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O cinema-caracol de Luis Tróchez Tunubalá: uma câmera Misak contra o(s) colonialismo(s) * * Este artigo é resultado do projeto de pós-doutorado “Visões do mundo indígena:mediações fílmicas do mundo histórico dos povos originários no Brasil - produção e formação audiovisual doprojeto Vídeo nas Aldeias(VNA)” que desenvolvemos,entre 2018-2019, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCom/UFPE), sob a supervisão da profa. titular Dra. Angela Prysthon.

Luis Tróchez Tunubalá Snail-Cinema: a Misak Camera against Colonialism

El cine-caracol de Luis Tróchez Tunubalá: una camera Misak contra lo(s) colonialismo(s)

Resumos

Este estudo analisa o documentário Na Misak (2018), do diretor indígena Luis Tróchez Tunubalá, do Cauca colombiano. Situando-o como filme-prismático, no marco do cinema indígena e do colonialismo reiterativo em Abya Yala, seu objetivo é investigar a tessitura fílmica a partir da perspectiva indígena sobre a construção da indianidade no contexto urbano contemporâneo. Utilizou-se o método comparado a partir de cotejos baseados na série histórica, ponto-contraponto, constelações e abordagem prismática. Entre os estudos antropológicos, históricos e de cinema, observou-se o cruzamento da escritura cinematográfica contracolonial, ensaística e autorreflexiva com dimensões da cosmologia Misak, a partir do qual o pensamento crítico se condensa no sistema fílmico, na experiência histórica e na performance corporal, artefatos que confrontam o(s) colonialismo(s) com outra história do contato.

cinema indígena; colonialismo; Misak; contato interétnico; indianidade


This study analyzes the documentary Na Misak (2018), by the indigenous director Luis Tróchez Tunubalá, from the Colombian Cauca. Situating it as a prismatic film, within the framework of indigenous cinema and reiterative colonialism in Abya Yala, its objective is to investigate the filmic fabric from the indigenous perspective on the construction of Indianity in contemporary urban context. The analysis developed from comparative method and collations of historical series, counterpoint, constellations and prismatic approach. From anthropological, historical, and film studies, an intersection between anti-colonial, essayistic and self-reflective cinematic writing and dimensions of Misak cosmology was noticed, in which critical thinking is condensed into the film’s system, historical experience, and bodily performance, artifacts that confront colonialism(s) with another history of contact.

Indigenous Cinema; Colonialism; Misak; Interethnic Contact; Indianity


Ese estudio analiza el documentario Na Misak (2018), del director indígena Luis Tróchez Tunubalá, del Cauca colombiano. Al caracterizar lo cómo película-prismática, en le marco del cine indígena y del colonialismo reiterativo in Abya Yala, investiga la tesitura fílmica desde la perspectiva indígena sobre la construcción de la indianidad en le contexto urbano contemporáneo. Se utilizó el método comparativo desde cotejos basados en la serie histórica, punto-contrapunto, constelaciones y enfoque prismático. Movilizando estudios antropológicos, históricos y del cine, se observó el cruzamiento de la escritura cinematográfica contracolonial, ensayística y autorreflexiva con dimensiones de la cosmología Misak, condensando el pensamiento crítico en el sistema fílmico, la experiencia histórica y la performance corporal, que confrontan lo(s) colonialismo(s) con otra historia del contacto.

cine indígena; colonialismo; Misak; contacto interétnico; indianidad


As gentes são assim, nuas, bonitas, morenas, com o corpo bem moldado, e a cabeça, o pescoço, os braços, as partes íntimas e os pés de homens e mulheres são cobertos um pouco com penas. Os homens também têm muitas pedras preciosas em seus rostos e peitos. Ninguém possui outra coisa, além disso, pois todas as coisas são comuns. E os homens têm esposas aquelas que desejarem, sejam elas mães, sejam irmãs, ou amigas, sobre isso não fazem qualquer distinção. Eles também lutam uns contra os outros. Eles também comem uns aos outros, mesmo aqueles que estão mortos, e penduram suas carnes na fumaça. Eles vivem cento e cinquenta anos. E não têm nenhum governo.

Texto que acompanha a xilogravura Mundus Novus [Imagem do Novo Mundo], 1505, de Américo Vespúcio

É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa só sem parar, e é isso o que esse povo se torna.

Chimamanda Ngozi Adichie (2019)ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019.

Contexto

A partir dos anos 1980, na América Latina (ou Abya Yala, na acepção Kuna), o cinema indígena ganhou em expansão com a criação de núcleos de produção audiovisual nas/pelas comunidades, com escolas de cinema e festivais, e despontou no cenário como mais um “gênero” cinematográfico. Como assinala Tamara Moya, tornou-se objeto de eventos importantes, inclusive com a criação da seção “Native” no prestigiado Festival de Berlim, em 2013 ( MOYA, 2018MOYA, Tamara. Ciudadanos invisibles: movilidad e identidad urbana en el cine indígena latinoamericano. Archivos de la Filmoteca 75, 2018, pp. 165-178. ), que surgem para dar vazão às produções feitas pelos próprios “índios”. No caso do Chile, por exemplo, são muitos os eventos nesse âmbito – TUWUN: Muestra de Cine Indígena de Wallmapu; FICWALLMAPU: Festival Internacional de Cine Indígena de Wallmapu; Muestra Cine+Video Indígena do Museo de Arte Precolombino; além de mostras específicas como a Primeras Naciones, do FICVALDIVIA: Festival Internacional de Cine de Valdivia. Ganhou status de objeto de pesquisa na academia (monografias, dissertações e teses; GTs, colóquios e projetos acadêmicos) e se tornou artefato político-comunicacional de Organizações Não governamentais (ONG) e de associações de comunicadores nativos, como, nos casos mais notórios, o Vídeo nas Aldeias (VNA, Brasil, 1986); o Centro de Formación y Realización Cinematográfica (CEFREC-CAIB, Bolívia, 1989); e a Coordinadora Latinoaméricana de Cine y Comunicación de los Pueblos Indígenas (CLACPI, 1985), que, enquanto espaço político, congrega várias organizações do continente.

Delimitando o caso na Colômbia, historicamente, o cinema indígena integra um complexo de iniciativas governamental, não governamental e de articulação política de diversas organizações1 1 . Consejo Regional Indígena del Cauca (CRIC), Asociación de Cabildos Indígenas del Norte del Cauca (ACIN) e a Organización de Nacionalidades Indígenas de Colombia (ONIC). . Em um estudo sobre as cinematografias originárias na América Latina, Amalia Cordova (CORDOVA, 2011) apresenta um panorama colombiano, no qual a política e a comunicação aparecem interdependentes. Entre 1980-1990, a participação de lideranças dos diversos povos em assembleias constituintes e no Senado ganha relevo, o que permite incluir parcialmente os direitos indígenas na Constituição. Ao compreenderem a importância do audiovisual, as organizações criam seus próprios departamentos de comunicação, promovem encontros e articulam a participação de cineastas comprometidos com suas questões2 2 . Os documentaristas Jorge Silva e Marta Rodriguez têm uma filmografia expressiva sobre a questão indígena na Colômbia. . Impulsionam a criação de escolas, coletivos e festivais de cinema. Além dos realizadores da Escuela de Comunicaciónes Wayuu, em Guajira3 3 . Criada em 2014, com apoio do Ministério da Cultura da Colômbia, da UNESCO e da Red de Comunicadores del Pueblo Wayuu, forma jovens comunicadores Wayuu “da” Colômbia e “da” Venezuela: MINISTÉRIO DA CULTURA DA COLÔMBIA. Escuela de Comunicaciones Wayuu. 2017. Disponível em: http://www.mincultura.gov.co/prensa/noticias/Paginas/Escuela-de-Comunicaciones-Wayuu,-apoyada-por-Mincultura,-gradúa-a-nuevos-comunicadores-ind%C3%ADgenas.aspx. Acesso em: 20 jul. 2020. , e dos coletivos Arahuaca, Wiwa e Kogi, de Sierra Nevada, desponta o cinema contracolonial do jovem Misak Luis Tróchez Tunubalá. A partir de abordagens antropológicas e dos estudos de cinema, no marco de uma perspectiva indígena redimensionando-se em contextos pós-coloniais, propomos analisar o filme Na Misak (2018)4 4 . A partir do espanhol: Eu, um Misak . , que tensiona questões que atravessam a história indígena “do” continente no contexto de colonialidade.

Na Misak , que aqui se enredará em outras formas narrativas das artes e da ciência, é o segundo trabalho de Luis Tróchez Tunubalá. O primeiro foi Namuy nu piro – Nuestra tierra (2016) e o próximo, em produção, NuUsri – Gran mamá . É, em formato documental, a história de um comunicador audiovisual do povo Misak, do Departamento do Cauca colombiano, que vemos realizar e editar um documentário – ao mesmo tempo em que narra os eventos e suas reflexões (como narrador off ) e se expõe em presença na cena (corpo performático e cotidiano). Tunubalá propõe vários desafios, dentre eles, provocar uma nova mirada sobre o seu povo, historicamente visto como exótico e folclórico. O diretor não apenas mostra-se em quadro, como também apresenta seus parentes e amigos, que vivem nos centros urbanos e compartilham seus gostos e costumes entre a tradição e modernidade. Como está descrito em todas as sinopses publicadas sobre o filme, no processo de realização de Na Misak , o jovem cineasta indígena confronta seus pensamentos e ideias sobre o que é ser Misak nos centros urbanos e no mundo contemporâneo aos imaginários presos a uma certa colonialidade. Ancorando-se no modo autorreferencial-ensaístico, Tunubalá inscreve uma outra história do contato com a câmera em direção a si (implicando-se na crítica que desenvolve), a comunidade Misak (entre o passado e o presente) e a sociedade nacional (na qual a colonialidade, no espaço citadino, ganha novos matizes, vetorizados por essa entidade chamada homem branco: categoria étnicopolítica e não racial ou pigmentar, que se refere aos sujeitos e instituições do Estado-nação soberano sobre os territórios indígenas ( VIVEIROS DE CASTRO, 2019VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Nenhum povo é uma ilha. In: RICARDO, Fany; GONGORA, Majoí Fávero (orgs.). Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2019, pp. 9-15. )).

