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OIKONOMIA PENTECOSTAL reflexões teológico-econômicas sobre religião e neoliberalismo

PENTECOSTAL OIKONOMIA: THEO-ECONOMIC REFLECTIONS ON RELIGION AND NEOLIBERALISM

OIKONOMIA PENTECOTISTE: REFLEXIONS THEOLOGICO-ECONOMIQUES SUR LA RELIGION ET LE NEOLIBERALISME

Resumo

O artigo revisita debates recentes sobre a teologia econômica e explora a produtividade analítica deste conceito para se pensar a relação contemporânea entre o neopentecostalismo e o neoliberalismo. Toma como referência etnográfica as redes de discipulado da denominação ganense Lighthouse Chapel International e seu projeto apostólico bem sucedido de replicação transnacional em filiais. A teologia econômica desta organização é abordada através das ressonâncias entre modos cristãos de governo e subjetivação e dispositivos da racionalidade neoliberal, como capital humano, trabalho imaterial e afetivo e habilidades de administração de emoções.

Palavras-chave:
Teologia econômica; Neopentecostalismo; Neoliberalismo; Gana

Abstract

This article reviews recent debates on economic theology and explores the analytical productivity of this concept to reflect on the contemporary relationship between neo-Pentecostalism and neo-liberalism takes as an ethnographic reference the discipleship networks of the Ghanaian denomination Lighthouse Chapel International and its successful apostolic project of transnational replication in branches. The economic theology of this organization is approached through the resonances between Christian methods of government and neoliberal rationality subjectivity and devices, such as human capital, immaterial and affective work and emotion management skills.

Keywords:
Economic theology; neopentecostalism; neoliberalism; Ghana

Résumé

L’article passe en revue les récents débats autour de la théologie économique et souligne le potentiel analytique de ce concept pour réfléchir sur les relations contemporaines entre le néopentecôtisme et le néolibéralisme. Sur le plan ethnographique, il s’inspire des réseaux de disciples de la dénomination ghanéenne Lighthouse Chapel International et de son projet apostolique réussi d’implantation transnationale de filiales. La théologie économique de cette organisation est abordée à travers les rapports entre, d’une part, les méthodes chrétiennes de gouvernement et de subjectivation et, d’autre part, les dispositifs de la rationalité néolibérale tels que le capital humain, le travail immatériel et affectif et les compétences de gestion des émotions.

Mots-clés:
théologie économique; néopentecôtisme; néolibéralisme; Ghana

Introdução

Um dos efeitos mais salutares do campo de estudos crítico e interdisciplinar sobre a religião, o secular e o secularismo, que emerge com grande força nos anos 2000 (Connolly 1999CONNOLLY, William (1999), Why I Am Not a Secularist. Mineápolis: University of Minnesota Press. e Asad, 2003ASAD, Talal. (2003), Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford University Press.), tem sido o deslocamento de modos convencionais de se conceber a relação entre religião e política. Conceitos hoje popularizados, como os de “política da devoção” (Mahmood 2005MAHMOOD, Saba. (2005), Politics of piety: the Islamic revival and the feminist subject. Princeton University Press.), “teologia política” (Newman, 2018NEWMAN, Saul. (2018), Political theology: A critical introduction. Hoboken: John Wiley & Sons.), “teopolítica” (Marshall, 2014MARSHALL, Ruth. (2014), “Christianity, anthropology, politics”. Current Anthropology, 55(S9), pp. 344-356.) ou “espiritualidades políticas” (Marshall, 2009MARSHALL, Ruth. (2009), Political spiritualities: the Pentecostal revolution in Nigeria. Chicago: University of Chicago Press.; Ghamari-Tabrizi, 2016GHAMARI-TABRIZI, Behrooz. (2016), Foucault in Iran: Islamic Revolution and the Enlightenment. Mineápolis: University of Minnesota Press.) visam promover investigações sobre este tema que evitem definições a priori de religião e política enquanto domínios ontológicos distintos que se articulam ou entrelaçam eventualmente. Elas têm resgatado aspectos éticos e afetivos que costumam ser recalcados pela noção secular circunscrita de política; recuperado o substrato teológico (geralmente cristão) daquilo que Lefort (1991)LEFORT, Claude. (1991), “Permanência do teológico-político?”. In: Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. chama de “o político” na modernidade secular, a despeito de sua autoimagem de neutralidade; e se esforçado para pensar o poder e seus componentes – soberania, autoridade, agência, corpo, representação – a partir do interior das tradições religiosas, complementando, portanto, estudos mais convencionais, preocupados com a relação entre grupos religiosos e movimentos sociais ou partidos políticos.

Neste artigo, gostaria de realizar uma reflexão formalmente similar, mas substancialmente distinta, focada na relação entre a religião e o econômico. Talvez ainda mais do que a política, a economia tende a ser vista, sob uma ótica liberal secular, como um contraponto absoluto à religião, seja em sua versão iluminista, que enfatiza a crença em seres sobrenaturais, seja em sua versão romântica, que enfatiza a singularidade da experiência religiosa e da linguagem simbólica (Asad, 1993ASAD, Talal. (1993), Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity and Islam. Baltimore: Johns Hopkins University Press.; Masuzawa, 2005MASUZAWA, Tomoko (2005), The invention of world religions; or, How European universalism was preserved in the language of pluralism. Chicago: University of Chicago Press.). Religião e economia são, assim, acomodadas em cadeias de oposições absolutas, como aquelas entre valores últimos e valores monetários, imaterialidade e materialidade, significação e consumo, convicção e utilidade etc. Essas redes de oposição são resilientes e tendem a prevalecer mesmo quando fortemente contrariadas pela chamada “religião vivida”. Os antropólogos sabem que, em uma escala etnográfica, as preocupações econômicas são parte inerente de toda e qualquer tradição religiosa; mas, ainda assim, não conseguimos evitar o sentimento de surpresa e, eventualmente, a impressão de má fé suscitados por dados recentes (Grim e Grim 2016GRIM, Brian e GRIM, Melissa Grim. (2016), “The socio-economic contributions of religion to American society: an empirical analysis”. Interdisciplinary Journal of Research on Religion, 12 (3), pp. 1-31.), que demonstram que, quando agregadas, as rendas de todas as instituições e negócios religiosos nos EUA contribuem para o PIB local com 1.3 trilhões de dólares anuais, mais do que Google, Apple e Amazon combinadas.

Naturalmente, as ciências sociais e as humanidades têm, há algum tempo, pelo menos demonstrado a origem recente de tal oposição radical, fruto não apenas da construção secular da categoria universal de religião (Asad, 1993ASAD, Talal. (1993), Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity and Islam. Baltimore: Johns Hopkins University Press.), mas também do que Polanyi (1980)POLANYI, Karl. (1980), A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus. chamou de “a grande transformação” e do estabelecimento dos economistas clássicos e neoclássicos como oráculos e arautos de um mercado ontologizado e autonomizado. François Simiand (2018)SIMIAND, François. (2018), Moeda: realidade social. São Paulo: Edusp. já argumentara sobre as origens religiosas da moeda enquanto materialização social da confiança e do valor, problematizando a associação próxima entre a economia e o profano na tese durkheimiana. A reflexão de Max Weber (2004)WEBER, Max. (2004), A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras. sobre protestantismo e capitalismo se debruça justamente sobre os componentes éticos da grande transformação, e demonstra o intenso trabalho ético-religioso que, paradoxalmente, funda o utilitarismo e a chamada lógica de mercado como mecanismos sistêmicos.

No entanto, mesmo após a grande transformação, podemos dizer que vínculos genealógicos entre religião e economia persistem nas sombras da noção sanitizada de religião que o senso comum secularista promove, assim como por seu complemento, a tese de que a “mercantilização da religião” seria um atributo singular da modernidade. Esse tem sido o projeto de pesquisa de autores como Giorgio Agamben (2011)AGAMBEN, Giorgio. (2011), O Reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. São Paulo: Boitempo., Dotan Leshem (2016)LESHEM, Dotan. (2016), The Origins of Neoliberalism: Modelling the Economy from Jesus to Foucault. Nova York: Columbia University Press., Devin Singh (2018)SINGH, Devin. (2018), Divine Currency: The Theological Power of Money in the West. Stanford University Press. e outros em torno da teologia econômica, que têm como objetivo escavar a genealogia cristã da economia enquanto um espaço autofundado de realização humana. Meu objetivo neste artigo não é contribuir para tal empreitada, mas refletir sobre algumas virtudes analíticas do conceito de teologia econômica para o debate recente sobre a relação entre o neoliberalismo e o neopentecostalismo, que abordarei a partir do meu trabalho de pesquisa etnográfico com uma denominação transnacional originada em Gana.

No que segue, apresento uma síntese dos debates recentes em torno da economia teológica e defendo a sua produtividade analítica para se entender de maneira não redutiva a relação entre pentecostalismo e neoliberalismo. Tomo como base etnográfica as redes de discipulado da Lighthouse Chapel International e seu projeto apostólico bem sucedido de replicação transnacional em filiais. Sua teologia econômica é abordada pelas ressonâncias (Connoly, 2008) entre modos cristãos de organização, governo e subjetivação e dispositivos da racionalidade neoliberal, como capital humano (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. (2008), Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.), trabalho imaterial e afetivo (Hardt, 1999HARDT, Michael. (1999), “Affective Labor”. Boundary 2, 26, n. 2, pp. 89-100.) e habilidades de administração de emoções (Hochschild, 2013HOCHSCHILD, Arlie Russell. (2013), So How’s the Family? and Other Essays. Berkeley: University of California Press.). Concluo destacando as contribuições desta abordagem para debates recentes sobre ética e organização religiosa, e comparando-a com perspectivas dominantes sobre a relação entre neopentecostalismo e neoliberalismo.

