhum efeito quando se considera o total do país.
Participação de negros na população e estimativa dessa participação se não tivesse ocorrido migração na década, segundo grandes regiões Brasil – 2005-2015
Em porcentagem
A última coluna da tabela mostra a variação na porcentagem de negros observada no período 2005-2015, após a realocação dos migrantes. Nas regiões Norte e Nordeste, aumentos na porcentagem de negros foram muito semelhantes, 2,63 e 2,64 pontos percentuais, respectivamente, bem como no Sul (3,75 pontos percentuais) e Centro-Oeste (3,70 pontos percentuais). A maior variação foi observada no Sudeste, 5,49 pontos percentuais. Para o total do país, a porcentagem de negros aumentou 4,45 pontos percentuais entre 2005 e 2015.
A Tabela 4 apresenta os resultados da decomposição da mudança observada na porcentagem de negros, para Brasil e regiões, no período 2005-2015. Na ausência de mudança na identificação racial, neste período, a porcentagem de negros na população brasileira teria aumentado apenas 0,2 ponto percentual, e não 4,45 pontos percentuais, conforme observado. Assim, a mudança na identificação racial responde por 95,6% da mudança total observada neste período.
Decomposição do aumento na porcentagem de negros na população, segundo fatores explicativos Brasil e grandes regiões – 2005-2015
Na ausência deste processo, a participação dos negros teria diminuído, no período, 0,53 ponto percentual, na região Norte, e 0,29 ponto percentual, no Nordeste. Nas regiões Sul e Centro-Oeste, as participações dos negros em 2015 teriam se mantido praticamente nos mesmos níveis observados em 2005. O caso do Sudeste é o que mais se assemelha ao nacional. Nesta região, do aumento total observado na participação dos negros, 95,16% deveram-se à mudança na identificação racial.
Esses resultados indicam que o processo de mudança na identificação racial é geral e explica, quando não todo, quase todo o aumento observado na participação dos negros nas populações do Brasil e de suas grandes regiões.
Por ora, analisamos o efeito da mudança na identificação racial no aumento observado na porcentagem dos negros nas populações do Brasil e de suas cinco grandes regiões. Porém, com uma pequena modificação na metodologia de decomposição, podemos analisar o efeito da mudança na identificação racial sobre o aumento do número de negros em cada uma das unidades geográfica consideradas.
Seja Nat o número de indivíduos na coorte nascida em a no ano t. Seja Cnat a porcentagem da coorte nascida em a, com a = {1, 2, ..., k}, que se considera negra no ano t. Então, o número de indivíduos que se consideram negros no ano t é, por definição:
Estabelecendo um dado ano b como base, o número de indivíduos que se considerariam negros no ano t se a composição racial de cada coorte permanecesse igual à observada em b seria, então:
Adotando novamente o ano de 2015 como base, a contribuição percentual da mudança na identificação racial para a mudança observada no número de negros na população brasileira (ou na população de cada uma das cinco regiões) entre t e 2015 é dada por:
O complemento de Ht,2015 é a parcela da mudança observada no aumento do número de negros na população entre t e 2015 associada aos efeitos de fecundidade e identificação racial ao nascer.
O Gráfico 5 mostra, para o período 1995-2015, a evolução do número observado e simulado de negros na população brasileira. O número simulado seria aquele que se observaria caso a composição racial da população dentro de cada coorte se mantivesse ao longo de todo o período igual à observada em 2015. Neste exercício estamos considerando as mesmas coortes definidas inicialmente. Entre 2001 e 2015, observa-se um aumento de 27,47 milhões de negros na população brasileira. Na ausência de mudança na identificação racial, esse incremento teria sido de 16,15 milhões. Assim, estima-se que, neste período, 11,32 milhões de pessoas deixaram de se classificar como brancas e passaram a se classificar como negras. Com base na expressão (6), estima-se que 41,2% do aumento observado no número de negros na população brasileira, entre 2001 e 2015, deve-se à mudança na forma como as pessoas se veem, isto é, à mudança na identificação racial.