Nesse contexto, se a questão da etnicidade e da alteridade é fundamental, partimos dos pressupostos antropológicos sobre os grupos étnicos não como instâncias do mundo histórico imutável, mas como constantemente (re)inventadas em novos significados ( CARNEIRO DA CUNHA, 2017CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas. São Paulo: Ubu, 2017. ) e como prática que concebe o contato com o Outro no âmbito relacional, absorvendo-o para alterar-se em seus próprios termos ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017. ). A partir de Santiago Castro-Gómez, sabemos que “a modernidade é uma máquina geradora de alteridades que, em nome da razão e do humanismo, exclui de seu imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência das formas de vida concretas” ( CASTRO-GÓMEZ, 2005CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, Eduardo (org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires: Clacso, 2005, p. 80-87. . p. 80). E que, na América Latina, o projeto de modernidade (antropocêntrico, científico e racional), o Estado-nacional (em busca da síntese das diversas camadas e do controle natural e social) e as ciências sociais (legitimando o poder) estão na base da invenção do Outro. Observa-se que, no centro do Estado-Nação do século XIX, concursaram a escrita, o direito e os manuais para definir quem pode ser ou não considerado cidadão, cujo perfil precisava atender aos requisitos de gênero (masculino e heterossexual), raça (branco), religião (católico), status social (proprietário) e formativo (letrado). Para os decolonialistas ( MIGNOLO, 2017MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 2017, pp. 1-18. ), não há como desvincular o projeto da modernidade (racional, científico, imperial) do projeto colonial a partir de 1492, com seu sistema de diferenciação incomensurável entre colonizador (civilizado, racional e bom) e colonizado (bárbaro, mal, descontrolado). Nesse contexto, como coloca Cumes, constitui-se “el sujeto del UNO” , que, ao espoliar, nega a diferença, a multiplicidade e a diversidade da vida ( LABORATORIO DE PEDAGOGÍAS CRÍTICAS, 2019LABORATORIO DE PEDAGOGÍAS CRÍTICAS. Enconversa. Entrevista com Aura Cumes. 19/8/2019. Barcelona [Espanha]. Disponível em: http://www.enconversa.org/aura-cumes-no-somos-sujetos-culturales-somos-sujetos-politicos/?fbclid=IwAR3AF-GPq2Kx1Gb_0ZRDdtiNqszF7SyrO0sXiz7sWhBmY5yBAnbnkgz5Tds . Acesso em: 19 ago. 2019.
http://www.enconversa.org/aura-cumes-no-...
, sem paginação). No entremeio dessas questões, a problemática do(s) colonialismo(s) político, internalizado e permanente, ganha diversas faces e desdobramentos.

O cinema comparado, como propõe Mariana Souto, aqui, será ponto de partida para a constituição do corpus e da análise, pois, diante de um objeto relacional, adotam-se procedimentos relacionais ( SOUTO, 2019SOUTO, Mariana. Infiltrados e invasores. Salvador: EDUFBA, 2019. ).

Na esteira de outros autores, Souto observa que os agrupamentos de filmes configuram séries históricas (anteriores>filme>posteriores), dípticos (ponto-contraponto), objetos-prismáticos (a partir de um diretor ou de um filme) e constelações (que permitem maior liberdade relacional, já que, à semelhança das teias e sua multiplicidade de pontos de contato, abre-se uma infinidade de vínculos e rotas) (Ibidem). Nesse momento, a seleção, a classificação e a análise das obras em cotejo não é linear porque, obrigatoriamente, são etapas que se interpenetram. Isso implica a entrada de novos “objetos” e a inevitável desestabilização dos agrupamentos e conclusões postos. Se a metodologia tende a “matar” o objeto por trabalhar com um corpus extenso e precisar se ater a fragmentos, sequências ou elementos da materialidade, pois é impossível buscar, analiticamente, a integralidade de cada um dos filmes comparados, optar pela abordagem prismática implica investir na “totalidade” de uma dada obra para melhor expandir o arco de relações. Como “nunca se está tão bem colocado para tratar fundamentalmente de uma forma de imagem que não seja vislumbrando-a a partir de uma outra, através de uma outra, dentro de uma outra, por uma outra, como uma outra” ( DUBOIS, 2012, pDUBOIS, Philippe. A imagem-memória ou a mise-en-fim da fotografia no cinema autobiográfico moderno. Revista Laika, 1(1), 2012, pp. 1-37. , p. 1), em nosso caso, Na Misak será, permanentemente, interceptado por outros filmes e formas de imagens, narrativas de viajantes e abordagens antropológicas. Enquanto filme-prismático, diferirá, assim, do filme-solar , espécie de objeto que ilumina todo um contexto e, em torno do qual, gravitam outras obras ( FELDMAN, 2012)FELDMAN, Ilana. Jogos de cena. 2012. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2012. . As conexões com/de Na Misak dar-se-ão a partir do seu sistema fílmico, dimensões da sua materialidade e sequências específicas em cotejo com outras artes (iconografia), o mundo histórico (contextos, fatos, paradigmas) e antropológico (tendências, abordagens, conceitos).

Cinema e cosmologia

O povo Misak (ou Guambiano, na denominação colonial), dos 115 grupos étnicos identificados no censo de 2018, na Colômbia, é o décimo quarto mais numeroso5 5 . População: 21.713 pessoas se identificaram como Misak no censo de 2018 (DANE - CENSO NACIONAL DE POBLACION Y VIVIENDA-CNPV, 2018). do país e está localizado, preponderantemente, no departamento do Cauca, onde vive o diretor Luis Tróchez Tunubalá com seus pais e sua avó. Nesse departamento, quase 25% da população local é originária; a cada quatro colombianos, um é indígena e um em cada cinco habita as áreas mais povoadas (ou urbanas). Povo andino, os Misak vivem em estreita relação com a natureza, consideram-se filhos da água e veem sua origem na união de duas grandes lagunas: Ñimbe (fêmea) e Piendamó (macho). Como os Nasa, é o único a falar a sua própria língua e, isolado, a usar indumentária ancestral ( SCHWARZ, 2018SCHWARZ, Ronald A. La gente de Guambía. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2018. ). Não existe uma palavra que designe o idioma Misak: wam quer dizer língua, e o que comumente se escuta, namuy wam , na verdade significa “nossa língua”. Já o termo namtrik se refere ao ato de falar e não ao idioma em si ( HURTADO, 2015HURTADO, Abelino Dagua; ARANDA, Misael; VASCO, Luis Guillermo. Guambianos: hijos del aroiris y del agua. Bogotá: CEREC, 2015. ). Como os demais povos originários de Abya Yala, sua história está marcada pela chegada dos espanhóis, a partir de 1562, quando se concedeu ao filho de Sebastián de Belalcázar, Francisco, o controle de Guambía, que incluía a mão-de-obra dos indígenas da região, a espoliação de seus territórios e provocando a inevitável resistência histórica – da Colônia à República6 6 . “El pueblo de San Felipe y Santiago de Guambía, conocido como Guambía, y después de 1838 como Silvia, fue establecido dentro de los límites de la encomienda. En 1589 grupos guambianos fueron asignados a otras dos encomiendas; Ambaló y Usenda [...]. Usenda se convirtió en un poblado mestizo, mientras Ambaló continúa hoy como una hacienda trabajada por arrendatarios misak” (SCHWARZ, op. cit, p. 76). . Dos anos 1980 em diante, organizam-se e retomam os territórios, autonomia e autodeterminação. O contexto do cinema de Tunubalá, no qual inscreve uma outra história do contato com a problemática da alteridade no espaço urbano, é de crescente autorreconhecimento7 7 . Considerando os dados estatísticos do último CNPV (2018), identifica-se crescimento populacional indígena, sendo a manifestação livre uma das razões que explica o aumento. .

Com Alvarenga (2017)ALVARENGA, Clarisse. Da cena do contato ao inacabamento da história. Salvador: Edufba, 2017. , que analisou os filmes e a cena de contato, depreendemos duas dimensões importantes. Por ser interétnico e histórico, o contato afeta, mutuamente, as sociedades envolventes. Não é fato localizado na história, mas antes evento que se renova, em menor ou maior intensidade, mesmo com povos há muito contatados, cuja experiência se atualiza a cada momento que a radical alteridade figura no horizonte. Aconteceu quando o primeiro europeu desceu das caravelas, os colonos invadiram os territórios ameríndios e o Estado-Nação expandiu suas fronteiras. É um fato recorrente, sobretudo na Amazônia, que tem o maior número de povos isolados do mundo – 120 ( RICARDO; GONGORA, 2019RICARDO, Fany; GONGORA, Majoí Fávero (org.). Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2019. ) –, que, pressionados por fatores externos, sempre “aparecem” e travam relações com o homem branco8 8 . Na Colômbia, os povos isolados são: Jurumi, Passe e Yuri (CNPV, 2018). . Um segundo aspecto é que esse contato se dá também no campo cognitivo. Não obstante a imprescindibilidade de se discutir o genocídio indígena, no campo biótico, ecológico, socioeconômico e étnico-cultural ( RIBEIRO, 2015RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. ), outra dimensão é o processo de elaboração e reelaboração da experiência da alteridade. Nesse âmbito, entra a intensa produção de sentido, que distintamente afeta um mesmo grupo étnico.

