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Apresentação

O mundo contemporâneo é marcado por processos de urbanização e de metropolização, aproximando-nos da hipótese de Lefebvre em seu conhecido livro, A Revolução Urbana (19702. LEFEBVRE, H. La révolution urbaine. Paris, Gallimard. 1970.). Em 2000, as trinta maiores aglomerações urbanas do mundo concentravam cerca de 360 milhões de pessoas. Segundo o estudo da Divisão de População da ONU, World Urbanization Prospects 2014, estimou-se que esses aglomerados teriam cerca de 480 milhões de pessoas em 2015, com uma previsão de aproximadamente 600 milhões para 2030. Uma significativa parte desse crescimento ainda é sustentada por diversas metrópoles do hemisfério Sul que, mesmo vivenciando o declínio da fecundidade, ainda apresentam crescimento populacional expressivo. Ao mesmo tempo, a rápida concentração da população nas grandes cidades de países do Sul aponta o processo de desruralização, induzido pela incorporação do campo à expansão das fronteiras mundiais de circulação do capital (Observatório das Metrópoles, 2015, p. 8).

Segundo o estudo inédito da ONU-Habitat, Estado das Cidades da América Latina e Caribe (2012)1 1 O documento na íntegra está disponível em www.onuhabitat.org ou diretamente em http://bit.ly/CidadesALCaribe2012 , a região da América Latina e do Caribe é a mais urbanizada do mundo, mas também uma das menos povoadas em relação ao seu território. Quase 80% de sua população vive em cidades, uma proporção superior à do grupo de países mais desenvolvidos do Norte. O crescimento demográfico e a urbanização, processos que no passado foram muito acelerados, perderam força. Atualmente, a evolução demográfica das cidades tende a se limitar ao crescimento natural. Segundo o mesmo estudo, no Brasil e nos países do Cone Sul, onde as taxas de urbanização são mais aceleradas, a previsão é que a urbanização chegará a 90% até 2020. No México e nos países que formam a região andino-equatorial, a urbanização prevista é de 85%. Além disso, esse crescimento incorre em alta concentração demográfica em grandes cidades. Hoje, 34 % da população da América Latina vive em cidades com mais de 1 milhão de habitantes e 20% em centros metropolitanos, com mais de 5 milhões de pessoas. Não obstante a melhora dos indicadores básicos de bem-estar nas últimas décadas, o estudo demonstra que o processo de urbanização ainda ocorre mediante a produção de cidades desiguais em termos de bem-estar urbano e, em geral, sem planejamento adequado.

No Brasil, segundo estudo recente do Observatório das Metrópoles, Integração dos Municípios Brasileiros à Dinâmica da Metropolização (2014), quarenta aglomerações apresentam aproximação com o processo de metropolização, seja por efetivamente constituírem-se em metrópoles em nível nacional, ou por serem polarizadas por capital de estado, ou ainda por apresentarem ao menos um município com alto nível de integração à dinâmica da metropolização. Nessas aglomerações residem aproximadamente 93 milhões de pessoas (48% da população nacional), com uma concentração de 63,5% da renda nacional e 65% do PIB. Entre essas aglomerações, temos doze metrópoles, que são aglomerados urbanos com as características das novas funções de comando, direção e coordenação próprias das grandes cidades na "economia em rede" (VELTZ, 19966. VELTZ, P. Mondialization. Villes et territoires. L'économie d'archipel. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.).