Da teologia política à teologia econômica

O objeto primário de atenção dos estudiosos da teologia econômica tem sido os usos cristãos antigos do conceito grego de oikonomia e suas metamorfoses históricas. Em O Reino e a glória, Giorgio Agamben (2011)AGAMBEN, Giorgio. (2011), O Reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. São Paulo: Boitempo. se debruça sobre a oikonomia divina enquanto ancestral religioso da economia política secular. Seu estudo oferece um complemento e um contraponto à tradicional análise dos diversos motivos teopolíticos cristãos e suas transformações e adaptações seculares. Os mais influentes entre estes seriam os trabalhos de Carl Schmitt (1996)SCHMITT, Carl. (1996), Teologia política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. São Paulo: Scritta. sobre a analogia estrutural entre o milagre e a soberania, de Kantorovicz (1998) sobre a teopolítica medieval dos corpos visíveis e invisíveis do Cristo, e de Foucault (1990)FOUCAULT, Michel. 1990. “Omnes et Singulatim: para uma crítica da razão política”. Novos Estudos CEBRAP, 26, pp. 77-99. sobre o motivo teopolítico do pastorado. Desbravando um caminho alternativo, Agamben destaca como Paulo, o apóstolo, usa de modo extensivo o conceito grego de oikonomia em suas cartas com a finalidade de conceber e regular as comunidades cristãs originárias, argumentando que “oikonomia é a missão (...) que foi confiada a Paulo por Deus; por isso Paulo não age livremente, como um negotiorum gestio [gestor de negócios], mas segundo um vínculo fiduciário (pistis) como apostolos (‘enviado’) e oikonomos (‘administrador encarregado’)” (36).

Agamben destaca a persistente sinonímia entre crença, ou fé (pistis), e crédito no cristianismo primitivo, notável de maneira ainda explícita na raiz latina do termo que utilizamos: credere. Interessa-se principalmente pelo fato de Paulo privilegiar o modelo da oikonomia, associado à administração das pessoas e bens que constituem a casa, em detrimento do modelo político da polis, algo que atestaria um momento histórico de dissociação entre as comunidades cristãs e a sociedade política romana. Ao projetar a promessa divina como uma promessa de administração doméstica, Paulo também realiza uma extensão analógica pioneira do termo, tendo sido o primeiro a atribuir uma orientação transcendente à expressão oikonomia, que operaria como uma espécie de ancestral da “mão invisível” do liberalismo. Essa tendência se amplia na era patrística, momento de crescente acomodação entre Igreja e sociedade política, na concepção do próprio Deus trinitário como uma oikonomia (Mondzain, 2005MONDZAIN, Marie-José. (2005), Image, Icon, Economy. The Byzantine Origins of the Contemporary Imaginary. Stanford University Press.). O termo passa, assim, a englobar tanto a relação entre a vontade providencial de Deus e a criação (o que poderíamos chamar de economia da salvação) quanto a própria ontologia de um Deus uno e múltiplo, transcendente e imanente, uma economia intra-divina, geradora de “dispositivos” eclesiásticos encarnados.

Ao demonstrar que o cristianismo nasce como uma teologia econômica, e não como uma economia política, Agamben projeta os cristãos como “os primeiros homens integralmente econômicos” (2011, p. 38), e argumenta que a oikonomia cristã estaria na raiz do processo histórico – desde então imparável – de expansão biopolítica do governo e da economia para cada aspecto da vida social. Enquanto a teologia política “funda a transcendência do poder soberano em um Deus uno” (p. 65), derivando a teoria política da soberania, assim como na tese de Carl Schmitt, a genealogia teológica da economia estaria na base do milagre do governo (Foucault 1995FOUCAULT, Michel. (1995), “O sujeito e o poder”. In: H. Dreyfus & P. Rabinow, Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.). Assim, a oikonomia

torna possível uma conciliação em que um Deus transcendente, ao mesmo tempo uno e trino, pode – continuando a ser transcendente – encarregar-se do cuidado do mundo e fundar uma práxis imanente de governo cujo mistério supramundano coincide com a história da humanidade (Agamben, 2011AGAMBEN, Giorgio. (2011), O Reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. São Paulo: Boitempo., p. 65).

Em The Origins of Neoliberalism, David Leshem (2016)LESHEM, Dotan. (2016), The Origins of Neoliberalism: Modelling the Economy from Jesus to Foucault. Nova York: Columbia University Press. destaca como a apropriação cristã da oikonomia introduzir um vetor escatológico que rompe com a natureza cíclica característica do conceito grego, que visava sobretudo o equilíbrio, e não o crescimento. Esse fato incita o imaginário patrístico a conceber uma economia da superabundância da graça sustentando o crescimento infinito da Igreja, a ocupação organizacional do mundo pela oikonomia. Assim como Leshem, Devin Singh (2018)SINGH, Devin. (2018), Divine Currency: The Theological Power of Money in the West. Stanford University Press., em Divine Currency, explora de maneira mais concreta que Agamben os entrelaçamentos práticos entre teologia, eclesiologia e império, por exemplo entre monoteísmo, monarquia imperial e monetização. A soberania imperial romana garantia a estabilidade do valor de sua moeda em amplos territórios, e a extensão da taxação, enquanto legitimava-se na unidade metafísica plural da oikonomia cristã. Essa operação de estabilização do valor monetário e da pistis – entendida como fé, confiança e crédito – encontra uma síntese material nas moedas inscritas com a face do imperador e de Cristo.

Singh ilustra à exaustão a retórica economicista da teologia patrística, na qual o Deus pai aparece como um “economista divino” e Jesus como um “pagamento cósmico”, uma “moeda” divina, e um “administrador” encarnado de seus ativos transcendentes. Gregório de Niassa define o próprio trabalho pastoral transferido por Jesus à Igreja como “uma economia das almas” (oikonomia psychon) (Singh 2018SINGH, Devin. (2018), Divine Currency: The Theological Power of Money in the West. Stanford University Press., p. 60), fundamentando assim a emergência de um vasto aparato eclesiástico de caridade. Refletindo sobre a linguagem amplamente econômica utilizada por João Crisóstomos em seu tratado sobre o pastorado, que postula Cristo e a própria criação como dispêndios originários que inauguram uma economia da graça e da caridade, Marie-José Mondzain argumenta que

todas as despesas sagradas, todas as despesas divinas, são metódicas, propositais, justificadas, balanceadas por lucros materiais, assim como por benefícios espirituais. Essa é uma forma de contabilidade muito ordenada, cujo princípio é a otimização de investimentos tendo em vista um resultado particular. (Mondzain, 2005, p. 63)

O debate sobre a economia teológica é obviamente muito mais longo e complexo. Sua genealogia, ainda incipiente, teria que incluir inovações medievais – a economia das cruzadas, do culto aos santos, dos monastérios e das indulgências –, assim como diversas manifestações modernas, tanto calvinistas quanto arminianas. Amanda Porterfield (2018)PORTERFIELD, Amanda. (2018), Corporate Spirit: Religion and the Rise of the Modern Corporation. Oxford University Press., em Corporate Spirit, começa a escavar essas conexões, e demonstra que a Igreja, e não as companhias imperiais, teria sido a primeira e mais modelar manifestação das corporações econômicas no Ocidente, a base organizacional para as empresas incorporadas seculares – essas pessoas jurídicas distribuídas geograficamente e encabeçadas por acionistas, sem proprietário discernível. Em diálogo com o ensaio incompleto de Walter Benjamin sobre o capitalismo como religião (Benjamin, 2013BENJAMIN, Walter. (2013), O capitalismo como religião. Michael Löwy (org), Nélio Schneider (trad). São Paulo: Boitempo.), Agamben (2016)AGAMBEN, Giorgio. (2016). “Capitalism as Religion”. In: D. McLoughlin (org.), Agamben and Radical Politics, Edinburgh University Press, pp. 15-26. explora as equivalências entre a perda do lastro do dólar, nos anos 1970, e a Reforma protestante, projetando o capitalismo financeiro nascente como inteiramente sola fide, ou “crédito apenas”.

Apesar de bem menos desenvolvido que o campo da teologia política (Newman, 2018NEWMAN, Saul. (2018), Political theology: A critical introduction. Hoboken: John Wiley & Sons.), a economia teológica é certamente promissora como uma nova alternativa para se pensar a história do presente, assim como a relação entre cristianismo e capitalismo, de modo mais nuançado que a tese da mercantilização da religião. Como antropólogo, meu interesse por este tema é bem mais humilde. Meu objetivo é destacar o valor analítico de conceitos como teologia econômica ou oikonomia cristã para lidar com dilemas etnográficos que muitos de nós temos encontrado em campo ao fazer pesquisas envolvendo a religião em um contexto pós-guerra fria, no qual o capitalismo transformou-se em um horizonte temporal unívoco e um ambiente ubíquo para a vida social. Será que poderíamos, como antropólogos do cristianismo, ou da religião de maneira geral, fazer uso analítico do conceito de teologia econômica? Se uma operação similar foi realizada de maneira frutífera com o conceito de teologia política, não vejo porque não.

O conceito de oikonomia cristã nos estimula a pensar a economia a partir de uma matriz teológica e seus modos de distribuição da graça e da crença, a última entendida como uma expressão física e moral da confiança e do crédito. Diferentemente de outras noções disponíveis – como as de economia política, simbólica (Bourdieu, 1987BOURDIEU, Pierre. (1987), A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.) e moral (Fassin, 2019FASSIN, Didier. (2019), “As economias morais revisitadas”. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção,18(53), pp.27-54.) –, a economia teológica reserva um local não redutível para se pensar o lugar de Deus na economia das organizações religiosas. Além disso, a economia teológica nos permite ir além da relação entre cristianismo e mercado, e focar em modos cristãos de governo de recursos – pessoas e bens – sob uma ótica imanente a essa tradição discursiva. Tentarei demonstrar as virtudes desta abordagem ao analisar alguns componentes da economia teológica de uma denominação transnacional originada em Gana, país do Oeste africano, na qual tenho feito pesquisa desde 2010 (Reinhardt, 2014REINHARDT, Bruno. (2014), “Soaking in Tapes: The Haptic Voice of Global Pentecostal Pedagogy in Ghana”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 20(2), pp. 315-36., 2016REINHARDT, Bruno (2016), “De epifania a método: a teopolítica do testemunho em um seminário pentecostal em Gana”. Religião & Sociedade, 36(2), pp. 44-70, 2017REINHARDT, Bruno. (2017), “The Pedagogies of Preaching: Skill, Performance, and Charisma in a Pentecostal Bible School from Ghana”. Journal of Religion in Africa, 47, pp. 72-107., 2018REINHARDT, Bruno. (2018), “Discipline (and Lenience) Beyond the Self: Discipleship in a Pentecostal-Charismatic Organization”. Social Analysis: The International Journal of Anthropology, 62(3), pp. 42-66.).

