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Regime de cuidados no Brasil: uma análise à luz de três tipologias* * Esse artigo é fruto da tese de Luana Passos, defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), que contou com financiamento Capes e Faperj. As autoras agradecem as contribuições dos membros da banca de doutorado, em especial da orientadora da tese Celia Kerstenetzky, os eximindo de qualquer responsabilidade pelos resultados da pesquisa.

Care regime in Brazil: an analysis in the light of three typologies

Régimen de cuidados en Brasil: un análisis a la luz de tres tipologías

Resumo

O objetivo deste artigo é identificar as linhas gerais que caracterizam o regime de cuidados brasileiro. A pesquisa apresenta as tipologias de regimes de cuidados propostas por Esping-Andersen (1999), Leitner (2003) e Saraceno e Keck (2010). A partir do levantamento das políticas de família no Brasil, o artigo enquadra o país nesse referencial. A metodologia utilizada é a análise descritiva de dados. Utilizam-se as projeções populacionais do quantitativo de crianças e idosos do IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o Censo Escolar e o Censo SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Pelas três tipologias analisadas, o Brasil se apresenta como um regime de cuidados que se apoia preferencialmente nas famílias, caracterizando, portanto, um “familismo implícito” ou “familismo por negligência”.

Palavras-chave
Regimes de cuidado; Estado de Bem-Estar; Familismo; Políticas de família; Brasil

Abstract

This article discusses and categorizes the Brazilian care regime. It presents the care-regimes typologies proposed by Esping-Andersen (1999), Leitner (2003), and Saraceno and Keck (2010) for developed countries. Based on the compilation of family policies within the country, our goal is to place Brazil within this typological framework. The methodology used is descriptive data analysis. We use data from IBGE population projections, for children and elderly counts, the PNAD and the National School Census, and the Unified Social Assistance System (SUAS) Census. In all three typologies, Brazil stands as a care regime which leans mainly on families, with a non-robust and non-widespread care policy, thus featuring an “implicit familism” or “familism by default”.

Key words
Care regimes; Welfare State; Familism; Family policies; Brazil

Resumen

El propósito de este artículo es identificar las líneas generales que caracterizan el régimen brasileño de cuidados. La investigación presenta los tipos de regímenes de cuidado propuestos por Esping-Andersen (1999), Leitner (2003) y Saraceno y Keck (2010). A partir del relevamiento de la encuesta de políticas familiares en Brasil, el artículo enmarca al país en este contexto. La metodología utilizada es el análisis descriptivo de datos. Se usan a para ello las proyecciones poblacionales del número de niños y ancianos del IBGE, la PNAD y el Censo Escolar, y el Censo SUAS. Para las tres tipologías analizadas, Brasil se presenta como un régimen de cuidados que se apoya preferentemente en las familias y se caracteriza por tanto como familismo implícito o familismo por negligencia.

Palabras clave
Regímenes de cuidados; Estado de bienestar; Familismo; Políticas familiares; Brasil

Introdução

Graças à força do movimento feminista no questionamento das atribuições socialmente instituídas e às próprias transformações no cenário socioeconômico que impuseram a necessidade de dois provedores financeiros na família, a atuação feminina hoje não mais se restringe à esfera reprodutiva. A maior participação da mulher na atividade produtiva, todavia, não põe fim à assimetria de gênero socialmente construída, uma vez que ainda são resilientes as responsabilidades familiares como competência feminina.

Mudanças sociais − envelhecimento da população, novos arranjos de família e a maior participação feminina no mercado de trabalho − colocam em relevo a importância das atividades reprodutivas, que historicamente estavam invisibilizadas no âmbito doméstico e na função das mulheres. A centralidade do debate das políticas de articulação entre trabalho e família dentro dos Estados de Bem-Estar contemporâneos em muito se assenta no reconhecimento quase que generalizado de uma crise de cuidados, cujos sinais são dados por essas tendências demográficas, econômicas, políticas e da estrutura familiar − mas também pelas demandas por equidade de gênero.

As “soluções” encontradas em diferentes contextos para o problema comum dessa crise se delineiam em diferentes “regimes de cuidados”. O objetivo deste artigo é situar o Brasil nesta questão. Por um lado, busca-se entender a estrutura do regime de cuidados brasileiro, se beneficiando das tipologias presentes na literatura e, por outro, investiga-se, de modo preliminar, a demanda potencial por cuidados no país, com ênfase no infantil e de idosos.

Para tanto, o texto se divide em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. A seguir, são apresentados os regimes de cuidados conforme as tipologias de Esping-Andersen (1999)ESPING-ANDERSEN, G. Social foundations of postindustrial economies. Oxford: Oxford University Press, 1999., Leitner (2003)LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003. e Saraceno e Keck (2010). Posteriormente, é discutida a provisão pública para crianças e idosos no país e classificada à luz das tipologias. Por fim, investiga-se a problemática de cuidados no cenário brasileiro.

Estado de Bem-Estar Social e os regimes de cuidados

A responsabilidade de prover cuidados é distribuída de modo distinto nos Estados de Bem-Estar Social (EBS). Alguns atribuem a responsabilidade primária aos membros da família, outros a delegam ao mercado, outros ainda a supõem como responsabilidade pública, ou adotam uma estratégia mista, distribuindo-a entre Estado, mercado e famílias.

Como amplamente difundido, os critérios para definir os EBS estão ligados à universalização de direitos sociais, estratificação social e combinação entre Estado, mercado e família na provisão de bem-estar. Com base nesses eixos e no estudo histórico da constituição política dos EBS, Esping-Andersen (1990)ESPING-ANDERSEN, G. The three worlds of welfare capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990. identificou três tipos: o liberal, o conservador/corporativo e o social-democrata.

Resumidamente, o regime conservador é marcado pela subsidiariedade do papel do Estado, que atua no sentido de suprir falhas de provisão ocorridas no âmbito das famílias e da comunidade. Por seu turno, no regime liberal, o Estado assume apenas os riscos sociais decorrentes de falhas de mercado, sob a suposição de que o mercado é a principal instituição provedora de bem-estar. Finalmente, no regime social-democrata, o Estado provê universalmente serviços de qualidade e transferências principalmente universais (elevado nível de “desmercantilização”).

A tipologia de EBS de Esping-Andersen (1990)ESPING-ANDERSEN, G. The three worlds of welfare capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990. foi criticada por pensadoras feministas (SAINSBURY; 1999SAINSBURY, D. et al. (ed.). Gender and welfare state regimes. Oxford: Oxford University Press, 1999.; LEWIS, 1997LEWIS, J. Gender and welfare regimes: further thoughts. Social Politics: Internatiional Studies in Gender, State and Society, v. 4, n. 2, p. 160-177, 1997.; ORLOFF, 1996ORLOFF, A. S. Gender and the Welfare State. Annual Review of Sociology, v. 22, p. 51-70, 1996.), em muito pautada na suposição de que a meta de desmercantilização implícita, típica do regime social-democrata, iria de encontro ao anseio de participação das mulheres em igualdade de condições com os homens no mercado de trabalho. Ou seja, as mulheres aspirariam por “mercantilização” – inserção plena no mercado de trabalho − como meio para alcançar a independência econômica. Na leitura feminista, as tipologias clássicas de Estado de Bem-Estar, em especial a de

Esping-Andersen, ao privilegiarem os processos de estratificação social e desmercantilização dos bens e serviços sociais, não concediam a devida atenção às dimensões familiares e de gênero, deixando de fora de suas análises fatores cruciais para a compreensão da evolução e mudança do Welfare State (DRAIBE, 2007DRAIBE, S. Estado de Bem-Estar, desenvolvimento econômico e cidadania: algumas lições da literatura contemporânea. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. (org.). Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.).

