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Fundo ou coleção? Um debate contínuo na Arquivologia

Fonds or collection? A continuous debate in Archival Science

Resumo:

Objetiva-se discutir sobre o dualismo existente entre os conceitos de fundo e coleção, quase sempre concebidos, respectivamente, como conjunto orgânico e conjunto artificial de documentos. A discussão inevitavelmente remete ao Princípio do Respeito aos Fundos e/ou ao Princípio da Proveniência, a depender da compreensão de cada autor. Por meio de abordagem qualitativa, o estudo revisa a literatura arquivística em busca de definições e nuances para os dois tipos de conjuntos documentais. Com frequência, constata-se que a categorização tradicional se mostra problemática, gerando dúvidas em relação aos elementos essenciais que determinam a natureza do conjunto. A partir das reflexões de Geoffrey Yeo, apresenta-se um olhar alternativo a respeito do dualismo fundo-coleção. As concepções de fundo conceitual e coleção física, propostas por Yeo, permitem uma abordagem de continuum e abrem perspectivas para o tratamento de fundos dispersos ou misturados, documentos com múltiplas proveniências e conjuntos de organicidade questionável.

Palavras-chave:
coleção; fundo; princípio do respeito aos fundos; princípio da proveniência

Abstract:

The aim is to discuss the dualism between the concepts of fonds and collection, almost always conceived, respectively, as an organic and artificial assemblage of documents. The discussion inevitably refers to the Principle of Respect des Fonds and/or the Principle of Provenance, depending on the understanding of each author. Through a qualitative approach, the study reviews the archival literature in search of definitions and nuances for the two types of aggregation. Traditional categorization is often found to be problematic, generating doubts about the essential elements that determine the nature of the aggregation of records. Based on Geoffrey Yeo's reflections, an alternative view of the fonds-collection dualism is presented. The concepts of conceptual fonds and physical collection, proposed by Yeo, allow a continuum approach and open perspectives for the treatment of dispersed or mixed fonds, records with multiple provenances and body of records of questionable organic relationship.

Keywords:
collection; fonds; principle of respect des fonds ; principle of provenance

1 Introdução

A comunicação entre profissionais de uma área é fator crucial para que o conhecimento progrida. Nesse sentido, é necessário que haja um léxico comum especializado, uma terminologia que facilite o diálogo entre os pares e que, além disso, garanta a identidade da disciplina em questão ( BELLOTTO, 2014BELLOTTO, Heloísa Liberalli. A terminologia nas áreas do saber e do fazer: o caso da arquivística. In: BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivo: estudos e reflexões. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 144-55.).

A Arquivologia detém um corpus de princípios e conceitos compartilhado em nível internacional. Apesar disso, quer por tradições burocráticas e administrativas, quer por aspectos jurídicos e socioculturais, existem particularidades na práxis arquivística e na utilização terminológica aplicada em cada país. A transposição de vocabulário de uma realidade a outra nem sempre acontece de forma ideal. Cook (2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017.), por exemplo, sublinhou a confusão em torno do record group norte-americano, que, por analogia, foi equivocadamente considerado equivalente ao conceito europeu de fundo.

Diante dessa problemática, temos como objetivo refletir sobre a dualidade dos termos fundo e coleção, suas definições e usos na Arquivologia. Trata-se de um estudo exploratório que, por meio de abordagem qualitativa, recorre à literatura arquivística de línguas portuguesa, francesa, espanhola e inglesa, a fim de identificar pontos de divergência e convergência dentro do universo de acepções adotadas pelos autores consultados.

O caminho para a análise da bibliografia foi trilhado a partir da leitura de obras de referência, manuais e textos clássicos, recorrentemente citados na literatura e base do pensamento arquivístico tradicional. Das últimas décadas, selecionamos alguns textos com perspectiva questionadora da teoria predominante, que julgamos capazes de contribuir para o presente debate. Nessa etapa, foram consultados, sobretudo, a Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI) e o repositório do periódico Archivaria, publicado pela Associação dos Arquivistas Canadenses. Não se trata, portanto, de uma pesquisa bibliográfica exaustiva, mas de uma investigação pautada na escolha criteriosa de textos que lançam um outro olhar sobre os conjuntos documentais, sem abandonar os princípios e conceitos seminais da Arquivologia.

Num primeiro momento, abordamos os sentidos atribuídos ao termo coleção, evidenciando a diversidade semântica que ele carrega. Tratamos, posteriormente, do conceito de fundo e dos princípios que lhe dizem respeito: o consagrado respect des fonds e/ou o Princípio da Proveniência - para alguns autores, princípios diferentes, para outros, correspondentes. Por fim, apresentamos as dicotomias existentes entre os conceitos de fundo e coleção e discorremos sobre uma forma alternativa de pensá-los, com base nas ideias de Geoffrey Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.). Perspectiva na qual as concepções de fundo conceitual e coleção física permitem uma abordagem de continuum, assegurando para que não haja a exclusão mútua dos conceitos.