Oikonomia pentecostal

Gostaria neste momento de fazer um grande salto no tempo e no espaço e destacar uma passagem de um dos livros sobre administração de igreja escritos pelo bispo Dag Heward-Mills, fundador da denominação Lighthouse Chapel International, chamada no Brasil e em outros países lusófonos de Igreja Internacional Capela do Farol. Tive acesso a essa pequena síntese de economia teológica pentecostal pela primeira vez durante uma das aulas que assisti no seminário desta organização em Acra. Nesta passagem, Heward-Mills narra um curioso encontro com Deus, uma visão carismática íntima, mas programática, permeada pelo cálculo e pela graça, e que, apesar de chocante, não me parece tão divergente das narrativas cristãs antigas revisitadas aqui.

Deus me instruiu a industrializar minha igreja. Ele me mostrou como a nossa nação, naqueles tempos, estava apenas importando bens de países Ocidentais e os revendendo por lucro. “Não há futuro nisso”, o Senhor disse. “Você já notou que as nações mais ricas do mundo estão todas envolvidas com a produção de produtos importantes?” “Sim”, eu respondi. Deus me mostrou que as nações mais ricas do mundo produzem carros. Os melhores carros vêm das nações mais ricas do mundo. Esses países são ricos porque eles produzem algo. A igreja será rica em almas se começarmos a ser espiritualmente industrializados! Assim como o sucesso das nações do mundo depende delas produzirem algo, o sucesso da igreja depende dela produzir almas. Uma indústria é um sistema organizado para produzir bens e serviços regularmente (...) Eu sou um “homem de negócios” para Deus e a minha moeda são almas humanas (...) Jesus disse em Lucas 19:13: “Ocupem (façam negócios) até que eu retorne”. Ou seja, industrialize e comercialize com diligência até que eu venha. Em outras palavras, Jesus espera que nós tomemos o negócio de ganhar almas como uma empresa séria. Ganhar almas deve ser intencional e não incidental. (Heward-Mills 2007HEWARD-MILLS, Dag. (2007), Church administration and management. Accra: Parchment House., p. 205)

Quando comparo a analogia industrial oferecida por Deus a Heward-Mills com a oikonomia patrística, quero destacar que, apesar de não intuitiva para muitos de nós, sua valência tem uma longa história no cristianismo. Meu objetivo, no entanto, não é dissipar o caráter não intuitivo desse discurso, mas pensar através dele. Primeiramente porque – como bem sabem os pesquisadores dos movimentos evangélico e pentecostal – a retórica polemista é um componente constitutivo de seus modos de engajamento público. Heward-Mills sabe que está jogando de maneira desafiadora com as sensibilidades de sua audiência, seja ela conversa ou não-conversa, interna ou externa a esse movimento religioso. Isso é bastante distinto do modelo patrístico, cujo contexto histórico não se estrutura, de maneira hegemônica, pela oposição secular entre religião e economia. Outro componente bastante específico, que remete a um contexto secular de enunciação, é o modo como sua rede de analogias entre a igreja e a indústria capitalista opõe, em vez de integrar, Igreja e Estado, ao mesmo tempo em que manifesta seu desejo de construir a primeira como um campo paraestatal de administração da vida, à luz de modelos econômico-teológicos.

Segundo, acredito que a sinceridade quase vulgar de suas palavras indica que Heward-Mills de fato também tenha em mente aqueles que – dentro e fora do movimento (incluindo muitos acadêmicos) – acreditam que grandes organizações, como a Lighthouse Chapel, que têm florescido em escala global desde os anos 1980, seriam “apenas um negócio”, uma fachada religiosa para interesses econômicos. Sua resposta é inusitada: “Sim, minha igreja é um negócio; é uma indústria espiritual autorizada por Deus”, o que automaticamente dissolve o modelo dualista da fachada pública versus interesses privados. Matthew Engelke encontra um uso similar de motivos econômicos em sua etnografia de uma organização evangélica inglesa chamada Sociedade Evangelística, o que o leva a argumentar que, para esses evangélicos,

apelar para a linguagem do mercado não é uma degradação da fé, mas um sinal de inovação Cristã – não uma concessão de seus valores, mas a incorporação dos valores de outro entendida através de uma projeção sobre como a linguagem funciona para aquele outro (Engelke, 2013, p. 97).

Concordo com Engelke, mas acredito que essa relação possa ir além de um mimetismo discursivo.

A incorporação pentecostal da retórica econômica é de fato constante, e suscita uma série de tensões analíticas para os antropólogos do cristianismo, já que a economia muitas vezes torna-se, neste caso, “teoria etnográfica”, ou seja, parte constitutiva da chamada “diferença cristã” (Robbins, 2007ROBBINS, Joel. (2007), “Continuity thinking and the problem of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, 48(1), pp. 5-38.). Como destaca Simon Coleman (2018)COLEMAN, Simon. (2018), “Zonas fronteiriças: ética, etnografia e o cristianismo ‘repugnante’”. Debates do NER, 19(33), pp. 271-312., a linguagem do mercado é um dos mediadores que os pentecostais usam para negociar suas fronteiras éticas, sociais e ontológicas, sendo a chamada teologia da prosperidade apenas um deles. Eu diria que é justamente a natureza explícita e reflexiva deste engajamento que problematiza abordagens meramente causais, reativas ou representacionais para a relação entre pentecostalismo e neoliberalismo, tema de amplo debate nos meios acadêmicos atuais. A definição de Heward-Mills do cristianismo como “indústria espiritual” sem dúvida corrobora o axioma neoliberal de que a economia seria um modelo primário para a administração da vida, englobando o Estado, as famílias e a própria relação dos indivíduos consigo mesmos. Mas é justamente a qualidade direta e transparente de tal aceitação que invalida de antemão qualquer tentativa teórica de encontrar a economia “por trás” do cristianismo. O problema, mais uma vez, é entender como se dá esse acoplamento, questão que deve ser perseguida etnograficamente.

Gostaria, portanto, de levar a sério a ideia de uma “indústria espiritual”, de pensá-la como uma nova extensão analógica da ecclesia e um exemplo possível da oikonomia cristã que se desenvolve no interior da ordem neoliberal. Naturalmente, estou ciente de que pastores pentecostais têm uma retórica superlativa, e de que suas palavras não devem ser tomadas de modo tão literal. Mas o próprio sucesso desta denominação – que emergiu há trinta anos, como um pequeno grupo de oração organizado em um hospital universitário de Acra, e hoje conta com cerca de 2 mil filiais, distribuídas por setenta países e quatro continentes – parece validar a ideia de “indústria espiritual” como um bom modelo teológico econômico para se refletir sobre seu modus operandi. Nesse sentido, concordo com Niklas Luhmann quando ele afirma que a análise de instituições inevitavelmente “observa um sistema que observa a si mesmo” (Luhmann, 2006LUHMANN, Niklas. (2006), “The concept of autopoiesis”. In: David Seidl & Kai Becker (orgs.), Niklas Luhmann and Organization Studies. Frederiksberg: CBS Press, pp. 54-63., p. 56); logo, enunciados reflexivos sobre o que é uma igreja, como os de Heward-Mills, devem ser tomados como parte constitutiva dessa estrutura organizacional, um modelo de e para a ação, o que me permite acomodá-los como teoria etnográfica.

Em suma, acredito que a relação entre a LCI e o neoliberalismo é mais profunda do que uma mera mercantilização da religião ou absorção da “linguagem do mercado”, estando na base mesma de seu modo de conceber e produzir o cristianismo e a eclesiologia. Isso se tornará mais aparente quando eu analisar as ressonâncias entre alguns dispositivos eclesiásticos da LCI e operações que pesquisadores do capitalismo tardio consideram típicas desta formação econômica, cultural e ética, como capital humano, trabalho imaterial e as habilidades de administração de emoções. Na seção seguinte, gostaria de começar definindo o telos desta organização, que chamarei de apostólico, assim como a base de sua economia teológica, o dever cristão de prestar “serviço” a Deus, ambos confluindo para a produção do que chamo de “capital humano para Deus”.

Pentecostalismo apostólico, serviço e capital humano

O bispo Dag Heward-Mills é frequentemente referido em Gana, por seus seguidores ou não, como o apóstolo mais “ungido” do país, ou seja, alguém cujo chamado e poder espiritual são intensamente direcionados para o treinamento em massa de pastores (para a sua denominação e outras) e o “plantio de igrejas”. Esse reconhecimento é corroborado pelo modo de territorialização que caracteriza a LCI. Apesar dos templos centrais de outras denominações de Gana eventualmente receberem tantos visitantes quanto o Qodesh, a atual sede da LCI no país, ou mais, nenhuma outra denominação local foi capaz de reproduzir-se tanto quanto ela.

