Acessibilidade / Reportar erro

A ele, com carinho: notas para Victor Heringer

To him, with love: notes to Victor Heringer

Resumo

O artigo pretende pensar o tema da saudade (de, e não em, Victor Heringer) como tentativa de homenagem, pelo efeito que a leitura de sua produção literária pode, de maneira pessoal e intransferível, quase como o acontecimento, mudar e abrir caminhos de percepção não só da obra em si, mas como também da própria tensão na teoria que suscita formulações genéricas, universalizantes. Através de movimentos que buscam pensar a junção do visto a partir do literário como a base de questionamento da teoria sem separar um e outro, relê-se argumentos em torno do gênero crônica e de como a literatura teria capacidade de mudar a vida de alguém a ponto de produzir, como resultado, uma tentativa de entendimento daquilo que resta a partir do momento no qual a relação produzida autor-leitor se quebra, ao mesmo tempo em que se mantém, depois da morte do primeiro pólo, em termos de sobrevivência e afeto.

Palavras-chave:
Victor Heringer; Vida desinteressante; leitura; homenagem

Abstract

This essay seeks to discuss saudade (of, and not in, Victor Heringer) as an attempt to pay homage to him in the sense that the reading of his literary production can, in a personal and non-transferable way, almost like the event, change the perception, and open new understandings, not only of the work itself but also of the tension in the theory that creates generic, universalizing formulations. Through movements that seek to reflect on the junction of what is read through the literary as the basis for questioning the theory without separating one from the other, we will re-read arguments around the chronicle genre and how literature would have the capacity to change someone's life and to produce, as a result, an attempt to understand what remains when the author-reader relationship is broken and what remains, in terms of survival and affection, after the author’s death.

Keywords:
Victor Heringer; Vida desinteressante; act of reading; homage

Resumen

El articulo pretende pensar el tema de la saudade (de, y no en, Victor Heringer) en un intento de homenaje en el sentido de que la lectura de su producción literaria puede, de manera personal e intransferible, casi como el acontecimiento, cambiar y abrir caminos de entendimiento no sólo de la obra, sino también de la tensión en la teoría que suscita formulaciones genéricas, universalizadoras. A través de movimientos que buscan pensar el cruce de lo visto desde lo literario como base para cuestionar la teoría sin separar uno de otro, se releen argumentos en torno al género de la crónica y cómo la literatura tendría la capacidad de cambiar el punto de vida de alguien y de producir, en consecuencia, un intento de entender lo que resta después que se rompe la relación autor/lector, y al mismo tempo entender lo que queda, en términos de sobrevivencia y afecto, después de la muerte del autor.

Palabras clave:
Victor Heringer; Vida desinteressante; lectura; homenaje

I

Diz Antonio M. Pereira, no ensaio “Como César Aira pode mudar sua vida” (2021PEREIRA, Antonio M. Como César Aira pode mudar a sua vida. ALEA, v. 23, n. 3, p. 190-205, 2021.), que, ao observar sua estante de livros, já acumulava ali um pequeno arsenal de manuais dedicados a pensar a maneira na qual autores como Marcel Proust e Fernando Pessoa poderiam mudar sua vida (a sua, leitor). Buscando entender essa tênue relação da literatura dita canônica que propiciaria um giro confuso na formação emocional de leitores, a só se justificar porque coloca como espelho o que a literatura canônica não é, ou seja, de autoajuda, o autor do texto passa a pensar, a partir de Aira, a maneira como o próprio escritor faz das linhas entre os rumos da vida e os da literatura algo mais confuso, enigmático, ao colocar em tensão e suspeição a separação tão determinada dos dois polos.

Este texto se abre assim, pela vontade de pensar o gesto estabelecido pelo autor a partir do momento em que ele tenta entender, de fato, como Aira seria capaz de mudar a sua vida (a sua, leitor), da maneira como ele mudara a vida do autor, um professor universitário que durante muito tempo pensou, escreveu e ensinou César Aira para seus alunos. O ensaio em questão segue narrando uma visita à Argentina como professor convidado e a ideia tida: iria visitar seu autor predileto, aquele que mudara sua vida, após o tensionamento estabelecido entre os manuais que pensariam como a literatura dita canônica pode mudar a vida e a formação sentimental de alguém, assim como a maneira pela qual isso se daria, tendo em mente César Aira.

A ideia vem da lembrança narrada por Augusto de Campos quando este conhecera Jorge Luis Borges, da mesma maneira que Pereira busca conhecer Aira: abrindo a lista telefônica, localizando o número, ligando, marcando um encontro. O que reconta Pereira através de Campos é a importância da memorialística a partir dessa junção do leitor com seu autor predileto, de como o descrito por Campos assume um papel tão grande na vida a se seguir a partir dali que se torna impossível não querer fazer igual. A questão principal do observado é, por se tratar de um recurso mnemônico, haver ali um certo deslocamento do momento da vida de Borges quando Campos o encontrara: pouco se falava da esposa, dado que o argentino já se encontrava com dificuldades para enxergar, todo tipo de prova (a gravação, a foto) acaba se perdendo e só resta, então, a memória para narrar o acontecimento.

Ainda que se matize a possibilidade dos fatos arrolados pela memória de Campos, em algum mundo possível, de não terem se sucedido no tempo da maneira como a narrativa os transpõe, Pereira de fato acha o endereço de Aira e, sem mesmo ligar, pensa o que vai falar ao autor, se perde no caminho, relembra outros críticos de Aira que chegaram a conhecê-lo e os que viram em seu escritório, em sua casa e, por fim, encerra seu texto dessa forma:

Poderia fracassar, é bem verdade, mas isso importava menos. Veja o que acontece em La vida nueva: fracassos são passados em revista, há o fracasso de Achával em publicar o livro, há o fracasso de Aira em ter seu livro publicado, há o fracasso de uma vida que poderia ter sido, é vista ao longe, mas não chega nunca, não foi. Nenhum ressentimento por não ter sido, e alguma ternura pelo que foi, de dentro do fracasso, visto como possibilidade, potência, esboço de uma forma de ser: essa é a atmosfera benevolente na qual Aira envolve seu depoimento sobre uma vida que ele não teve, a de um Aira que não escreve, não escreveu. Era como se atestasse “Escrevi, mas nada aconteceu. Não me fiz escritor”. Não houve carreira, ou vida literária, aquele Aira feneceu para que outro Aira pudesse florescer. Como uma espécie de Gato de Schrödinger literário, o livro que lemos foi escrito por um Aira que é e não é autor, que viveu e não viveu a vida em literatura que tinha me levado até ali, até aquele fim de tarde em Flores, no inverno, há muito tempo, buscando adentrar a literatura, encontrar um quarto de ferramentas que existe e não existe, e que está aqui quando enfim alcanço a porta de Aira e aperto a campainha, pronto para me anunciar. (PEREIRA, 2021PEREIRA, Antonio M. Como César Aira pode mudar a sua vida. ALEA, v. 23, n. 3, p. 190-205, 2021., p. 203).