Do mito à história, ao analisar o milenarismo Canela, nos anos 1960, no Maranhão, Manuela Carneiro da Cunha (2017)CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas. São Paulo: Ubu, 2017. observa como a situação de contato incide no mundo histórico indígena. No mito de Aukê , Amcokwei está grávida, escuta vozes e, sem saber a origem, parte para casa, até que descobre que essas vozes saem do seu corpo e anunciam o nascimento de uma criança. Ao saber que é um menino, rejeita-o e o enterra vivo. Salvo pela avó, Aukê sobrevive, cresce de forma muito rápida e tem o poder de se transformar em animal. Perseguido por um tio, ele é morto, provocando o deslocamento da aldeia. Após algum tempo, Amcokwei requisita suas cinzas, mas Aukê já havia se transformado em um homem branco e construído a casa grande: do miolo escuro de uma árvore, criou os negros, e da madeira de bacuri e piqui, respectivamente, os cavalos e o gado. Nesse mito de origem do homem branco, Aukê havia se tornado Dom Pedro II. O movimento milenarista de 1963 se funda nesse mito: “[...] reencenado às avessas para o triunfo indígena e derrocada final dos brancos” (Ibidem, p. 16). Com a profecia de Kee-kwei (personagem real), que também aparece grávida, achando que era de uma menina, anuncia-se o nascimento da criança para 15 de maio de 1963, o controle das cidades, aviões e ônibus pelos Canela e a reclusão dos civilizados na floresta. O rito que antecede o nascimento, com o fervor religioso dos cantos e das danças, desencadeia a tomada de cabeças de gado de fazendeiros locais e o inevitável revide.

A situação de contato havia, nesse caso, sido reelaborada a partir da perspectiva cosmológica Canela – do mito à história. No âmbito do cinema antropológico, em Os mestres loucos (1955), Jean Rouch registra essa incorporação do mundo dos brancos (personagens, relações de poder, situação colonial) por um grupo étnico africano em um ritual de possessão que reencena o contato interétnico. Aqui, o real se desenvolve em intensidades incontroláveis, com personagens coloniais sendo encorporados , ritualisticamente, pelo grupo Haouka, da periferia de Acra, Gana, em uma possessão sacrifical que parodia o poder britânico. Atenta à dimensão cosmológica em Mueda, memória e massacre (1979-1980, de Ruy Guerra), Raquel Schefer mostra cinema e cultura em diálogo, com o ritual de máscaras Mapiko, da cultura maconde moçambicana, delineando as sobreposições ópticas, as panorâmicas circulares e semicirculares ( SCHEFER, 2016 ). No campo dos estudos de cinema indígena, uma das tendências se preocupa em analisar como a cosmologia delineia a perspectiva fílmica. Marco Antônio Gonçalves (2016)GONÇALVES, Marco Antônio. Intrépidas imagens: cinema e cosmologia entre os navajo. Sociologia e Antropologia, 6(3), 2016, pp. 635-667. , por exemplo, em seu estudo sobre o cinema Navajo, observa que “princípios que orientam concepções do mundo são constitutivos dos modos de dar a ver o mundo” (Ibidem, p. 636). André Brasil, ao nomear de cinema-morcego os filmes dos Maxakali ou Tikmũ’ũn (MG), acrescenta que “os Tikmũ’ũn recusam e alteram a modalidade empírica e intencional da visão [...] para submetê-la a outra espécie de visão constituída, ela própria, pelo não-ver” ( BRASIL, 2016aBRASIL, André. Caçando capivara: com o cinema-morcego dos Tikmũ’ũn. ECO-Pós, 19(2), 2016a, pp. 140-153. , p. 141).

Em relação a Urihi Haroma-timape – Curadores da terra-floresta (2013), de Morzaniel Iramari Yanomami, Brasil desenvolve o que chama de crítica xamânica da economia política das imagens, com o cinema tornando-se “máquina cosmológica, cuja matéria é, em grande medida, invisível (mapas cognitivos, gradientes míticos; relações de socialidade entre homens, animais e espíritos; atravessamentos da experiência histórica etc.)” (BRASIL, 2016b, p. 128). Se há relação entre cinema e cosmologia, em Na Misak ela está na forma-caracol a envolver as concepções sobre o homem, o tempo e a história, na qual transformação e permanência nos aparecem como devir histórico. Nessa cosmofilmia, certo ethos Misak transpõe-se para o cinema de Tunubalá como “fluir e permanecer no território, nele crescer e transitar, ir e vir de dentro para fora e de fora para dentro, como o caracol. Sempre seguindo os passos dos avós [...] em harmonia com a natureza e o cosmos” ( TUNUBALÁ; TROCHEZ, 2009TUNUBALÁ, Floro; TROCHEZ, Juan Bautista Muelas. Segundo plan de vida de pervivencia y crecimiento Misak. Bogotá: Digitos y disenos, 2009. , p. 17, tradução nossa)9 9 . Para evitar equívoco, Tunubalá e Tróchez são dois autores que, coincidentemente, têm o mesmo sobrenome do realizador Luis Tróchez Tunubalá. . Revela-se menos na narratividade espiralada, que, de certo modo, aponta para a teleologia ocidental, e mais na forma em caracol, retomando dimensões da experiência histórica do diretor (corpo, segmentos biográficos, pensamentos e percepções, eventos e costumes Misak específicos – minga – e cruzados – liturgia cristã). Em uma circularidade ininterrupta, Na Misak está sempre recomeçando, retomando e encaracolando elementos e situações, como se rumasse em direção a um ponto central, que, no último plano, desemboca na água da chuva que cai sobre a cidade.

Como el agua va y viene alrededor de un centro: la gran sabana, así también la historia de nuestra sociedad y la de cada uno de nosotros va y viene unida al centro por un hilo. Con él y por medio de sus movimientos, de su recorrer, se teje la vida. El centro principal es Nupisu, Nupirrapu, la gran laguna. Allí nace el agua y con ella nace todo. Desde ella viene el agua y se produce la vida. Es el centro a partir del cual se desenrolla todo nuestro território. ( HURTADO; ARANDA; VASCO, 2015HURTADO, Abelino Dagua; ARANDA, Misael; VASCO, Luis Guillermo. Guambianos: hijos del aroiris y del agua. Bogotá: CEREC, 2015. , p. 51)

Entre a cosmologia da forma fílmica-caracol e o olhar merrap 10 10 . “En nuestro pensamiento guambiano, al contrario de lo que ocurre en la llamada concepción occidental, el pasado está adelante, es merrap, lo que ya fue y va adelante; wento es lo que va a ser y viene atrás. Por eso, lo que aún no ha sido, viene caminando de atrás y no podemos verlo.” (HURTADO; ARANDA; VASCO, 2015, p. 56) sobre o mundo histórico – não por acaso, a memória ancestral é requerida permanentemente –, Na Misak nasce da necessidade de desconstruir a perspectiva colonial nacional sobre o que é ser indígena hoje. Apesar da proximidade entre as cidades colombianas Silvia e Cali, Tunubalá surpreendeu-se quando, na universidade, os colegas não encontraram um “índio” com as vestes típicas e (como, ironicamente, relata) de arco e flecha ( ZONA CERO, 2019ZONA CERO. Entrevista com Luis Tróchez Tunubalá: el cineasta colombiano que busca acabar con los prejuicios sobre los indígenas. 1/5/2019. Bogotá [Colômbia]. Disponível em: http://zonacero.com/sociales/el-cineasta-colombiano-que-busca-acabar-con-los-prejuicios-sobre-los-indigenas-126769 . Acesso em: 10 set. 2019.
http://zonacero.com/sociales/el-cineasta...
, sem paginação). Enquadrando a colonialidade da sociedade nacional, Tunubalá confronta a construção da imagem do indígena como selvagem, ignorante e atrasado, que, se não com cento e cinquenta anos e um olho na testa, conforme visão colombo-vespucciana 11 11 . Compilação de cartas e relatos do navegador italiano Américo Vespuccio publicada em 1505. , permanece como estereótipo que joga o olhar Ocidental 500 anos de volta no tempo. Contra todos os colonialismos ( QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Eduardo (org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires: Clacso, 2005, pp. 107-130. ), sem esquecer a colonialidade internalizada a assombrar a própria consciência, o cinema contracolonial de Tunubalá entra no corpo-a-corpo com os sistemas de verdade naturalizados no contexto urbano. Em entrevista a Señal Colombia/RTVC (SEÑAL COLOMBIA/RTVC, 2018, sem paginação), quanto aos segmentos (auto)biográficos em preto e branco, revela que era uma forma de quebrar a materialidade folclórica fetichizada pelos isirik (homem branco) e analisa ainda a violência epistêmica ( CASTRO-GÓMEZ, 2005CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, Eduardo (org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires: Clacso, 2005, p. 80-87. ) da antropologia, que, por vezes, caracterizou os povos originários como culturas do passado, ditou o que era digno de ser e a forma de pesquisá-las, como se fossem sobreviventes da história e museus humanos (SEÑAL COLOMBIA/RTVC, op. cit., sem paginação).