O chamado apostólico de Heward-Mills assume um caráter corporativo por meio de dispositivos institucionais como a constituição de sua denominação, que estabelece sua “missão” em termos abertamente numéricos e superlativos:

Construir 25.000 igrejas. Ter igrejas em 150 países. Lutar corajosa e incansavelmente todas as batalhas pelo avanço das igrejas e do Evangelho. Produzir cristão radicais que trabalham para Deus. Ir para o Céu e ouvir Jesus dizer: ‘Bom trabalho, meu bom e fiel servo’. (Constituição da Lighthouse Chapel International)

Outra importante peça organizacional deste maquinário apostólico é o seminário Anagkazo Bible and Ministry Training Center, o maior de Gana por larga margem. Anagkazo hoje inclui dois campi: um em Korle-Bu, Acra, onde fiz trabalho de campo, e que admite quatrocentos alunos por ano, e outro, inaugurado recentemente em Manpong, cidade na região central de Gana, que admitiu mil pastores aprendizes em seu primeiro ano. O currículo do Anagkazo se estende por quatro anos, e o centro recebe estudantes provenientes de diversas partes do globo, boa parte deles egressos das redes de discipulado da LCI. A missão de Anagkazo complementa a missão da LCI:

Visamos formar uma pessoa integrada – espiritualmente viva, intelectualmente alerta e fisicamente disciplinada. Equipar soldados dos fins dos tempos para Cristo com uma experiência prática relevante é uma de nossas preocupações-chave. (Constituição de Anagkazo Bible and Ministry Training Center)

Outro aspecto distintamente apostólico da LCI é a abordagem democratizante de Heward-Mills e seguidores para o chamado de Deus. Pregando no Qodesh, em 2012, para cerca de 5 mil pessoas, sobre a famosa passagem de Mateus – “Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos” –, Heward-Mills contestou o fato da maioria dos pastores destacarem a última frase, esquecendo-se da primeira, na qual estaria o verdadeiro desejo de Deus. Deixando transparecer mais uma vez sua visão de um Deus maximizador, argumentou:

Se você fosse Deus e tivesse seis bilhões de pessoas para salvar, o que você faria? Você enviaria uma ou duas pessoas ou você enviaria muita gente? É claro que você enviaria muita gente para os campos de colheita. E é exatamente isso que Deus fez. Ele chamou muita gente! Não seja enganado pelos poucos pastores que você vê sentados nas primeiras fileiras das igrejas. Isso sempre dá a impressão de que poucos são chamados, ou que a maioria da congregação não foi chamada. Na verdade, é exatamente o contrário. Muitos, não apenas alguns pastores foram chamados para o trabalho de salvar o mundo. (Pregação de Heward-Mills, Qodesh, Acra, 15 de abril de 2012)

Essa visão anti-tradicionalista e igualitária do chamado é complementada por críticas constantes ao que os membros da denominação chamam de “igrejas estéreis”, ou seja, organizações que acumulam almas em quantidade impressionante, mas que as mantêm em eterno estado de imaturidade, heteronomia, dependência espiritual em relação ao ministro fundador ou “homem de Deus”. Essa estratégia é entendida como um modo de abortar o chamado de Deus com o objetivo de controlar o rebanho. O principal traço das igrejas estéreis é, portanto, sua incapacidade de se reproduzir em filiais, e de desvincular a pessoa do fundador carismático de sua “visão” e “missão”. O telos econômico teológico da LCI enquanto indústria espiritual, portanto, não é apenas contabilizar almas, mas agregar a esse viés quantitativo o viés qualitativo do “zelo” e da “maturidade espiritual”, que tornam essas almas e a própria organização “férteis”.

Como organizações similares à LCI transitam da infertilidade para a fertilidade e realizam o milagre da reprodução de filiais? Considerando que os recursos utilizados pelas igrejas são monetários, mas principalmente humanos – pessoas, seus desejos, ideias, corpos, comprometimentos e habilidades –, poder-se-ia dizer que o telos da LCI enquanto indústria espiritual é produzir capital humano para Deus. Essa é a primeira ressonância entre sua economia teológica e o neoliberalismo que eu gostaria de destacar.

Em Nascimento da biopolítica, Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. (2008), Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. argumenta que, diferentemente do liberalismo clássico, o neoliberalismo não concebe o homo oeconomicus como um sujeito de troca no mercado, mas sobretudo como um empreendedor ou empresário de si mesmo. Em consonância, a cultura do neoliberalismo enquadra a figura do trabalhador não mais como “força de trabalho”, um fator na cadeia produtiva, mas como “capital humano” ou “capital hábil”, meio e fim da cadeia produtiva. Vários autores têm demonstrado como o telos neoliberal do “desenvolvimento”, que postula o florescimento econômico e social como frutos de soluções técnicas para problemas históricos e políticos, tem sido acompanhado por uma forte ênfase na responsabilização individual, um componente moral chave de seu projeto de privatizar atribuições do Estado e socializar o risco e a dívida (Lazzarato, 2012LAZZARATO, Maurizio. (2012), The Making of The Indebted Man. Los Angeles: Semiotext(e).). Sob a égide neoliberal, os trabalhadores são responsáveis por sua “empregabilidade” e incitados a exercitar constantemente suas habilidades de autoadministração via “capacitação” para o cumprimento de “metas”, o que alimenta a cultura neoliberal do “coaching”, “mindfulness”, “networking” etc.

De maneira análoga, o foco transformador no fiel como produto e meio de produção é o traço mais axiomático da LCI enquanto indústria espiritual fértil. Meu argumento é que, assim como o dinheiro adquire a fertilidade que caracteriza o capital, ao produzir mais dinheiro, almas se transformam em capital humano para Deus nesta organização ao se responsabilizar e se capacitar para produzir mais almas. Destaco como essa abordagem difere da maioria dos trabalhos sobre religião e neoliberalismo em voga, baseados no tema weberiano da relação moral entre religião e mercado. Vejamos um excelente exemplo. Em seu trabalho sobre Islã e neoliberalismo na Malásia contemporânea, Daromir Rudnyckyj (2009)RUDNYCKYJ, Daromir. (2009), “Spiritual Economies: Islam and Neoliberalism in Contemporary Indonesia”. Cultural Anthropology, 24(1), pp. 104-141. define o que chama de “economias espirituais” como coletivos econômico-religiosos compostos por três operações:

A objetificação da espiritualidade como um espaço de administração e intervenção; a reconfiguração do trabalho em uma forma de devoção religiosa, e a inculcação de uma ética de auto-responsabilização comensurável com normas neoliberais sobre transparência, produtividade, e racionalização com o propósito de lucro. (Rudnyckyj 2009, p. 105-6)

Nota-se que, enquanto Rudnyckyj está interessado na adaptação da ética religiosa ao mercado neoliberal, eu estou interessado em como a LCI absorve aspectos da racionalidade neoliberal com o propósito de avançar o “serviço” ou o “trabalho de Deus”. Isso significa que, em vez de “reconfigurar o trabalho em uma forma de devoção religiosa”, a LCI cresce e se multiplica ao reconfigurar a devoção religiosa como forma de trabalho.

Apesar de diversas instâncias da organização – como grupos de empresários ou livros e sermões sobre a prosperidade – de fato capacitarem indivíduos para serem bem-sucedidos no mercado secular, não é esse seu telos organizacional. A noção de economia teológica me permite ver as próprias estruturas apostólicas da LCI como um empreendimento econômico cujo produto final não é lucro em si, mas capital humano para Deus. Não se trata aqui de um uso meramente metafórico do termo, já que poucas corporações seculares originadas em Gana são capazes de mobilizar tanta mão de obra, remunerada ou não, quanto a LCI hoje. Isso significa que a LCI não apenas reage a um contexto neoliberal, mas absorve sua racionalidade para fins distintamente cristãos.

Gostaria, portanto, de definir a LCI como uma indústria espiritual cuja organização ou linha de montagem de almas refrata (Reinhardt, 2016REINHARDT, Bruno (2016), “De epifania a método: a teopolítica do testemunho em um seminário pentecostal em Gana”. Religião & Sociedade, 36(2), pp. 44-70, p. 64) o trabalho de Deus de maneira imanente, ou seja, por meio de um corpo eclesiástico que trabalha por ele e através dele, no qual seu espírito se manifesta em trabalho, dando vazão a uma economia das almas, para relembrar o motivo antigo do pastorado como oikonomia. O objetivo deste serviço não é material, acumular dinheiro, nem estável, acumular almas, mas pedagógico: gestar almas capacitadas para cuidar de mais almas. Para entender essa estratégia, temos que definir melhor qual é a natureza do serviço cristão prestado por esta indústria espiritual, que considero afim ao que estudiosos do capitalismo tardio chamam de trabalho imaterial.

Serviço cristão como trabalho imaterial e suas estratégias de capilarização

Um dos modos de me manter nas teias analógicas da teologia econômica, sem resolvê-la em termos de falsa consciência, má fé e outras formas da dramaturgia social liberal do tipo palco/bastidores, é explorar as equivalências entre as noções seculares e cristãs de “serviço”. Nesse sentido, poderia enquadrar a LCI como uma provedora em larga escala de “trabalho imaterial”, definido por Michael Hardt (1999)HARDT, Michael. (1999), “Affective Labor”. Boundary 2, 26, n. 2, pp. 89-100. como “trabalho que produz um bem imaterial, como um serviço, conhecimento ou comunicação” (p. 94). O trabalho imaterial é vital para o capitalismo tardio, no qual os setores de serviço tornaram-se a principal fonte de empregabilidade, sendo um de seus componentes o trabalho afetivo, “o trabalho da interação humana” (ibid). Um médico, um psicanalista, um professor de ioga, um artista de rua e toda a indústria das comunicações e entretenimento, que de fato se expandiu em sintonia próxima com o movimento carismático em Gana (Meyer, 2015MEYER, Birgit. (2015), Sensational movies: video, vision, and Christianity in Ghana. Berkeley: University of California Press.), vendem trabalho imaterial e afetivo. Nota-se que, apesar dos produtos do trabalho imaterial não serem circunscritos como uma mercadoria convencional, mesmo assim são concretos e viscerais: “O trabalho é imaterial mesmo que seja afetivo, já que seus produtos são intangíveis: um sentimento de relaxamento, de bem-estar, satisfação, empolgação – mesmo um sentimento de conexão a uma comunidade” (Hardt, 1999HARDT, Michael. (1999), “Affective Labor”. Boundary 2, 26, n. 2, pp. 89-100., p. 96).

