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Violações coloniais e as reivindicações por direito de povos indígenas: vivências na Terra Indígena Mangueirinha

Colonial violations and the rights claims of indigenous peoples: experiences in the Indigenous Land Mangueirinha

Resumos

Resumo

Este artigo apresenta uma análise sobre o modo como o colonialismo perpetuou e segue produzindo violências sobre os povos indígenas e seus corpos-territórios. As reflexões apresentadas são resultado da pesquisa de campo realizada desde 2018, na Terra Indígena Mangueirinha (Paraná). A perspectiva decolonial é a base de análise, por meio da qual examina-se direitos legais conquistados pelos povos indígenas e aporta-se reflexões sobre os limites para o seu reconhecimento efetivo. Além disso, apresenta-se o histórico de lutas Kaingang pela retomada do território da TI Mangueirinha, em contraposição às violências coloniais sobre eles operadas. Por fim, relata-se uma demanda apresentada pelas mulheres indígenas reivindicando o direito de circular livremente nos espaços públicos das cidades.

Palavras-chave:
Colonialismo; Kaingang; Corpo-Território; Resistências


Abstract

This article presents an analysis of how colonialism perpetuated and continues to produce violence against indigenous people and their bodies-territories. The reflections presented are the result of field research carried out since 2018, in the Indigenous Land Mangueirinha (Paraná). The decolonial perspective is the basis of the analysis, through which the legal rights conquered by indigenous peoples are examined and reflections are provided on the limits for their effective recognition. In addition, the history of Kaingang struggles for the resumption of the territory of the Indigenous Land Mangueirinha is presented, in opposition to the colonial violence that were operated on them. Finally, it reports a demand presented by indigenous women claiming the right to circulate freely in public spaces in cities.

Keywords:
Colonialism; Kaingang, Body-Territory; Resistances


Introdução

Este artigo visa discutir aspectos da luta dos povos indígenas a partir de pesquisa realizada na Terra Indígena Mangueirinha, que tomou como principais protagonistas as mulheres Kaingang, as quais se mobilizam por direitos e por seus corpos-territórios. A perspectiva analítica adotada foi a da decolonialidade, que permite compreender como o colonialismo perpetuou violências sobre os povos indígenas na América e como a colonialidade do poder, do saber e do ser, segue operando hostilidades sobre esses coletivos (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latinoamericanas, Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.).

A humanidade dos povos indígenas foi questionada pela monarquia e pela igreja europeia em seu projeto colonizador e com isso ocorreu a apropriação violenta dos territórios, por meio do genocídio e epistemicídio (DUSSEL, 1993DUSSEL, E. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993.). A terra foi privatizada e concentrada em latifúndios e os povos indígenas e africanos foram escravizados. Essa violência e expropriação foram encobertas sob o lema da civilização, da cristianização, da modernidade e, posteriormente, do progresso, do crescimento e do desenvolvimento.

O colonialismo foi legitimado pelo Estado, destituindo os povos indígenas de suas terras e estabelecendo o direito de propriedade aos sujeitos colonizadores. Conforme explicita Eduardo Viveiros de Castro (2017)VIVEIROS DE CASTRO, E. Os Involuntários da Pátria: reprodução de aula pública realizada durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro, 2016. ARACÊ: Direitos Humanos em Revista, São Paulo, ano 4, n. 5, p. 187-193, 2017. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4865765/mod_resource/content/1/140-257-1-SM.pdf. Acesso em: 19 jun. 2019.
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, esse processo se estende há mais de 500 anos, evidenciando uma guerra em curso contra esses coletivos. No Brasil, atualmente essa violência se perpetua mesmo que o Estado democrático tenha a obrigação, pelo menos desde a Constituição de 1988, de proteger os indígenas e outros povos tradicionais. É possível observar que as suas cosmo-ontologias são desconsideradas nos preceitos jurídicos. Não obstante, eles têm lutado pelos seus modos de existência, por reconhecimento e pela terra-floresta (KOPENAWA, 2015).