Acolhendo as críticas, Esping-Andersen (1999)ESPING-ANDERSEN, G. Social foundations of postindustrial economies. Oxford: Oxford University Press, 1999. introduz um novo eixo em sua análise: o grau de “desfamiliarização”, que corresponde à extensão em que o bem-estar dos indivíduos não estaria vinculado à provisão familiar, isto é, em suas palavras, o grau em que o bem-estar dos indivíduos não estaria dependente de reciprocidades familiares e maritais. O autor distingue a desfamiliarização que se dá por meio de serviços de cuidado públicos daquela decorrente de serviços de cuidado pelo mercado. A desfamiliarização seria o passo antecedente à mercantilização reivindicada pelas feministas. Um sistema de bem-estar pode ser considerado familista quando a família é a principal responsável pelo bem-estar dos seus membros.

A inclusão da dimensão de desfamiliarização na análise dos Estados de Bem-Estar significou a visibilização da dimensão dos cuidados, que sobrecarregam desproporcionalmente as mulheres, na investigação mais geral dos modos de provisão de bem-estar social. Nessa dimensão, países do regime social-democrata se destacam pelas amplas políticas de licença parental, provisão pública de creches, escola em tempo integral e cuidados formais para idosos dentro e fora do lar. Nos países do regime liberal, em contraste, como a desfamiliarização ocorre principalmente pelo mercado, beneficiando os que têm renda para tal, não se assegura igualdade na proteção. Já os países do regime corporativo/conservador configuram um sistema familista, ocorrendo a responsabilização primária da família na provisão de cuidados para crianças e idosos. Grosso modo, esse regime é marcado pelo “homem provedor” e “mulher cuidadora”.1 1 Essa classificação é feita de modo relativo, destacando ênfases mais do que exclusividades. É de se notar que países como Alemanha (especialmente), Holanda e França vêm ampliando o escopo de suas políticas de desfamiliarização nos últimos anos.

Contudo, Leitner (2003)LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003. faz duas observações críticas a respeito da revisão da tipologia feita por Esping-Andersen (1999)ESPING-ANDERSEN, G. Social foundations of postindustrial economies. Oxford: Oxford University Press, 1999.. Em primeiro lugar, a provisão de cuidados pelo mercado torna a desfamiliarização e sua qualidade segmentadas por classes de renda.2 2 Esping-Andersen (2009) identifica a estratificação de bem-estar entre mulheres em diferentes faixas de renda, em sua análise da “revolução incompleta” das mulheres. Em segundo lugar, em países onde prevalece o regime social-democrata, a família segue sendo o principal agente na prestação de cuidados. Esta situação conta com apoio público sob a forma de transferências monetárias às famílias, por exemplo. Portanto, a simples ausência de serviços externos de cuidado, públicos ou privados, não é critério suficiente para definir regimes de bem-estar familistas, devendo-se considerar também a presença de subsídios financeiros para o cuidado no lar.

Segundo Leitner (2003)LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003., a partir da análise de políticas em 15 países membros da União Europeia, identificam-se quatro tipos de familismo nos cuidados infantis: familismo opcional, com ampla disseminação de cuidados formais e pagamentos para cuidar das crianças no seio da família; familismo explícito, com níveis baixos de cuidado formal para as crianças, mas pagamentos transferidos para a família; familismo implícito, com níveis baixos de cuidados formais e sem subsídio financeiro para cuidar das crianças no seio da família; e desfamilismo, com ampla disseminação de cuidado formal, mas ausência de pagamentos no âmbito familiar.

Nessa tipologia, o regime de bem-estar social-democrata é classificado como familismo opcional, pois oferece serviços e subsídios monetários. Bélgica e França, que integram o regime de bem-estar conservador, devido à tradição de oferta de serviços de cuidado infantis e transferências, também classificam-se como familismo opcional. O regime corporativo/conservador comportaria países com familismo explícito (Itália) e familismo implícito (Portugal, Espanha, Grécia). Apenas a Irlanda e o Reino Unido, integrantes do regime liberal, são classificados como desfamilismo (LEITNER, 2003LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003.).

No que se refere ao auxílio à família no cuidado de idosos, Leitner (2003)LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003. sugere a tríade familismo forte, familismo fraco e desfamilismo. Indicativa de forte familismo é a existência de transferências monetárias pagas à família para cuidar dos idosos. O fraco familismo seria caracterizado pela sua ausência. Já o desfamilismo pode ser medido pelo maior percentual de idosos que precisam de cuidados e que os têm por meio de cuidados formais.

Para a autora, Dinamarca, Suécia e Noruega registram um considerável grau de cobertura, de apoio domiciliar e de transferências diretas, para o cuidado de idosos na família, configurando um familismo do tipo opcional. Grécia, Holanda, Portugal e Espanha têm baixo apoio domiciliar e não apresentam subsídios monetários. Itália tampouco fornece quaisquer pagamentos. Esses países, portanto, se encaixariam no familismo implícito quanto aos cuidados a idosos. Nos demais países (Finlândia, Reino Unido, França, Bélgica, Áustria, Irlanda, Alemanha, Luxemburgo e Holanda), a combinação de transferências diretas com baixa cobertura de apoio domiciliar indicaria um familismo explícito no domínio dos cuidados aos idosos (LEITNER, 2003LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003.).

Em termos dos três regimes de bem-estar, o social-democrata é classificado como familismo opcional, em sintonia com o sistema adotado para os cuidados infantis. Similarmente, em paralelo ao já observado no âmbito dos cuidados infantis, o mundo corporativo/conservador é subdividido em familismo explícito (Áustria, Bélgica, França, Alemanha e Luxemburgo) e implícito (Sul da Europa e Holanda). O mundo liberal se subdividiria entre familismo implícito e explícito (LEITNER, 2003LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003.).

Outro prisma sobre os regimes de cuidados é sugerido por Saraceno e Keck (2010). As autoras propõem uma distinção ao longo do eixo familismo-desfamiliarização: familismo por negligência,3 3 A expressão em inglês é familism by default, indicando ausência de políticas públicas. quando são baixos tanto a provisão pública de serviços quanto o apoio financeiro para cuidados; familismo apoiado, quando existe auxílio público, em geral por meio de transferências financeiras; e desfamiliarização, quando ocorre a individualização dos direitos sociais, com redução das dependências e responsabilidades familiares. Na comparação com a tipologia anterior, as duas primeiras formas correspondem aos familismos implícito e explícito, enquanto a terceira englobaria o familismo opcional e o desfamilismo de Leitner, já que a ênfase recai sobre direitos sociais e redução de dependências familiares.4 4 É possível que esta escolha deva-se a uma visão mais restritiva sobre o âmbito da responsabilidade pública no que se refere ao domínio familiar. Enquanto Leitner considera relevante enxergar em que medida a ação pública promove certas concepções de vida boa (por exemplo, a escolha por cuidar), as autoras se limitam a observar em que medida a ação pública externaliza os cuidados, garantindo direitos sociais.

Saraceno e Keck (2010) analisam a distribuição dos países por três dimensões concernentes à provisão de serviços infantis para a faixa etária inferior a três anos e para a subsequente, de 3 a 6 anos (licenças, cobertura ao auxílio infantil, transferências monetárias associadas à presença de crianças). Para cada um destes indicadores, é calculada uma média normalizada, indicando o quanto cada um dos indicadores, que refletem estas dimensões, está abaixo, próximo ou acima da média,5 5 A classificação utilizada pelos autores é feita com base na distribuição relativa dos indicadores escolhidos (para cuidado de crianças ou de idosos) para todos os países analisados. Um país é classificado como baixo, médio ou alto em determinada dimensão do respectivo indicador: “baixo” significa que o valor do país é inferior a 0,5 STD abaixo da média; “médio” significa que o valor do país está entre 0,5 STD abaixo e 0,5 STD acima da média; “alto” significa que a taxa do país é superior a 0,5 STD acima da média. caracterizando a medida de grau de desfamiliarização (baixa, média ou alta).