O repertório de trabalhos imateriais de cunho religioso produzidos pela LCI é imenso: de uma ampla quantidade de cultos (coincidentemente chamados de “serviços”, em inglês), face-a-face ou midiatizados, a diversos grupos de aconselhamento; de bailes para jovens a eventos esportivos; de grupos leigos de mulheres, jovens, negócios, oração, leitura da Bíblia, música, dança e teatro a creches, hospitais, grandes cruzadas evangelizadoras e conferências. Gostaria de destacar somente a seção apostólica destes serviços, aqueles relativos à evangelização e ao discipulado – as redes de organização formais e informais que visam explicitamente produzir cristãos maduros que trabalham para Deus. O trabalho apostólico não corre em paralelo aos contextos acima referidos, mas os usam como plataforma pedagógica (Reinhardt 2018REINHARDT, Bruno. (2018), “Discipline (and Lenience) Beyond the Self: Discipleship in a Pentecostal-Charismatic Organization”. Social Analysis: The International Journal of Anthropology, 62(3), pp. 42-66.). Isso é essencial, já que, diferentemente da indústria secular de serviços, na LCI a divisão entre consumidor e produtor é intencionalmente fluida. Como sublinhou para mim um dos reverendos, e como pude observar pessoalmente, “cerca de 80% das nossas atividades é realizada pelos próprios fiéis”, ou seja, por mão de obra voluntária. A LCI é, portanto, uma indústria de serviços religiosos auto-referida ou autopoiética (Luhmann, 2006LUHMANN, Niklas. (2006), “The concept of autopoiesis”. In: David Seidl & Kai Becker (orgs.), Niklas Luhmann and Organization Studies. Frederiksberg: CBS Press, pp. 54-63.; Reinhardt, 2018REINHARDT, Bruno. (2018), “Discipline (and Lenience) Beyond the Self: Discipleship in a Pentecostal-Charismatic Organization”. Social Analysis: The International Journal of Anthropology, 62(3), pp. 42-66.), que cresce ao transformar consumidores em coprodutores do trabalho de Deus.

O vínculo entre as dimensões quantitativa e qualitativa, ou, em termos nativos, evangelística e apostólica deste sistema se dá por meio de uma divisão do trabalho de Deus. É essa a linha de montagem de almas que estrutura o processo de subjetivação na organização, na qual as tecnologias do sujeito, relativas ao cuidado de si (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. (2004), “Tecnologias de si, 1982”. Verve, 6, pp. 321-360.), estão quase sempre entrelaçadas à interpelação e ao cuidado de outros. Esse é o sistema de discipulado das igrejas, que se atualiza em contextos pedagógicos explícitos e implícitos.

Os contextos pedagógicos explícitos são os “acampamentos”, que visam capacitar fiéis para ocupar cargos de liderança laica, e os seminários, que produzem pastores ordenados. Os acampamentos são sessões de treinamento que variam entre uma e duas semanas, organizados em igrejas, hotéis e universidades. Sua finalidade é treinar conversos no estilo de vida cristão, ao equipá-los, de maneira progressiva, com unidades de trabalho imaterial, que serão acumuladas ao longo de sua maturação e transição entre campos e funções pastorais laicas específicas (“obreiros”, “condutores”, “oficiais de diligências”, “líderes” de pequenos grupos, por exemplo). Exemplos destas unidades padronizadas são “interação” (cultivar relações com novos membros da igreja), “bater à porta” (praticar evangelismo doméstico em grupos), “carregar” (lembrar conversos recentes de ir à igreja algumas horas antes dos cultos), “condução” (orar por membros mais recentes, aconselhá-los, ler a Bíblia juntos) e “pescaria em profundidade” (ganhar acesso à casa desses neófitos e orientá-los nas práticas básicas de um cristão, o que inclui levá-los juntos em trabalhos de evangelização). Ao serem promovidos a cargos e acampamentos mais avançados e funções mais complexas, os conversos são capacitados em um número cada vez maior dessas técnicas. Muitos deles acabam por perceber-se chamados por Deus para o ministério, e matriculam-se em Anagkazo, que seria a última instância desta linha de montagem de almas.

Os acampamentos agregam membros de diversas igrejas em uma área congregacional determinada, sendo replicados em cada país onde a denominação se instala. Heward-Mills dedica grande parte de seu tempo a lecionar em acampamentos ao redor do mundo, a ponto de ter delegado a responsabilidade de pastorear o quartel-general da denominação, em Gana, a um antigo assistente seu. Pode-se dizer que o discipulado nesta organização produz, pela divisão do trabalho ministerial, uma capilarização do corpo do líder; a distribuição de sua agência pastoral permite que ele se dedique a atividades “meta-pastorais” ou apostólicas, operando hoje quase que exclusivamente ou como evangelista em cruzadas de massa, ou como um pastor de pastores, que circula entre acampamentos, seminários e conferências.

Apesar de sua escala industrial, nota-se que a microeconomia do discipulado na LCI baseia-se também em uma lógica artesanal de transmissão, centrada no que Lave & Wenger (1991)LAVE, Jean & WENGER, Etienne. (1991), Situated learning legitimate peripheral participation. Cambridge University Press. chamam de “participação legítima periférica”, um conceito que “provê um modo de falar das relações entre novatos [neste caso, os espiritualmente imaturos] e experientes [espiritualmente maduros], e sobre as atividades, identidades e comunidades de conhecimento e prática” (p. 29). Pude notar a centralidade da “participação legítima periférica” nas mais de 250 narrativas de vida de membros e ministros, em diversos estágios de sua careira de maturação espiritual, que registrei. O principio básico é que novatos na fé deixem o estado de “bebês espirituais” ao serem integrados de maneira periférica, mas ativa, a práticas pastorais de salvação e cuidado das almas, as mesmas que os levaram à conversão e ao amadurecimento. Essa pedagogia do fazer pastoral coordenado adquire um caráter difuso e implícito na denominação, dando vazão a uma cultura organizacional apostólica.

É uma das máximas da LCI que “salvar almas faz a sua fé crescer”, ou seja, se um fiel sentir-se assolado por dúvidas sobre sua conversão e renascimento espiritual, a norma não é ponderar sobre estas de maneira intelectual ou com remorso, mas de fato dar um passo à frente e salvar uma alma, ou seja, agir “como se” (Ingold, 2000INGOLD, Tim. (2000), The Perception of the Environment: Essays in Livelihood, Dwelling and Skill. Londres/Nova York: Routledge., p. 406-19; Reinhardt, 2017REINHARDT, Bruno. (2017), “The Pedagogies of Preaching: Skill, Performance, and Charisma in a Pentecostal Bible School from Ghana”. Journal of Religion in Africa, 47, pp. 72-107., 2018REINHARDT, Bruno. (2018), “Discipline (and Lenience) Beyond the Self: Discipleship in a Pentecostal-Charismatic Organization”. Social Analysis: The International Journal of Anthropology, 62(3), pp. 42-66.) fosse um cristão convicto e zeloso, e um proto-pastor. Como destaca Ingold, a ação “como se” não é apenas teatral, podendo operar como meio pedagógico de habilitação ou incorporação [embodiment] de competências inicialmente simuladas. Ao trabalhar para Deus “como se”, muitos dos fiéis encontram respostas para suas dúvidas e afinam sua relação com o Espírito Santo por meio de sonhos, visões e dádivas. Suas habilidades florescem, e o locus de seu chamado no corpo da igreja torna-se discernível (Reinhardt 2018REINHARDT, Bruno. (2018), “Discipline (and Lenience) Beyond the Self: Discipleship in a Pentecostal-Charismatic Organization”. Social Analysis: The International Journal of Anthropology, 62(3), pp. 42-66.).

Existe, em suma, uma pressão constante no maquinário eclesiástico para que conversos mudem do estado passivo para o ativo. Apesar de ubíqua, essa pressão não é impositiva, mas convidativa. Ela funciona através de relações de poder, “um modo de ação que não age diretamente e imediatamente em outros”, mas “sobre as suas ações: uma ação sobre uma ação em um futuro possível ou atual” (Foucault, 1995FOUCAULT, Michel. (1995), “O sujeito e o poder”. In: H. Dreyfus & P. Rabinow, Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 230). Essa forma de administração de possibilidades basicamente interpela os sujeitos como virtualmente chamados para o ministério, ao mantê-los constantemente “ocupados pelo Reino”, como me narraram diversos interlocutores. Um recém converso é logo alvo de orações, aconselhamentos, testemunhos e pregações, e rapidamente começa a transitar, geralmente via um mentor, pai ou mãe espiritual, para uma posição ativa na mesma estrutura que o gerou. Começa a testemunhar, a orar por outros, a assistir seu parente espiritual em jornadas evangelistas e grupos de leitura da Bíblia; eventualmente passa a pregar em reuniões menores e a ter seus próprios pupilos em Cristo. A conversão, neste caso, inclui o processo de “aprender uma língua”, como destaca Susan Harding (1987)HARDING, Susan. (1987), “Convicted by the Holy Spirit: The Rhetoric of Fundamental Baptist Conversion”. American Ethnologist, 14(1), pp. 167-181., mas é sobretudo um processo de aprender um métier, adquirir um ferramental ético-espiritual de maneira hábil.

O produto deste trabalho, que toma relações humanas como meio e fim, é um sujeito “zeloso”, que deseja o mesmo que a organização deseja. De acordo com Amorine (2010), na época uma “condutora”:

Evangelismo aqui é um hábito. Em qualquer lugar que eu vá, eu penso: Será que essa pessoa é renascida em Cristo? Devo falar a ela sobre Deus? Se um acidente acontecer agora, quantas irão para o Céu? É um hábito.