O fim não é o fim, mas é o fim esperado, caso percebêssemos também o que o ensaio de Pereira parece sugerir como gesto para se pensar o texto como um todo. Dado a existência de um manejo, uma forma de tensionar os argumentos iniciais (os manuais, o espelho antagônico da literatura canônica e da literatura de autoajuda), o final do ensaio só poderia ser o apresentado: um final sem final, em uma aporia a também simbolizar e determinar um corte presente naquilo que o autor enxerga dentro de César Aira e de uma forma de olhar para a narrativa e a literatura produzida por ele, matizando a separação das vias da vida das do literário, sem dizer com todas as palavras, no final, o que lhe ocorrera. Um caminho que parece mostrar, assim, o imbricamento de Aira em sua maneira de ver o mundo, com uma profundidade perceptível a ponto de que se torna possível, a partir do momento no qual se reconhece algo como próprio do autor argentino, de ser mimetizado, explicado e refeito, dessa vez, pelo professor brasileiro, a ponto de se demonstrar o que está explícito no resumo do ensaio:

Neste ensaio busco explorar algumas ressonâncias entre a construção de um subgênero do comentário contemporâneo de literatura, traduzido no híbrido crítica/autoajuda, e alguns aspectos do trabalho de César Aira, que construiu ao longo de sua carreira uma obra bastante refratária ao jogo comumente celebrado entre literatura e pedagogia, fundado no papel orientador que a criação literária poderia ter em termos de fomentar prescrições morais louváveis. Crendo que assim Aira pensou e fez, creio também que, à revelia de suas possíveis intenções autorais, há algo em sua literatura que nutre certo panorama ético. Busco aqui comentar e discutir esse panorama a partir de uma leitura, necessariamente pontual, de um conjunto de textos de Aira que flertam com a autobiografia e a autoficção (como La Vida Nueva), associados a outros que operam com a questão da relação entre literatura e vida (como El Náufrago e Cecil Taylor), convocados em torno de um anedotário pessoal de motivação exploratória a partir do tema estabelecido no título. (PEREIRA, 2021PEREIRA, Antonio M. Como César Aira pode mudar a sua vida. ALEA, v. 23, n. 3, p. 190-205, 2021., p. 190).

Aquilo a juntar o início com o fim é, propriamente, quem assume existir algo a ser comentado e que só pode ser feito porque não transfere para o literário ou autoral de Aira a certeza de sua existência, mas sim, ao provar, através da experiência mimetizante de leitor, como a instituição da leitura forma e cria outras maneiras de viver e observar o vivível. Esse início, que parafraseia e toma tempo ao comentar, de forma breve, o texto de Pereira, se dá de acordo com a defesa possível de que o importante a partir da experiência da formação de um leitor é exatamente a dificuldade da transferência do acontecimento em si: há de se repetir o não repetível, tentando traduzir o que não se deixa traduzir por completo porque a língua é, ao mesmo tempo, vertreten e darstellen.

Termos que diferenciam duas acepções de representação, falar por alguém (na política, vertreten) e falar pela re-presentação (nas artes e na filosofia, darstellen) (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri. Pode o Subalterno Falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2010.), a língua deixa de ser mero espelho da realidade quando se observa, na produção acadêmico-literária, a dubiedade do representado a ser conteúdo definitivo do que poderia quebrar a artificialidade da dicotomia realidade versus ficção, quando a disputa em si seria a forma de controlar a ficção da ficção, ou seja, a metanarrativa determinante de uma forma de narrar o acontecimento como a única moldura, verdadeira, derradeira, capaz de cessar a disputa entre os termos da língua alemã (CRITCHLEY, 2012CRITCHLEY, Simon. Faith of the faithless: experiments in political theology. Londres: Verso, 2012. [Edição Kindle]. ).

O acontecimento da leitura e a possibilidade de falar a respeito dele a partir de uma ficcionalização primeira desse próprio ato já é, portanto, tradução: se o próprio acesso (seja por Pereira, Campos, ou o próprio César Aira) a qualquer contato que determine já uma instância com muitos atravessamentos (o livro, o autor, o mundo, o leitor, a leitura), a ficcionalização do instante da leitura enquanto algo fiel a uma única versão da vida também se rompe, sendo de difícil assertividade a existência de um receituário verdadeiro, real, ou mesmo verossimilhante, que pudesse se proclamar como único, dêitico da realidade a ali se confirmar, sem se deixar resto, diferença (DERRIDA, 2001bDERRIDA, Jacques. O que é uma tradução "relevante"? ALFA: Revista de Linguística, v. 44, n. 1, p. 13-44, 2001b.; 2012DERRIDA, Jacques. Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento. Cerrados, v. 21, n. 33, p. 229-251, 2012.).