A partir daí, os autores definem quatro grupos de países. O primeiro (composto pelos escandinavos, Bélgica e França) apresenta acentuado grau de desfamiliarização, por meio de provisão pública de serviços. O segundo grupo (formado pelos países da Europa Central e Oriental) é caracterizado pelo pagamento de longas e generosas licenças parentais, típicas do familismo apoiado. O terceiro grupo registra algum grau de familismo por negligência, com baixo nível de provisão pública de cuidados, especialmente para crianças menores de três anos. Há uma grande heterogeneidade nesse grupo, que inclui países como Grécia, Polônia e Portugal, com baixas taxas de cobertura para crianças abaixo e acima de três anos, e Chipre, Itália, Holanda e Espanha, que têm provisão quase universal de cuidados de crianças a partir dos três anos de idade. O quarto grupo é composto por Áustria, Letônia, Luxemburgo, Eslováquia, Eslovénia e Reino Unido. Esses países possuem cobertura média de provisão pública para cuidados de crianças com idade inferior a três anos e, com exceção da Eslováquia, também apresentam média provisão para crianças entre 3 e 6 anos (SARACENO; KECK, 2010SARACENO, C.; KECK, W. Can we identify intergenerational policy regimes in Europe? European Societies, v. 12, n. 5, p. 675-696, 2010.).

Quanto à provisão de cuidados para idosos, apenas os países nórdicos apresentam elevada cobertura de serviços domiciliares e institucionais. A Dinamarca e a Noruega são outliers no grau de desfamiliarização, seguidos, contudo à grande distância, por Holanda, Suécia, Finlândia, Bélgica e França. Em boa parte da Europa Central e do Leste Europeu, e ainda na Grécia, na Itália e na Espanha, a provisão pública de cuidados para idosos é ínfima, o que denota um elevado grau de familismo por negligência (SARACENO; KECK, 2010SARACENO, C.; KECK, W. Can we identify intergenerational policy regimes in Europe? European Societies, v. 12, n. 5, p. 675-696, 2010.). O Quadro 1 sintetiza as tipologias.

QUADRO 1
Síntese das tipologias

A despeito de semelhanças entre as tipologias, o enquadramento de países nem sempre é idêntico, sobretudo devido à distância temporal entre as mesmas. No intervalo entre uma e outra, países podem ter alterado parte de suas políticas de cuidados. Em todo caso, para efeito deste artigo, interessa principalmente operar essas tipologias como ferramenta auxiliar para elucidar o regime de cuidados brasileiro.

Esse artigo tomou como referência as tipologias aplicadas a países desenvolvidos, pois eram as que apresentavam mais similaridade na abordagem. Mas é importante considerar os aportes da literatura levando em conta a região da América Latina, a qual o Brasil se insere. Como bem aponta Draibe e Riesco (2011DRAIBE, S.; RIESCO, M. Estados de Bem-Estar Social e estratégias de desenvolvimento na América Latina. Um novo desenvolvimentismo em gestação? Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 27, p. 220-254, maio/ago. 2011.), essa região possui condições sociais e econômicas muito heterogêneas, sendo que para o entendimento da emergência e construção do EBS se faz necessário o estabelecimento dos distintos pontos de partida e trajetórias de desenvolvimento que os países adotaram rumo à modernidade.

Considerando a questão dos cuidados, foco deste artigo, a contribuição que se destaca na análise para a América Latina (AL) é a de Franzoni (2007FRANZONI, J. M. Regímenes del bienestar en América Latina. Madrid: Fundación Carolina, 2007. (Documentos de Trabajo, n. 11)., 2008). A autora, no seu artigo de 2007, aponta que na AL se destacam três principais regimes de bem-estar: protecionista, produtivista e familiarista. Nos dois primeiros, o Estado tem um papel de destaque, sendo que, no protecionista, as políticas públicas seguem o enfoque da proteção social vinculada em especial ao trabalho assalariado formal e, no produtivista, a ênfase é na produtividade do trabalho. No terceiro regime, a presença do Estado não é robusta ou praticamente não existe, tendo como centralidade para provisão de bem-estar a esfera doméstica e os acordos familiares. Na análise de países selecionados, a autora classifica como protecionista a Costa Rica e o Uruguai, como produtivista a Argentina e Chile e como familiarista o Equador e a Nicarágua. No trabalho de 2008, Franzoni encontra pela metodologia de cluster a mesma tríade – protecionista, produtivista e familiarista. No cluster produtivista têm-se o Chile e a Argentina. Já no protecionista estão Brasil, Costa Rica, Panamá, México e Uruguai. O familiarista engloba um grupo mais amplo de países: Equador, El Salvador, Guatemala, Colômbia, Venezuela, Peru, República Dominicana, Honduras, Nicarágua, Bolívia e Paraguai.

Provisão de cuidado no Brasil: uma problemática a ser equacionada

Nesta seção, descrevem-se as principais iniciativas públicas brasileiras de cuidados infantis e aos idosos e busca-se enquadrá-las nas tipologias apresentadas na seção anterior, de modo a responder preliminarmente a questão básica de pesquisa: qual o regime de cuidados atualmente existente no país?

A política de cuidados às crianças

Cuidado formal

O reconhecimento da educação infantil como instituição pública teve seu marco na Constituição de 1988. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, definiu-se que a educação infantil deveria ser oferecida em creches, para crianças na faixa etária de 0 a 3 anos, e em pré-escola, para crianças de 4 a 6 anos. Mas foi apenas com a Emenda Constitucional 59/2009 que a educação a partir dos quatro anos passou a ser obrigatória.

Apesar de o acesso à educação infantil ter se intensificado na última década, a frequência de crianças de 0 a 3 anos em creches ainda é baixa, por volta de 26%, quando contrastada com a frequência daquelas de 4 a 6 anos em pré-escola, cerca de 89%, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015. Ainda nesse ano, cerca de 98% das crianças e adolescentes entre 7 e 15 anos frequentavam a escola, enquanto para a faixa etária de 16 a 19 anos este percentual ficou em 63%. O Brasil tem desperdiçado oportunidades socioeconômicas advindas de políticas para a infância. Em muitos casos, o cuidado é exercido pelas mulheres na família, principalmente as mães, havendo, portanto, reflexos negativos importantes sobre a autonomia e independência financeira dessas mulheres.

Importante pontuar que o não acesso a creches e pré-escolas atinge de forma heterogênea a população, sendo influenciado pelo estrato de renda da família. Conforme a PNAD de 2015, a frequência à creche para as crianças cujas famílias encontravam-se no primeiro décimo de renda foi de 15%, enquanto no último décimo correspondeu a 42%. Na pré-escola, esse percentual foi de 86% entre os 10% mais pobres e de 94% entre os 10% mais ricos. Esses dados não apenas confirmam a estratificação do acesso à rede de educação infantil, como também corroboram as experiências diversificadas das mulheres no acesso a políticas de cuidado para seus filhos. As mulheres mais ricas, por terem acesso a creches principalmente privadas para seus filhos, ampliam seu leque de oportunidades profissionais em comparação com aquelas de famílias mais pobres.

De forma ainda pontual, o governo Dilma Rousseff tentou enfrentar essa assimetria, no âmbito do Plano Brasil sem Miséria, por meio da expansão de vagas em creches públicas para crianças cujas famílias fossem beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF). Apesar do ainda tímido acesso − em 2015, apenas 21,6% das crianças do PBF, de 0 a 48 meses, estavam matriculadas em creche −, a taxa de crescimento de matrículas desse grupo de crianças foi da ordem de 191,89%, entre 2011 e 2015.6 6 Informações extraídas do Relatório de Gestão da Senarc. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/acesso_informacao/auditoria/relatorio_gestao_2015/Relatorio%20de%20Gestao%20SENARC.pdf.

A partir de 2016, a tônica da primeira infância no governo Michel Temer foi o Programa Criança Feliz. Instituído pelo Decreto n. 8.869/16, esse programa tem caráter intersetorial, visando ao desenvolvimento integral das crianças na primeira infância, sobretudo via o fortalecimento dos vínculos familiares e do papel de cuidadora da família. A forma pela qual o programa vem sendo operacionalizado – por meio de “visita social” − sinaliza um reforço do familismo, em particular do papel de cuidadora da mãe, em sentido inverso à demanda por desfamiliarização do cuidado que possibilitaria a ampliação de sua participação econômica. O governo Bolsonaro mantém a tônica, com risco evidente de que a expansão das políticas infantis por meio de creches perca espaço na agenda pública.