As resistências indígenas e os desafios para o reconhecimento de seus direitos

Os povos indígenas, desde o período da colonização, têm lutado por seus territórios, no entanto, é possível observar que seus modos de vida não são contemplados pelos preceitos jurídicos do Estado. Isso é apontado pelo jurista Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2010) ao analisar a relação entre o sistema de justiça no Brasil e os direitos desses coletivos, permeada pelas dimensões do preconceito, da discriminação e do etnocentrismo.

Há inúmeras formas de violência colonial sobre esses povos nas legislações de Estado. Um dos exemplos é a Carta Régia de 1808, que declarava guerra aos “índios botocudos” do Paraná, concedendo o direito de propriedade para aqueles que os tornassem obedientes e servis, além disso, determinava o direito dos fazendeiros de escravizarem os botocudos do Vale do Rio Doce (SOUZA FILHO, 2010).

Em contraposição a essas formas de poder, ocorrem movimentos de resistência dos povos indígenas, nesses mais de cinco séculos de dominação colonial. Mais recentemente, em meados do século XX, são estabelecidas alianças, cada vez mais intensas, entre diversas etnias no contexto da América, denunciando que seus territórios foram usurpados pelo colonialismo e reivindicando direitos frente aos Estados-Nação. Dentre essas mobilizações, pode-se citar, o Primeiro Parlamento Indígena da América do Sul, realizado em 1974, no Paraguai. Em 1977, ocorreu o Primeiro Congresso Internacional Indígena da América Central, no Panamá, que resultou na criação da Coordenação Regional de Povos Indígenas. Em 1980, no Peru, as organizações indígenas realizaram o Primeiro Congresso dos Povos Indígenas da América do Sul, com o debate das relações cósmicas entre humanos e natureza, propondo outra perspectiva de desenvolvimento, denunciando a desigualdade que esse modelo hegemônico provoca (ERGUETA, 2015ERGUETA, A. Sistemas de Saberes ambientales, naturaleza y construcción del Bien vivir. Rev. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Paraná, UFPR, v. 35, p. 147-159, dez. 2015.).

No Brasil, após séculos de genocídio, a Constituição Federal de 1988, elaborada a partir das reivindicações dos movimentos sociais, reconhece o direito dos povos originários sobre suas terras, organizações sociais, costumes, línguas, crenças, tradições e manifestações culturais. Durante as mobilizações indígenas na constituinte, é emblemático o ato da liderança indígena Ailton Krenak, que em sua fala no Congresso Nacional defendeu publicamente a inclusão dos direitos indígenas no texto constitucional. Junto aos esforços históricos dos diversos povos, sua intervenção traduziu o anseio da criação dos artigos 231 e 232 da Constituição1, e exaltou a resistência indígena em meio a processos colonizadores genocidas (KRENAK, 1987KRENAK, A. Índio Cidadão? YouTube, 1987. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q. Acesso em: 09 abr. 2020.
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).

Contudo, mesmo com esse reconhecimento constitucional, o Estado continua legitimando ações de violação dos territórios indígenas em nome do desenvolvimento econômico (SOUZA FILHO, 2010), como no caso do contínuo avanço do extrativismo de minérios e outros projetos sobre essas áreas. Ademais, tem sido propostos projetos de lei que retiram direitos já conquistados por esses povos, a exemplo da “tese do marco temporal de ocupação”, que designa que “o direito a uma terra indígena só deve ser reconhecido nos casos em que a área se encontrava tradicionalmente ocupada na data da promulgação da Constituição”, e ainda exige que a comunidade indígena comprove que, em tendo sido expulsa da área, nesta data já estava “reivindicando enfaticamente o seu retorno, preferencialmente por via judicial” (SARTORI JUNIOR, 2016, p. 89).

Portanto, observa-se que o Estado brasileiro ainda traz em seu bojo um modelo colonial, no qual o governo e o Congresso Nacional tem várias prerrogativas de decisão sobre as terras indígenas — mesmo que haja a garantia legal de ouvir as comunidades afetadas. Desse modo, os territórios indígenas seguem em constante ameaça, visto que a representatividade do poder político está centrada em sujeitos que reproduzem a colonialidade do poder, do saber e do ser, enquanto homens brancos, heterossexuais, cristãos, de classe alta. Sobre esse aspecto, uma das nossas interlocutoras da pesquisa pontua uma crítica aos preceitos legais que interferem nos modos de vida indígenas:

Os coletivos indígenas não são consultados e nem convidados para apresentar sua comunidade, porque vivemos em um mundo que aborda as ideias colonialistas. Tampouco se preocupam com nossa forma de viver. Temos sempre o discurso de nos adequarmos as normas porque a nossa forma de viver não é incluída e nossos direitos não são respeitados[…]. As leis não são para nos incluírem, mas para incluir o que os brancos querem dentro da nossa aldeia. (Entrevista realizada em setembro de 2020).