2 A coleção para os arquivistas

Coleção é um termo polissêmico. Mesmo que nos restrinjamos aos domínios da Arquivologia, é difícil não se confundir ante o emaranhado de significados encontrados, especialmente os presentes na literatura anglófona. A depender do contexto e da qualificação, coleção pode assumir muitos sentidos diferentes, desde a totalidade do acervo de uma instituição de guarda a conjunto de documentos reunidos artificialmente. Evoca, igualmente, noções atreladas aos conceitos de arquivo pessoal, arquivo de empresa e conjunto orgânico de documentos adquiridos por um repositório ( DICTIONARYDICTIONARY of Archives Terminology. Chicago: The Society of American Archivists, c2005-2022. ..., c2005-2022; SCHELLENBERG, 2006SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. ; GREENE, 2015GREENE, Mark. Archival collection. In: DURANTI, Luciana; FRANKS, Patricia C. (ed.). Encyclopedia of Archival Science. Lanham: Rowman & Littlefield, 2015. p. 32-35.).

O uso livre e disseminado do termo fica evidente no texto Collections and collection description, de Pete Johnston e Bridget Robinson (2002JOHNSTON, Pete; ROBINSON, Bridget. Collections and collection description. Collection Description Focus Briefing Paper, Bath, v. 31, n. 1, p. 1-4, jan. 2002.), no qual discutem sobre o trabalho de descrição de coleções em arquivos, museus e bibliotecas. Após explicarem as diferenças entre coleção artificial e fundo, os autores, curiosamente, esclarecem a seus leitores “[...] que ambos os tipos de conjuntos [...] são ‘coleções’ no sentido mais geral em que o termo é usado” no texto ( JOHNSTON; ROBINSON, 2002JOHNSTON, Pete; ROBINSON, Bridget. Collections and collection description. Collection Description Focus Briefing Paper, Bath, v. 31, n. 1, p. 1-4, jan. 2002., p. 2). Tal afirmação abre margem para o entendimento de que as diferenças entre os dois são tão pouco significativas que podem ser tratados de forma genérica; em outras palavras, pode-se inferir que, no limite, o fundo também é uma coleção.

Não obstante, na comunidade arquivística, a dualidade entre fundo/arquivo e coleção tem sido constante, um debate contínuo que persiste desde pelo menos o surgimento do respect des fonds, no século XIX. Se na Biblioteconomia o termo coleção costuma ter uma conotação positiva, na Arquivologia, por vezes, a coleção é vista como algo menor, “[...] material impuro ou de segunda classe” (KIESLING, 2004 1 1 KIESLING, Kris. Why two standards? RAD2 and DACS. [S. l.: s. n.], 2004. Apud Yeo 2012). apud YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 50, tradução nossa). Sir Hilary Jenkinson (1980JENKINSON, Hilary. The english archivist: a new profession. In: JENKINSON, Hilary. Selected writings of Sir Hilary Jenkinson. Gloucester: Alan Sutton Pub, 1980. p. 236-259. ) afirma que todo arquivo é um conjunto de documentos, mas nem todo conjunto de documentos é um arquivo; com isso está claramente sinalizando para a diferença entre arquivo e coleção. A forma natural de acumulação dos documentos é apontada pelo autor como a qualidade essencial para distinguir o arquivo dos conjuntos de registros colecionados ( JENKINSON, 1980JENKINSON, Hilary. The english archivist: a new profession. In: JENKINSON, Hilary. Selected writings of Sir Hilary Jenkinson. Gloucester: Alan Sutton Pub, 1980. p. 236-259. ). Seria da competência do arquivista, assim, discernir o joio do trigo, a coleção do fundo.

O Dictionary of Archives Terminology, ao definir coleção ( collection) em sua seção notes, enfatiza a pluralidade de significados que o termo carrega e como o seu uso é amplamente disseminado e, paradoxalmente, rechaçado: “Todos usam o termo, mas muitos o odeiam” ( DICTIONARYDICTIONARY of Archives Terminology. Chicago: The Society of American Archivists, c2005-2022. ..., c2005-2022, tradução nossa). Jenkinson (1980JENKINSON, Hilary. The english archivist: a new profession. In: JENKINSON, Hilary. Selected writings of Sir Hilary Jenkinson. Gloucester: Alan Sutton Pub, 1980. p. 236-259. , p. 238, tradução nossa), por exemplo, desejou “[...] que a palavra ‘coleção’ pudesse ser banida do vocabulário do arquivista." Tal acepção do termo se refere àquilo que os arquivistas costumam chamar de coleção artificial ( artificial collection), segundo o Dictionary of Archives Terminology, “Uma coleção de materiais de diferentes proveniências reunidos e organizados para facilitar a sua gestão ou utilização.” ( DICTIONARYDICTIONARY of Archives Terminology. Chicago: The Society of American Archivists, c2005-2022. ..., c2005-2022, tradução nossa).