Convém sublinhar que o gargalo brasileiro não se apresenta apenas na tímida oferta de educação infantil, mas também na jornada escolar. Os dados do Censo Escolar da Educação Básica, de 2013-2017, mostram que prevalece para quase todas as categorias o ensino de tempo parcial, sendo que, com exceção das creches, com cobertura de mais de 50% em tempo integral, os outros níveis educacionais não ultrapassam 30%.

Embora escolas em tempo integral ainda não tenham proeminência no país, desde 2007, com as ações do Programa Mais Educação, há um esforço no sentido de estendê-las para o ensino fundamental. Com foco nas escolas de baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o programa ampliou a jornada nas escolas públicas para, no mínimo, sete horas diárias. No âmbito do Plano Brasil sem Miséria, o empenho foi no sentido da efetivação do ensino integral para a população mais carente. Ampliou-se a oferta de jornada estendida nas escolas públicas onde a maioria dos alunos (mais de 50%) fosse beneficiária do Programa Bolsa Família. Em que pesem essas iniciativas, o alcance ainda não é universal: em 2014, o Mais Educação alcançava 61% das escolas cujos alunos em sua maioria eram beneficiários do Bolsa Família (Gráfico 1).

Figura 1
Progressão de escolas no Programa Mais Educação Brasil – 2011-2017

Licença para o cuidado

A licença-maternidade introduzida no Brasil, em 1943, no âmbito da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), concedeu às mulheres o direito a uma licença plenamente remunerada de três meses, sendo um mês antes do parto e dois meses em seguida a ele. Para os homens, o direito limitava-se à “falta justificada” de um dia no decorrer da primeira semana do nascimento de um filho. A Constituição de 1988 ampliou a licença-maternidade para 120 dias e criou a licença paternidade de cinco dias.

A despeito do ainda limitado período subsidiado, a direção assumida desde 1943 tem sido no sentido da extensão da licença para cuidar. De fato, em 2008, a Lei Federal

n. 11.770 criou o Programa Empresa Cidadã, que confere incentivos fiscais para as empresas estenderem a licença-maternidade por mais 60 dias, totalizando 180 dias de benefício. Quando sancionada a lei, o programa destinava-se apenas à licença-maternidade. Todavia, a Lei n. 13.257 publicada em 8 de março de 2016, que trata das políticas públicas para a primeira infância, acrescentou ao programa a extensão da licença paternidade por mais 15 dias, além dos cinco já previstos no § 1º do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988.

Apesar dos avanços, a licença para cuidar de crianças no Brasil ainda é marcada por três problemáticas principais: a assimetria de gênero, uma vez que é direito/dever quase exclusivo da mulher cuidar do filho;7 7 Não há licença parental que possa ser livremente compartilhada por mães e pais, apenas licença maternidade e poucos dias de licença paternidade. a estratificação do direito à maternidade ou paternidade conforme a inserção no mercado de trabalho, pois a licença contempla apenas as pessoas que contribuem para o Regime Geral de Previdência Social ou Regime Próprio da Previdência Social; e o fato de o direito à licença de 180 dias, para as mães, e de 20 dias, para os pais, ser garantido às trabalhadoras e aos trabalhadores do Regime Próprio, enquanto no Regime Geral é prerrogativa da empresa conceder ou não esses prazos estendidos.

De modo geral, a legislação trabalhista brasileira não reconhece de maneira adequada a necessidade dos trabalhadores em compatibilizar atividades produtivas e reprodutivas. Ainda que a CLT permita ao trabalhador se ausentar do serviço sem perda salarial em eventos específicos (matrimônio, nascimento de filho e morte seja de cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou pessoa sob sua dependência econômica), não é contemplada integralmente a demanda de conciliação entre trabalho e família (MOSER; PRÁ, 2016MOSER, L.; PRÁ, K. R. Os desafios de conciliar trabalho, família e cuidados: evidências do “familismo” nas políticas sociais brasileiras. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 382-392, ago./dez. 2016.).

A Tabela 1 mostra como a licença maternidade não é a realidade para muitas mulheres. Em 2012, por exemplo, foram registrados 2,9 milhões de nascidos vivos, mas apenas 1,2 milhão de salários maternidade foram concedidos. Após seis anos o cenário de desigualdade no acesso ao salário maternidade mudou pouco, mas nota-se uma queda na diferença entre o quantitativo de nascidos vivos e as licenças concedidas. Em 2012, essa diferença era de 1,7 milhão, passando a ser, em 2018, 1,6 milhão. Esses dados são reveladores de que a licença maternidade, devido à marcante presença da informalidade no mercado de trabalho, segue sendo um privilégio para algumas brasileiras.

TABELA 1
Nascidos vivos e salários maternidade concedidos Brasil − 2012-2018

Subsídio ao cuidado

O Brasil conta com um importante programa de transferência de renda, o Bolsa Família, para atender às populações extremamente pobre e pobre com crianças, jovens ou nutrizes. A despeito de insuficiências relatadas na literatura, desde a sua criação, o programa contribui para fortalecer o sistema de proteção social, com extensão do público atendido, do valor do benefício e da interlocução com outras iniciativas. Em 2018, alcançou 13,9 milhões de famílias, com benefício médio de R$ 188,20 e gasto total de R$ 2,6 bilhões.

Embora a finalidade do programa seja o enfrentamento da pobreza, o benefício monetário tem efeitos indiretos sobre os arranjos familiares de cuidados infantis. Passos, Wajnman e Waltenberg (2020), por exemplo, observam que o Programa Bolsa Família (PBF) está associado ao aumento do tempo de trabalho doméstico e de cuidado das mulheres e, em contrapartida, à redução do tempo de trabalho remunerado. Esse fato sinalizaria que o programa funcionaria, a despeito das intenções de seus formuladores, como um subsídio monetário à função de cuidar.

Outra forma indireta de subsídio monetário aos cuidados no Brasil se dá via gastos tributários com os dependentes, articulação ainda pouco investigada no país. A classe média tradicional e os mais ricos recebem subsídio do Estado ao deduzir do Imposto de Renda de Pessoa Física as despesas com bens e serviços de saúde e educação de crianças. Segundo Silveira e Passos (2018SILVEIRA, F.; PASSOS, L. Renúncias fiscais e tributação da riqueza: as capturas pelas elites econômicas e classe média tradicional. In: FAGNANI, E. (org.). A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas. 1. ed. Brasília: Anfip; Fenafisco, 2018. p. 705-738.), esses benefícios fiscais alcançam, em média, valores superiores aos variáveis do PBF: R$ 80,00 mensais o primeiro versus R$ 64,00 o segundo. O estrato mais rico da população contaria com um PBF “escondido” nestas deduções.

Política de cuidados aos idosos

A legislação brasileira, que inclui a Constituição de 1988, o Estatuto do Idoso e a Política Nacional do Idoso, atribui à família a responsabilidade primária pelos cuidados aos idosos e, portanto, ao Estado e às políticas públicas cabe função meramente subsidiária. Não obstante, existem algumas iniciativas públicas de cuidados aos idosos.

Cuidado formal

O Programa Saúde da Família (PSF) é uma iniciativa que visa reorientar a assistência à saúde no país, dando centralidade à atenção básica e seu potencial preventivo e promotor de qualidade de vida.

O PSF poderia ser considerado uma forma auxiliar de atenção ao idoso, já que um dos seus objetivos é a oferta de cuidados dentro do domicílio. No entanto, na prática, ainda é diminuto o atendimento domiciliar, e mesmo o que é ofertado não atende às necessidades dos idosos dependentes, pois não existe regularidade. Segundo Camarano e Mello (2010CAMARANO, A.; MELLO, J. Cuidados de longa duração no Brasil: o arcabouço legal e as ações governamentais. In: CAMARANO, A. (org.). Cuidados de longa duração para a população idosa: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea, 2010.), não há diretrizes específicas para o atendimento ao idoso, seja dentro da família ou institucionalmente. Como mostram Schwartz et al. (2010)SCHWARTZ, T.; BERTULOZO, J.; MACIEL, E.; LIMA, R. Estratégia Saúde da Família: avaliando o acesso ao SUS a partir da percepção dos usuários da Unidade de Saúde de Resistência, na região de São Pedro, no município de Vitória (ES). Ciência & Saúde Coletiva, v.15, n. 4, p. 2145-2154, 2010., as ações do PSF estão prioritariamente direcionadas à saúde materno-infantil. Para Pasinato e Kornis (2009PASINATO, M.; KORNIS, G. Cuidados de longa duração para idosos: um novo risco para os sistemas de seguridade social. Rio de Janeiro: Ipea, 2009. (Texto para Discussão, n. 1371).), o programa deveria ser expandido para oferecer cuidados profissionalizados e apoio aos cuidadores informais familiares.