De forma a funcionar como apresentação, mesmo que um tanto rápida, Victor Heringer (1988-2018) publicou, em vida, livros de poemas (Automatógrafo, 2011) e romances (Glória, 2013; O amor dos homens avulsos, 2016), entre outras plaquetes e experimentações audiovisuais. O livro a ser discutido, Vida desinteressante (2021HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021.), é uma compilação póstuma de publicações na revista Pessoa ao longo dos anos 2014 a 2017, em que, a convite de Carlos H. Schroeder, seu editor, havia tido a liberdade de escrever sobre o que quisesse. O resultado final apresenta crônicas sobre leilões de gado, entrevistas com amigos (Marília Garcia, Mariano Marovatto, Matilde Campilho, entre outros), homenagens a familiares, intercalando política, comentário social, humor, ressentimento, religião, traduções e, a meu ver, uma forma de ver o mundo e colocar de volta no centro do texto um tipo de sentimento (seja ele bom ou ruim) a quem lê algum tipo de diálogo, tentativa de encontro geradora de, ao mesmo tempo gerada por, um ritmo único e intransferível de relação com o leitor. Ao propor, dessa forma, a leitura das crônicas de Heringer, não tanto em uma tentativa de reunião geral a definir o que é e do que se trata qualquer espécie de projeto literário a partir desses textos, podendo ou não encontrar respaldo em sua produção literária fora da crônica, o caminho a ser percorrido neste ensaio toma como pressuposto a tentativa defendida acima. Ou seja: ao tentarmos nos aproximar da leitura a ser vista nos textos, o que se observa é, por fim, também uma aporia ao me descrever em alguma medida como prioproprietário (DERRIDA, 2008DERRIDA, Jacques. Marx & Sons. In: SPRINKER, Michael (ed.). Ghostly demarcations: a symposium on Jacques Derrida's Specters of Marx. Londres, Nova Iorque: Verso, 2008. p. 213-269.) do escrito neste texto.

Tendo uma espécie de prioridade em algo a ser considerado como propriedade, aquilo que menos falaria a respeito de Heringer, mesmo este sendo um gesto acadêmico no qual, de certa forma, fale de Heringer, traz como correlato uma versão do dito sobre mim, leitor de Heringer. O curto-circuito nesse círculo hermenêutico-vicioso se justifica porque, em um exercício que permanece sendo o da escrita analítica do ensaio literário, do texto para publicação, não me garante selo de prioridade, domínio da fala, mas me impele a falar para que de alguma forma seja possível fazer, através da escritura em si, algum sentido de justiça para o que só se torna possível falar porque o evento da leitura, do encontro entre a obra e este a me chegar de fora, marca e se torna parte de mim, me impelindo à escrita como uma espécie de demarcação de propriedade que me é muito próxima, a ponto de, na descrição, me aproximar de um não discernir de forma tão evidente o dito a meu respeito nessa confluência confusa (SPIVAK, 1995SPIVAK, Gayatri. Ghostwriting. Diacritics, v. 25, n. 2, p. 65-84, 1995.).

Isso, de alguma maneira, também traduz algo a ser considerado como a ética do fantasma em mim:

O ético não é um problema de conhecimento, mas de relação. É singular, mas generalizável, ou já generalizado em sua singularidade. Você deseja deixar a história assombrá-lo como fantasma ou fantasmas, com a incorporação inapreensível de um corpo fantasmagórico e a periodicidade incontrolável, esporádica e imprevisível de uma assombração, no quadro impossível da chance absoluta da dádiva do tempo, se houver qualquer. Não é, portanto, um passado que já foi necessariamente presente que se busca. O esforço principal é computar com o software de outros passados, em vez de referenciar a própria herança alucinatória por conta de uma política de competição identitária. (SPIVAK, 1995SPIVAK, Gayatri. Ghostwriting. Diacritics, v. 25, n. 2, p. 65-84, 1995., p. 70, tradução do autor).1 1 No original: “The ethical is not a problem of knowledge but a problem of relation. It is singular yet generalizable, or already generalized in its singularity. You crave to let history haunt you as a ghost or ghosts, with the ungraspable incorporation of a ghostly body, and the uncontrollable, sporadic, and unanticipatable periodicity of haunting, in the impossible frame of the absolute chance of the gift of time, if there is any. It is not, then, a past that was necessarily once present that is sought. The main effort is to compute with the software of other pasts rather than reference one's own hallucinatory heritage for the sake of the politics of identitarian competition”.

Não buscando traduzir outra relação possível, dentro da impossibilidade de narrar o próprio acontecimento, sem qualquer forma de representação a não ser aquilo que se traduz enquanto exercício falho (DERRIDA, 2012DERRIDA, Jacques. Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento. Cerrados, v. 21, n. 33, p. 229-251, 2012.), já propenso ao erro, porque não se pretende como metodologia a alcançar a ficção da ficção, passa-se à leitura dos textos presentes em Vida desinteressante, antecedidos por um problema geral observado naquilo que sustenta a própria forma do livro: o gênero crônica.

II

Diz o organizador do volume Vida desinteressante (Carlos H. Schroeder), que o conjunto ali apresentado reúne anticrônicas, no qual se veria:

[...] outras variações sobre a crônica clássica, em especial formais e espaciais. A dos jornais tem um espaço muito definido, regido pelo número dos caracteres, e seus autores têm uma espécie de contrato com seus leitores, já que eles esperam exatamente sempre a mesma coisa: o humor, a crítica ou a beleza de seus autores. As crônicas dos portais, com suas chamadas e subtítulos caça-cliques, prontas para serem compartilhadas o maior número de vezes possível, também não encontram muitos paralelos na máquina-heringer. Grande parte dos textos aqui reproduzidos vai na contramão de tudo isso: não tem ilustração bonitinha nem subtítulo; mas sim trechos do inglês e do espanhol sem tradução, referências obscuras, longas entrevistas, tradução de poemas, listas, trechos de diários… Um contraste muito nítido daquilo que se espera da tradicional crônica brasileira (uma anticrônica?, continua insistindo esse apresentador, sem muita convicção). (SCHROEDER, 2021SCHROEDER, Carlos H. Apresentação: Um anticronista no país da crônica? In: HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021. p. 9-20., p. 14-15).

A observação parece se nutrir da pressuposição de que a descrição da história, ou de uma história, dentro da perspectiva da historiografia literária, traduziria toda a formação e a mudança do gênero dentro de terras brasileiras. Antes de acatar, portanto, que a marca vista dentro da produção de Heringer se configura como um gênero antigênero, mesmo se a convicção, ou gesto retórico dela, queira indicar oscilação ali, não parece ser de todo descabido pensar os momentos em que tal construção literária parece ganhar definição e qual é seu rumo percebido como maior representante, ou idealidade dele, assim como identificar, afinal, qual o problema que tal curto circuito cria e continua sustentando, a ponto de o argumento citado acima ser o suplemento, não a efratura2 2 Ainda que Schroeder considere digno de nota que Heringer não teria se contaminado (Cf. SCHROEDER, 2021, p. 13) por teorias advindas do agrupamento Barthes-Benjamin-Deleuze-Derrida (o que, ao assim juntá-los, torna-se problemático por si só), efratura é assim definida: “irrupção do fora no dentro, encetando a interioridade da alma, a presença viva da alma a si no verdadeiro logos” (DERRIDA, 2013, p. 42). do significado circunscrito no significante “crônica”.