Em meio a avanços e retrocessos, em 2002, o Brasil ratifica a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que versa sobre “Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes”. Esse documento exige que o Estado assuma a responsabilidade de proteção e garantia de direitos e da integridade desses povos, a partir de medidas que assegurem condições de igualdade nos âmbitos social, cultural, econômico e do direito. Quanto ao acesso à justiça, essa Convenção requer que as autoridades e tribunais levem em conta os costumes desses povos, para que eles possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais que visem solucionar as suas reivindicações. Esse é o primeiro documento internacional que trata de temas fundamentais para os povos indígenas, com destaque aos direitos a terra, a não discriminação e a viverem e se desenvolverem de maneira diferenciada, segundo seus costumes (SOUZA FILHO, 2010). Ele amplia a sustentação jurídica às demandas dos povos em diversas regiões, que reivindicam direitos referentes aos seus corpos-territórios.

Em 2007, é aprovada a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, documento que traz um conjunto de reivindicações desses povos em todo o mundo, para a melhoria das relações com os Estados nacionais, e serve de parâmetro mínimo para outros instrumentos internacionais e leis nacionais. Constam no documento princípios como a igualdade de direitos, a proibição da discriminação, o direito à autodeterminação e a necessidade de fazer do consentimento e do acordo de vontades o referencial de relacionamento entre povos indígenas e Estados (SOUZA FILHO, 2010).

Desde então, outros documentos sobre os direitos indígenas foram elaborados no Brasil, como o Decreto nº 7.056 de 2009, que visou à reestruturação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), para que houvesse ações participativas junto aos povos indígenas, na direção de criar Conselhos Consultivos com participação direta na formulação, implantação e gestão das políticas públicas (SOUZA FILHO, 2010).

Sabe-se que outros documentos consubstanciam legislações, no entanto, os acima elencados são apenas um recorte, buscando apresentar um breve panorama de direitos que foram sendo reconhecidos como resultado das reivindicações dos povos indígenas. Observa-se que há avanço em alguns aspectos, mas, também, há inúmeros retrocessos, quando se verifica a indicação, pelo governo brasileiro da gestão de 2018-2022, de um representante evangélico para chefiar o setor de Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), o qual não tem respaldo de líderes indígenas, que temem que seu histórico religioso abra caminho para a entrada indesejada de missionários na área (FARIAS, 2020FARIAS, E. Pastor Ricardo Dias, nomeado pela Funai, já fundou comunidade para converter indígenas na Amazônia. Combate Racismo Ambiental, 20 fev. 2020. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2020/02/20/pastor-ricardo-dias-nomeado-pela-funai-ja-fundou-comunidade-para-converter-indigenas-na-amazonia/. Acesso em: 30 maio 2020.
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).

Segundo Rita Laura Segato (2012, pSEGATO, R. L. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES, Coimbra, v. 18, p. 106-131, 2012.. 112), o melhor papel que o Estado poderia exercer é o de restituir a “[...] jurisdição própria e do foro comunitário, garantia da deliberação interna [...], o que não é outra coisa que a devolução da história, da capacidade de cada povo, de implementar seu próprio projeto histórico”. Nessa direção, pensar na presença do Estado e seus agentes em relação às comunidades indígenas, vem ao encontro do que afirmam Ana Elisa de Castro Freitas e Eduardo Hardes (2018, p.47), que defendem a necessidade de “considerar o ingresso de novos discursos etnicamente posicionados na esfera pública” do Estado, considerando o vasto repertório desses sujeitos de direitos frente aos ordenamentos estatais de suas vidas.