Uma perspectiva da cobertura genérica desse programa pode ser obtida por meio da Pesquisa Nacional de Saúde. Os dados indicam que apenas 56,8% dos domicílios brasileiros foram atendidos pelo PSF, em 2013. Levando-se em conta exclusivamente os domicílios com ao menos um idoso, a proporção foi levemente superior (58,09%). Em relação ao número de vezes que os domicílios com idosos foram visitados pelo PSF, apenas 47,05% receberam visitas mensalmente nos 12 meses anteriores à pesquisa.

Ainda no âmbito do Ministério da Saúde, as demandas do envelhecimento populacional têm recebido alguma atenção, com a valorização do cuidado domiciliar e a qualificação do cuidador. Em 1999, foi promulgada a Portaria Interministerial n. 5.153, instituindo o Programa Nacional de Cuidadores de Idosos, que visava qualificar cuidadores familiares e institucionais para idosos, sobretudo dependentes. Não obstante, apenas em 2008 foi efetivamente lançado e pouco se sabe a respeito de seu alcance e relevância.

O que se tem de mais institucionalizado para a população idosa são as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) e, ainda que em menor escala, os centros-dia e os centros de convivência e espaços de convívio social nas universidades (GUEDES, 2014GUEDES, G. P. Benefícios econômicos e sociais dos serviços de cuidado aos idosos para o Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado) − Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de Economia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil.).

As ILPIs são entidades governamentais ou não governamentais (filantrópicas ou privadas) destinadas ao domicílio coletivo de pessoas com idade acima de 59 anos, com ou sem apoio familiar. Em 2009, identificaram-se 3.548 ILPIs no Brasil, sendo a maioria (65%) de cunho filantrópico e apenas 5,2% públicas (CAMARANO; MELO, 2010). Essas instituições têm maior presença, por volta de 53%, em municípios de 100 mil ou mais habitantes (CAMARANO; BARBOSA, 2016CAMARANO, A.; BARBOSA, P. Instituições de longa permanência para idosos no Brasil: do que se está falando? In: ALCÂNTARA, A.; CAMARANO, A.; GIACOMIN, K. (org.). Política nacional do idoso: velhas e novas questões. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.). Há, portanto, insuficiência de cobertura e desigual distribuição.

Nos espaços centros-dia são oferecidos serviços de cuidados aos idosos que possuem vínculos familiares − cursos variados, atividades de esporte e lazer, e atenção à saúde −, com o retorno dos idosos às suas casas à noite. Para Camarano e Mello (2010), essa modalidade de serviço é entendida como alternativa mais adequada do que a residência institucional, em se tratando de idosos semidependentes e independentes com laços familiares. Os centros-dia apresentavam, contudo, uma oferta pequena: apenas 1.345 equipamentos em 2016 (Censo SUAS). Já os centros de convivência, que não requerem cuidadores especializados, sendo, portanto, menos custosos, eram mais numerosos, contando com 8 mil unidades em 2016 (Censo SUAS). Eles oferecem atividades diversas que proporcionam vida social com duração de 4 a 8 horas na semana. Os espaços para idosos nas universidades oferecem oficinas variadas (aulas de inglês, português, pilates, natação, etc.).

Subsídio ao cuidado

Em contraste com o sistema formal de serviços de cuidados, a combinação entre benefícios contributivos, semicontributivos e não contributivos coloca o Brasil entre os países da América Latina com o mais elevado grau de proteção social aos idosos (PAIVA et al., 2016PAIVA, A.; MESQUITA, A.; PASSOS, L. O novo regime fiscal e suas implicações para a política de assistência social no Brasil. Brasília: Ipea, 2016. (Nota Técnica Ipea, n. 27).).

Segundo a PNAD 2015, a maioria dos idosos era composta por aposentados ou pensionistas (83%). O país também conta com um benefício assistencial que protege a velhice, assim como pessoas com deficiências, da pobreza extrema: o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O BPC é não contributivo, com status de direito, no valor de um salário mínimo, concedido para 2 milhões de idosos em 2018.

De forma similar ao PBF, o BPC poderia ser considerado um subsídio do Estado ao cuidado no domicílio. Contudo, enquanto o PBF incentivaria o cuidado familiar, o BPC abriria outras possibilidades. Ao ser um benefício individual, o BPC possibilita a compra no mercado privado de serviços de cuidado, mas também a presença de um membro da família nessa função e seu afastamento do mercado de trabalho. Estudo de Paulo, Wajnman e Oliveira (2013PAULO, M.; WAJNMAN, S.; OLIVEIRA, A. A relação entre renda e composição domiciliar dos idosos no Brasil: um estudo sobre o impacto do recebimento do Benefício de Prestação Continuada. Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de Janeiro, v. 30, supl., p. S25-S43, 2013.) estima que o benefício aumenta a probabilidade de idosos viverem sozinhos.8 8 Importante chamar a atenção para a dificuldade de identificar se o BPC favorece a individualização dos idosos e eles morarem sozinhos ou se os idosos que já vivem sós apresentam maiores chances de serem elegíveis, dado o limite de renda domiciliar per capita inferior a um quarto de salário mínimo para recebimento do benefício.

Regime brasileiro de cuidados

Pode-se agora aproximar o Brasil do enquadramento das políticas de cuidados mencionadas nas tipologias apresentadas na segunda seção desse artigo.

Com base em Esping-Andersen (1999)ESPING-ANDERSEN, G. Social foundations of postindustrial economies. Oxford: Oxford University Press, 1999., as políticas de cuidados no Brasil se identificariam com o regime familista, pois a família é o agente principal de provisão de cuidados e bem-estar, como atestado na breve revisão da oferta de cuidados a crianças e idosos. Seja pela oferta pouco disseminada dos serviços de cuidados, seja pela noção propagada de que os dependentes, em especial as crianças, estarão mais bem amparados no seio da família (ARAÚJO; SCALON, 2006ARAÚJO, C.; SCALON, C. Gênero e a distância entre intenção e gesto. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21 n. 62, p. 46-59, 2006.), o cuidado, em boa medida, permanece como uma questão privada, e das mulheres.

Contudo, a classificação de Leitner (2003)LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003. permite a identificação de variantes de familismo, algo especialmente útil para detectar em que medida o familismo é de fato promovido ou simplesmente reforçado. Desse ponto de vista, as políticas brasileiras se destacariam mais por um familismo implícito, uma vez que provêm baixos cuidados institucionais para crianças e idosos e, ao mesmo tempo, são praticamente inexistentes as políticas que subsidiem de modo deliberado o cuidado na família − com exceção, como já mencionado, das licenças maternidade e paternidade. Aventou-se a hipótese de o PBF, as deduções de gastos com dependentes e o BPC serem compreendidos como políticas que, em certa medida, subsidiam a família no apoio às crianças e aos idosos; contudo, não configuram apoio explícito ao cuidado familiar. Portanto, o Brasil estaria mais próximo de um familismo implícito, isto é, apoio público incipiente aos cuidados, dirigindo sua responsabilidade principalmente às famílias.