Se o que passa a ser visto a partir da produção de Heringer é algo a ser considerado como contrário à definição de crônica tida como a observação humorística, com algum respaldo na ironia, veiculada por um objeto tido como o meio tradicional para o gênero (o jornal), não é de todo absurdo entender que o surgimento de algo aquém e além de uma fronteira em específico não seja a destruição ou a completa inversão do visto até então. É a construção historiográfica justificada pela crítica literária que transforma o gênero em um conceito estanque, quando a lei tradicional da formação destes é vista como violência (ARAÚJO, 2020ARAÚJO, Nabil. Sobre a violência da crítica: canonização historiográfica como domesticação da alteridade. In: WALTY, Ivete L. C.; MOREIRA, Terezinha T. Violência e escrita literária. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2020. p. 29-75.), manobra epistêmica a justificar o inscrito a partir dali, porque a regra espelhada, momento de presença anterior, seria não a separação dos gêneros, pois eles não podem se misturar para serem definidos como aquilo que são enquanto identidade individual e restrita a uma maneira específica de gerir a linguagem e gerar um texto, mas, sim, que todos, em determinado ponto, já possuem zona cinzenta considerada infiltração, contaminação e, daí, o surgimento da lei do gênero como violentamente separadora dos termos a partir da máxima “não misturará os gêneros” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. A lei do gênero. TEL (Tempo, espaço e linguagem), v. 10, n. 2, p. 250-281, 2019a.).

Comento, de forma breve, dois textos a respeito do gênero crônica, de modo a exemplificar a afirmação acima, ainda que não se torne (ou não haja a necessidade de se tornar) exemplar. Candido (2003CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CAMPOS, Paulo M.; BRAGA, Rubem; ANDRADE, Carlos D.; SABINO, Fernando. Crônicas: para gostar de ler. São Paulo: Ática, 2003. p. 89-99.) diz agradecer o fato de a crônica ser um gênero menor: considerado como aquele a descrever a vida ao rés-do-chão, garantido pela presença do comentário rápido, feito de acordo com a observação do mundo real transplantado para o mundo do texto, a partir de alguma percepção que atravesse essa tradução respaldada na figura do autor, o destacado pelo crítico como principal do gênero é o humor, a observação social do cotidiano mais imediato e a veiculação do texto principalmente no suporte do jornal. No entanto, a importância da descrição, no argumento do autor, é fundamental para se demonstrar a diferença da teorização de algo a ser observado e da constatação de algo que teria como suporte a obviedade do olhar do crítico, assim como qual é o tipo de consequência atribuída ao fato de não se teorizar a crônica, mas sim constatar sua existência como dada, observável de forma natural. Isso pressupõe as seguintes formas de construção do conhecimento: 1) a instituição da crítica literária como transparente, ou seja, não há ali representação de um papel, como se o crítico fosse em si ciente de todos os seus desejos e formas de apresentação de um conteúdo que não precisa ser retraduzido; só haveria ali verdade na construção do dito pelo intelectual porque ele é a figura assegurada pelo e asseguradora do circuito da hermenêutica a, de uma vez só, tanto inaugurar a forma de interpretação, quanto encerrá-la e 2) quando se atribui critério de obviedade ao observável e o que se propõe é somente a descrição dos fatos do gênero como eles o são, o visto é 2.1) a impossibilidade do dissenso, como se dizer algo contra o ali elaborado fosse um perjúrio a ser evitado, e 2.2) que se naturaliza uma forma de expressão da crônica em detrimento de outras, como se o gênero, a partir de uma espécie fenomenal de brotamento, tivesse atingido seu ponto de maestria na sua forma moderna de ser.

Outro ponto organizador da crônica como gênero menor, a partir da observação do real, não de sua teorização, é que a forma de escrita literária é tida como menor porque, dentro do raciocínio de Candido, a primazia da tradução do epítome da literatura brasileira é o romance, cujo maior símbolo possível é Machado de Assis. Ponto defendido desde a Formação da literatura brasileira, o subsumido à argumentação do crítico é que a comparação já é, desde o momento de partida, não-natural, pois a própria escolha estruturante do pensamento com um critério ajuizado de valor reitera o defendido pelo autor: a descrição como forma de observar o mundo sem interferência explícita, ou dita de tal forma que exprima vontade de convencimento, teorização em si (MORAES, 2015MORAES, Anita M. R. de. Para além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido. São Paulo: Editora da Unesp, 2015.; MELO, 2020MELO, Alfredo C. B. de. A formação como nacional-ocidentalização. Criação & Crítica, n. 26, p. 136-148, 2020.). O correlato disso parece ser que só é vontade de convencimento, sofismo, argumento paroxista, aquilo a, de certa forma, tensionar exatamente a possibilidade de se questionar se o visto é natural, se há algo de não esquemático também no olhar e na ideia de que a comparação exprime juízo de valor, ainda que se queira dizer o contrário disso.

Esse trajeto de exclusão para observar a forma moderna como aquilo a definir a melhor maneira de se pensar a crônica como o ponto de partida, chegada e parada para quem nesses mares se aventurasse está descrito em Arrigucci (1987ARRIGUCCI, Davi. Fragmentos sobre a crônica. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.). Através de uma tentativa de genealogia da crônica como o gênero no qual o autor é o contador/cantador de seu tempo, recriado pela narrativa, observa-se o percurso desde o tempo mitológico (grecolatino) até o de Rubem Braga, passando por Machado de Assis e analisando com atenção esse a parecer, para Arrigucci, um representante que teria, de certa forma, tensionado da melhor maneira o pensamento crítico e a narrativa do dia a dia (a ser incorporada em suas obras maiores, os romances).