Essa disposição a interpelar se desenvolve lado a lado com um processo de intensificação de vínculos de emulação com mentores e parentes espirituais. As teias replicáveis de emulação e coperformance que estruturam o discipulado têm sua autoridade fundamentada pela tipologia bíblica (Reinhardt, 2016REINHARDT, Bruno (2016), “De epifania a método: a teopolítica do testemunho em um seminário pentecostal em Gana”. Religião & Sociedade, 36(2), pp. 44-70), e emprestam dos vínculos de parentesco suas propriedades recursivas, já que parentes espirituais são filhos de outros parentes e assim por diante. A maturação é, portanto, um processo de imersão simultânea em uma pequena família em Cristo e no que chamam de “família Lighthouse”. Nota-se que, apesar de operar por modos fortemente padronizados de relacionalidade, a indústria espiritual é capaz de gestar um forte senso de pertencimento pela coparticipação. Assim, uma fria linha de montagem de almas ganha densidade afetiva e historicidade sagrada através de vínculos recursivos de parentesco espiritual que fluem para a Bíblia e para Heward-Mills como uma espécie de meta-pai.

É notável que no mesmo livro sobre administração de igrejas em que ele apresenta sua epifania sobre a industrialização espiritual, Heward-Mills defende a importância de “pequenos grupos” como forma de manter a igreja “grande suficiente para incluí-lo e pequena o suficiente para conhecê-lo” (Heward-Mills, 2007, p. 207). Em uma reversão retórica radical de sua posição anterior sobre o dever de produzir almas em série, ele argumenta que:

As pessoas não são números. Elas são seres humanos. Ninguém quer ser reduzido a um artigo numerado ou uma mercadoria contável. As pessoas querem se sentir necessárias. As pessoas querem se sentir amadas. Você pode pregar um sermão poderoso, mas elas ainda precisam de uma pequena família. (Heward-Mills, 2007, p. 208)

Comentando sobre as “leis do trabalho de equipe”, ele aplica a mesma regra ao corpo pastoral. Evocando uma passagem de Mateus em que Jesus elabora sobre os vínculos de parentesco espiritual que o conecta a seus discípulos, Heward-Mills afirma que

Isso é algo que tenho feito por toda a minha vida. Eu nunca vi meus pastores e trabalhadores como empregados, mas como uma família. Eu odeio ser chamado de ‘chefe’. Crie um espírito de família na sua organização. É muito melhor do que uma organização formal e rígida. (Heward-Mills, 2007, p. 283)

O argumento de Heward-Mills sobre os pequenos grupos é análogo à crítica neoliberal da burocratização que permeia a literatura de negócios dos anos 1980 e 90, analisada por Boltanski e Chiappelo (2009). Eles notam como a oposição neoliberal à rigidez burocrática impessoal das organizações centralizadoras é geralmente acompanhada por uma ênfase em formatos reticulares de associação e por um reacoplamento moral e administrativo da corporação no modelo da família, tida como meio de incitar flexibilidade e comprometimento. Isso não surpreende, já que livros de gestão empresarial e psicologia do trabalho são de fato citados nas bibliografias de Heward-Mills sobre o plantio e a administração de igrejas.

A própria autoridade de Heward-Mills, CEO dessa organização, é mais próxima do “líder” neoliberal do que do “chefe-proprietário” ou “administrador” dos ciclos anteriores do capitalismo. O líder é “aquele com a capacidade de visão, que sabe como comunicá-la e como angariar apoio dos outros” (Boltanski and Chiapello 2009BOLTANSKI, Luc & CHIAPELLO, Éve. (2009), O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes., p. 76). Apesar de ele ser um “homem de Deus”, o poder de Heward-Mills é de fato ameno, e se baseia sobretudo na admiração e no desejo de emulação; ele é uma espécie de coach espiritual, que mostra um caminho em vez de usar comandos para estabelecer coordenadas exaustivas. Essa estrutura de autoridade se modifica apenas em Anagkazo, o estágio final da linha de montagem, que funciona como uma instituição total, altamente disciplinar e vertical (Reinhardt, 2014REINHARDT, Bruno. (2014), “Soaking in Tapes: The Haptic Voice of Global Pentecostal Pedagogy in Ghana”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 20(2), pp. 315-36.). Isso se justifica pelo fato de Anagkazo operar como um limiar e um filtro volitivo entre a mão de obra voluntária e a remunerada. No entanto, seja nas redes laicas, seja em Anagkazo, o poder apostólico que conclama membros ao “serviço” de interpelar – ao mesmo tempo em que os absorve em uma divisão do trabalho – é alimentado por uma ética de cunho fortemente profissional, tema que abordo a seguir.

Ética profissional e habilidades de administração de emoções

Outros conceitos da sociologia econômica secular que me ajudam a iluminar a teologia econômica da LCI são os de trabalho emocional e habilidades de administração de emoções. De acordo com Arlie Hochschild (2013)HOCHSCHILD, Arlie Russell. (2013), So How’s the Family? and Other Essays. Berkeley: University of California Press., trabalho emocional é o processo em que “a administração privada dos sentimentos é objeto de uma engenharia social, que os transforma em trabalho emocional em troca de ganho” (p. xi). O trabalho emocional estaria na base do processo de padronização das relações humanas e do próprio self no capitalismo tardio, mobilizado em torno de máximas sobre a satisfação do cliente e a qualidade da “experiência” de compra e consumo de uma mercadoria ou serviço. O trabalho emocional requer a aquisição de habilidades de administração de emoções, que Hochschild (2013HOCHSCHILD, Arlie Russell. (2013), So How’s the Family? and Other Essays. Berkeley: University of California Press., p. 6) define como “o esforço de parecer sentir e tentar sentir o sentimento certo para a tarefa, e tentar induzir o sentimento certo nos outros”, como a aeromoça que é “treinada para administrar o medo durante a turbulência, exasperação com passageiros encrenqueiros, ou raiva com passageiros abusivos” (Hochschild, 2013HOCHSCHILD, Arlie Russell. (2013), So How’s the Family? and Other Essays. Berkeley: University of California Press., p. 6). O objetivo dessas técnicas é fazer com que o capital humano seja mobilizado para a produção não por pressão externa, sanções ou salário, mas por um processo de subjetivação que permite pensar e sentir como a organização.

O argumento de Hochschild sobre a economia secular me ajuda a entender como o funcionamento do discipulado é complementado, na LCI, pela transmissão de uma ética do trabalho de Deus de cunho fortemente profissional. Com isso, quero dizer que essa pedagogia frequentemente enquadra as habilidades pastorais adquiridas pelos iniciados como habilidades de administração de emoção orientadas para maximizar a tarefa escatológica de salvar almas. Essa tendência já foi observada no argumento de Heward-Mills de que salvar almas deve ser “intencional e não incidental”, e em máximas como “salvar almas faz sua fé crescer”. Tal ausência de apego à ética e à ideologia linguística da sinceridade e da autenticidade (Keane, 2007KEANE, Webb. (2007), Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press.; Thrilling 2014) é exemplificada pelos ensinamentos de Heward-Mills sobre a arte da “interação” que pude presenciar durante um acampamento organizado em uma filial da igreja em Legon, Accra:

Quando eu estava vindo aqui para a First Love Church liderar esse acampamento, eu fiz duas coisas. Primeiro, eu me apresentei aos anciões e pastores da igreja e aos ministros de louvação e adoração da casa. Eu os cumprimentei, falei com eles sobre o acampamento. Essa igreja é deles, ela é sua, não é minha, vocês entendem? Você tem que mostrar que se importa, esse cuidado. É assim que fazem os políticos. Esse ano eu fui convidado para o Dia Nacional de Orações e o presidente Atta-Mills estava lá. Quando o evento acabou, ele teria que partir. Todos esses carros pretos chegaram. Seguranças e oficiais pararam. Então, ao invés de entrar correndo no carro e partir, o presidente andou na direção do povo. Ele cumprimentou muita gente, os ouviu, falou com eles... Então ele passou para o púlpito e cumprimentou todos os líderes religiosos. Vocês veem? Ele não entrou no carro e ... zupt. Ele interagiu. Aqui é a mesma coisa. Eles precisam de votos... nós precisamos de almas. Nós trabalhamos para Cristo. Então, mesmo que você não esteja sentido vontade, você deve interagir. (Pregação de Heward-Mills em um "acampamento" reaizado na First Love Church, Acra, janeiro de 2011)

A matéria bruta da vida comunitária, aquilo que os antropólogos consideram objeto de sua expertise – a socialidade – é objetificada pelo bispo como uma unidade de trabalho imaterial e um dever profissional, a “interação”, comparável às estratégias de relações públicas de um político. Essa ética do trabalho de Deus é constantemente tipificada por Heward-Mills na prática, via exemplaridade, mas também no discurso reflexivo. Como vimos em seu testemunho sobre a industrialização de igrejas, o componente tático de seu comportamento nunca é escondido de suas audiências, como se consistisse em um bastidor goffmaniano de sua performance pública. Suas técnicas de interpelação e persuasão são constantemente expostas e objetificadas para o mesmo público que é objeto delas, já que sua missão religiosa é basicamente disseminá-las, ou seja, desconstruir seu carisma, em público, como um conjunto de técnicas bem sucedidas, tendo em vista transmiti-las a seus seguidores.