Nos termos da tipologia de Saraceno e Keck (2010), o Brasil estaria mais próximo do familismo por negligência. O auxílio público para a função de cuidar é baixo. Quanto ao subsídio monetário para apoiar os cuidados, há as licenças maternidade e paternidade, para os primeiros meses ou dias de vida das crianças, respectivamente, além de limitado apoio financeiro para crianças e idosos que, como foi visto, visa diretamente ao alívio da pobreza extrema. O que se tem de forma relativamente mais disseminada, ainda que não universal, são os serviços institucionais para as crianças em creches públicas, pré-escolas e escolas públicas (em tempo parcial e integral) e, para os idosos, as ILPIs, os centros-dia e os centros de convivência. Como a oferta − seja de serviços seja de subsídios financeiros − não é substancial, o familismo por negligência se destaca.

QUADRO 2
Classificação do Brasil nas tipologias de Esping-Andersen (1999)ESPING-ANDERSEN, G. Social foundations of postindustrial economies. Oxford: Oxford University Press, 1999., Leitner (2003)LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003. e Saraceno e Keck (2010)

Pelas três tipologias analisadas, o Brasil se apresenta como um regime de cuidados fortemente apoiado na família. As tipologias permitem qualificar esse familismo como implícito (LEITNER, 2003LEITNER, S. Varieties of familialism: the caring function of the family in comparative perspective. European Societies, v 5, n. 4, p. 353-375, 2003.) ou por negligência (SARACENO; KECK, 2010SARACENO, C.; KECK, W. Can we identify intergenerational policy regimes in Europe? European Societies, v. 12, n. 5, p. 675-696, 2010.). Estes se caracterizam mais pela incipiência (quando não ausência) de políticas para as famílias do que propriamente por um esforço de promoção ativa de um modelo de cuidados familista, característico do familismo explícito ou apoiado dessas autoras. A incompletude do sistema de bem-estar social brasileiro é compensada pela forma tradicional de se resolver problemas de bem-estar, isto é, por estratégias desenhadas no seio das famílias cuja responsabilidade primária é das mulheres.

A associação entre o regime familista (não opcional) e o não compartilhamento equânime entre homens e mulheres da provisão de cuidados nos lares gera uma sobrecarga de trabalho feminino. Nesse sentido, é importante ressalvar o que mostra Welters, Maia e Guimarães (2018WELTERS, A.; MAIA, D. M.; GUIMARAES, R. R. M. O trabalho não-remunerado feminino: um diagnóstico de sua relevância para a economia na América Latina. In: VIII CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN LATINOAMERICANA DE POBLACIÓN. Actas […]. Pueba: Alap, 2018.), que os países latino-americanos se destacam na prevalência de trabalho doméstico não remunerado, sendo esse indicador tanto maior quanto menor for o desenvolvimento econômico do país. Para os autores, o trabalho doméstico não remunerado no cenário latino-americano se faz mais presente nas áreas urbanas e para mulheres acima de 40 anos, para as que têm filhos e para as que possuem menor escolaridade.

Mas cabe sublinhar que, pelo resultado de Franzoni (2008)FRANZONI, J. M. Welfare regimes in Latin America: capturing constellations of markets, families, and policies. Latin American Politics and Society, v. 50, n. 2, p. 67-100, 2008., o Brasil quando contraposto com outros países da AL não é tido como um regime familista. O fato enseja a ponderação de que o regime de bem-estar brasileiro estará mais próximo do familismo ou da desfamiliarização, dependendo da referência utilizada. Observando as propostas tipológicas aplicadas aos países desenvolvidos, parecia muito assertiva a consideração de que o Brasil encontra-se mais próximo de um regime familista, mas os resultados de Franzoni (2008)FRANZONI, J. M. Welfare regimes in Latin America: capturing constellations of markets, families, and policies. Latin American Politics and Society, v. 50, n. 2, p. 67-100, 2008. sugerem outra direção ao contrapor o Brasil a outros países da AL onde a provisão pública é ainda mais restrita.

A crise de cuidados vem por aí...

Nesta seção, são apresentadas algumas projeções populacionais que permitem antever o agravamento da crise de cuidados e a inadequação, nesse cenário, da opção familista brasileira. Embora ainda não tenha ganho centralidade nos debates e na formulação das políticas públicas, a crise de cuidados já começa a dar sinais no Brasil.

Tais sinais são documentados por meio de três movimentos. Em primeiro lugar, parece haver uma tendência de estabilização da oferta privada não remunerada de cuidados, como contrapartida da permanência das taxas atuais de participação feminina no mercado de trabalho.

A literatura mostra que a inserção feminina não tem retorno e impõe algumas questões aos rearranjos de cuidados, sobretudo por serem as mulheres as principais responsáveis por estas atividades, conforme Barbosa (2014)BARBOSA, A. L. Participação feminina na força de trabalho brasileira: evolução e determinantes. In: CAMARANO, A. A. (org.). Novo regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.. Há duas décadas, a taxa de participação econômica das mulheres de 16 anos ou mais não alcança 60%, segundo dados da PNAD de 1995 a 2015. Logo, é possível inferir que, desde 1995, há uma estabilização na taxa de ofertantes potenciais de cuidado nos lares, as mulheres inativas. Contudo, cabe lembrar que as mulheres economicamente ativas são também ofertantes de cuidados. Conforme os dados da PNAD de 2015, essa categoria de mulheres, além das 35 horas médias gastas no mercado de trabalho, dedicaram 21 horas semanais de trabalho doméstico, em que se incluem os cuidados, perfazendo uma jornada total de trabalho de 56 horas semanais, em 2015. Já os homens, embora tenham uma jornada de trabalho remunerado maior, apresentaram, em 2015, uma jornada total de cinco horas a menos do que as mulheres, dada sua menor dedicação aos afazeres domésticos.

O segundo movimento refere-se ao incremento da demanda por cuidados seguindo o envelhecimento populacional. O terceiro movimento está relacionado à queda relativa e absoluta do quantitativo de crianças, acompanhando a redução nas taxas de fecundidade.

Com relação aos dois últimos pontos, a literatura mostra que, nos últimos 50 anos, esteve em curso uma grande transformação demográfica em vários países (TURRA; FERNANDES, 2020TURRA, C. M.; FERNANDES, F. Demographic transition: opportunities and challenges to achieve the Sustainable Development Goals in Latin America and the Caribbean. Project Documents (LC/TS.2020/105). Santiago: Economic Commission for Latin America and the Caribbean (Eclac), 2020.). De acordo com Carvalho e Rodríguez-Wong (2008CARVALHO, J. A. M. de; RODRÍGUEZ-WONG, L. L. A transição da estrutura etária da população brasileira na primeira metade do século XXI. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 597-605, mar. 2008.), a resultante é a mudança etária da população explicada pelo processo de transição demográfica, caracterizado por reduções nas taxas de mortalidade e de fecundidade. A população, em vários países, tenderá a ter um perfil mais envelhecido, com diminuição da participação relativa dos jovens, registrando baixo crescimento populacional ou até decréscimo.

Enquanto nos países desenvolvidos este processo foi mais lento e acompanhado por maior adequação ao novo cenário com mais desenvolvimento econômico, nos países em desenvolvimento, como é o caso dos latino-americanos, a velocidade da transformação não engendrou condições de desenvolvimento sustentável (TURRA; FERNANDES, 2020TURRA, C. M.; FERNANDES, F. Demographic transition: opportunities and challenges to achieve the Sustainable Development Goals in Latin America and the Caribbean. Project Documents (LC/TS.2020/105). Santiago: Economic Commission for Latin America and the Caribbean (Eclac), 2020.). A rápida mudança do padrão demográfico é uma grande transformação da sociedade, em que se alteram, sobretudo, as relações intergeracionais. Como será visto nos dados adiante, a proporção de idosos é crescente, impactando as esferas pública e privada. Por outro lado, a proporção de jovens tende a reduzir ao longo do tempo, impondo desafios e uma maior pressão a esta pequena parcela que será ativa economicamente no futuro, em face do maior contingente de pessoas fora da força de trabalho. A ausência de atenção pública para essas dinâmicas demográficas que implicam rearranjo de forças entre as gerações é preocupante, pois novas ações em termos de políticas sociais, de saúde e de trabalho serão demandadas.