Arrigucci parece concordar com Candido nos âmbitos da organização geral do gênero (narrativa curta, humorada, com alguma lição dali a ser retirada, veiculada pelo jornal); no entanto, as figuras que estabelecem o modo de comparação forçam duas visões diferentes para a mirada do estado atual das coisas, a partir do local enunciatário de cada um dos críticos referenciados. Se é Machado de Assis o melhor representante do gênero para Arrigucci, a pensar naquilo que o autor fizera com sua produção de cronista, ao lançar sua opinião contrária a respeito, por exemplo, da escravização de pessoas negras, a partir de um pseudônimo, para Candido, é Rubem Braga, no entanto, o melhor exemplo de cronista,3 3 Ponto do qual Arrigucci textualmente discorda. pela narrativa das pequenas coisas da vida e da relação, a ser visto entre isso e o ensinamento possivelmente humanizador da crônica.4 4 Ainda que o termo passe sem qualquer baliza ou explicação do que é, afinal, a ideia da humanização da/na literatura e quem seriam os detentores do poder humanizador, muito menos quais seriam os humanos não tão humanos que careceriam de humanidade, como analisa Moraes (2017).

A distinção entre os dois autores gera um ponto de querela no qual seria não só o maior representante da crônica, mas também o ponto de parada a ser observável como exemplo e exemplar: se um caso a ser analisado (Assis) ocupa grande parte da argumentação de Arrigucci, é porque algo parece estar acontecendo com uma suposta imagem já defendida de crônica, que sofre tanto torção no gênero quanto na ideia de que o observado é pessoal, intransferível e, assim, também já se perdeu, sem chance de ser mimetizado ou herdado. Se o outro (Braga) é um retrato candidiano já anos depois da produção das crônicas (pensando nas heranças dos nomes do Modernismo Brasileiro) como uma configuração do que é melhor (logo, a ser seguido, mas também a ser possivelmente quadro de um tempo glorioso da crônica que não volta), ainda assim se marca como distintivo algo a escapar da categorização do presente, determinando o gênero sempre pelo passado, como se a representação da forma a vir fosse idêntica a uma repetição do que demonstrou ser, sobrevivendo ao tempo, como se isso também fosse qualidade intrínseca ao texto ali defendido como bom, humanizador e exemplar.

Em Heringer, há dois momentos que parecem colocar em questão tanto a tópica da crônica quanto o fazer do cronista, elencados a seguir:

Ao contrário do que afirmam ludditas e tradicionalistas de uma nota só, o nosso não é o tempo do vale-tudo - este quase sempre relacionado a uma suposta dissolução estética, mas também ética, que nos impediria de enxergar um Rumo. Esse resmungo também não passa de uma saudade de uma vanguarda a ser seguida e desejo de que surja, do nada, um salvador da espécie. Não é que não saibamos para onde ir. Em termos planetários, aliás, temos pouquíssimas saídas, mas muitas, muitas maneiras de apontá-las. O que significa o seguinte: não há vanguarda, não há líder nem messias em campo nenhum da experiência humana atual. É necessário, ainda outra vez, escutar a bruta e oca poesia dos leilões de gado para descobrir como não ser gado. Só assim seremos capazes de dar, enfim, um nome ao nosso tempo. (HERINGER, 2021HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 24).5 5 Originalmente publicada em 8 de fevereiro de 2014.

Em outro momento:

Por temperamento e profissão, sou do bloco da vida pequena, confusa, emporcalhada. Desconfio de uniformes que não sejam de sex shop e de messias que não os falsos barbudos de Carnaval. Acho engraçado quando dizem que, pelo menos, estão no lado certo da História, na vanguarda da arte, no caminho certo para a prosperidade. Eu não sei nem para que lado fica Cachoeiro de Itapemirim. Sempre na dança das cadeiras. Sempre meio tonto. Quase sempre tendo derramado cerveja na camisa. A salvação nacional vocês me deem, por favor, com o engov de amanhã. Vou tentar engolir. Juro que vou tentar engolir. Mas não me venham com gracinhas, com olha-o-aviãozinho, que aí já é abusar da paciência. E a bebida de ontem bota na conta do [Rubem] Braga, que eu ando sem crédito. (HERINGER, 2021HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 232-233).6 6 Originalmente publicada em 7 de dezembro de 2017.

Gostaria de sugerir que aqui já se emula a possibilidade de pensar, talvez, a (im)possibilidade da efratura, quando o utilizável como mote de pensamento é a própria noção na qual a definição do gênero, da identidade da crônica, é, por si só, imanente àquilo que vai sendo feito ao longo de sua historicidade, e não algo a ser definido como uma forma entre tantas outras a ainda, dentro do esquema da chance, ser pensado por outro horizonte todavia não imaginado: aquilo que poderia ser, assim, o erro da apresentação do livro a reunir as crônicas de Heringer, não de forma a individualizar o que vejo como paralaxe na leitura, mas sim um sintoma segundo o qual a própria definição (e sua categoria) se enquadra.

Se a instituição da literatura for só e somente só o que ela faz, ou seja, se a descrição passa a ser a tautologia da explicação girando em falso, o que continuaria a ser observado é só e somente só o Messias eleito e justificado como manutenção da desigualdade da narrativa, o controle da ficção da ficção: para se encerrar de fato o gênero como um todo seria necessário o fim de todo o mundo, categoria holística e definida como o Mundo, o que só é possível na e como literatura (DERRIDA, 1987DERRIDA, Jacques. Psyché: inventions de l'autre. Paris: Galilée, 1987.). Assim, o visto, em Heringer, é menos a implosão de ali se narrar a crônica, dado que o oposto da definição também é tanto definitivo desta quanto suplemento (DERRIDA, 2015DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2015., 2019aDERRIDA, Jacques. A lei do gênero. TEL (Tempo, espaço e linguagem), v. 10, n. 2, p. 250-281, 2019a.), e mais a sugestão já vista desde Arrigucci, com o parafraseamento do argumento a respeito da existência do gênero conto: se assim se nomeia crônica, assim é. Isso porque, ao observar e renarrar o leilão de gado como a forma de também não assim o ser, o que parece ser emulado é não a salvação de fora como algo a surgir e, como um anjo redentor (talvez, a contragosto do apresentador, ecoando o anjo benjaminiano), implodir a situação toda como força a necessariamente ser considerada algo totalmente outra, externa, mas sim algo que possa, a partir do lado de dentro (dada a não determinação do fora e do dentro), ser uma nova possibilidade de caminho, ação e visão de mundo.