Rousseau e Couture (1998ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998. , p. 98) compartilham da mesma compreensão, consideram a coleção a antítese do fundo, um conjunto documental desprovido de naturalidade, um antifundo que é “[...] fruto do artifício, da arbitrariedade [e], muitas vezes[,] do acaso [...]”. Para os autores, o agrupamento resultante dessa reunião artificial é uma entidade “[...] totalmente estranha à natureza e à razão de ser dos documentos que a compõem.” ( ROUSSEAU; COUTURE, 1998ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998. , p. 98). Desse ponto de vista, é como se a coleção não fosse a morada natural desses documentos, é como se ela fosse um abrigo que reúne entes das mais variadas origens, que ali se encontram em razão da própria sorte ou da vontade de alguém. A definição se estabelece em contraposição ao conceito de fundo.

Os dicionários brasileiros de Arquivologia trazem definições similares para o termo coleção. Ressaltam que a reunião do conjunto se dá em torno de alguma característica em comum dos documentos. Enquanto o Dicionário de terminologia arquivística ( CAMARGO; BELLOTTO, 1996CAMARGO, Ana Maria de Almeida; BELLOTTO, Heloísa Liberalli (org.). Dicionário de terminologia arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996. ) e o Dicionário de biblioteconomia e arquivologia ( CUNHA; CAVALCANTI, 2008CUNHA, Murilo Bastos da; CAVALCANTI, Cordélia Robalinho de Oliveira. Dicionário de biblioteconomia e arquivologia. Brasília: Briquet de Lemos Livros, 2008.) chamam a atenção para o fato de ser essa uma reunião artificial e sem vínculos orgânicos, o Dicionário brasileiro de terminologia arquivística ( ARQUIVO NACIONAL, 2005ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.) destaca a intencionalidade no ato de se reunir os materiais. Para Bellotto (2006BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006., p. 28), as coleções são formadas por “[...] documentos reunidos obedecendo a critérios científicos, artísticos, de entretenimento ou quaisquer outros que não os funcionais/administrativos.”. Assim, em geral, na tradição arquivística brasileira, quando se fala em coleção, está-se a referir à coleção artificial.

Podemos dizer que certa aversão em relação às coleções não impediu a presença delas nos arquivos. Longe disso, são na realidade muito comumente encontradas nessas instituições, cuja natureza receptora - o arquivo recolhe os documentos da entidade produtora - contrasta com a natureza colecionadora dos museus e bibliotecas ( BELLOTTO, 2006BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.). As coleções podem ser recebidas prontas e fechadas - por doação, compra ou permuta -, ou formadas por iniciativa da própria instituição, em torno de um tema específico. Todavia, elas “[...] geralmente são uma parte muito pequena do que um arquivo está preocupado.” ( GREENE, 2015GREENE, Mark. Archival collection. In: DURANTI, Luciana; FRANKS, Patricia C. (ed.). Encyclopedia of Archival Science. Lanham: Rowman & Littlefield, 2015. p. 32-35., p. 33, tradução nossa). Nas etapas de um plano de descrição de uma instituição arquivística, Heredia Herrera (1991HEREDIA HERRERA, Antonia. Archivística general: teoría y práctica. 5. ed. Sevilha: Diputación Provincial de Sevilla, 1991. ) argumenta que o trabalho nunca deve começar pelas coleções, mas, sim, pelo inventário de cada um dos fundos custodiados, embora reconheça que “[...] a sua descrição é tão obrigatória quanto a do fundo.” ( HEREDIA HERRERA, 2007HEREDIA HERRERA, Antonia. ¿Qué es un archivo? Somonte-Cenero: Trea, 2007. , p. 117, tradução nossa).

De acordo com Schmidt (2012SCHMIDT, Clarissa Moreira dos Santos. Arquivologia e a construção do seu objeto científico: concepções, trajetórias, contextualizações. 2012. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.), o próprio objeto científico da Arquivologia, durante o seu período Clássico e Moderno, permaneceu sendo o documento de arquivo, diversificando-se apenas no período Contemporâneo, com abordagens epistemológicas que atualmente o concebem como: informação gerada por processos, informação social, informação orgânica, process-bound information; além ainda, é claro, de arquivo e de documento de arquivo. Nenhuma das abordagens, entretanto, contempla a coleção como objeto da Arquivologia, nem mesmo de modo subjacente.

Segundo Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 50, tradução nossa), “Os puristas, especialmente na tradição europeia, não gostam da ideia de que as coleções possam estar sob a alçada dos arquivistas [...]”. As coleções não são, via de regra, conjuntos documentais com peculiaridades que demandam um tratamento exclusivamente arquivístico. Pelo contrário, costumam ser tratadas por outras disciplinas que lidam com documentos, como a Biblioteconomia e a Museologia. Para Duchein (1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. ), é a prática do Princípio do Respeito aos Fundos que garante a identidade profissional aos arquivistas, distinguindo-os dos bibliotecários e documentalistas.