As transformações tecnológicas, sociais e econômicas que ocorreram a partir da segunda metade da década de 1970, decorrentes especialmente da globalização e da reestruturação produtiva, têm nas metrópoles um locus fundamental, tanto para as potencialidades do desenvolvimento socioeconômico como para as contradições sociais e ambientais que são produzidas nesse novo momento mundial de produção do espaço urbano. Estudos importantes realizados desde os anos 1960 apontam como as metrópoles aumentaram seu papel indutor do desenvolvimento econômico nacional (JACOBS, 19693. JACOBS, J. The Economy of Cities. New York: Random House, 1969.). Outros estudos também indicaram o processo de disjunção entre Estado e Nação, economia e território, a partir da relação entre globalização e metrópoles (VELTZ, 19966. VELTZ, P. Mondialization. Villes et territoires. L'économie d'archipel. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.). Esse novo contexto urbano-metropolitano tem como pano de fundo a hegemonia do modelo neoliberal de desenvolvimento capitalista e mudanças profundas da dinâmica de acumulação capitalista, agora em sua etapa de financeirização (HARVEY, 20084. HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.).

Assim, os processos de urbanização e de metropolização vêm ocorrendo sob forte pressão para a mercantilização (ou remercantilização) dos territórios e dos serviços públicos, a fim de transformá-los em novos ativos para a acumulação e reprodução do capital. A condição urbana, nas últimas décadas, vem sendo, assim, fortemente marcada pelos processos de dualização e polarização dos territórios, e pela segregação e gentrificação social da ordem urbana, em especial nos tecidos metropolitanos. Tal desigualdade da estrutura social traduz-se na constituição de cidades duais, divididas e segregadas como marcas da organização do território urbano, com importantes impactos nos padrões de sociabilidade (Bógus; Queiroz Ribeiro, 20141. BÓGUS, L.; QUIEROZ RIBEIRO, L. C. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 16, n. 31, pp. 9-16, jun 2014, p. 11., p. 11).

Esses resultados, que levam à exclusão de vastos setores sociais dos bens materiais, simbólicos e sociais que constituem a noção básica do direito à cidade, não são apenas produto das transformações da nova ordem do capitalismo internacional e de sua vinculação com as economias dos países e regiões. No plano local ou regional, eles em geral são viabilizados por regimes urbanos comandados por coalizações políticas aliadas ao complexo imobiliário-financeiro e pelas concepções amplamente difundidas de competição internacional entre as cidades, por meio do chamado city marketing e do empresariamento urbano como modelo de gestão pública. Ao mesmo tempo, e isso vale em especial para a América Latina, o vazio de governança das regiões metropolitanas é preenchido pelo forte protagonismo do mercado na ocupação e uso desses territórios.

É claro que esse processo não é homogêneo e se apresenta de forma distinta em diferentes regiões e países do globo. Todavia, nos continentes do Sul, onde está grande parte das regiões e dos países periféricos dependentes do capitalismo central, há semelhanças quanto à lógica geral que move o processo de acumulação urbana. Isso não significa que fatores locais não sejam importantes nessa nova configuração das cidades. Daí a importância de estudos sobre essas realidades, a fim de apreender suas especificidades, suas semelhanças e diferenças, entre países e suas regiões metropolitanas.

Na América Latina, esforços vêm sendo realizados para a investigação dessas mudanças e seus múltiplos significados. Dentre eles, ressalta-se o importante papel da Rede Latino-Americana de Pesquisadores sobre Teoria Urbana (http://www.relateur.org/), que tem como proposta incentivar a formação de um pensamento teórico-crítico latino-americano sobre a problemática urbana da região, promover o intercâmbio de conhecimentos e desenvolver estudos comparados relacionados às grandes cidades da América Latina2 2 Em novembro de 2013 foi realizado, no Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), o Iº Seminário Internacional da Relateur, com o tema "A Cidade Neoliberal na América Latina: desafios teóricos e políticos". Na ocasião, foi lançado o livro "Teorías sobre la ciudad en América Latina", organizado por Blanca Ramírez Velázquez e Emilio Pradilla Cobos. . No Brasil, o INCT Observatório das Metrópoles (do qual o Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS faz parte) vem realizando de forma inédita estudos sistemáticos sobre as transformações e os impactos do fenômeno de metropolização no país3 3 Ver coleção de livros da Série Transformações na Ordem Urbana das Metrópoles Brasileiras (1980-2010), produto da investigação realizada pelo INCT Obervatório das Metrópoles. www.transformacoes.observatoriodasmetropoles.net/ (disponível para download) .