Isso significa sugerir que a anticrônica é tão crônica quanto o estabelecido pela fortuna crítica, pois esta só é assim através da violência epistêmica e da legitimação de um olhar em detrimento de outros. Ao deixar o estabelecido, o olha-o-aviãozinho, na conta de Braga, ainda que se veja uma filiação possível a outros nomes, exceto esse (como o papel de Assis) nas crônicas de Heringer, não é só e somente só uma tentativa de determinação pela diferença daquilo que as crônicas do autor não são, mas sim a possibilidade de se pensar que as próprias outras formas de se narrar e criar algo a ser pensado como crônica já existem e podem ser vistas no rompante de uma narrativa de leilão de gado, assumindo o próprio papel de efratura, em uma relação na qual o fora está tão dentro a ponto da sugestão derridiana incluir, de forma excluída, que o fora é o dentro (DERRIDA, 2013DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato J. Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2013.).

Isso também significaria, talvez, dizer que a crônica se faz-fazendo, pelo sentido no qual, como o poema (DERRIDA, 2001aDERRIDA, Jacques. Che cos’è la poesia? Tradução de Tatiana Rios e Marcos Siscar. Inimigo Rumor, n. 10, p. 113-116, 2001a.), aquilo a gerar a própria existência é o ali constituído enquanto formador de seu outro, seu par, o coração daquele a quem tal forma literária espera: o leitor. Disso, deriva o fato de que, ao se pensar o próprio fazer, a negação da receita, do feito até ali e observado na fortuna, na possibilidade da herança, é também questionar a maneira na qual isso se constitui enquanto ordem, unicidade da fortuna do herdeiro que há de se fingir como tal, não enquanto multiplicação de possibilidades das formas de herdar, assim como das heranças em si (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional. Tradução de Annamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.).

III

A memória é viva, mas sempre injusta. A morte do outro, do outro querido, é o acontecimento derradeiro que impede a junção Eu-Outro de continuar acontecendo de maneira presentificada. Falar após o evento da morte é implicar quem fala também como quem, a partir de tal momento, vai sempre continuar errante, sobrevivendo e, ainda assim, há de se continuar de alguma forma junto, perto daquele por quem se nutria o carinho:

Continuarei ou recomeçarei a ler Gilles Deleuze para aprender e terei de errar só nesta longa conversa que deveríamos ter tido juntos. [...] E tentaria lhe dizer porque seu pensamento nunca me abandonou em quase 40 anos. Como ele o fará daqui para frente? (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Terei que errar só Derrida evoca lembranças de Gilles Deleuze, morto há um mês. Folha de S. Paulo, 1995. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/12/03/mais!/21.html . Acesso em: 12 maio 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/1...
, n. p.).

As perguntas que Derrida (1995DERRIDA, Jacques. Terei que errar só Derrida evoca lembranças de Gilles Deleuze, morto há um mês. Folha de S. Paulo, 1995. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/12/03/mais!/21.html . Acesso em: 12 maio 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/1...
) gostaria de fazer a Deleuze se tornam questões que agora já observa como tarde demais para entregar ao destinatário: a errância solitária é o destino do sobrevivente e, ao mesmo tempo, é a obra daquele que o acompanha outro sobrevivente, marcado pela junção desse encontro no qual é o futuro, aliado aos 40 anos passados, a garantia da certeza da permanência desse elo construído em vida. As lições que a morte do outro, mas também a morte como espelho da vida enquanto certeza da finitude da experiência do ser-ente vivente, são ensinamentos primordialmente do eu para si próprio, não para outra pessoa, ainda que a ideia de “ensinar uma lição” seja esse fantasma duplo, a sempre poder garantir o ensinamento, tanto a si de si, quanto a ameaça de um eu para um outro, na ideia de que aprender a viver é também uma possibilidade violenta, exercício no qual as peças se colocam em seus “devidos lugares”, para o funcionamento de uma relação (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional. Tradução de Annamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.; 2005DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin. Paris: Galilée , 2005.).

A reflexão engendrada da vida como algo a só ser entendido porque seu oposto, a morte, também define o que pode vir a significar a vida, garante ao entendimento do fim sempre força de mola propulsora bidirecional: o fim enquanto tema traz tanto o pensamento para a morte quanto sobre ela, por nos aproximar dela e, concomitantemente, por mais narcísico que tal ato possa parecer, nos coloca exatamente no ponto no qual algo há de restar, sobreviver, pois o definidor da relação exige sempre mais de um (DERRIDA, 2019bDERRIDA, Jacques. La vie la mort. Paris: Editions Du Seuil, 2019b.). O livro (e a instituição, de forma metonímica, a literatura) enquanto herança inevitável nessa relação continua a propagar e a diferenciar essa constituição da identidade do elo autor-leitor, dado que a sobrevivência disso só dependeria, por fim, dessa união a se entender enquanto finita e, por isso mesmo, sempre já prolongada no tempo (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin. Paris: Galilée , 2005.).