Diante dessa amostragem de perspectivas, que revela minimamente como as coleções têm sido, com frequência, percebidas pelos arquivistas, vale indagar se seriam elas também conjuntos de documentos a serem estudados mais detidamente pela “Ciência dos arquivos” ( JENKINSON, 1922JENKINSON, Hilary. A manual of archive administration: including the problems of war archives and archive making. Londres: Humphrey Milford, 1922. , p. 16, tradução nossa) ou, como quer Menne-Haritz, a “ciência dos contextos e relações.” (1998 2 2 MENNE-HARITZ, Angelika. What can be achieved with archives? In: The concept of record: report from the second Stockholm Conference on Archival Science and the Concept of Record, 1996. Stockholm: Riksarkivet, 1998, p. 11-24. Apud Camargo e Goulart (2007). apud CAMARGO; GOULART, 2007CAMARGO, Ana Maria de Almeida; GOULART, Silvana. Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2007., p. 53). Se a coleção é objeto de estudo em interseção com outras disciplinas correlatas, refletir sobre o papel específico da Arquivologia nesse âmbito se faz necessário.

É fato que as coleções podem ser formadas por documentos de arquivo, e, como já observado, o documento de arquivo continua sendo o objeto da Arquivologia para muitos estudiosos. Heredia Herrera (2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013.) afirma que as coleções não são anti-arquivísticas, mas os documentos que as compõem, ainda que arquivísticos em sua origem, carecem de um fator determinante para os arquivos: a mesma proveniência. Embora as coleções possam conter documentos com esse atributo, normalmente, são constituídas por materiais de proveniências diversas, sem relações orgânicas, sem os contextos reconhecidos pela Arquivologia. Vale ressaltar que os documentos de arquivo integrantes de coleções não necessariamente perdem todos os elementos que possibilitam o reconhecimento da entidade que os produziu e das atividades às quais se vinculavam no ato de sua produção. Isso significa que, mesmo quando misturados e descontextualizados, é possível a identificação de sua proveniência.

O tratamento técnico dispensado à Coleção Alberto Lamego, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), exemplifica bem a especificidade que o olhar arquivístico pode lançar sobre esse tipo de conjunto. No modelo de verbete do Catálogo dos manuscritos: coleção Alberto Lamego (NOGUEIRA; BELLOTTO; HUTTER, 2002NOGUEIRA, Arlinda Rocha; BELLOTTO, Heloísa Liberalli; HUTTER, Lucy Maffei. Catálogo dos manuscritos: coleção Alberto Lamego. 2 ed. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 2002.), destacamos como aspectos diferenciais a identificação da espécie documental e o reconhecimento da “razão de ser” dos documentos. Esses são elementos normalmente desconsiderados em uma abordagem biblioteconômica ou museológica, mas essenciais para diversos nichos de pesquisas. Como bem explica Bellotto (2002BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Introdução metodológica. In: NOGUEIRA, Arlinda Rocha; BELLOTTO, Heloísa Liberalli; HUTTER, Lucy Maffei. Catálogo dos manuscritos: coleção Alberto Lamego. 2 ed. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 2002. p. 121-126.):

Para os historiadores, notadamente os preocupados com aspectos político-administrativos, o conhecimento da espécie documental, que serve de meio ao conteúdo pesquisado, é básico. Segundo a tipologia documental que lhe serve de veículo, a interpretação do conteúdo de um documento pode mudar radicalmente ( BELLOTTO, 2002BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Introdução metodológica. In: NOGUEIRA, Arlinda Rocha; BELLOTTO, Heloísa Liberalli; HUTTER, Lucy Maffei. Catálogo dos manuscritos: coleção Alberto Lamego. 2 ed. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 2002. p. 121-126., p. 24).

A interpretação do conteúdo do documento muda porque passa-se a enxergar aquilo que está para além dele: revela-se o contexto da produção e acumulação do registro, o para quê e o porquê de sua existência. Inclusive pode ocorrer de o fundo de origem - conjunto orgânico a qual originalmente o documento fez parte - estar disponível para a consulta em alguma instituição de guarda, circunstância que possibilita o restabelecimento virtual do vínculo arquivístico e, eventualmente, um olhar mais acurado do pesquisador. Nesse âmbito, o papel do arquivista é primordial.

Outro tópico que merece destaque em nossa discussão diz respeito às qualificações conferidas às coleções por alguns autores da Arquivologia. Schellenberg (2006SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. , p. 270), ao tratar dos “papéis privados”, separa-os em duas categorias: as coleções naturais ou orgânicas e as coleções artificiais. Por “papéis privados”, o autor concebe tanto os documentos de uma pessoa como os de uma entidade privada. A rigor, de acordo com Schellenberg (2006SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. ), as coleções naturais possuem as mesmas características dos fundos de instituições públicas, mas são assim denominadas por serem agrupamentos de documentos privados. Detêm, portanto, relações orgânicas, já que se “[...] formam no curso normal dos negócios ou da vida de entidades privadas [...]” ( SCHELLENBERG, 2006SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. , p. 270). Por outro lado, as coleções artificiais carecem de organicidade, “[...] são constituídas depois de ocorridas as ações a que se relacionam, não concomitantemente, e em geral derivam de diversas fontes [...]” ( SCHELLENBERG, 2006SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. , p. 270). Cabe frisar que, segundo Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 49, tradução nossa), “[...] a palavra fundo é raramente utilizada nos Estados Unidos [...]”, sendo mais recorrente o uso dos termos arquivo e coleção.