A Tabela 5 apresenta os resultados da decomposição da mudança observada no número de negros, para Brasil e regiões, considerando o período 2005-2015. Nessa década, o número de negros na população brasileira ampliou-se em 18,24 milhões. Na ausência de mudança na identificação racial, esse aumento teria sido de 10,54 milhões. Assim, estima-se que, neste período, 7,7 milhões de pessoas deixaram de se classificar como brancas e passaram a se classificar como negras. Em termos percentuais, 42,2% do aumento do número de negros observados na população brasileira nessa década deve-se à mudança na identificação racial.
Decomposição do aumento no número de negros na população, segundo fatores explicativos Brasil e grandes regiões – 2005-2015
Na região Norte, no mesmo período, o número de negros aumentou em 2,3 milhões, sendo apenas 15% desse aumento (350 mil) atribuído à mudança na identificação racial. No Nordeste o crescimento no número de negros foi de 5,47 milhões, dos quais 1,53 milhão são indivíduos que deixaram de se classificar como brancos e passaram a se classificar como negros, o que representa 27,88% do aumento total. No Sudeste, o número de negros ampliou-se em 7,58 milhões, sendo mais da metade do aumento observado (4,08 milhões ou 53,88%) devido à mudança no modo como as próprias pessoas se veem. No Sul, neste período, cerca de 1 milhão de indivíduos mudaram sua identificação racial, passando a se classificar como negros, o que representa 67% do incremento total no número de negros observado na região. No Centro-Oeste, o número de negros cresceu em 1,41 milhões, sendo 34,72% em função da mudança na identificação racial. Assim, verifica-se que as taxas de reclassificação diferem bastante de região para região, sendo mais fortes nas regiões Sul e Sudeste.
Com base nos dados apresentados na parte superior da Tabela 5, também podemos analisar a distribuição regional dos indivíduos que mudaram sua identificação racial no período 2005-2015. Cabe ressaltar, porém, que, embora a soma dos totais regionais seja igual ao total para o país, o mesmo não se observa quando somamos os cinco valores regionais nas linhas “mudança na identificação” e “fatores demográficos”. Se somarmos os cinco valores regionais na linha “mudança na identificação”, o resultado é 7,432 milhões, um pouco menor do que o observado para o total do país (7,696 milhões). Da mesma forma, se somarmos os cinco valores regionais na linha “fatores demográficos”, o resultado é 10,803 milhões, um pouco maior do que o observado para o total do país (10,54 milhões). Isso está associado ao fato de a composição racial das coortes e, portanto, a composição racial das populações mudarem de região para região. De toda forma, as diferenças são relativamente pequenas. Para efeito de análise da distribuição regional dos indivíduos que mudaram sua identificação racial no período em questão, vamos considerar o total para o país como sendo os 7,432 milhões. Assim, desse total, o Norte representa 4,65%, o Nordeste 20,52%, o Sudeste 54,94%, o Sul 13,32% e o Centro-Oeste 6,57%.
Considerações finais
Este estudo teve como objetivos, primeiro, considerando o nível geográfico de Brasil, atualizar e reconstruir sob alguns aspectos a análise realizada por Soares (2008) e, depois, expandir tal análise, investigando a existência de diferenças regionais no processo de mudança na identificação racial.
Corroborando os resultados apresentados por Soares (2008), nossas análises mostram que a rápida mudança observada na composição étnico-racial da população brasileira, a partir dos anos 2000, foi devida quase que exclusivamente à mudança ocorrida no modo como as próprias pessoas se veem. No período 2001-2015, houve um aumento de 7,24 pontos percentuais na porcentagem de negros na população brasileira, sendo que 90,9% desse aumento deveu-se à mudança na identificação racial.
Considerando o período 2005-2015, nossas análises mostram que esse processo de mudança na identificação racial é geral, explicando, quando não todo, quase todo o aumento observado na porcentagem dos negros em todas as grandes regiões do país. Ademais, no mesmo período, o número de negros na população brasileira aumentou em 18,24 milhões, dos quais 7,7 milhões são pessoas que deixaram de se classificar como brancas e passaram a se classificar como negras. Em termos percentuais, 42,2% do aumento do número de negros observado na população brasileira, entre 2005 e 2015, deve-se à mudança na identificação racial. Regionalmente, verificou-se que as porcentagens variam bastante, sendo mais fortes nas regiões Sul e Sudeste.