Imagens do Outro

Os germes da fabricação do Outro remontam, assim, aos viajantes dos séculos XV e XVI, quando operaram do mito à história, das entidades imaginárias greco-romanas (ciclopes, cinocéfalos, antropófagos) às nações indígenas do Novo Mundo. Em menos de trinta dias, Cristóvão Colombo, que chegou à “América” pensando ter aportado nas Índias, por exemplo, utilizou as palavras antropófago e canibal para caracterizar os povos indígenas quando escreveu sobre “[...] homens de um olho só e outros com cara de cachorro, que eram antropófagos e que, quando capturavam alguém, degolavam, bebendo-lhe o sangue e decepando as partes pudentas [...]” ( CHICANGANA-BAYONA, 2017CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Imagens de Canibais e Selvagens do Novo Mundo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2017. , pp. 16-15). Dezenove dias depois, em 23 de novembro de 1492, registrou a referência dos Taianos aos Bohío: “Diziam que eram muito grande e que ali havia uma gente que tinha um olho na testa e outros que chamavam de canibais [...]” (Ibidem, pp. 16-15). Canibal , como observou Chicangana-Bayona, não é uma palavra de origem europeia, mas uma referência aos Caribes: “ caribe, caraíba, caniba ou canibal . Uma palavra que acabou por identificar o indivíduo que consumia carne humana” (Ibidem, p. 15) e, mais do que isso, estigmatizar sociedades complexas e diversas por meio da perspectiva europeia. A iconografia ocidental, produzida pelos pintores que acompanhavam as expedições e os dirigentes, plasmou essas imagens dos povos originários “da” “América” e contribuiu para difundi-las. Não por acaso, na História Naturalis Brasiliae (1648), de George Marcgraf, como nos lembra Brienen, o indígena, a flora e a fauna integravam o mesmo plano natural, e que seria impossível separar ciência (zoologia, botânica) e arte (iconografia), “uma vez que ambas compunham o mesmo projeto colonial” (BRIENEN, p. 17).

A xilogravura de Johan Froschauer ( figura 2 ), impressa na carta Mundus Novus , de Américo Vespúcio, entra para a história da arte como a primeira figuração de práticas vinculadas à antropofagia dos povos indígenas. São corpos e cenas baseados na iconografia medieval do paraíso, dos homens selvagens dos bosques ( homo silvestris ), dos gigantes e antropófagos das iluminuras de Marco Polo e no compêndio de fábulas de Sébastien Brant. Em uma cena de fundação, Chicangana-Bayona chama atenção para o fato de Froschauer criar duas imagens dos povos originários “da” América, cujas caravelas, no plano de fundo, anunciam a chegada da salvação dos bárbaros. De um lado, o bom selvagem, comunal e familiar, e, do outro, antropófagos libidinosos interseccionados com a natureza. Observa ainda que a ideia figurativa de Mundus Novus difunde-se por séculos como paradigma imagético do indígena com todos os estereótipos (BRIENEN, p. 17), pois “a variabilidade individual e de estágio civilizatório pode ser reduzida, por meio de abstração, à forma geral do ‘selvagem’ voltado para a exploração hedonista do seu meio e como tal imune a todo e qualquer freio que lhe imponha o sacrifício esperado na edificação da vida civilizada” ( LINDO, 2015LINDO, Luiz Antônio. A carta Mundus Novus de Vespucci e a lenda do homem natural de Rousseau. Revista de História, n. 172, 2015, pp. 279-297. . p. 290). Um fato importante é que Froschauer jamais viu os povos que retratara, historicamente, considerados ignorantes, atrasados e selvagens. Jamais verificara in loco a sua humanidade ou animalidade, como queira caracterizar a perspectiva ocidental-cristã. Movimentou-se outrossim no marco do índio imaginado (Cf. CUNHA, 2004CUNHA, Edgar Teodoro. Índio no Brasil: imaginário em movimento. In: NOVAES, Sylvia Caiuby et al. (orgs.). Escrituras da imagem. São Paulo: EDUSP, 2004, pp. 101-120. ).

Figura 2
Johan Froschauer, A Imagem do Novo Mundo/ Como representar um Tupinambá , 1505. Xilogravura, 22 x 33 cm. Publicada na carta Mundus Novus , 1505, de Vespúccio.

Contexto que nos remete ao centro da questão que, entre a planificação da indumentária misakiana e o pensamento crítico sobre o ser indígena hoje, Luis Tróchez Tunubalá começa a desenvolver reflexões em off sobre o porquê de, nos centros urbanos, “ser indígena é sinônimo de atraso, de selvagem, de ignorante”. Em contraponto à redução do Outro ao bárbaro colombo-vespucciano , Tunubalá posiciona-se a partir da perspectiva humanista e se inscreve como sujeito com um corpo, ganhando centralidade e posição de destaque cênica, pois, se tomarmos emprestado os termos de Eduardo Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio, “será sujeito quem se encontrar ativado e ‘agenciado’ pelo ponto de vista” – que, por sua vez, é dimensionado pelo corpo, com suas afecções, afetos, capacidades e singularidades, e não simplesmente em sua fisiologia ou orgânica (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 323 e 329). No filme Kalül Trawün - Reunión del Cuerpo (2012), a condição incivilizada do povo Mapuche atravessa séculos entre o registro experimental transfigurado em segmentos de encenação e performance. O cineasta Mapuche Francisco Huichaqueo cria uma situação fílmica singular: instala um grupo de artistas em uma galeria do Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago, do Chile, que, como se estivesse em uma cerca, reencena os zoológicos humanos da Europa do século XIX, quando indígenas de diversas etnias foram expostos como seres exóticos nos jardins, parques e exposições do fin-de-siècle . Entre as situações criadas e o contato dos atores com os espectadores, as lentes de Huichaqueo desvela o racismo estrutural do Estado-nacional com o corpo indígena também como chave central.

Ao contrário da proposta contracolonial de Tunubalá, Huichaqueo divide o ato com o poeta David Aniñir Guilitraro que, em um quadro instável, com o corpo e suas afecções, movimenta-se com o olhar na câmera e no papel que tem em mãos. Entre um termo e outro, as classificações imputadas aos Mapuche em uma simulação censitária chilena:

Segundo o censo realizado no Chile, você se considera: preguiçoso, fedido, bêbado, cheio de piolhos, rabugento, aborígene incivilizado, delinquente, excessivamente religioso, roqueiro pós-punk, nativo, folclórico, indígena, indigente, terrorista, queimador de floresta, exótico, associado ilícito, faminto, originário, desterrado, natural, selvagem, subversivo, arcaico, monosapiens , analfabeto, bárbaro, nativo, inculto, por nascer, polígamo, indômito, raça inferior; indiano ou araucano? Significados desconsiderando a linguagem mapuche. Alguma outra característica pejorativa deixada para citar? Seja claro, não se apresse e diga Mapuche.

Da construção imaginária ao racismo estrutural, a situação de contato abre-se para outras nuances, a partir da constituição do ponto de vista indígena (o polo sempre negado) em contextos de transfiguração étnica , nos termos de Ribeiro (2015)RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: adequação, transformação e resistência – constitutiva de outras formas de vida e identidades diferenciais. No caso de Na Misak , temos um artefato fílmico-epistêmico para pensarmos perspectivas diversas, originária e ocidental, em contraponto. Principalmente porque, entre a antropologia indígena e a antropologia contatualista (Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 1999VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Etnologia brasileira. In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Sumaré/ANPOCS, 1999. ), situante e situado podem assumir corpos, posições e polos semelhantes. Ao invés de nos atermos à construção da identidade indígena pela sociedade nacional, precisamos depreender atos contracoloniais que inscrevem a agência indígena em uma outra cena do contato. A mudança de eixo, portanto, é fundamental, mas o que revela o filme Na Misak a partir da experiência de Luis Tróchez Tunubalá? Antes de tudo, coloca a questão do contato na arena pública urbana, a partir do registro do mundo originário, situando o colonialismo e o que por ele é situado, e da fabricação de um filme, que, performando-se, expõe sua tessitura. Assim, processo e produto são expostos em um diapasão metafílmico, com o realizador, na “mesa de edição”, sem esconder a dimensão fabril da sua perspectiva.

Diferentemente do documentário Corumbiara (2009), em que Vincent Carelli e os Kanoê, os Akuntsu e o “Índio do Buraco”12 12 . Quando contatados: dois Kanôe, quatro Akuntsu e o “Índio do Buraco”, o único sobrevivente do seu povo. se deparam num corpo-a-corpo, em Na Misak , não se trata de um registro sobre o contato com povos isolados revisitado pela retomada das imagens ( ALVARENGA, 2017ALVARENGA, Clarisse. Da cena do contato ao inacabamento da história. Salvador: Edufba, 2017. ). Ao contrário de Pirinop (2007), de Mari Corrêa e Karané Ikpeng, quando retorna ao contato dos Ikpeng com o mundo dos brancos depois da chegada dos irmãos Villas-Boas, a proposta fílmica de Tunubalá não consiste em uma reencenação histórica. De forma ensaística e autorreflexiva, em Na Misak , Tunubalá sistematiza a voz do documentário, em confluência com a sua voz-corpo no plano do pensamento crítico, pois, como observou Comolli, “Documental ou não, o cinema filma, antes de tudo, corpos. Quando se tratam de palavras, pensamentos ou princípios, o cinema filma-os incorporados” (COMOLLI, 2004, p. 287, tradução nossa). Assim, não temos uma voz desencarnada ou terceirizada a outrem como no modo expositivo ( NICHOLS, 2005NICHOLS, Bill. A voz do documentário. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema: documentário e narratividade ficcional. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005, pp. 47-68. ), mas um ponto de vista, no sentido de Viveiros de Castro, encorporado sobre tradição, modernidade, etnicidade e o que é ser indígena hoje. Entre a situação de contato e a invenção do Outro, propomos um passo adiante nos estudos de cinema (ALVARENGA, op. cit.), sobretudo porque os equívocos sobre o lugar do Outro no projeto de modernidade são marcas permanentes de certa colonialidade que se configura na simultaneidade de tempos heterogêneos ou tiempos mixtos , nos termos de Silvia Rivera Cusicanqui (2019)CUSICANQUI, Silvia Rivera. Fragmentos de yapa en torno a la noción de lo ch’ixi. Arte & Ensaios, n. 38, 2019, pp. 226-238. .