O presente dossiê pretende contribuir com esses objetivos. Para isso, conta com artigos de caráter multidisciplinar de pesquisadores que possuem longa trajetória na área urbana/metropolitana. Esses artigos trazem pesquisas de Chile, México, Argentina e Brasil.

No artigo Financiarización, Mercantilización y Metamorfosis Planetaria: Lo Urbano en la valorización del capital, Carlos de Mattos toca num tema de fundo para compreender a nova questão urbana. O autor demonstra as profundas transformações do urbano a partir da nova configuração capitalista hegemonizada pela financeirização da economia. A financeirização neoliberal, associada ao significativo aumento da conectividade e da mobilidade, modificou as relações entre as principais áreas urbanas do mundo, constituindo o que o autor denomina de Rede Urbana Global. A articulação das áreas urbanas com essa rede está produzindo transformações nessas áreas, na sua organização, funcionamento, morfologia e paisagem. Em consequência, argumenta Mattos, a própria entidade "cidade" tende a diluir-se em ilimitados espaços urbanos já presentes em distintas partes do mundo.

O artigo Zona Metropolitana del Valle de México: neoliberalismo y contradicciones urbanas, de autoria de Emilio Pradilla Cobos, da Universidade Nacional Autônoma do México, explora com maestria as consequências de três décadas do modelo neoliberal naquele país e seus impactos na Área Metropolitana do Vale do México, uma das quatro maiores da América Latina. Ao apontar as profundas mudanças demográficas, econômicas, sociais e territoriais nesse período, o autor nos fala das contradições e tensões dessa grande região do continente. Ali está a maior concentração de pobres do país, devido a uma intensa segregação socioespacial. Por outro lado, a gestão dessa imensa região é fragmentada do ponto de vista político-administrativo. Isto é, a ausência de ações planejadas facilita a intervenção do capital, em especial do imobiliário-financeiro. Esse quadro tem gerado certo grau de conflitualidade expressa no surgimento de movimentos urbanos, inclusive agora vindos de camadas médias e altas. Para o autor, a crise da metrópole dificilmente será enfrentada em função da dispersão dos movimentos sociais e da ausência de projetos políticos alternativos ao que é caracterizado pelo pragmatismo.

Dando sequência à temática metropolitana da América Latina, o artigo de Pedro Pirez, da Universidade de Buenos Aires, analisa a Região Metropolitana formada pela capital da Argentina. O pano de fundo é comum a outras pesquisas sobre as transformações que vêm ocorrendo no espaço urbano da América Latina a partir da etapa neoliberal do capitalismo. Assim, o artigo aborda o aprofundamento das políticas neoliberais - iniciadas em 1976, com o golpe militar - a partir da fase de reestruturação produtiva. Segundo o estudo de Pirez, esse processo vem se aprofundando por meio da subordinação do público ao setor privado, ocasionando a mercantilização de processos não mercantis e a remercantilização de serviços. Por outro lado, vem ocorrendo o crescimento de ações, iniciativas e projetos populares não mercantis, de autoprodução e irregularidade para a produção do solo, da habitação e dos serviços.

No artigo seguinte, Metamorfoses da Ordem Urbana da Metrópole Brasileira: o caso do Rio de Janeiro, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresenta elementos históricos, teórico-metodológicos e analíticos como pontos de partida para a investigação realizada sobre as transformações da Região Metropolitana do Rio de Janeiro no período 1980-2010. O trabalho apresenta uma síntese do estudo dessa importante região na hierarquia urbana brasileira como parte do INCT Observatório das Metrópoles (2009-2015). O autor explora o conceito de Ordem Urbana e como este se expressa na organização do território. Assim, a metamorfose metropolitana resulta das relações específicas de poder social, econômico e político que sustentam sua ordem urbana com padrões de segregação baseados na distância social/proximidade territorial, distância social/distância territorial entremeados pela manutenção da escassez urbana e relativa.