Tal falta de preocupação em relação àqueles que associam “linguagem do mercado” a má fé, assim como a tendência a não esconder a tecnicalidade do comportamento pastoral como forma de torná-lo “autêntico” ou “espontâneo”, são características da totalidade da pedagogia do trabalho de Deus na LCI. Por se dedicar à formação de pastores ordenados e assalariados, o seminário Anagkazo está prenhe de exemplos dessa ética profissional, que é associada à virtude da “excelência” e tida como marcador de distinção que indexa a natureza “internacional” da denominação. Assim como nas filiais da LCI espalhadas pelo mundo, as sessões de louvor e adoração, pregação e oração em Anagkazo são intensas, permeadas pelo Espírito Santo e por experiências extraordinárias (Reinhardt, 2014REINHARDT, Bruno. (2014), “Soaking in Tapes: The Haptic Voice of Global Pentecostal Pedagogy in Ghana”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 20(2), pp. 315-36., 2016REINHARDT, Bruno (2016), “De epifania a método: a teopolítica do testemunho em um seminário pentecostal em Gana”. Religião & Sociedade, 36(2), pp. 44-70), mas acontecem sempre dentro de um tempo e por meio de técnicas e séries litúrgicas rigidamente padronizadas. Em um artigo sobre o aprendizado da arte da pregação em Anagkazo (Reinhardt, 2017REINHARDT, Bruno. (2017), “The Pedagogies of Preaching: Skill, Performance, and Charisma in a Pentecostal Bible School from Ghana”. Journal of Religion in Africa, 47, pp. 72-107.), aponto para uma vasta série de técnicas oratórias que são mimetizadas pelos aprendizes – formas de andar e olhar, impostações de voz, modelos retóricos de títulos e estrutura dos sermões, usos de técnicas fáticas de chamado e resposta. Noto que em nenhum momento essa racionalização da pregação enquanto conjunto de técnicas de administração de emoção contradiz a autenticidade da “unção”, a força espiritual que dá “fluxo” espiritual e perfomatividade à interpelação carismática.

Esse profissionalismo carismático é um dos fatores que asseguram a identidade da denominação e o pequeno número de casos de cisma, apesar de sua natureza fortemente reticular, desterritorializada e transnacional. Esses traços profissionais podem ser tomados como a “logomarca” da LCI, encorporada [embodied] por seus trabalhadores, ou seja, visível mesmo quando o símbolo ou as decorações que a caracterizam não o são. Essa logomarca encorporada, que dá um ar de família a um corpo disperso é, sobretudo, um estilo de fazer, um modo profissional de sentir, agir e ser guiado pelo Espírito Santo, de acordo com a mesma “unção” e com a “excelência” que caracteriza sua cultura organizacional: o “Espírito da casa”.

Esse modo de fazer também é qualificado como “internacional”. Por exemplo, o apego à virtude da pontualidade e o vasto aparato de disciplinamento dos usos do tempo em Anagkazo, onde estudantes acordam, dormem, oram, fazem evangelismo, pregam etc. em horários determinados pela direção, é um modo da organização se contrapor ao chamado “tempo ganense”, cheio de imprevisibilidade e atrasos e, logo, pouco profissional. A mesma disciplina do tempo acompanha os estudantes em seu terceiro ano, quando realizam estágios práticos em diversas áreas da organização; o controle, neste caso, é realizado por meio de listas de tarefas a serem preenchidas pelos aprendizes e assinadas por seus supervisores locais [figura 1].

Figura 1
Lista de atividades de estágio em missões rurais. Acervo do autor.

Uma série de outros traços caracteriza a pedagogia de Anagkazo como “internacional”, do próprio uso obrigatório do inglês na escola até a norma que estabelece que pastores da LCI não consultam a Bíblia ao citá-la, uma habilidade religiosa cultivada em longas sessões individuais e coletivas de memorização, seguidas por exames. Para além de suas dimensões espirituais (Reinhardt, 2014REINHARDT, Bruno. (2014), “Soaking in Tapes: The Haptic Voice of Global Pentecostal Pedagogy in Ghana”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 20(2), pp. 315-36.), a memorização de escrituras era frequentemente entendida como um dever profissional que amplia a autoridade da fala evangelística ou pastoral e maximiza a persuasão, ou seja, um modo de administrar emoções necessário nesse métier.

Outro componente da pedagogia da “excelência” em Anagkazo são os códigos obrigatórios de auto-apresentação que caracterizam a vida no seminário [figura 2]. Os alunos devem vestir terno preto, camisa branca, gravata e sapatos pretos, barbear-se periodicamente e manter o cabelo curto. Já as alunas devem usar vestido preto abaixo dos joelhos, camisa branca, terno preto, sapatos pretos e cabelo trançado ou peruca. Elementos morais, relativos à santificação, podem ser discernidos destes códigos, mas os alunos frequentemente se referiam a seus efeitos catalizadores durante o evangelismo, definindo-os como trajes “profissionais” (business-like). O queniano Dixon (2011), um dos alunos de Anagkazo, me garantiu que o cristianismo trata do “coração” – intenção, devoção e zelo –, mas que o cuidado com a aparência é central no trabalho de Deus:

Figura 2
Normas indumentárias em Anagkazo. Acervo do autor.

Deus olha para o interior, mas os homens olham para o exterior. Mesmo que Deus esteja olhando para o seu interior, se você quiser trazer gente para Cristo, que é o que ele deseja, você tem que cuidar de sua aparência exterior.

Mais uma vez, os componentes éticos e profissionais do cristianismo enquanto trabalho imaterial são coordenados, e seu fruto é uma síntese teo-econômica entre o espiritual, o administrativo e o auto-administrativo, consumada em um modo de pensar, sentir e agir que equaciona sujeitos e organização. Em um contexto ganense, os trajes sóbrios de Anagkazo são também marcadores de distinção em relação aos ostentosos pastores e profetas “locais”, que podem ser vistos nas ruas de Acra vestindo sapado pontudo, terno branco e gravata colorida. Assim como as “igrejas inférteis” e “o tempo Ganense”, a figura do “pastor caipira” (azaa pastor ou villager) é frequentemente evocada em Anagkazo como um espelho negativo que mostra o que os aprendizes desta organização internacional não devem ser.

Os exemplos acima demonstram como os componentes éticos e profissionais do cristianismo são coordenados intimamente pela pedagogia da LCI com vistas a transfigurar devoção em trabalho. Um último exemplo que creio ser bastante ilustrativo também foi me dado por Dixon (2011). Ele se refere a um dos momentos intuitivamente menos espirituais da pedagogia de Anagkazo, quando os estudantes fazem estágio nos escritórios administrativos da organização. Sua introdução ao mundo das planilhas e da contabilidade, porém, me foi descrita em termos bastante distintos:

Minha vida mudou quando eu fui para esse estágio administrativo. Eu aprendi a fazer tabelas de presença para as igrejas e comecei a colocar no papel tudo o que deveria fazer. Eu comecei a desenhar tabelas sobre mim mesmo, mantendo a mim mesmo em conta [accountable]. Quantas vezes e quantas horas eu oro por dia? Orei as orações que deveria orar? Quantas horas de meditação [quiet time] eu faço por dia? Quantos livros eu li em uma semana? Quantas mensagens [pregações gravadas] eu ouvi? E eu comecei a perceber que aquilo tinha me mudado! Há mais ordem na minha vida agora. Estou mais próximo de Deus.

Em seu estágio administrativo, Dixon estava aprendendo mais do que técnicas de gestão de igreja. Estava aprendendo a gerir a si mesmo de maneira profissional e ético-espiritual, reconciliando o que Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. (2008), Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. chama de autogestão neoliberal com técnicas cristãs de autocuidado e afinamento espiritual. Dixon basicamente aprendeu a governar a si mesmo e a cultivar sua relação com Deus através dos mesmos dispositivos utilizados pela organização para governar seus membros, incluindo ele mesmo. Ele se tornou, simultaneamente, um produto, um operador e um componente desta indústria espiritual.

Conclusão: seria o “neo” de neopentecostalismo o “neo” de neoliberalismo?

Gostaria de concluir evocando duas contribuições suscitadas por uma abordagem econômico-teológica para o pentecostalismo. A primeira se refere ao debate sobre ética e organização religiosas; a segunda trata do debate sobre a relação entre neopentecostalismo e neoliberalismo.

Meu trabalho com a LCI começou como uma extensão do programa de pesquisa inaugurado por Saba Mahmood (2005)MAHMOOD, Saba. (2005), Politics of piety: the Islamic revival and the feminist subject. Princeton University Press. em Politics of piety, centrado no que ela chama de “o sujeito das normas”. O foco de Mahmood é o estudo comparativo das diversas pedagogias e topografias do sujeito religioso e secular, com ênfase nas “relações entre a forma imanente que um ato normativo assume, os modelos de subjetividade que ele pressupõe (articulações específicas entre volição, emoção, razão e expressão corporal) e os tipos de autoridade em que se baseia” (2005, p. 23). Certamente a LCI se adequava a esse modelo, já que seu projeto se baseia sobretudo na aquisição de competências ético-religiosas. Afinal de contas, só através do que seus membros chamam de “amadurecimento espiritual”, algo muito mais próximo de uma performance apta, adquirida via encorporação [embodiment], do que de uma “crença” mental, pode-se passar da conversão passiva para o pastorado ativo de almas. No entanto, a análise de Mahmood sobre o movimento islâmico feminino no Egito coloca grande ênfase no auto-cultivo ético, à luz da noção foucaultiana tardia de tecnologias do sujeito (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. (2004), “Tecnologias de si, 1982”. Verve, 6, pp. 321-360.). Há, portanto, pouca ênfase, em seu próprio trabalho, no aspecto institucional da pedagogia religiosa, que, como destaquei, é central para o projeto da LCI.

Esse aspecto é igualmente negligenciado por Ruth Marshall (2009MARSHALL, Ruth. (2009), Political spiritualities: the Pentecostal revolution in Nigeria. Chicago: University of Chicago Press., 2010MARSHALL, Ruth. (2010), “The Sovereignty of Miracles: Pentecostal Political Theology in Nigeria”. Constellations, 17(2), pp. 197-223.) em seu influente trabalho sobre o pentecostalismo na Nigéria como espiritualidade política. Marshall ancora o sucesso do pentecostalismo no país tanto na disseminação capilar, via esfera pública, de tecnologias do sujeito, quanto na intensa, apesar de evanescente, “soberania dos milagres” que caracterizaria seus cultos. Ambas as ancoragens são vistas em contraposição ao projeto de estabelecimento de organizações duráveis, já que, de acordo com Marshall, “interrompem processos de institucionalização que poderiam assegurar a conexão entre a retidão moral e a autoridade, entre um novo modo de governo de si e o governo de outros, uma nova ontologia ou etologia do viver em conjunto” (Marshall, 2010, p. 28). O próprio crescimento ordenado da LCI ao longo de seus trinta anos de existência demonstra que a tese de Marshall é, no mínimo, excessiva e provavelmente mais tributária de seus próprios interesses teóricos do que de seu material etnográfico, já que também na Nigéria existem igrejas similares.