De forma semelhante, Sergio Baptista da Silva (2011)BAPTISTA DA SILVA, S. Cosmologias e Ontologias Ameríndias do Sul do Brasil. Algumas reflexões sobre o papel das ciências sociais face ao Estado. Rev. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 182-192, jan./jun. 2011., reitera que é necessário reconhecer e ser afetado pelas filosofias, cosmologias e ontologias desses povos pois é a partir dessa compreensão que será possível construir políticas públicas mais efetivas e estabelecer relações simétricas entre esses coletivos e o Estado. Portanto, para além dos ordenamentos jurídicos já existentes, é preciso que ocorra o reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas, que possibilite que as suas formas de organização política incidam na definição de seus direitos.

As lutas pelo território na TI Mangueirinha

A partir desse panorama sobre o processo histórico de lutas por direitos dos povos indígenas, apresenta-se a seguir aspectos da pesquisa realizada junto às mulheres Kaingang da Terra Indígena de Mangueirinha, localizada no Sudoeste do Paraná. Esse território encontra-se no limite norte do rio Iguaçu e do rio Chopin, entre os municípios de Mangueirinha, Coronel Vivida e Chopinzinho.

Segundo Freitas (2005)FREITAS, A. E. de C. Mrũr Jykre: a cultura do cipó: territorialidades Kaingang na margem leste do Rio Guaíba, Porto Alegre, RS. 2005. 464 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., os Kaingang ocupam milenarmente a extensão do Planalto Meridional, território que se estende desde o rio Tietê, no estado de São Paulo até os rios Jacuí, Taquari, Caí, dos Sinos e Gravataí, no Rio Grande do Sul. A Oeste abrange os rios Paraná e Uruguai, e se prolonga até a região de Missiones, na Argentina. As bases dessa territorialidade são marcadas pela mobilidade, pelo transitar e pelas múltiplas relações sociocosmológicas (MARÉCHAL, 2015MARÉCHAL, C. I. “Eu luto desde que me conheço por gente”: territorialidades e cosmopolítica Kanhgág enfrentando o poder colonial no sul do Brasil. 2015. 213 f. Dissertação (Mestrado em antropologia Social) - Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.). No entanto, com a instituição colonial, esses territórios foram sendo apropriados pelo Estado e por fazendeiros que os definiram como propriedade privada.

Conforme Cecilia Maria Vieira Helm (2012)HELM, C. M. V. Direito histórico indígena de permanência na terra de ocupação tradicional: o reconhecimento da posse indígena pela Justiça Federal/PR, em caso de litígio. Universidade Federal do Paraná. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 7., 2012, Curitiba. Anais [...] Curitiba: Grupo de Trabalho: Comunidades Tradicionais e Territorialidades, 2012. Disponível em: http://www.andhep.org.br/anais/arquivos/VIIencontro/gt09-01.pdf. Acesso em: 8 ago. 2020.
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, no final do século XIX, o Governo Imperial, como pagamento pelos serviços, prestados de abertura de estradas pelos indígenas, através da Colônia Militar do Chopim, concede oficialmente esse território aos Kaingang. Em 1903, o governo estadual, por meio do Decreto nº 64, reconhece essa área, com uma extensão de 17.308,0775 alqueires de terra.

No entanto, a partir de 1930, ocorreram expedições organizadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), conjuntamente com a Companhia de Terras Norte do Paraná, que definiram essas terras como áreas devolutas, visando transferi-las para a Fundação Paranaense de Colonização e Imigração (FPCI). Em 1949, a União e o estado paranaense expropriaram 8.976 alqueires desse território, concedendo-os para fazendeiros e madeireiros, que tiveram a permissão para desmatarem e usufruírem dessas terras (HELM, 2018HELM, C. M. V. A contribuição dos laudos periciais antropológicos para a investigação da antiguidade da ocupação de terras indígenas no Paraná. Curitiba: Edição do autor, 2018.). Essa expropriação esteve também relacionada ao projeto denominado “marcha para o oeste”, que previa a ocupação de áreas referidas como “vazios demográficos” (CASTRO, 2011, pCASTRO, P. A. de S. Angelo Cretã e a Retomada das Terras Indígenas do sul do Brasil. 2011. 161 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.. 30) por colonos de ascendência europeia, fomentando políticas de branqueamento.