Archival é mais um adjetivo encontrado na literatura anglófona para qualificar coleção. Coleção arquivística ou coleção de arquivo ( archival collection), na definição apresentada por Greene (2015GREENE, Mark. Archival collection. In: DURANTI, Luciana; FRANKS, Patricia C. (ed.). Encyclopedia of Archival Science. Lanham: Rowman & Littlefield, 2015. p. 32-35.), parece-nos ter um sentido similar ao conceito de coleção natural de Schellenberg. Greene (2015GREENE, Mark. Archival collection. In: DURANTI, Luciana; FRANKS, Patricia C. (ed.). Encyclopedia of Archival Science. Lanham: Rowman & Littlefield, 2015. p. 32-35.) entende coleção arquivística como um conjunto orgânico de documentos adquiridos por uma instituição custodiadora, sem relação legal com o responsável pela produção dos documentos. A exemplo da coleção natural, a coleção arquivística inclui os arquivos de empresas e os arquivos pessoais, mas distingue-se das coleções artificiais, com as quais não deve ser confundida ( GREENE, 2015GREENE, Mark. Archival collection. In: DURANTI, Luciana; FRANKS, Patricia C. (ed.). Encyclopedia of Archival Science. Lanham: Rowman & Littlefield, 2015. p. 32-35.). É preciso lembrar que o mesmo termo ( archival collection) já fora empregado na literatura muito tempo antes, porém com significado diverso. A edição estadunidense do Manual de arranjo e descrição de arquivo - popularmente chamado de Manual dos holandeses -, publicada em 1940, traz a palavra holandesa archief traduzida como archival collection. O tradutor, Arthur H. Leavitt, deixa claro que, no referido contexto, coleção não deve “[...] ser entendida no sentido de coisas reunidas por colecionadores [...]”, mas como um “todo orgânico” ( MULLER; FEITH; FRUIN, 2003MULLER, Samuel; FEITH, Johan; FRUIN, Robert. Manual for the arrangement and description of archives: drawn up by direction of the Netherlands Association of Archivists. 2. ed. Chicago: Society of American Archivists, 2003., p. 13, tradução nossa). Eric Ketellar e Frank Upward consideram tal tradução equivocada ( KETELAAR, 1996KETELAAR, Eric. Archival theory and the Dutch Manual. Archivaria, Ottawa, n. 41, p. 31-40, 1996. , p. 38). Na edição francesa, a palavra utilizada foi fonds d'archives e, na brasileira, arquivo. Ao passo que Greene (2015GREENE, Mark. Archival collection. In: DURANTI, Luciana; FRANKS, Patricia C. (ed.). Encyclopedia of Archival Science. Lanham: Rowman & Littlefield, 2015. p. 32-35.) utiliza archival collection para se referir aos fundos privados adquiridos por repositórios, a tradução de Leavitt do Manual dos holandeses se reporta, acima de tudo, à documentação produzida por órgãos públicos ( MULLER; FEITH; FRUIN, 2003MULLER, Samuel; FEITH, Johan; FRUIN, Robert. Manual for the arrangement and description of archives: drawn up by direction of the Netherlands Association of Archivists. 2. ed. Chicago: Society of American Archivists, 2003.).

Heredia Herrera (1991HEREDIA HERRERA, Antonia. Archivística general: teoría y práctica. 5. ed. Sevilha: Diputación Provincial de Sevilla, 1991. ), por sua vez, em seu livro Archivística general: teoría y práctica, distingue dois tipos de conjuntos artificiais: as coleções documentais e as secciones facticias. As primeiras têm as mesmas características que as coleções artificiais definidas por Schellenberg, vale dizer, surgem da subjetividade do colecionador. Já as secciones factícias são formadas pelos próprios arquivistas no desempenho de suas atividades, sobretudo em virtude da preocupação com a conservação e o armazenamento dos materiais - mapas, plantas, gravuras etc. -, a despeito de haver casos em que se busca “[...] agrupar documentos com base em um assunto para destacar sua importância.” ( HEREDIA HERRERA, 1991HEREDIA HERRERA, Antonia. Archivística general: teoría y práctica. 5. ed. Sevilha: Diputación Provincial de Sevilla, 1991. , p. 149-150, tradução nossa). Em obra posterior, ¿Qué es un archivo? (2007), a autora reconsidera essa distinção. Assegura que é suficiente uma única definição para ambos os termos, e assim a sintetiza: coleção é um “Conjunto de unidades documentais/documentos de mesma ou diferente proveniência reunidos por um colecionador ou por um arquivista para fins de conservação, informação ou divulgação.” ( HEREDIA HERRERA, p. 2007HEREDIA HERRERA, Antonia. ¿Qué es un archivo? Somonte-Cenero: Trea, 2007. , p. 118, tradução nossa).