As particularidades do “sujeito das normas” na LCI demandam que o antropólogo integre a pedagogia religiosa à eclesiologia, já que, neste caso, a produção do self e do corpo pentecostal, e a formação de uma instituição, uma pessoalidade corporativa, são processos simultâneos que ocorrem em duas escalas. De modo a entender o milagre da multiplicação ordenada de igrejas nesta denominação, precisamos examinar exatamente como a sua eclesiologia articula autogoverno e governo, ética e poder institucional, o ponto nodal chamado por Foucault (1993)FOUCAULT, Michel. (1993), “A governamentalidade”. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. de governamentalidade. É justamente como meio de conceber o vínculo entre sujeito e organização que o conceito de teologia econômica me é útil, já que ele nos ajuda a explorar o campo ainda pouco estudado das técnicas globais de crescimento e plantio de igrejas, responsáveis pelo enorme sucesso e adaptabilidade desse movimento religioso em escala global.

Apesar de eu mesmo já ter, em outras ocasiões, abordado as técnicas de governo na LCI sob uma ótica teopolítica (Reinhardt, 2016REINHARDT, Bruno (2016), “De epifania a método: a teopolítica do testemunho em um seminário pentecostal em Gana”. Religião & Sociedade, 36(2), pp. 44-70), a partir da categoria de unção, tentei desta vez explorar seus componentes teológico-econômicos a partir de analogias entre o conceito cristão de “serviço”, o dever de colaborar com a “obra de Deus”, e dispositivos do capitalismo tardio. Como vimos, o sujeito das normas visado pela LCI não é um pentecostal genérico, mas um “cristão radical que trabalha para o senhor”, ou “um soldado de Cristo”. A maturidade espiritual é alcançada através do que a LCI chama de “serviço” a/de Deus, considerado um dever primário de todo cristão, e não apenas de ministros ordenados. Essa interpelação apostólica para salvar e cuidar de almas, ou seja, essa interpelação para interpelar, é um modo singular de mobilizar o trabalho humano, desenvolvida por meio de uma divisão e de uma ética do trabalho de Deus que ressoam com diversos componentes da racionalidade neoliberal, apesar de ter um telos distintamente cristão. Isso me leva ao segundo tema: será que o neo de neopentecostalismo é o mesmo neo de neoliberalismo?

Em seu trabalho sobre a máquina evangélico-capitalista, Connolly argumenta que ressonâncias consistem em

complexidades energizadas pela imbricação mútua e inter-envolvimento, nas quais elementos frouxamente associados passam a dobrar-se, misturar-se, emulsionar-se e resolver-se incompletamente um no outro, forjando um agregado qualitativo que resiste a modos clássicos de explicação. (Connoly, 2008, p. 39-40)

O conceito de ressonância nos ajuda a abordar com prudência – e para além de modelos causais simplistas – a coincidência histórica entre os “reavivamentos” neoliberais e neopentecostais na África, assim como alhures, que têm suscitado uma série de respostas, geralmente tendo a chamada teologia da prosperidade como carro-chefe.

Jean e John Comaroff estabelecem de maneira decisiva que a teologia da prosperidade seria o ponto no qual “o pentecostalismo encontra o projeto neoliberal” (2000, p. 314). Assim como outros autores, como Paul Gifford (2004)GIFFORD, Paul. (2004), Ghana’s new Christianity: Pentecostalism in a globalizing African economy. Bloomington: Indiana University Press. e Birgit Meyer (2007)MEYER, Birgit. (2007), “Pentecostalism and Neo-Liberal Capitalism: Faith, Prosperity and Vision in African Pentecostal-Charismatic churches”. Journal for the Study of Religion, 20(2), pp. 5-28., eles opõem o neopentecostalismo a qualquer preocupação weberiana com a disciplina, a ética do trabalho e a racionalização, e interpretam os rituais de prosperidade ora como uma resposta mágica à precariedade e ao consumismo neoliberal, ora como um reflexo cultural da natureza errática do valor e da acumulação na era do capital especulativo. Em contraposição simétrica, em seu trabalho em Gana, no Zimbábue e com imigrantes ganense no Zimbábue, Rijk Van Dijk tem sublinhado o “poder desenvolvimentista” da fé pentecostal. Ele reestabelece a abordagem weberiana ao enquadrar as teologias da prosperidade como um conjunto de habilidades para a vida e de modelos para um ethos econômico orientado para o “planejamento, autocontrole e afinamento dos usos do tempo” (2012, p. 96), incluindo rendições explícitas de valores neoliberais, como ser um “corredor de riscos” [risk taker].

Neste artigo, explorei uma abordagem alternativa. Diferentemente dos autores acima, evitei o tema da teologia da prosperidade, assim como a tendência a postular o religioso e o neoliberal econômico como dois domínios da vida social, atualizados como igreja e mercado, respectivamente. O conceito de teologia econômica me permitiu abordar ambos como agregados compostos por técnicas de racionalização da vida colocados em jogo no interior de uma instituição cristã, uma eclesiologia. Isso me permitiu enquadrar o próprio sistema de discipulado da LCI como uma oikonomia pentecostal que articula trabalho imaterial como meio e fim, tendo em vista o acúmulo de capital humano para Deus. Esse maquinário torna-se autopoiético (Luhmann, 2006LUHMANN, Niklas. (2006), “The concept of autopoiesis”. In: David Seidl & Kai Becker (orgs.), Niklas Luhmann and Organization Studies. Frederiksberg: CBS Press, pp. 54-63.) ou auto-generativo quando oscila e integra impessoalidade profissional e pessoalidade familiar, instrumentalização e convicção, refratando, assim, o trabalho transcendente de Deus de maneira imanente, ao animar tecnologias neoliberais de administração com vida e Espírito.

Para evitar quebrar a emulsificação teológico-econômica que fundamenta este projeto, é importante ponderar sobre a prática basilar que a sustenta: o evangelismo. O evangelismo é fundamentalmente parrhesiático (Foucault, 2011FOUCAULT, Michel. (2011), A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes.; Reinhardt, 2016REINHARDT, Bruno (2016), “De epifania a método: a teopolítica do testemunho em um seminário pentecostal em Gana”. Religião & Sociedade, 36(2), pp. 44-70; Bonfim, 2016BONFIM, Evandro de Sousa. (2016). “Das relações entre exemplo e parresia: formas de evangelização católica”. Religião & Sociedade, 36(2), pp. 71-84.). Como um ato de enunciação da verdade, ele contém “bens internos” (MacIntyre, 1999MACINTYRE, Alasdair. (1999), Dependent rational animals: why human beings need the virtues. Chicago: Open Court.), sendo parte generativa da formação do próprio sujeito evangelista de acordo com uma ética da virtude. No entanto, diferentemente de outras tecnologias do sujeito pentecostal, como a oração ou a santificação, o evangelismo realiza esse papel de maneira interpelativa, integrando cuidado de si e de outros em uma mesma prática. Como um dever escatológico, o evangelismo insere ainda um componente geopolítico maximizante no cristianismo: o dever de fazer discípulos “em todas as nações”, até o retorno de Cristo, no “fim dos tempos” (Mateus 28:19-20). O evangelismo, portanto, acomoda a justaposição entre ética da virtude e ética instrumental, geralmente apartadas pelo senso comum secular, em um mesmo aparato econômico-teológico.

Se, de acordo com Koselleck (2014)KOSELLECK, Reinhart. (2014), “Abreviação do tempo e aceleração: um estudo sobre a secularização”. In: Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 165-88., a secularização do tempo é, fundamentalmente, uma guinada da abreviação para a aceleração, da escatologia que visa o fim transcendente para o progresso imanente, instrumental e calculista, organizações com a LCI – que têm se expandido na África subsaariana de maneira paraestatal, e em sintonia com o ocaso das narrativas seculares de soberania e redenção iniciada com as independências (Piot, 2010PIOT, Charles. (2010), Nostalgia for the future: West Africa after the Cold War. Chicago: University of Chicago.) – parecem propor uma estranha síntese, em que a aceleração gerencial da vida capitaliza a abreviação escatológica do tempo. Nesse sentido, reduzir seu poder e impacto a uma reação material ou simbólica ao econômico neoliberal, tomado como força exógena ao cristianismo, tende a ser tão inadequado quanto insular a “diferença cristã” (Robbins 2007ROBBINS, Joel. (2007), “Continuity thinking and the problem of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, 48(1), pp. 5-38.) do espírito secular desses tempos. Essa dinâmica se reflete na imagem paradoxal da oikonomia pentecostal que apresentei neste artigo, na qual o pentecostalismo apareceu mais distintamente cristão do que nas representações orientadas exclusivamente para a teologia da prosperidade, mas com o efeito colateral de parecer ainda mais intimamente emaranhado à razão calculista do neoliberalismo.

AGRADECIMENTOS

Versões anteriores deste artigo foram apresentadas no workshop Rethinking Public Religion in Africa and South Asia, organizado pelo Institute for Religion, Culture, and Public Life da Universidade de Columbia, e no Núcleo de Estudos da Religião (NER) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Agradeço a ambas instituições pelos convites e interlocuções, nas pessoas de Matthew Engelke, Mohamed Amer Meziane e Eduardo Dullo. Agradeço ainda aos pareceristas anônimos da RBCS pelo encorajamento e sugestões, e a Diogo Corrêa pela tradução do sumário para o francês.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2020
  • Aceito
    20 Maio 2020
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