Quanto à explicação desse fenômeno, endossamos a posição de Soares (2008), atribuindo grande importância “àqueles que reverberam na sociedade suas reclamações”:
Na medida em que o debate da identificação racial ganha as páginas dos jornais e a sociedade vê que é um tema legítimo; na medida em que negros são apresentados nas telenovelas como personagens poderosos e não apenas empregados domésticos; na medida em que negros são vistos compondo [...] e ocupando os mais diversos cargos na política; na medida em que o Movimento Negro sai da marginalidade e ocupa espaços no debate político, a identidade negra sai fortalecida. [...]. Pode-se dizer que o que está ocorrendo não é que o Brasil esteja tornando-se uma nação de negros, mas, sim, que está se assumindo como tal (SOARES, 2008, p. 116).
Uma série de estudos tem mostrado que, em sua história recente, o Brasil experimentou um processo de desenvolvimento que contribuiu para a melhoria das condições de vida da população negra. Mas até que ponto tal melhoria reflete um fenômeno real e até que ponto os resultados são influenciados por esse processo de mudança na identificação racial? Será que a melhoria das condições de vida daqueles que se declaravam negros em 2001 foi igual à daqueles que se declaravam brancos e passaram a se declarar negros? Ou esse aumento geral observado no nível de vida dos negros deve-se, pelo menos em parte, ao fato de que aqueles que se declaravam brancos e passaram a se declarar negros já gozavam de melhores condições e, ao mudarem sua identidade racial, geraram uma melhoria “artificial” das condições de vida dos negros?
Não estamos negando que houve melhoria das condições de vida dos negros. Sabe-se que a renda está correlacionada com quase tudo considerado fonte de bem-estar nas sociedades contemporâneas. Entre 2003 e 2014, o rendimento médio dos brasileiros cresceu de forma praticamente contínua em todas as grandes regiões do país e, dada a substancial redução da desigualdade da distribuição da renda experimentada pelo Brasil neste período, o crescimento do rendimento das parcelas mais pobres foi substancialmente maior do que o observado para as parcelas mais ricas. Como historicamente os negros representam a maioria entre os pobres, o rendimento dos negros cresceu mais do que o dos brancos (JESUS, 2020JESUS, J. G. Negros em movimento: migração e desigualdade racial no Brasil. 2020. 147f. Tese (Doutorado) – Departamento de Economia, Sociologia e Administração, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2020.), tendo impacto direto sobre a melhoria relativa das condições de vida daquela população. O que estamos argumentando é que qualquer análise intertemporal, a partir dos anos 2000, que envolva autodeclaração de cor ou raça, é potencialmente afetada por esse processo de mudança na identificação.
Notes
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1
Ver Canache et al. (2014)CANACHE, D.; HAYES, M.; MONDAK, J. J.; SELIGSON, M. A. Determinants of perceived skin-color discrimination in Latin America. The Journal of Politics, v. 76, n. 2, p. 506-520, 2014..
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2
Hasenbalg, Silva e Lima (1999), Petrucelli (2002)PETRUCELLI, J. L. A declaração de cor ou raça no Censo 2000: um estudo comparativo. Rio de Janeiro: IBGE, 2002. (Texto para discussão, n. 6)., Osório (2003) e Petrucelli e Saboia (2013)PETRUCELLI, J. L.; SABOIA, A. L. (org.). Características étnico-raciais da população: classificações e identidades. Estudos e análises. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. são ótimas referências sobre esse assunto.
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3
Uma vez que dispomos das informações sobre migração para o nível geográfico de unidade da federação, podemos agregá-las para o nível geográfico de grande região.
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O indivíduo que residia na região de nascimento em 2005 e mudou de região entre 2005 e 2015 será “devolvido” para a região em que nasceu. Porém, se em 2005 o indivíduo residia em uma região diferente daquela em que nasceu e, entre 2005 e 2015, migrou novamente de região, podendo inclusive ter retornado para a região de nascimento, ele será “devolvido” para a região em que residia em 2005, pois, para efeito de análise, o que interessa é apenas o movimento migratório ocorrido no período 2005-2015.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Nov 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
10 Set 2020 -
Aceito
22 Out 2020