Em suma, a polissemia do termo coleção pode confundir o interlocutor quando o sentido empregado não estiver explícito. As coleções naturais e arquivísticas, como visto, não devem ser equiparadas às coleções artificiais. Quanto a estas, segundo a teoria tradicional, podemos dizer que as suas principais características aludem às formas subjetiva e não orgânica pelas quais são reunidas. Essas qualidades são costumeiramente contrapostas às qualidades do fundo. Por ora, passemos a refletir sobre esse conceito.

3 O fundo e os princípios que garantem o seu respeito

É compreensível certa animosidade e cautela dos arquivistas diante das coleções, posto que o conceito de fundo foi, e ainda é, muito caro para o desenvolvimento da Arquivologia, e não apenas por questões profissionais e corporativas, mas principalmente por razões de ordem prática e teórica. Em geral, as classificações dadas aos arquivos produzidos antes do início do século XIX, segundo Duchein (1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. ), foram por assuntos, temas ou locais e, além disso, os documentos de proveniências diferentes eram misturados quando a necessidade de uso assim parecesse conveniente. Exemplo de larga escala é o da criação do Arquivo Nacional da França, que reuniu e misturou documentos de diversos produtores em seu depósito. Tentar classificar documentos por tema abre um leque de possibilidades enorme, por isso Duchein (1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. , p. 17, grifo do autor) defende que “[...] à margem do respeito aos fundos todo trabalho arquivístico é arbitrário, subjetivo e desprovido de rigor.”.

A famigerada circular de 1841, assinada pelo Ministro Duchatel, cujo conteúdo teórico comumente se credita ao historiador francês Natalis de Wailly, marca oficialmente o início da difusão do Princípio do Respeito aos Fundos ( DUCHEIN, 1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. ). Entretanto, Martín-Pozuelo Campillos (1996MARTÍN-POZUELO CAMPILLOS, María Paz. La construcción teórica en archivística: el principio de procedencia. Madri: Universidad Carlos III, 1996.) afirma que Adolf Brenneke reconhece a origem teórica do Princípio da Proveniência na obra Von Archiven, publicada em 1777, por Philipp Ernst Spiess. De acordo com a autora, em 1819, a Academia das ciências de Berlim recomenda ao governo prussiano a não fragmentação de seus arquivos ( MARTÍN-POZUELO CAMPILLOS, 1996MARTÍN-POZUELO CAMPILLOS, María Paz. La construcción teórica en archivística: el principio de procedencia. Madri: Universidad Carlos III, 1996.).

Heredia Herrera (2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013., p. 59, tradução nossa) argumenta que foi na Dinamarca, em 1791, que se deu o início da utilização do Princípio do Respeito aos Fundos, embora haja estudos que atestem “[...] uma aplicação natural e semelhante nos Arquivos espanhóis antes de sua formulação.”. Para Duranti (1993DURANTI, Luciana. Origin and development of the concept of archival description. Archivaria, Ottawa, n. 35, p. 47-54, 1993., p. 50, tradução nossa), o Princípio já estava presente “[...] em Nápoles em 1812, no Grão-Ducado da Toscana em 1822, no Estado Papal em 1839 [...].”. Horsman (2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. , p. 446) defende que ele já era aplicado “[...] na Alemanha, em 1816, e na Holanda em 1826”; na Dinamarca, teria sido praticado, “[...] de forma acentuada, durante o século XIX.”. Douglas (2016DOUGLAS, Jennifer. Origens: ideias em evolução sobre o princípio da proveniência. In: EASTWOOD, Terry; MACNEIL, Heather. Correntes atuais do pensamento arquivístico. Horizonte: Editora UFMG, 2016. p. 47-74.) faz menção ao metodo storico, desenvolvido por Francesco Bonaini em meados da década de 1850, no qual já estariam presentes o reconhecimento da ligação entre os documentos e a instituição produtora, bem como a manutenção da ordem de produção dos registros.

O Princípio do Respeito aos Fundos, de acordo com Duchein (1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. ):

consiste em manter [a]grupados, sem misturá-los a outros, os arquivos (documentos de qualquer natureza) provenientes de uma administração, de uma instituição ou de uma pessoa física ou jurídica: é o que se chama de fundo de arquivos dessa administração, instituição ou pessoa ( DUCHEIN, 1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. , p. 14).

Os dicionários brasileiros de terminologia arquivística ( CAMARGO; BELLOTTO, 1996CAMARGO, Ana Maria de Almeida; BELLOTTO, Heloísa Liberalli (org.). Dicionário de terminologia arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996. ; ARQUIVO NACIONAL, 2005ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.) consideram que o Princípio do Respeito aos Fundos e o Princípio da Proveniência se correspondem. A mesma compreensão tem Heredia Herrera (2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013.). Para a autora a Proveniência tem “[...] uma relação natural e dupla [...]”: “[...] dos documentos de arquivo com seu produtor [...]” (proveniência orgânica) e “[...] dos documentos com as funções/atividades atribuídas ao produtor [...]” (proveniência funcional) ( HEREDIA HERRERA, 2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013., p. 66, tradução nossa).