Todos esos horizontes — prehispánico, colonial, liberal y populista – confluyen en la “superficie sintagmática del presente”, en el aquí-ahora del continuum vivido, como yuxtaposición aparentemente caótica de huellas o restos de diversos pasados, que se plasman en habitus y gestos cotidianos, sin que tengamos plena conciencia de los aspectos negados y críticos de estas constelaciones multitemporales. (Ibidem, p. 227)

A problemática do contato não se restringe, portanto, aos povos isolados. No caso indígena, o contato interétnico parece ser sempre o mesmo, em menor ou maior grau, ainda que envolva povos cuja relação com a sociedade nacional já tenha alguns séculos. Principalmente em contextos urbanos, nos quais o Outro, quando não diluído na invisibilidade, paradoxalmente, tem sua diacriticidade requerida para atender certo imaginário nacional. No curta-metragem Nós e a cidade (2009), do Coletivo Guarani Mbya, com takes do índio na cidade, essa invisibilidade explode em sínteses visuais nas calçadas urbanas, a escala de planos fechados e abertos pontua a solidão histórica e a indiferença em relação aos últimos Guarani: da mãe com o filho vendendo artesanato à menina sentada ao longe – sem serem percebidos pelos transeuntes. Não por acaso, no filme Shomõtsi (2001), ao acompanhar o personagem homônimo da Aldeia Apiwtxa para receber sua aposentadoria, o cineasta Ashaninka Wewito Piyãko transforma o Rio Juruá não em uma fronteira natural entre a cidade de Marechal Thamaturgo (Acre) e os Ashaninka, situados em margens opostas. Ao separar os civitas e os homens da floresta, no modo observacional de Wewito Piyãko e com a dilatação temporal, o leito daquele rio torna-se antes uma fronteira simbólica constitutiva de uma terceira margem colonial contemporânea. Sem contar as situações dos Ashaninka na cidade, a “total sensação de deslocamento” de Shomõtsi em interação com os brasileiros e a “alteridade irremediável” (a espera pelo avião que nunca chega com sua aposentadoria, o contato com o agente municipal e com o dono da venda local) ( BACAL, 2009BACAL, Tatiana. Como criar uma cultura? Índios, brancos e imagens no Vídeo nas Aldeias. In: GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (orgs.). Devires imagéticos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, pp. 136-153. , p. 147).

A fabricação do Outro, cujas fricções manifestam-se nas situações de contato, resultam sempre de uma falta. Como observa Gandavo, sem Fé, sem Lei e sem Rei: “A língua deste gentio toda pela costa é, uma: carece de três letras – scilicet , não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (GANDAVO, [1570] 2008, p. 65). Ela pode ser ilustrada, por exemplo, com a anedota de Lévi-Strauss envolvendo indígenas e espanhóis nas Grandes Antilhas pouco tempo depois de 1492. Nela, percebe-se como a radical alteridade se apura se a contraparte pertence à mesma humanidade. Enquanto os espanhóis investigavam se os índios eram ou não portadores de alma, estes afogavam os brancos que capturavam para verificar se os seus corpos eram passíveis de putrefação. É que, nas relações de alteridade, “a humanidade cessa nas fronteiras do grupo [...] [e] os índios, como os invasores europeus, consideravam que apenas o grupo a que pertenciam encarnava a humanidade” ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017. , pp. 319-320). Em A invenção da cultura , Roy Wagner (2017)WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Ubu Editora, 2017. conta a história de Yali, o líder dos cultos da Nova Guiné, que, levado a Port Moresby, em 1947, ficou impressionado com os diagramas da evolução humana, sobretudo com o macaco em uma das pontas. À razão ocidental, que nos torna descendentes de símios, Yali relacionou o espaço zoológico, que, em sua concepção, talvez fosse uma espécie de santuário para preservar as relações sociais.

No caso Yali, o Outro muda de polo, não é mais objetificado, mas o ponto de vista de onde parte a caracterização do “Outro”, com a perspectiva indígena sendo modulada por suas próprias concepções de mundo. Essas questões, em Na Misak , chegam-nos a partir de uma perspectiva duplamente autorreferencial. No primeiro caso, processo e produto acontecem no mesmo plano fílmico, com o diretor Luis Tróchez Tunubalá em cena – como diretor, montador e performer; a dimensão fabril do cinema exposta – com o congelamento de fotogramas, o comentário sobre as imagens e o filme sendo visto no notebook ; e com planos, já vistos ou que veremos posteriormente, sendo montados e visionados pelo realizador. A dimensão (auto)biográfica revela-se no pensamento crítico de Tunubalá e nas histórias segmentadas de parentes misakianos. No modo observacional, a câmera acompanha cada um dos personagens: o primo que gosta de frequentar cabeleireiros e colaborar com a comunidade; o colega de faculdade que cultua o corpo, tem uma galeria de bonecos e um painel de desenhos de super-heróis; o cantor gospel requisitado pelas igrejas cristãs locais; e os dois jovens que se casarão. Entre os segmentos biográficos e o diretor Misak em cena, que nos contam a mesma história de museologização e de resistência do Outro, condensa-se um jogo de espelhos que nos explica porque Tunubalá amplia a trama (auto)biográfica na arena pública da construção do indígena na Colômbia contemporânea, sem qualquer preocupação em demonstrar se o corpo do homem branco se decompõe, nem tampouco em apresentar uma nova leitura do ethos nacional-colonial.

Um corpo contracolonial

Em um filme como Na Misak , em que o autorretrato ganha centralidade, “se torna uma intensificação do pensar o eu como discurso público, experiência e história [...]” e, nesse contexto, Luis Tróchez Tunubalá “nada mais é que o seu [próprio] texto” ( CORRIGAN, 2015CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio. Campinas: Papirus, 2015. , p. 97). No filme, esse texto se confunde com o corpo do próprio diretor: entre o específico e o comum – a rejeitar que o condensem como resíduo diacrônico do passado no presente. Contra essa imagem que institui o Outro – paramentado ou desnudo ( FREIRE, 2011FREIRE, Marcius. Documentário. São Paulo: Annablume, 2011. ) –, Tunubalá insurge-se com a sua câmera e voz, sua perspectiva e a perspectiva de parentes. Não por acaso, as primeiras imagens de Na Misak são um exercício contracolonial sobre, a partir de e com o corpo: artefato identitário – diferenciador e constituinte do sujeito em seu ponto de vista sobre o mundo histórico, se tomarmos emprestadas as palavras de Viveiros de Castro (2017)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017. sobre outro contexto antropológico. Por isso, precisa partir de si e não de dimensões exteriores. Então, nos primeiros quadros, a câmera percorre a biofisicidade paramentada de Tunubalá: autor e personagem a um só tempo – dirigindo-se, inconfundivelmente, na primeira pessoa, na mesma materialidade – da voz às texturas indumentárias Misak–, e no mesmo espaço narrativo, material, simbólico – em que o visível é uma segunda pele, constituído pelo e constitutivo do pensamento crítico indígena. Como configurar uma perspectiva Misak sobre si, etnicidade e pertencimento, se não for a partir, sobre e com o próprio corpo para a constituição do ponto de vista?

Performando-se em uma situação colonial, que, para Adolfo Colombres, jamais é um campo semeado de rosas ( COLOMBRES, 1985COLOMBRES, Adolfo (org.). Cine, antropología y colonialismo. Buenos Aires: Clacso, 1985. ), o corpo de Luis Tróchez Tunubalá é antes narrativa contracolonial. No prólogo, escolhe o caminho mais didático: a indumentária típica guambiana ( figura 3 ) – que veste o seu corpo que, em performance, ocupa o quadro e nele se impõe. Tece contrapontos à colonialidade, com seus reducionismos e caricaturas, estigmas e estereótipos. Desconstrói o que é (ou o que pensa) ser indígena hoje, sem a necessidade da diacriticidade, que, em outras latitudes, é uma “vestimenta” de afirmação política. João Pacheco de Oliveira, ao abordar o caso brasileiro, lembra que os povos originários buscaram “expressar a sua condição de indígena atual com elementos diacríticos da sua alteridade” (PACHECO DE OLIVEIRA, 2016, p. 29) frente à política de emancipação do Regime Militar dos anos 1970, que queria definir quem ainda era e quem havia deixado de ser “índio”. Inclusive, passaram a usar, politicamente, a terminologia colonial para afirmarem-se frente aos brancos. Tunubalá, ao contrário, abdica do que é culturalmente específico e opta pelo que constitui o “plano central” a todos, ainda que particular em suas afecções, afetos e capacidades constitutivas de um habitus: o corpo, paramentado ou desnudo – pois é o que em última instância singulariza o ponto de vista ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017. , p. 330). Esse segmento narrativo de abertura é constituído por doze planos que, se não se abrem sobre o objeto, pois, em sua quase totalidade, detêm-se na fisicalidade do traje típico misakiano, para depois revelar o ser humano por trás daquelas vestes – “com lagrimas, ilusões e desilusões” –, aos poucos, mostram partes do corpo do diretor que se apresenta pouco a pouco (uma mão, parte do rosto, do queixo) para, no final, ser enquadrado por inteiro.