Também enfocando o caso brasileiro, o artigo Porto Alegre e sua Região Metropolitana no contexto das contradições da metropolização brasileira contemporânea, de Paulo R. R. Soares e Luciano J. Fedozzi, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aborda as transformações dessa região no mesmo período histórico da pesquisa referida sobre o Rio de Janeiro. A metropolização de Porto Alegre é estudada a partir dos processos que vêm caracterizando as transformações urbanas em nível mundial e na América Latina. Mudanças essas advindas do processo mais amplo de mundialização do capital, no qual se destaca a economia dos serviços e a financeirização da economia e suas repercussões na produção imobiliária e urbana das principais metrópoles latino-americanas. São apresentadas, também, as especificidades do processo de metropolização de Porto Alegre, abordando os impactos econômicos e sociais oriundos da transição de modelos distintos de desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos últimos 30 anos. O artigo aborda ainda a questão da governança do espaço metropolitano à luz do Estatuto da Metrópole, recentemente promulgado, e das contradições políticas e sociais impostas pelo novo regime de acumulação urbana.

Por fim, o artigo Desigualdades Urbanas e Desigualdades Sociais nas Metrópoles Brasileiras, de Marcelo Ribeiro, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro, oferece estudo de grande relevância para compreender a relação entre as desigualdades sociais e as desigualdades urbanas. Por meio de um índice criado pelo Observatório das Metrópoles (Índice de Bem-Estar Urbano - IBEU) é possível analisar as desigualdades urbanas das principais metrópoles do país, assim como no interior das regiões. O estudo identifica uma correspondência entre as desigualdades urbanas e as desigualdades sociais, possibilitando maior compreensão dos mecanismos explicativos dessa relação. Para isso, são mobilizados os conceitos de diferenciação, segmentação e segregação socioespaciais, e também o processo de causação circular da distribuição dos recursos coletivos urbanos.

Espera-se, com este conjunto de artigos que compõe o dossiê, contribuir para a construção coletiva do conhecimento sobre as transformações contemporâneas do espaço urbano, em especial no continente latino-americano.

Referências

  • 1
    BÓGUS, L.; QUIEROZ RIBEIRO, L. C. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 16, n. 31, pp. 9-16, jun 2014, p. 11.
  • 2
    LEFEBVRE, H. La révolution urbaine. Paris, Gallimard. 1970.
  • 3
    JACOBS, J. The Economy of Cities. New York: Random House, 1969.
  • 4
    HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
  • 5
    Programa de pesquisa da Rede Observatório das Metrópoles. As metrópoles e o direito à cidade: plataforma de conhecimento, inovação e ação para o desenvolvimento urbano -Projeto aprovado pelo CNPq. (2016), Rio de Janeiro: 2015, p. 8 (mimeo)
  • 6
    VELTZ, P. Mondialization. Villes et territoires. L'économie d'archipel. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.
  • 1
    O documento na íntegra está disponível em www.onuhabitat.org ou diretamente em http://bit.ly/CidadesALCaribe2012
  • 2
    Em novembro de 2013 foi realizado, no Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), o Iº Seminário Internacional da Relateur, com o tema "A Cidade Neoliberal na América Latina: desafios teóricos e políticos". Na ocasião, foi lançado o livro "Teorías sobre la ciudad en América Latina", organizado por Blanca Ramírez Velázquez e Emilio Pradilla Cobos.
  • 3
    Ver coleção de livros da Série Transformações na Ordem Urbana das Metrópoles Brasileiras (1980-2010), produto da investigação realizada pelo INCT Obervatório das Metrópoles. www.transformacoes.observatoriodasmetropoles.net/ (disponível para download)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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