Duchein (1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. ), Millar (2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. ) e Cook (2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017.), por outro lado, entendem que o Princípio do Respeito aos Fundos possui duas dimensões, uma externa e outra interna, que foram sendo melhor definidas ao longo dos anos. A primeira diz respeito à integridade externa do fundo, que a arquivística alemã denominou de Provenienzprinzip (Princípio da Proveniência). Trata-se da manutenção do vínculo entre os documentos e a pessoa física ou jurídica responsável pela sua produção, sem a mistura com os de outra proveniência. A dimensão interna, intitulada Strukturprinzip ou Registraturprinzip (Ordem Original), é relativa à estrutura do fundo, ou seja, a organização dada pelo produtor aos seus documentos, de acordo com as funções que lhes deram origem. Cook (2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017.) elucida esses conceitos da seguinte maneira:

Produção/acumulação é o processo natural pelo qual os documentos são produzidos e recebidos na condução de qualquer tipo de atividade. Ordem original reflete a classificação, organização, arquivamento ou qualquer outro processo que forneça aos documentos (e séries de documentos) sua forma ou estrutura interna ( COOK, 2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017., p. 11).

Horsman (2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. ) e Douglas (2016DOUGLAS, Jennifer. Origens: ideias em evolução sobre o princípio da proveniência. In: EASTWOOD, Terry; MACNEIL, Heather. Correntes atuais do pensamento arquivístico. Horizonte: Editora UFMG, 2016. p. 47-74.) têm um entendimento um pouco diferente. Para eles, é o Princípio da Proveniência - “[...] o único princípio da teoria arquivística” ( HORSMAN, 2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. , p. 444) - que possui aplicação externa e interna, ou seja, que abarca o Princípio do Respeito aos Fundos e o Princípio da Ordem Original, respectivamente, formando um todo inseparável.

O Princípio do Respeito aos Fundos, para Horsman (2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. ), tem sua versão alemã ( Provenienzprinzip) e holandesa ( Herkomstbeginsel) representada no Princípio da Proveniência, o qual considera, mais do que uma derivação daquele, uma concepção desenvolvida de forma independente. Em 1908, Samuel Muller, um dos autores do Manual de arranjo e descrição de arquivos, declarou que o Provenienzprinzip não foi uma invenção holandesa, “[...] ele já estava no ar, em algum lugar [...]” ( HORSMAN, 2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. , p. 446), portanto, elaborado antes do Herkomstbeginsel.

Independentemente de ser o Princípio do Respeito aos Fundos ou o Princípio da Proveniência o conceito maior do qual se desdobram suas dimensões externa e interna ou, ainda, de serem os dois a mesma coisa, o fundo continua sendo um elemento chave no cerne da discussão. Heredia Herrera (2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013., p. 200), de modo sucinto, assim o define: “[...] todos os documentos produzidos (emitidos e recebidos) por um agente produtor no exercício das funções atribuídas.”. A definição de Heredia Herrera exprime com concisão a natureza desse tipo de conjunto - entendimento amplamente disseminado na comunidade arquivística brasileira -, deixando implícitos vários atributos que são pontuados e desdobrados por Bellotto (2006BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.), segundo a qual, fundo é um:

[...] conjunto de documentos produzidos e/ou acumulados por determinada entidade pública ou privada, pessoa ou família, no exercício de suas funções e atividades, guardando entre si relações orgânicas, e que são preservados como prova ou testemunho legal e/ou cultural, não devendo ser mesclados a documentos de outro conjunto, gerado por outra instituição, mesmo que este, por quaisquer razões, lhe seja afim ( BELLOTTO, 2006BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006., p. 128).

Em que pese o seu lugar de destaque na teoria arquivística, o conceito de fundo passou a ser constantemente criticado, sobretudo como entidade física. Sue McKemmish (1994 3 3 MCKEMMISH, Sue. Are records ever actual? In: MCKEMMISH, Sue; PIGGOTT, Michael (ed.). The records continuum: Ian Maclean and Australian archives first fifty years. Clayton, Australia: Ancora press in association with Australian Archives, 1994. p. 187-203. Apud Yeo (2012). , p. 188 apud YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 53, tradução nossa) afirma que Jenkinson e os autores do Manual dos holandeses compreendiam o fundo a partir de sua fisicalidade, isto é, algo “[...] passível de ser reconstruído nas prateleiras do repositório.”.

Horsman (2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. ), Cook (2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017.) e Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.) o enxergam como uma abstração conceitual e não como uma entidade física. Essa percepção se deve, principalmente: às contínuas mudanças nas complexas estruturas administrativas e seus impactos na organização dos documentos; às frequentes dispersões de fundos; e ao reconhecimento de múltiplas proveniências e múltiplos contextos. A esse respeito, Horsman (2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. , p. 452) esclarece que, “[...] exceto para propósitos logísticos, a ordem física dos documentos não importa. É o arranjo intelectual que faz a ordem original.” O aspecto logístico destacado por Horsman pode ser entendido em relação às estratégias de recuperação, acesso e preservação documental, assim como de economia de espaço e material de acondicionamento.