A felicidade e a possibilidade de viver além da vida, do laço que aqui se estabelece por e através da literatura é tão parecido com o salto de fé, como também com a proposta de crônica elabora por Heringer nas formas de tentar não sucumbir à mesmice e ao receituário do já feito, ainda que se esteja sempre em dívida com alguém pelo dom alcançado da vida estabelecida até ali, exatamente pela diferenciação do eu com o outro, como constituintes necessários e obrigatórios para a determinação de algo a ser chamado de crônica heringeriana. A fé como aquilo a que se entrega, como o outro a chegar, independentemente de como, quando e quem, assim como uma entrega para a leitura, para o imprevisível do acontecimento a nunca se repetir da mesma forma, mas sempre tendo a chance de existir e acontecer mais uma vez, diferente, é também uma fé na vida a ser vivida pelo vivente que se encontra a todo tempo com a sua própria manifestação da fé do ateu,7 7 Como comenta Baring (2019): “[c]omo sugeriu Derrida, ‘para encontrar a religião e Deus outra vez, Simone Weil fala em um ateísmo purificador [athéisme purificateur]; deve-se perder Deus... para encontrá-lo outra vez’. Como ele sugere em seu ensaio sobre a existência de Deus, essa nova crença que surge do ateísmo não seria mais ingênua, mas sim oriunda da livre escolha. O indivíduo não viria a provar [prouver] a existência de Deus, mas sim senti-la [éprouver]. Parafraseando Marcel, Derrida escreveu ‘Deus é o misterioso, o metaproblemático por excelência. Ele é o objeto do amor e, portanto incaracterizável’ pelos poderes racionais humanos. E porque ele não poderia ser compreendido de modo racional, Derrida afirmava, ‘acredito porque é absurdo.... o que é dizer que minha crença não é ingênua ou espontânea; tampouco é alheia à razão; é um ato voluntário e corajoso’. Derrida havia absorvido a linguagem de Sartre da escolha autêntica e a voltava agora contra ele. Não poderia haver qualquer certeza sobre Deus, o indivíduo precisa fazer uma decisão resoluta para crer. Mas, porque essa crença respondia à estrutura existentiel da vida humana, nossa consciência constante da insuficiência, essa escolha era a única escolha autêntica. Derrida, ao parodiar Sartre, afirmava que o Homem estava ‘condenado a ser um otimista’” (BARING, 2019, p. 90). como em Heringer: “[...] não acredito em Deus. Devo ser um dos poucos médiuns ateus da umbanda.8 8 Diria, ainda que tarde demais, que talvez eu também seja um dos. Acredito no transe, porque acontece comigo. E acredito que aqui na Terra mesmo existem mais coisas do que sonha a nossa vã neurologia” (HERINGER, 2021HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 183).9 9 Originalmente publicada em 10 de novembro de 2015.

Se a fé passa a ser o domínio da doação ao absurdo, ao ridículo, no sentido em que a demanda da fé é sempre superior a tudo (e só poderia ser assim), viver como um ateu com fé é tão próximo do amor absoluto quanto se poderia chegar: live, love (CRITCHLEY, 2012CRITCHLEY, Simon. Faith of the faithless: experiments in political theology. Londres: Verso, 2012. [Edição Kindle]. ; NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.). O jogo feito por Simon Critchley importa na medida em que continuar vivendo, tendo como parâmetro, quando pensamos na produção de Heringer, que o mundo é maior que o Mundo, sendo a fé maior que a demonstração da crença em algo absoluto e ao mesmo tempo particular (uma espécie de acomodação de um deus como Deus, a ficção da ficção) é também um remédio contra o tédio, a tentativa de não normativização de uma vida como o receituário do a sempre ser vivido. O amor, essa demanda eterna pelo Outro que sempre pode assumir diversas faces, na literatura passa a ser (d)o leitor, no desejo dessa combinação a se deixar por vir. O endereçamento final, mesmo quando dedicado a alguém, demonstra também a vontade de (re)estabelecer o laço nunca de fato perdido, como ao enviar notícias à avó já falecida, perguntando:

Vou carregando a tradição familiar: baixo uns santos de vez em quando, mas o futuro é uma coisa realmente difícil de se ver com clareza. [...] As abelhas não andam bem. Quando a senhora estava viva, ainda existiam rinocerontes-negros, leopardos-nebulosos, maçaricos-esquimós. Eles estão aí agora? A senhora tenha cuidado com os leopardos. O tédio daí é melhor do que o daqui? As coisas se bagunçam, mas parece que sempre dão um jeito de parecer o que sempre foram. [...] Tentei parar de fumar, mas acabei voltando. Nunca fiz bolinhos de chuva, mas as pessoas dizem que eu cozinho bem. O ser humano nunca mais pisou na Lua, não é esquisito? De resto, tudo igual. Um beijo. (HERINGER, 2021HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 230).10 10 Originalmente publicada em 27 de novembro de 2016.

Há, por fim, somente a saudade e o desejo de que, de onde quer que você esteja, Victor, que esteja sorrindo. Como diria, mais uma vez, Derrida (2007DERRIDA, Jacques. Final Words. Critical Inquiry, v. 33, n. 2, 2007.): estarei sempre sorrindo de volta para você. De resto, tudo igual. Um beijo.

Agradecimentos

O autor agradece o subsídio recebido da FAPESP para o desenvolvimento da pesquisa que gerou este trabalho. Estende também um agradecimento especial aos avaliadores do artigo e aos Editores de Alea pelos valiosos comentários que permitiram a reescrita bem-sucedida do texto.

Os editores de Alea agradecemos ao órgão de fomento à pesquisa pelo apoio dado ao pesquisador, aos avaliadores, pela qualidade de seus pareceres e ao autor pela excelente recepção dessa prática de Ciência Aberta que Alea está empenhada em sistematizar.