As projeções do envelhecimento populacional realizadas pelo IBGE para o Brasil (Tabela 2) apontam para mais que a duplicação do quantitativo de idosos em 20 anos − com ênfase na evolução do quantitativo dos idosos com 80 anos ou mais.9 9 Uma das formas de também analisar o envelhecimento populacional é entender os componentes da variação da idade média da população. Myrrha, Turra e Wajnman (2017) analisam isto para o Brasil, decompondo a variação da idade média em três componentes: nascimentos, envelhecimento natural da população e efeitos rejuvenescedores dos óbitos. Os autores observam que a fecundidade teve um papel preponderante no aumento da idade média. O envelhecimento demanda, portanto, a conjunção de serviços de cuidado e saúde que sejam capazes de lidar com as múltiplas doenças crônicas e as situações de dependência típicas da idade avançada.

TABELA 2
Projeções populacionais dos idosos, segundo grupos de idade Brasil − 2016-2036

Finalmente, no que concerne ao terceiro movimento, a demanda por cuidados infantis deve diminuir nos próximos 20 anos. As projeções populacionais, mostradas na Tabela 3, apontam para a redução de 9,9 milhões de crianças de 0 a 14 anos. Para a faixa etária que demanda mais cuidados, de 0 a 4 anos, o decréscimo será de 2,8 milhões. Este movimento segue a tendência internacional de menor disposição das mulheres a terem filhos, em parte por conta das difíceis condições de articulação do trabalho com encargos familiares.

TABELA 3
Projeções populacionais de crianças, segundo grupos de idade Brasil − 2016-2036

Considerando, em conjunto, as faixas de 0 a 4 anos e de 80 anos ou mais, para quem a necessidade de apoio é maior, pode-se projetar uma majoração da demanda de cuidados, dado que a elevação do quantitativo de idosos, de 5,4 milhões, deverá suplantar a redução, de 2,8 milhões, no número de crianças. Essa conta simplificada apenas sinaliza que é razoável se esperar um incremento líquido da demanda por cuidados no Brasil no futuro próximo. O aparente alívio da demanda de cuidados devido à redução no quantitativo de crianças é ilusório em face dos cuidados necessários a uma população cada vez mais longeva.

As razões de dependência, mostradas na Tabela 4, confirmam o movimento de redução da dependência juvenil e aumento da de idosos. Em 2016, a razão de dependência jovem era de 30,7%, o que significa que, para cada 100 pessoas em idade ativa, havia, aproximadamente, 31 crianças. Uma década após as estimativas apontam que, para cada 100 pessoas em idade ativa, haverá 27 crianças e, em 2036, serão 24. Já a razão de dependência de idosos caminha em sentido contrário: em 2016, era de quase 12%, ou seja, para cada 100 pessoas em idade ativa, havia 12 idosos; em 2026, as estimativas indicam que, para cada 100 pessoas em idade ativa, haverá 17 idosos, chegando, em 2036, a 24 idosos. Assim, ao longo do tempo, verificam-se queda da razão de dependência jovem e aumento da razão de dependência idosa. As mudanças nas razões de dependência são resultantes do processo de transição demográfica, em que há queda da fecundidade e da mortalidade e aumento da expectativa de vida. Essas alterações na composição da população dependente, com redução da participação das crianças e crescimento da dos idosos nas próximas décadas, impactarão diretamente a demanda por políticas públicas com a tendência de redução da necessidade de creches e escolas e aumento de serviços de cuidados para idosos.

TABELA 4
Razão de dependência Brasil − 2016-2036

Na contramão desse cenário está a programação do gasto social brasileiro para os próximos 20 anos. Além de não priorizar a provisão de cuidados, o futuro é de cortes orçamentários. A partir da promulgação da Emenda Constitucional n. 95, os gastos primários do governo federal estarão congelados, em termos reais, nos valores de 2016, o que interditará maiores investimentos em políticas sociais para lidar com as crescentes demandas de saúde e de cuidado que acompanham o envelhecimento populacional. Diante do financiamento insuficiente do SUS para a promoção do direito universal à saúde (VIEIRA; BENEVIDES, 2016VIEIRA, F. S.; BENEVIDES, R. O direito à saúde no Brasil em tempos de crise econômica, ajuste fiscal e reforma implícita do Estado. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 10, n. 3, p. 1-28, 2016.) e da precariedade das políticas voltadas para a população idosa (BERZINS; GIACOMIN; CAMARANO, 2016BERZINS, M. A. V.; GIACOMIN, K. C.; CAMARANO, A. A. A assistência social na política nacional do idoso. In: ALCÂNTARA, A.; CAMARANO, A.; GIACOMIN, K. (org.). Política nacional do idoso: velhas e novas questões. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.), o cenário que se desenha para o futuro é preocupante. Estimativas revelam perdas bilionárias para as políticas sociais.10 10 Na área da assistência social, por exemplo, Paiva et al. (2016) estimam perda de financiamento da ordem de R$ 868 bilhões, nos 20 anos. Na área da saúde, Vieira e Benevides (2016) projetam que, em cenário com taxa de crescimento real do PIB de 2,0% ao ano, a perda acumulada alcançará R$ 415 bilhões. Confirmando-se essas previsões, a tônica no Brasil será de uma velhice desprotegida.

O cenário em tela, de aumento da demanda por cuidado, prováveis retrocessos nas políticas sociais e estabilidade da participação econômica feminina, sugere que dificilmente as mulheres poderão continuar a ser as responsáveis primárias pela reprodução social. Estando definitivamente no mercado de trabalho, as mulheres encontrarão muitas dificuldades para articular a vida profissional com o cuidado dos membros familiares dependentes, ainda mais nesse contexto no qual muitas lidarão com novas formas de dependência, simultaneamente de filhos e idosos, a chamada “geração sanduíche” (GRUNDY; HENRETTA, 2006GRUNDY, E.; HENRETTA, J. Between elderly parents and adult children: a new look at the intergenerational care provided by the ‘sandwich generation’. Ageing and Society, v. 26, p. 707-721, 2006.; JESUS; WAJNMANN, 2016JESUS, J.; WAJNMANN, S. Geração sanduíche: uma análise em contexto de cossobrevivência e coresidência no Brasil. Revista Latinoamericana de Población, v. 10, n. 18, p. 43-61, 2016.).

Vale sublinhar que a problemática dos cuidados deve ser experimentada de modo distinto pelas mulheres, conforme o imbricamento de vulnerabilidades considerando a classe e a raça. As evidências disso são contundentes na forma distinta com que as assimetrias de gênero alcançam as mulheres. Pensar a questão racial é conceder relevo ao fato de que as mulheres negras têm uma vivência distinta do clássico discurso de opressão feminina (CARNEIRO, 2001CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Lola Press: Revista Feminista Internacional, n. 16, 2001.; DAVIS, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.), com a sobreposição do racismo e sexismo perenizando na consciência cultural coletiva de que o papel dessas mulheres é a servidão a outrem (HOOKS, 1995HOOKS, B. Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 3, n. 2, p. 464-478, 2. sem. 1995.). Assim, as mulheres negras deverão sentir de modo distinto a crise de cuidado que ganha corpo nas sociedades modernas, uma vez que sua maior representação na pobreza e em ocupações laborais precarizadas reforça a tensão entre trabalho e família e a demanda por auxílio do Estado. Pensando na questão de classe, é notório que as mulheres mais bem posicionadas financeiramente suavizam a desigualdade da divisão sexual do trabalho, acessando no mercado os serviços de cuidado. O relaxamento do trade-off entre trabalho e família pode se dar contratando empregadas domésticas ou diaristas, guardando seus filhos em escolas e creches de tempo integral, ou, quando há a necessidade de prover cuidados aos idosos, acessando cuidado domiciliar formal ou casas de repouso privadas. As mulheres de classe média e rica se valem, portanto, de um modelo de delegação no qual se atribuem, em geral, a outras mulheres as atividades domésticas e de cuidado aos filhos (MELO; DI SABBATO, 2011MELO, H. P.; DI SABBATO, A. Divisão sexual do trabalho e pobreza. In: MELO, H. P.; DI SABBATO, A. Autonomia e empoderamento da mulher. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2011. p. 53-76.; BANDEIRA; MELO, 2013BANDEIRA, L.; MELO, H. P. A divisão sexual do trabalho: trabalho doméstico remunerado e a sociabilidade das relações familiares. Gênero, Niterói, v. 13, n. 2, p. 31-48, 1. sem. 2013.; HIRATA, 2015HIRATA, H. Mudanças e permanências nas desigualdades de gênero: divisão sexual do trabalho numa perspectiva comparada. [S.l.]: Friedrich Ebert Stiftung Brasil, 2015. (Análise n.7/2015).) e, no futuro próximo, os cuidados aos idosos. O Brasil é um país que se destaca em termos de delegação, haja vista o alto quantitativo de mulheres que vendem sua força de trabalho no setor de emprego doméstico. Em 2018, pelos dados da PNAD Contínua, por exemplo, 14,5% das mulheres ocupadas estavam no emprego doméstico, enquanto no caso dos homens apenas 1% estava nessa ocupação. O emprego doméstico segue sendo no Brasil uma ocupação marcante, tipicamente feminina e negra: a presença das mulheres negras, em 2018, foi 8,7 pontos percentuais maior do que a das brancas.