Figura 3
Stills do prólogo de Na Misak , 2018, de Luis Tróchez Tunubalá

Mas há por trás daqueles planos (ou panos), em close-up , para além do que é considerado “tipicamente indígena”, um sujeito que olha para o mundo histórico em uma perspectiva humanista. A sua câmera parte do visível (como se a indumentária resumisse, ao olhar de fora, todo um complexo cultural...) para o invisível (... com seus sonhos, desejos e anseios). Essa transição entre planos fechados-abertos não é apenas da dimensão da montagem, pois coloca em crise a reificação do Outro, que, em sonhos e desejos, pertence à mesma humanidade. É uma transição cognitiva que opera o dispositivo em caracol de Luis Tróchez Tunubalá: do culturalismo ao humanismo, do colonialismo ao contracolonialismo, da negação à afirmação, para então retornar à negação, afirmando-a; ao colonialismo, em contraponto; ao culturalismo, humanizando-o. Em um filme processual, o prólogo só vem se completar depois, quando o corpo cultural em sua indumentária dá lugar ao corpo desnudo em sua fisicalidade, a partir da mesma lógica transicional ( figura 4 ). Assim, antes cognitivo do que material, Na Misak sobrepõe o humanismo à tradição (SEÑAL COLOMBIA, 2018, sem paginação). Em todos os níveis (biótico, fílmico, cognitivo), Tunubalá constitui-se como corpo contracolonial que confronta o instituto do corpo folclórico, reverberando, assim, as palavras da ativista e pesquisadora Maya kaqchike Aura Cumes: “[...] Não somos sujeitos culturais, somos sujeitos políticos [...]” ( LABORATORIO DE PEDAGOGÍAS CRÍTICAS, 2019LABORATORIO DE PEDAGOGÍAS CRÍTICAS. Enconversa. Entrevista com Aura Cumes. 19/8/2019. Barcelona [Espanha]. Disponível em: http://www.enconversa.org/aura-cumes-no-somos-sujetos-culturales-somos-sujetos-politicos/?fbclid=IwAR3AF-GPq2Kx1Gb_0ZRDdtiNqszF7SyrO0sXiz7sWhBmY5yBAnbnkgz5Tds . Acesso em: 19 ago. 2019.
http://www.enconversa.org/aura-cumes-no-...
).

Figura 4
Índio desnudo Stills de Na Misak , 2018, de Luis Tróchez Tunubalá.

A indumentária Misak, se não utilizada, mascara a indianidade, no caso dos que não se utilizam da diacriticidade indígena. Quando posta, afirma-se como resistência à colonialidade ao demarcar sua diacrítica ancestralidade. Como conclui Navarrete, a indumentária guambiana “é testemunho do processo histórico que tem sofrido a comunidade em sua luta para preservar seus costumes, além disso é importante como identidade cultural e ética que a diferencia de qualquer outro povo indígena do continente” (NAVARRETE, 1994, pp. 7-8, tradução nossa). Ao desnudar-se, Tunubalá inverte a lógica decolonial e firma gesto de resistência para negar o reducionismo diacrítico (requerido ou assumido). Portanto, movimenta-se de encontro aos Nambikwara que, em A festa da moça (1987), de Vincent Carelli, ao se verem vestidos de branco no ritual de iniciação feminina em um monitor de TV colocado no centro da aldeia, vestiram-se de índio, desnudando-se à procura da autenticidade. O gesto de Tunubalá, no segundo segmento, paradoxalmente, não serve de modelo para os pintores criarem suas xilogravuras nos moldes de Jean de Léry, que apresentou os descritores de como um Tupinambá deveria ser representado: “Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu [...], com lábios e faces fendidos e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas [...] Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas [...]” ( CHICANGANA-BAYONA, 2017CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Imagens de Canibais e Selvagens do Novo Mundo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2017. , p. 177).

Sua nudez já não é mais sinonímia de inocência ou edenismo, mas de reposicionamento de perspectiva, pois, na cosmologia ameríndia, o corpo não se movimenta “sob o modo do fato , mas do feito . Por isso, a ênfase nos métodos de fabricação contínua [...], [no] caráter performado, mais que dado do corpo” ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017. , p. 338, destaques do autor). Adaptando Viveiros de Castro, que pensou outros contextos indígenas, não há uma marcação cultural e sim uma desculturalização do corpo em direção ao que é, especificamente, humano. Assim, Tunubalá inverte os elementos conclusivos, pois “tal processo parece exprimir menos a vontade de animalizar o corpo por sua desmarcação cultural que a de generalizar um corpo ainda demasiado particular (Ibidem, grifo nosso)13 13 . As palavras destacadas invertem as da citação original: desanimalizar, marcação, particularizar, genérico. . Como contraparte do prólogo, esse segundo segmento confronta o índio vestido de índio tipificado no quadrado antropológico de “cultura indígena” como resíduo do passado no presente, sobrevivente da história, objeto de museologia. São oito planos que percorrem, primeiro, a mão do realizador, que a move de um lado para outro de frente à câmera – textura, linhas e marcas sobre a pele. Percorrem tornozelo, rosto, tronco, que, à semelhança da planificação do prólogo, não se abrem para o corpo inteiro e, em quadro, já não vemos mais um índio vestido de índio . É que, no cinema de Luis Tróchez, nenhum etnocentrismo é possível.

Propõe, outrossim, um corpo aberto, eminentemente indígena, ainda que transformado, paradoxal e em resistência, em sua nudez vespucciana. Continua originário nos modos e nas formas da consciência étnica que o atravessa... mesmo sem arco e flecha. Um corpo-fílmico-contracolonial que, transparente, joga todas as peças sobre o tabuleiro para desconstruir a lógica colonizante de certos filmes etnográficos com a voz científica over caracterizando, definindo e descrevendo o Outro. É o que acontece, em Na Misak , no segmento das imagens de arquivo após o prólogo, cujo intertítulo informa que, àqueles indígenas a olharem para a objetiva, a câmera não causava medo ( figura 5 , primeiro fotograma). Mas, antes de vestir-se de narrador, deixa que a voz imanente ao sistema fílmico do documentário ( NICHOLS, 2005NICHOLS, Bill. A voz do documentário. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema: documentário e narratividade ficcional. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005, pp. 47-68. ) exponha a distância abissal entre a sua abordagem e a dos arquivos da Fundación do Patrimonio Fílmico, da Colômbia, a partir de fragmentos de Expedición al Cagueta (1931) de Cesar Uribe Piedrahita e Colômbia incógnita (1950). Em Na Misak , sua presença cosmológica em cena, especialmente nos segmentos biográficos, em que, fisicamente, está ausente, é um exemplo indubitável do intervalo que separa o olhar de fora e o olhar de dentro a partir de uma perspectiva indígena no cinema.

Figura 5
Acervos etnográficos/Imagem-memória. Stills de Na Misak , 2018, de Luis Tróchez Tunubalá.

Nesse momento, Tunubalá “comenta” os acervos etnográficos do mundo, que, para Amalia Cordova, é praxe no cinema originário (CORDOVA, 2011). Ligando o campo e o extracampo, comentar as imagens é uma constante em Na Misak . Em um dos momentos de reflexividade, ao congelar o fluxo temporal da paisagem guambiana, ele desmonta a obra ao nível do fotograma para lembrar que, dentro dessas imagens, há histórias por contar, sonhos por narrar e seres humanos com memória ( figura 5 , segundo fotograma). O cineasta Navajo Angelo Baca, em Shásh Jaa’ - Orelhas de Urso (2016), registra a luta de organizações indígenas para transformar o território ancestral em monumento nacional. Não comenta o material que filma, mas o inefável que emana dos planos aéreos de Utah, nos Estados Unidos, e que desponta da forma como o registro é imantado na paisagem, com a câmera avançando sobre o território que não é apenas uma dimensão física na imagem, mas uma dimensão sagrada do mundo histórico originário: “o que não se vê”, diria o ativista navajo Tom Goldtooth14 14 . Kawsak Sacha – La canoa de la vida (2018), de Eriberto Gualinga). Transcrição livre. . Em Desterro Guarani (2011)15 15 . Em codireção com Patrícia Ferreira, Vincent Carelli e Ernesto de Carvalho. , o cineasta Mbya Ariel Ortega, em um estúdio com o microfone à frente, comenta as imagens, mas não as que filma e sim as que o cinema produziu sobre a história do seu povo. No segmento de A missão (1986), de Rolland Joffé, que é exibido na aldeia, questiona: “se todos morreram, então quem somos nós?!”. O diretor Kichwa Sarayaku Eriberto Gualinga, em Los descendientes del jaguar (2012), comenta e deixa as imagens “comentarem-se”. Em um dos segmentos, observa um parente que caça e, sem muito sucesso, tenta abater a presa. Em off , ouvimos a voz do diretor: “hoje ele não teve sorte”. Em outro, a partir dos seus próprios arquivos, que mostram quando, em 2002, uma empresa de petróleo e o exército equatoriano invadiram a comunidade Sarayaku, o fazer documental é permanentemente anunciado: o militar que quer interromper as filmagens, o diretor que resiste, documentando com sua câmera, a materialidade instável de um registro sob o risco do real ( COMOLLI, 2004COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. Paris: Verdier, 2004. ).