Referências

  • ARAÚJO, Nabil. Sobre a violência da crítica: canonização historiográfica como domesticação da alteridade. In: WALTY, Ivete L. C.; MOREIRA, Terezinha T. Violência e escrita literária Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2020. p. 29-75.
  • ARRIGUCCI, Davi. Fragmentos sobre a crônica. Enigma e comentário São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • BARING, Edward. O jovem Derrida e a filosofia francesa, de 1945 a 1968 Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019.
  • CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CAMPOS, Paulo M.; BRAGA, Rubem; ANDRADE, Carlos D.; SABINO, Fernando. Crônicas: para gostar de ler. São Paulo: Ática, 2003. p. 89-99.
  • CRITCHLEY, Simon. Faith of the faithless: experiments in political theology. Londres: Verso, 2012. [Edição Kindle].
  • DERRIDA, Jacques. Psyché: inventions de l'autre. Paris: Galilée, 1987.
  • DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional. Tradução de Annamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
  • DERRIDA, Jacques. Terei que errar só Derrida evoca lembranças de Gilles Deleuze, morto há um mês. Folha de S. Paulo, 1995. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/12/03/mais!/21.html Acesso em: 12 maio 2022.
    » https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/12/03/mais!/21.html
  • DERRIDA, Jacques. Che cos’è la poesia? Tradução de Tatiana Rios e Marcos Siscar. Inimigo Rumor, n. 10, p. 113-116, 2001a.
  • DERRIDA, Jacques. O que é uma tradução "relevante"? ALFA: Revista de Linguística, v. 44, n. 1, p. 13-44, 2001b.
  • DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin Paris: Galilée , 2005.
  • DERRIDA, Jacques. Final Words. Critical Inquiry, v. 33, n. 2, 2007.
  • DERRIDA, Jacques. Marx & Sons. In: SPRINKER, Michael (ed.). Ghostly demarcations: a symposium on Jacques Derrida's Specters of Marx Londres, Nova Iorque: Verso, 2008. p. 213-269.
  • DERRIDA, Jacques. Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento. Cerrados, v. 21, n. 33, p. 229-251, 2012.
  • DERRIDA, Jacques. Gramatologia Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato J. Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2013.
  • DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão Tradução de Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2015.
  • DERRIDA, Jacques. A lei do gênero. TEL (Tempo, espaço e linguagem), v. 10, n. 2, p. 250-281, 2019a.
  • DERRIDA, Jacques. La vie la mort Paris: Editions Du Seuil, 2019b.
  • HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021.
  • MELO, Alfredo C. B. de. A formação como nacional-ocidentalização. Criação & Crítica, n. 26, p. 136-148, 2020.
  • MORAES, Anita M. R. de. Para além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido. São Paulo: Editora da Unesp, 2015.
  • MORAES, Anita M. R. de. A função da literatura nos trópicos: notas sobre as premissas evolucionistas de Antonio Candido. Cerrados, v. 26, n. 45, 2017.
  • NATALI, Marcos P. A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.
  • PEREIRA, Antonio M. Como César Aira pode mudar a sua vida. ALEA, v. 23, n. 3, p. 190-205, 2021.
  • SCHROEDER, Carlos H. Apresentação: Um anticronista no país da crônica? In: HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021. p. 9-20.
  • SPIVAK, Gayatri. Ghostwriting. Diacritics, v. 25, n. 2, p. 65-84, 1995.
  • SPIVAK, Gayatri. Pode o Subalterno Falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG , 2010.
  • 1
    No original: “The ethical is not a problem of knowledge but a problem of relation. It is singular yet generalizable, or already generalized in its singularity. You crave to let history haunt you as a ghost or ghosts, with the ungraspable incorporation of a ghostly body, and the uncontrollable, sporadic, and unanticipatable periodicity of haunting, in the impossible frame of the absolute chance of the gift of time, if there is any. It is not, then, a past that was necessarily once present that is sought. The main effort is to compute with the software of other pasts rather than reference one's own hallucinatory heritage for the sake of the politics of identitarian competition”.
  • 2
    Ainda que Schroeder considere digno de nota que Heringer não teria se contaminado (Cf. SCHROEDER, 2021SCHROEDER, Carlos H. Apresentação: Um anticronista no país da crônica? In: HERINGER, Victor. Vida desinteressante: fragmentos de memórias. São Paulo: Companhia das Letras , 2021. p. 9-20., p. 13) por teorias advindas do agrupamento Barthes-Benjamin-Deleuze-Derrida (o que, ao assim juntá-los, torna-se problemático por si só), efratura é assim definida: “irrupção do fora no dentro, encetando a interioridade da alma, a presença viva da alma a si no verdadeiro logos” (DERRIDA, 2013DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato J. Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2013., p. 42).
  • 3
    Ponto do qual Arrigucci textualmente discorda.
  • 4
    Ainda que o termo passe sem qualquer baliza ou explicação do que é, afinal, a ideia da humanização da/na literatura e quem seriam os detentores do poder humanizador, muito menos quais seriam os humanos não tão humanos que careceriam de humanidade, como analisa Moraes (2017MORAES, Anita M. R. de. A função da literatura nos trópicos: notas sobre as premissas evolucionistas de Antonio Candido. Cerrados, v. 26, n. 45, 2017. ).
  • 5
    Originalmente publicada em 8 de fevereiro de 2014.
  • 6
    Originalmente publicada em 7 de dezembro de 2017.
  • 7
    Como comenta Baring (2019BARING, Edward. O jovem Derrida e a filosofia francesa, de 1945 a 1968. Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019.): “[c]omo sugeriu Derrida, ‘para encontrar a religião e Deus outra vez, Simone Weil fala em um ateísmo purificador [athéisme purificateur]; deve-se perder Deus... para encontrá-lo outra vez’. Como ele sugere em seu ensaio sobre a existência de Deus, essa nova crença que surge do ateísmo não seria mais ingênua, mas sim oriunda da livre escolha. O indivíduo não viria a provar [prouver] a existência de Deus, mas sim senti-la [éprouver]. Parafraseando Marcel, Derrida escreveu ‘Deus é o misterioso, o metaproblemático por excelência. Ele é o objeto do amor e, portanto incaracterizável’ pelos poderes racionais humanos. E porque ele não poderia ser compreendido de modo racional, Derrida afirmava, ‘acredito porque é absurdo.... o que é dizer que minha crença não é ingênua ou espontânea; tampouco é alheia à razão; é um ato voluntário e corajoso’. Derrida havia absorvido a linguagem de Sartre da escolha autêntica e a voltava agora contra ele. Não poderia haver qualquer certeza sobre Deus, o indivíduo precisa fazer uma decisão resoluta para crer. Mas, porque essa crença respondia à estrutura existentiel da vida humana, nossa consciência constante da insuficiência, essa escolha era a única escolha autêntica. Derrida, ao parodiar Sartre, afirmava que o Homem estava ‘condenado a ser um otimista’” (BARING, 2019BARING, Edward. O jovem Derrida e a filosofia francesa, de 1945 a 1968. Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019., p. 90).
  • 8
    Diria, ainda que tarde demais, que talvez eu também seja um dos.
  • 9
    Originalmente publicada em 10 de novembro de 2015.
  • 10
    Originalmente publicada em 27 de novembro de 2016.
  • Declaração de financiamento

    Os resultados apresentados aqui através desta homenagem a Victor Heringer são frutos de um projeto financiado por uma bolsa de Mestrado, concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2021/03903-8.

Editado por

Parecer Final dos Editores

Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com