Assim, dado que a ação de cuidar garante a reprodução da sociedade, se torna imperativo o debate sobre como solucionar a demanda por cuidados e apoiar os cidadãos no percurso para um melhor equilíbrio entre trabalho e família. Passos e Guedes (2018PASSOS, L.; WAJNMAN, S.; WALTENBERG, F. The Bolsa Família Program: reflections on its role in social protection and gender relations in Brazil. In: SACCHET, T.; MARIANO, S.; CARLOTO, C. M. (org.). Women, gender and conditional cash transfers: interdisciplinary perspectives from studies of Bolsa Família. 1. ed. New York: Routledge, 2020. p. 82-107.) sugerem a formulação de uma Política Nacional de Cuidados, com reflexos diretos sobre as relações de gênero e, de modo geral, sobre aqueles que não têm recursos para viabilizar os cuidados e permanecerem ativos. Esta envolveria ações integradas e intersetoriais de promoção de bem-estar via rede abrangente e articulada de cuidados formais e informais.

Considerações finais

Regimes de cuidado familistas se pautam em um contrato intergeracional que reserva à família, em geral à mulher, a provisão de cuidados. Nesses regimes, os serviços externos de cuidados são incipientes, o que é reforçado por concepções culturais de que crianças e idosos estão mais bem amparados no seio da família. O Brasil é um bom exemplo, uma vez que são pouco expressivas as formas de articulação entre trabalho e família, seja via provisão pública, seja via oferta privada de serviços de cuidados, destacando-se os arranjos informais especialmente para o estrato populacional de baixa renda e os serviços domésticos remunerados principalmente para os estratos de renda mais elevada.

Assim, o acesso limitado a creches e pré-escolas públicas, em especial de ensino em tempo integral, a ausência de cuidados formais domiciliares públicos para idosos, a diminuta oferta de serviços institucionalizados para idosos e a quase ausência de subsídios financeiros de apoio ao cuidado revelam o quanto a provisão de cuidados no Brasil ainda é precária. Neste artigo, foi caracterizado o regime de cuidados brasileiro como “familismo implícito” ou “familismo por negligência”, dado o caráter de reforço, antes que de promoção apoiada, das obrigações familiares.

Em regimes não familistas (ou desfamiliarizadores), por contraste, o Estado, em geral, assume a responsabilidade da provisão de cuidados, seja por meios institucionais, seja por transferências monetárias que facultem às famílias a opção de cuidar dentro do lar, ou ambos. Essas ações ampliam o leque de escolhas das mulheres e podem favorecer sua atuação profissional, por as apoiarem na articulação trabalho-família.

O levantamento das políticas de cuidado feito neste artigo permite inferir que no Brasil existe um regime com traços muito mais robustos de familismo do que de desfamiliarização. Porém, saber em que medida o país está distante da desfamiliarização dos cuidados observada, por exemplo, nos países nórdicos requer mais informações sobre a oferta de cuidado brasileira e a criação de parâmetros objetivos que permitam de modo preciso esse cotejamento. Houve avanços no Brasil em termos de informações sobre cuidado, mas ainda aquém da necessária para essa tarefa. Fica como agenda de pesquisa futura: a criação de métricas que permitam comparar a provisão de cuidados do Brasil com a de outros países, bem como a investigação da continuidade e descontinuidade nos ciclos da política social brasileira que possa afetar os tons do familismo.

Aposta-se que haverá adensamento do familismo no Brasil. Mas, para tanto, o caminho será longo, marcado por resistências e tensões políticas e institucionais. Afinal, o regime de bem-estar brasileiro ainda está em disputa.

  • 1
    Essa classificação é feita de modo relativo, destacando ênfases mais do que exclusividades. É de se notar que países como Alemanha (especialmente), Holanda e França vêm ampliando o escopo de suas políticas de desfamiliarização nos últimos anos.
  • 2
    Esping-Andersen (2009ESPING-ANDERSEN, G. The incomplete revolution: adapting to women’s new roles. Cambridge: Polity Press, 2009.) identifica a estratificação de bem-estar entre mulheres em diferentes faixas de renda, em sua análise da “revolução incompleta” das mulheres.
  • 3
    A expressão em inglês é familism by default, indicando ausência de políticas públicas.
  • 4
    É possível que esta escolha deva-se a uma visão mais restritiva sobre o âmbito da responsabilidade pública no que se refere ao domínio familiar. Enquanto Leitner considera relevante enxergar em que medida a ação pública promove certas concepções de vida boa (por exemplo, a escolha por cuidar), as autoras se limitam a observar em que medida a ação pública externaliza os cuidados, garantindo direitos sociais.
  • 5
    A classificação utilizada pelos autores é feita com base na distribuição relativa dos indicadores escolhidos (para cuidado de crianças ou de idosos) para todos os países analisados. Um país é classificado como baixo, médio ou alto em determinada dimensão do respectivo indicador: “baixo” significa que o valor do país é inferior a 0,5 STD abaixo da média; “médio” significa que o valor do país está entre 0,5 STD abaixo e 0,5 STD acima da média; “alto” significa que a taxa do país é superior a 0,5 STD acima da média.
  • 6
    Informações extraídas do Relatório de Gestão da Senarc. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/acesso_informacao/auditoria/relatorio_gestao_2015/Relatorio%20de%20Gestao%20SENARC.pdf.
  • 7
    Não há licença parental que possa ser livremente compartilhada por mães e pais, apenas licença maternidade e poucos dias de licença paternidade.
  • 8
    Importante chamar a atenção para a dificuldade de identificar se o BPC favorece a individualização dos idosos e eles morarem sozinhos ou se os idosos que já vivem sós apresentam maiores chances de serem elegíveis, dado o limite de renda domiciliar per capita inferior a um quarto de salário mínimo para recebimento do benefício.
  • 9
    Uma das formas de também analisar o envelhecimento populacional é entender os componentes da variação da idade média da população. Myrrha, Turra e Wajnman (2017MYRRHA, L. J. D.; TURRA, C. M.; WAJNMAN, S. Contribuição dos nascimentos e óbitos para o envelhecimento populacional no Brasil: 1950 a 2100. Revista Latinoamericana de Población, v. 11, n. 20, p. 37-54, 2017.) analisam isto para o Brasil, decompondo a variação da idade média em três componentes: nascimentos, envelhecimento natural da população e efeitos rejuvenescedores dos óbitos. Os autores observam que a fecundidade teve um papel preponderante no aumento da idade média.
  • 10
    Na área da assistência social, por exemplo, Paiva et al. (2016) estimam perda de financiamento da ordem de R$ 868 bilhões, nos 20 anos. Na área da saúde, Vieira e Benevides (2016) projetam que, em cenário com taxa de crescimento real do PIB de 2,0% ao ano, a perda acumulada alcançará R$ 415 bilhões.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2020
  • Aceito
    23 Jun 2021
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