As perspectivas reducionistas não são típicas apenas dos antigos filmes etnográficos, mas de certa cinematografia pós-colonial contemporânea que, por vezes, reduz o Outro a uma presença oculta, historicamente, estereotipada16 16 . Vazante (2017), de Daniela Thomas. ; personagem ancilar , dramaturgicamente, caricatural17 17 . Joaquim (2017), de Marcelo Gomes. ; cenário para outros personagens, mesmo com certa agência18 18 . Zama (2018), de Lucrécia Martel. ; e protagonista de uma tese, que, artificialmente, empresta-lhe uma voz que o suprime19 19 . Insurgentes (2012), de Jorge Sanjinés. . Observou-se também certa obsessão por práticas culturais há muito desaparecidas ( SHOHAT; STAM, 2006SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006. ), como em Nanook, o esquimó (1922), de Robert Flaherty, que, diferente da obra de Divino Tserewahú, interessava-se pela reificação do mundo histórico Inuit e não pela ebulição comunitária mobilizada pelo cinema20 20 . Trilogia dos grandes rituais Xavante: Wapté mnhõnõ: a iniciação do jovem xavante (1998); Wai’á Rini: o poder do sonho (2001); e Pi’õnhitsi: mulheres xavante sem nome (2009). . Como se já não bastassem as próprias imagens, sempre negadas a quem era objetificado pelo olhar de fora, Tunubalá projeta, de encontro ao sistema de verdade, a sua voz e o seu corpo . Constitui-se, assim, na mais absoluta manifestação da liberdade – a de ser o que se é, conjugando passado com o poderá vir a ser –, pois carrega uma aguda percepção das transfigurações inevitáveis, uma intensa consciência histórica da problemática que o atravessa e da existência de outras formas de se colocar frente às questões do mundo.

(Re)começando

Ao situar a problemática do contato no contexto urbano, no qual, ao contrário da suposta diluição da indianidade, o que se apresenta é outra (re)configuração identitária, o cinema de Tunubalá se alinha à antropologia que concebe a etnicidade nos horizontes mutáveis das estátuas de murta e não de mármore – na analogia do Padre Antonio Vieira sobre as possibilidades/impossibilidades de converter o gentio à cristandade, pois, em sua perspectiva, o indígena era fácil de moldar e, ao mesmo tempo, de voltar ao ser o que era. Carneiro da Cunha observa que, no contexto da constituição dos estados-nacionais, no qual as estruturas étnicas obstavam a homogeneização e, portanto, as nacionalidades, “[...] acreditava-se na benéfica influência das cidades, onde a vida seria regida por laços principalmente contratuais. Até que se descobriu que [...] a cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura contraste ” ( CARNEIRO DA CUNHA, 2017CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas. São Paulo: Ubu, 2017. , p. 241). Tamara Moya chama atenção para o redimensionamento do cinema indígena para a problemática nas cidades. Lembra que, cada vez mais, as pesquisas censitárias demonstram a crescente migração, na América Latina, da zona rural para a urbana. Mas, nos filmes, prepondera ainda “uma perspectiva nostálgica sobre o ancestral e as particularidades da vida em aldeia” (MOYA, 2018, p. 169, tradução nossa).

Se o olhar indígena pouco abordou o índio na urbe, Na Misak , vem se somar a um corpus de 15 obras selecionadas, entre 1986-2016, no marco da emergência do cinema originário de Abya Yala quando se “desvinculou” da aldeia. Nesse campo, Moya propõe categoriais da construção da identidade indígena no espaço urbano, das quais a cidade figura como locus etnocida, de transculturação, visibilização e neocolonial. Se, de uma forma ou outra, tais categorias contemplam o mundo histórico de Luis Tróchez Tunubalá, em Na Misak , vemo-lo aproximar-se mais do espaço fronteiriço da urbe como campo de transculturação, que, nos termos de Moya, permite “aproveitar as possibilidades da vida urbana sem, assim, romper os laços com sua comunidade de origem” (Ibidem, p. 172). Se o corpus analisado por Moya é emblemático pela representatividade, as lentes desconstrucionistas de Tunubalá dão um salto além de um certo ethos regulatório comunitário , que ronda as cinematografias originárias na configuração de uma retórica da autenticidade. Nesse passo, entra em cena a discussão sobre etnicidade e essencialismo, definição de grupo étnico, a problemática da transfiguração cultural e o que é ser “índio” hoje na sociedade contemporânea.

Em Na Misak , Luis Trochez Tunubalá posiciona o seu olhar contra todos os colonialismos: políticos e científicos, impostos e internalizados: “Essa vergonha de ser indígena”, como narra na abertura, mas já superada, como atesta o próprio documentário e a atuação do realizador nas organizações políticas comunitárias (SEÑAL COLOMBIA, 2018, sem paginação). Em uma das suas incisões mais radicais, lembra aqueles que acham justas as suas lutas e, por vezes, apenas as consideram belas: “linguísticas, antropólogos, documentaristas” – que ouvimos sob a moldura de cenas folclóricas. Colocando-se no lugar do Outro, inverte a lógica do “olhar-se”, de como os seus parentes “olham-se” e são objeto do “olhar” de outrem. Nesse campo, não deixa de ser um Misak, ainda que desnudo no paradoxo com os Nambikwara, que, uma vez nus, vestem-se de índio . Afinal, em Na Misak , a pergunta que se coloca é: “quem afinal é o Outro”? Sobretudo porque, nos termos de Bernardet, ao analisar o cinema Xavante de Divino Teserewahú, o centro e a periferia são deslocados em permanência, sendo o Outro constituído à medida que o “Outro” se reposiciona no centro (BERNARDET, 2011, pp. 158-159). Ao assumir o comando das imagens, entre certas convenções ( a voz do saber ), o ensaísmo (com a subjetividade como discurso na arena pública) e a autorreferencialidade (com o nervo exposto da montagem sem disfarce), Tunubalá projeta sua voz sobre o “Outro”. Nesse complexo fílmico e histórico de espelhos, não há qualquer rendição à sociedade nacional, sobretudo porque, como propugna a merrap , o passado é instância sempre adiante a lhe guiar.

O complexo de reducionismos nacional se aproxima dos horizontes históricos da superfície sintagmática do presente cusicanquiano. Subsidiado pelos segmentos biográficos, Tunubalá cria contrapontos à museologização do Outro, que joga os grupos étnicos para o passado como se fossem fósseis; ao equívoco sobre etnicidade e cultura, que confunde indianidade com traços culturais; e ao imaginário colombo-vespucciano incrustado no colonialismo atual. Em sua perspectiva indígena, Tunubalá constitui uma antropologia originária a contrapelo ou, se tomarmos de empréstimo as palavras de Wagner, uma antropologia reversa ( WAGNER, 2017WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Ubu Editora, 2017. ) – mas, aqui, intervalar entre concepções Misak e ocidentais. Produz, ao mesmo tempo, uma autocrítica quanto à internalização de certos reducionismos sobre si e aos padrões culturais da sua própria comunidade. Assim, compreendeu, em uma síntese desestruturante de certa antropologia contatualista, que decolonizar é também ser livre para poder escolher a religião que irá escravizá-lo, como vemos no segmento em que acompanha o cantor gospel nas igrejas locais. A partir de uma perspectiva contracolonial, se usarmos os termos de Viveiros de Castro sobre outro universo antropológico (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 323), Tunubalá constitui-se enfim como sujeito, pois agenciado por um ponto de vista em permanência com o corpo como artefato do pensamento crítico.

Se a antropologia apreender a sociedade colonial a partir do contexto indígena, ela torna-se capaz de compreender que “ tudo é interno a ele - inclusive a ‘sociedade envolvente’. [Porque] Todas as relações são internas, pois uma sociedade não existe antes e fora das relações que a constituem [...], [e que] só podem ser as relações que ela constitui” (Idem, 1999, p. 120); a escritura Misak de Luis Tróchez Tunubalá é um desses artefatos constitutivos – no campo do cinema indígena. Ao situar a sociedade nacional no campo dos reducionismos, confronta a colonialidade nos níveis históricos, antropológicos e cinematográficos e interrompe, nos termos de Chimamanda Ngozi Adichie, o perigo da história única (ADICHIE, 2019) – dos povos originários de Abya Yala. Combate ainda os sistemas de verdades sobre o que é ser indígena e apresenta outras perspectivas que colocam em crise suas próprias acepções e certos padrões culturais da sua comunidade. Em Na Misak , Tunubalá atualiza a história do contato, não anistia a violência colonial e não esquece os processos de luta em defesa do território e da cultura do seu povo, como sabemos a partir do fluxo do pensamento crítico tunubalaiano sobre a resistência que, por mais de setenta anos, recuperou o território, e lembra que ser indígena com sonhos do homem branco não significa abdicar da memória ancestral, com a valorização, nos segmentos biográficos, dos encontros e da solidariedade comunitária. Ao término, como Radhakrishnam, o jovem diretor misak Luis Tróchez Tunubalá elabora a mesma questão: por que não posso ser indígena sem ter de ser “autenticamente indígena”?21 21 . A pergunta de Radhakrishnam: “Por que não posso ser indiano sem ter de ser ‘autenticamente indiano’”? (apud PACHECO DE OLIVEIRA, 2016 , p. 220).