Nesse período o Estado geria a política indigenista por meio do SPI, impondo, na forma de tutela, ordens autoritárias aos povos indígenas, subjugando as lideranças tradicionais (CASTRO, 2011CASTRO, P. A. de S. Angelo Cretã e a Retomada das Terras Indígenas do sul do Brasil. 2011. 161 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.). Dentre outras violências, ocorreu a transferência de pessoas que ali residiam para outros territórios, retirando-os de suas casas e afastando-os de seus parentes e de suas roças.

Frente a essas situações de violência, decorrentes do avanço da marcha da colonização, a mobilização e luta pela retomada das terras indígenas no Sul do Brasil se intensifica a partir dos anos 1960. Na TI Mangueirinha ocorre, em 1986, a retomada da área que havia sido apropriada pelos madeireiros. Nessa ocasião, a FUNAI apoiou a reocupação do território pelos indígenas, contestando judicialmente a ocupação colonizadora, através de laudos técnicos embasados por mapas, pela legislação e por documentos que comprovavam a ocupação e a posse indígena ancestral. Esses laudos foram solicitados, em 1994, pelo Ministério Público Federal (MPF) à FUNAI e em 2005 foi dada “a sentença favorável aos indígenas”, com o argumento de “que se as terras indígenas são bens públicos, gozam dos atributos da inalienabilidade e da imprescritibilidade, não podendo por isto, serem usucapitáveis como alegam os opostos” (HELM, 2012, pHELM, C. M. V. Direito histórico indígena de permanência na terra de ocupação tradicional: o reconhecimento da posse indígena pela Justiça Federal/PR, em caso de litígio. Universidade Federal do Paraná. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 7., 2012, Curitiba. Anais [...] Curitiba: Grupo de Trabalho: Comunidades Tradicionais e Territorialidades, 2012. Disponível em: http://www.andhep.org.br/anais/arquivos/VIIencontro/gt09-01.pdf. Acesso em: 8 ago. 2020.
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. 5-6).

Atualmente, os indígenas da Terra Indígena Mangueirinha, travam outras reivindicações, como aquelas feitas pelas mulheres artesãs Kaingang, para as quais as araucárias e as taquaras são agentes relacionáveis aos seus saberes e práticas. A partir dessa compreensão, apresenta-se o contexto da reivindicação local ao MPF sobre o direito da presença desses corpos humanos e extra-humanos na região.

O direito indígena de circular no espaço público da cidade

Um dos acontecimentos que marca essas reivindicações, ocorreu no ano de 2019, quando mulheres artesãs Kaingang, reportaram à primeira autora deste artigo - profissional da área da assistência social - uma denúncia sobre o modo como elas vinham sendo abordadas por agentes públicos em um município vizinho da TI, nos momentos em que elas para lá se deslocavam para a venda de seus artesanatos. Elas demandaram que a Secretaria Municipal de Assistência Social encaminhasse essa denúncia ao MPF para a resolução do caso. O conteúdo dessa ação expressava também a discriminação sofrida e a negação de direitos fundamentais, desde o início do processo de colonização. Segundo Maria Paula Prates (2013, pPRATES, M. P. Da instabilidade e dos afetos: pacificando relações, amansando outros: cosmopolítica guarani-mbyá (Lago Guaíba/RS). 2013. 317 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.. 38), ações que requerem a intervenção do MPF se perfazem numa “micropolítica que se move contra o Estado, utilizando-se dele próprio”.

Em seus relatos, as mulheres Kaingang descreveram as violências que sofreram nas abordagens feitas por servidores públicos do município, que as mandavam sair da cidade, pagavam passagem para que voltassem para suas casas ou que fossem para outros municípios. Em geral, esses procedimentos eram feitos com veículos públicos. Em uma dessas ocasiões, forçaram uma das artesãs a entrar no veículo com seus artesanatos e a deixaram à beira da rodovia, em local incerto, à noite.