Em um diapasão ensaístico e autorreflexivo, a complexidade de Na Misak torna uma obra com pouca aderência ao cinema indígena como embedded aesthetics ou poética de los medios imperfectos ( CORDOVA, 2011CORDOVA, Amalia. Estéticas enraizadas: aproximaciones ao video indígena en América Latina. Comunicación y Médios, n. 4, 2011, pp. 81-107. ; SALAZAR, 2004SALAZAR, Juan Francisco. Imperfect media: the poetics indigenous media in Chile. 2004. Tese de Doutorado. University of Western, Sidney, 2004. ), que, respectivamente, vinculam os filmes às problemáticas da comunidade (como se estivesse por elas determinado) e, de certo modo, distanciam-nos do cinema hegemônico mundial. Como no cinema de Huichaqueo, nas formas da sua materialidade, Tunubalá não está preso à vida na aldeia, ainda que o ancestral e o comunitário estejam presentes, e desmonta a narratividade de Na Misak com as entradas em cena, o corpo performático e a manipulação do movimento ontológico do cinema, a partir de um controle autoral cujos limites são dados pelos seus próprios termos pouco afeitos a certa quadratura do vídeo comunitário. Assim como em Ilwen, la tierra tiene olor a padre (2013), um canto de amor de certo modo à história do seu avô e do seu pai, Huichaqueo retoma a ancestralidade Mapuche perdida com a atmosfera da materialidade fílmica, lembrando formas cinematográficas do passado, Luis Tróchez Tunubalá, entre a tradição e a modernidade, a comunidade e a cidade, antes de significar afastamento ou alienação, também não esquece a história do seu povo. Porque sabemos que “Os filmes documentários não são apenas ‘abertos para o mundo’: eles são atravessados, perfurados, transportados. Entregam-se àquilo que é mais forte, que os ultrapassa e, ao mesmo tempo, os funda” ( COMOLLI, 2004COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. Paris: Verdier, 2004. , p. 508, tradução nossa). E, por extensão, dá relevo, por meio da sua cosmovisão, a situações que demarcam a solidariedade comunal Misak (entre crianças, jovens, homens, mulheres e velhos), nas quais consolida “el ellmarθp”, ou seja, o cultivo do comunitário na “alik o minga”: “coesão social, de intercâmbio e reciprocidade”, “vontade coletiva de acompanhar e compartilhar” ( TUNUBALÁ; TROCHEZ, 2009TUNUBALÁ, Floro; TROCHEZ, Juan Bautista Muelas. Segundo plan de vida de pervivencia y crecimiento Misak. Bogotá: Digitos y disenos, 2009. , p. 25, tradução nossa).

Principalmente porque “grupos étnicos são formas de organizações que respondem às condições políticas e econômicas contemporâneas e não vestígios de organizações passadas” ( CARNEIRO DA CUNHA, 2017CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas. São Paulo: Ubu, 2017. , p. 235) e a etnicidade, ao invés de ser de referenciada na coincidência consigo mesma, tem seu fundamento na relação com os outros ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017. ). Se a problemática do contato seguisse a perspectiva Tupinambá, a alteridade apareceria de outro modo, pois “a inconstância da alma selvagem, em seu momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde [...] [a] afinidade relacional, portanto, não a identidade substancial, era o valor a ser afirmado” ( VIVEIROS DE CASTRO, 2017VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2017. , pp. 178-179). Como ouvimos do próprio Tunubalá, no segmento final de Na Misak , com a incidência da sua voz e do seu corpo em quadro, a atravessar a cidade naquele ônibus, a narração interior pontuando seus pensamentos: “aqui estou buscando caminhos do branco que não conhece sonhos de índio ou caminhos de índio que procura sonhos de branco”, ou seja, está a se autotransfigurar, em seus próprios termos. Sendo filho da água guiado pelo Pishimisak 22 22 . Espécie de entidade suprema da cosmologia Misak: “Da mesma forma, ao redor das lagoas e no kθrrak, vive o pishimisak , que guia o mθrθpθlθ em seus sonhos para que possam nos guiar. Ele é o dono de tudo, o protetor da vida e da morte, quem tem o poder de manter o equilíbrio social entre o homem e a natureza” (TUNUBALÁ; TRÓCHEZ, 2009, p. 11, tradução nossa). , o último plano sobre a janela do ônibus tomada pela chuva não podia ser diferente. A voz de Tunubalá, simultaneamente à consciência merrap , concebe o passado sempre adiante como um guia:

Sou filho da água. Viemos da terra. Somos memória viva de nossos ancestrais. Sou Misak por meus avós que não conheceram letra alguma. Sou Misak por minha mãe que trabalha a terra incansavelmente e tece com a sua alma minha memória. Sou Misak por meu pai que lutou contra o terratenente para recuperar as terras roubadas. Sou Misak porque a terra me chama de suas entranhas. Agora, estou na cidade e busco compreender esse mundo citadino. Tento compreender esse mundo fugaz, espontâneo, quiçá sem memória. Aqui estou buscando caminhos do branco que não conhece sonhos de índio ou caminhos de índio que procura sonhos de branco. Somos um ir e vir de sonhos, desejos, anseios. Agora, intento compreender nossa transformação. Entendo que nosso sonho não se condiciona pela aceitação do branco. É-se Misak por acreditar na memória de nossos avós. Mas a memória não significa viver no passado. Significa que temos história23 23 . Tradução livre. .

Figura 1
Stills de Na Misak , 2018, de Luis Tróchez Tunubalá

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  • 1
    . Consejo Regional Indígena del Cauca (CRIC), Asociación de Cabildos Indígenas del Norte del Cauca (ACIN) e a Organización de Nacionalidades Indígenas de Colombia (ONIC).
  • 2
    . Os documentaristas Jorge Silva e Marta Rodriguez têm uma filmografia expressiva sobre a questão indígena na Colômbia.
  • 3
    . Criada em 2014, com apoio do Ministério da Cultura da Colômbia, da UNESCO e da Red de Comunicadores del Pueblo Wayuu, forma jovens comunicadores Wayuu “da” Colômbia e “da” Venezuela: MINISTÉRIO DA CULTURA DA COLÔMBIA. Escuela de Comunicaciones Wayuu. 2017. Disponível em: http://www.mincultura.gov.co/prensa/noticias/Paginas/Escuela-de-Comunicaciones-Wayuu,-apoyada-por-Mincultura,-gradúa-a-nuevos-comunicadores-ind%C3%ADgenas.aspx. Acesso em: 20 jul. 2020.
  • 4
    . A partir do espanhol: Eu, um Misak .
  • 5
    . População: 21.713 pessoas se identificaram como Misak no censo de 2018 (DANE - CENSO NACIONAL DE POBLACION Y VIVIENDA-CNPV, 2018).
  • 6
    . “El pueblo de San Felipe y Santiago de Guambía, conocido como Guambía, y después de 1838 como Silvia, fue establecido dentro de los límites de la encomienda. En 1589 grupos guambianos fueron asignados a otras dos encomiendas; Ambaló y Usenda [...]. Usenda se convirtió en un poblado mestizo, mientras Ambaló continúa hoy como una hacienda trabajada por arrendatarios misak” (SCHWARZ, op. cit, p. 76).
  • 7
    . Considerando os dados estatísticos do último CNPV (2018), identifica-se crescimento populacional indígena, sendo a manifestação livre uma das razões que explica o aumento.
  • 8
    . Na Colômbia, os povos isolados são: Jurumi, Passe e Yuri (CNPV, 2018).
  • 9
    . Para evitar equívoco, Tunubalá e Tróchez são dois autores que, coincidentemente, têm o mesmo sobrenome do realizador Luis Tróchez Tunubalá.
  • 10
    . “En nuestro pensamiento guambiano, al contrario de lo que ocurre en la llamada concepción occidental, el pasado está adelante, es merrap, lo que ya fue y va adelante; wento es lo que va a ser y viene atrás. Por eso, lo que aún no ha sido, viene caminando de atrás y no podemos verlo.” (HURTADO; ARANDA; VASCO, 2015, p. 56)
  • 11
    . Compilação de cartas e relatos do navegador italiano Américo Vespuccio publicada em 1505.
  • 12
    . Quando contatados: dois Kanôe, quatro Akuntsu e o “Índio do Buraco”, o único sobrevivente do seu povo.
  • 13
    . As palavras destacadas invertem as da citação original: desanimalizar, marcação, particularizar, genérico.
  • 14
    . Kawsak Sacha – La canoa de la vida (2018), de Eriberto Gualinga). Transcrição livre.
  • 15
    . Em codireção com Patrícia Ferreira, Vincent Carelli e Ernesto de Carvalho.
  • 16
    . Vazante (2017), de Daniela Thomas.
  • 17
    . Joaquim (2017), de Marcelo Gomes.
  • 18
    . Zama (2018), de Lucrécia Martel.
  • 19
    . Insurgentes (2012), de Jorge Sanjinés.
  • 20
    . Trilogia dos grandes rituais Xavante: Wapté mnhõnõ: a iniciação do jovem xavante (1998); Wai’á Rini: o poder do sonho (2001); e Pi’õnhitsi: mulheres xavante sem nome (2009).
  • 21
    . A pergunta de Radhakrishnam: “Por que não posso ser indiano sem ter de ser ‘autenticamente indiano’”? (apud PACHECO DE OLIVEIRA, 2016PACHECO DE OLIVEIRA, João. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. , p. 220).
  • 22
    . Espécie de entidade suprema da cosmologia Misak: “Da mesma forma, ao redor das lagoas e no kθrrak, vive o pishimisak , que guia o mθrθpθlθ em seus sonhos para que possam nos guiar. Ele é o dono de tudo, o protetor da vida e da morte, quem tem o poder de manter o equilíbrio social entre o homem e a natureza” (TUNUBALÁ; TRÓCHEZ, 2009, p. 11, tradução nossa).
  • 23
    . Tradução livre.
  • *
    Este artigo é resultado do projeto de pós-doutorado “Visões do mundo indígena:mediações fílmicas do mundo histórico dos povos originários no Brasil - produção e formação audiovisual doprojeto Vídeo nas Aldeias(VNA)” que desenvolvemos,entre 2018-2019, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCom/UFPE), sob a supervisão da profa. titular Dra. Angela Prysthon.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2019
  • Aceito
    2 Jul 2020
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