Além disso, elas relataram inúmeras outras ameaças e xingamentos. Uma das mulheres contou que, em uma de suas idas para essa cidade vizinha, quando estava grávida e tinha um filho pequeno consigo, foi abordada por uma agente da prefeitura que determinou que saísse imediatamente da cidade e desejou, verbalmente, que o filho que a artesã esperava, morresse. Hoje a mãe associa essa violência com o quadro de baixo desenvolvimento escolar do filho que a acompanhava e presenciou o caso: “acredito que foi por causa disso que ele é assim, pois nenhum outro filho meu é como esse”. Em outra conversa, também afirmou que a criança que ela carregava na barriga na ocasião do xingamento, “não cresce”, pois o afetou diretamente. Esses relatos denotam a violência sobre o corpo da artesã e de seus filhos.

Outra interlocutora Kaingang narrou que, quando participou da Conferência Municipal de Assistência Social, realizada em 2017, foi interpelada de forma preconceituosa pela primeira-dama, que lhe perguntou por que elas queriam trabalhar se já recebiam o Bolsa Família. A sua resposta para ela foi: “o que eu recebo por mês do benefício não paga uma parcela desse vestido que você está usando”. Esse relato foi feito em tom irônico, e pode ser entendido como manifestação política frente à forma como sujeitos brancos, com poder, perpetuam a violência colonial no modo de abordar os povos indígenas.

No contexto brasileiro, há descrições de inúmeros outros casos de violências semelhantes contra os povos indígenas, que estão relacionados a conflitos fundiários, discriminação étnica, desrespeito aos modos de vidas desses coletivos, dentre outros (HUTUKARA, 2022HUTUKARA ASSOCIAÇÃO YANOMAMI ASSOCIAÇÃO WANASSEDUUME YE’KWANA (HUTUKARA). Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo. Instituto Socioambiental, 2022. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/prov0491_0.pdf. Acesso em: 20 jul. 2022.
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).

No documento encaminhado ao MPF, as mulheres Kaingang reivindicaram ocupar livremente os espaços públicos das cidades, por meio do transitar de seus corpos, conhecimentos e artesanatos. Ressalta-se que compreender essas reivindicações pela livre circulação consiste “em desfocar a cidade de sua dimensão de espaço construído, ordenado, antrópico, e situá-la em sua dimensão ecossistêmica, territorial e histórica” (FREITAS, 2005, pFREITAS, A. E. de C. Mrũr Jykre: a cultura do cipó: territorialidades Kaingang na margem leste do Rio Guaíba, Porto Alegre, RS. 2005. 464 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.. 35). Essa dimensão pode ser compreendida a partir da fala de uma das interlocutoras, quando questionada sobre a vontade, por ela expressa, de fazer um cadastro de residência na cidade: “é para podermos ter um lugar para ficar quando vamos vender nossos artesanatos”, ou seja, não necessariamente um lugar de permanência, mas de passagem e de conexões.

Algumas considerações finais

A partir da análise desenvolvida neste artigo é possível identificar que as relações coloniais estabeleceram um ordenamento jurídico violento contra os povos indígenas, que persiste mesmo após as independências dos países colonizados com relação às metrópoles. Esses ordenamentos regulam a realidade a partir de óticas euro referenciadas, que incidem em genocídios. Em contraponto a esse modelo, os povos indígenas têm lutado por seus corpos-territórios ao longo de séculos.

No Brasil, houve o reconhecimento tardio, por parte do Estado, da diversidade de organizações indígenas que lutam pelo direito a terra e à autodeterminação. A Constituição de 1988 reconheceu as especificidades étnicas desses povos. No entanto, mesmo com o reconhecimento jurídico-formal, esses coletivos ainda enfrentam violências de diversas formas.

Agradecimentos

Agradecemos às mulheres Kaingang da Terra Indígena Mangueirinha/PR, com quem mantemos relações de trabalho, de pesquisa e de amizade.

  • Notas

    1 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 30 mar. 2020.
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    ).
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Consentimento para a realização da pesquisa O consentimento para a realização da pesquisa foi dado pela então liderança Kaingang da Terra Indígena Mangueirinha, por meio de um termo de consentimento assinado conjuntamente. Uma cópia do termo ficou em posse da liderança e a outra com as pesquisadoras.
    Consentimento para publicação Consentimento das autoras.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Revisado
    13 Maio 2023
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