Para Cook (2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017., p. 61), o conceito de fundo “[...] expressa a interconexão dinâmica entre a descrição abstrata do(s) produtor(es) e a descrição concreta dos documentos reais (séries, dossiês/processos, itens documentais).” Essa relação contextual - externa ao documento e intrínseca à sua gênese - é característica exclusiva dos documentos que possuem relações orgânicas. É essa dimensão abstrata que não se pode “[...] empurrar para dentro de caixas de arquivo” ( COOK, 2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017., p. 61), daí a defesa do autor em considerar o fundo como “uma construção intelectual” (EVANS, 1986 4 4 EVANS, Max J. Authority control: an alternative to the record group concept. American Archivist, Chicago, v. 49, n. 3, p. 249-261, 1986. Apud Cook (2017). , p. 249 apud COOK, 2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017., p. 62).

Millar (2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. ) é mais radical em suas críticas e sugere A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência 5 5 A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência, título do artigo de Millar (2015). . A autora argumenta que, eventualmente, perdeu-se a distinção entre criador e criatura, produtor e produção, isto é, a diferença entre a realidade intelectual da proveniência e a realidade física dos documentos. Para Millar (2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. ):

Um conjunto de documentos pode derivar de diversos produtores e um produtor pode depositar documentos em diversos lugares físicos. Proveniência e fundo não são a mesma coisa e tampouco representam uma relação constante, de um para um. ( MILLAR, 2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. , p. 148),

Um outro aspecto do conceito de fundo que Millar (2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. ) critica é a noção de totalidade. Segundo a autora, uma vez que o número de documentos do fundo diminui, seja antes ou depois da custódia, de forma deliberada ou não, sua completude fica comprometida. Sendo assim, o material com que o arquivista lida é o que sobrou e não o todo. Amparada em Heather MacNeil, questiona se poucos documentos que restaram configuraria um fundo, pois considera que este “[...] implica uma plenitude, uma completude, uma totalidade” e “[...] nenhum arquivo tem, terá ou já teve ‘a totalidade dos documentos’ de qualquer produtor.” ( MILLAR, 2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. , p. 150).

Ciente da asserção presente no Manual dos holandeses de que o fundo pode ser composto por apenas um item, caso isso seja o que restou, Millar (2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. ) faz um exercício que inverte a acepção do conceito, pensando o fundo como um conjunto de resquícios, em vez da totalidade dos documentos. A partir do exemplo da Hudson's Bay Company, cujos documentos se encontram espalhados por diversas partes do Canadá, conclui que mesmo uma integração intelectual dos registros, formando um fundo virtual, não seria satisfatória, já que se perderia o contexto dos documentos no espaço e no tempo. Sua sugestão é, então, a substituição do Respeito aos Fundos pelo Respeito à Proveniência, e do fundo pelo arquivo. Em diálogo com a Arqueologia e a Museologia, propõe que a proveniência seja formada por três componentes: a história do produtor, a história dos documentos e a história arquivística. Millar (2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. , p. 159) justifica a sua posição afirmando que “Não podemos respeitar um fundo que nunca poderá existir. Mas podemos respeitar os arquivos que existem e documentar por completo o contexto de sua criação, de seu uso e de sua gestão.”.

Diferentemente de Millar, o aspecto da totalidade parece não ter incomodado Horsman e Cook. Para este último, o produtor e todos os seus documentos produzidos devem ser descritos e ligados, uma vez que considera o fundo o “[...] resultado dessa ligação global ou holística [...]” ( COOK, 2017COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-custodial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017., p. 58). Horsman (2017HORSMAN, Peter. Adestrando o elefante: uma abordagem ortodoxa do Princípio da Proveniência. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 10, n. 2, p. 443-454, 2017. ) entende que, quando os arquivistas colocam em prática o Respeito à Ordem Original, almejam reunir todos os documentos que pertencem ao fundo.

Outro ponto de discussão diz respeito às nuances existentes entre as acepções de fundo e arquivo. No Brasil, de acordo com os dicionários terminológicos da área ( CAMARGO; BELLOTTO, 1996CAMARGO, Ana Maria de Almeida; BELLOTTO, Heloísa Liberalli (org.). Dicionário de terminologia arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 1996. ; ARQUIVO NACIONAL, 2005ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.), fundo e arquivo são vocábulos equivalentes, com a ressalva de que o termo fundo é mais apropriado para se referir a um arquivo que passa a ser armazenado com outros. Bellotto (2006BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.) assim esclarece:

Cabe lembrar que se trata de ordenação feita nos arquivos permanentes, quando realmente os conjuntos de documentos produzidos/recolhidos por unidades administrativas e/ou pessoas físicas passam a "conviver" uns com outros, só então passando a ser fundos. Não é sem razão que o conceituado especialista espanhol em arquivos notariais, Matilla Tascón, demonstra que a denominação "fundo" pode ser simplesmente considerada como a que substitui o termo "arquivo", quando os arquivos (correntes) de uma organização vêm a fazer parte de outros arquivos mais abrangentes ( BELLOTTO, 2006BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006., p. 136).

Heredia Herrera (2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013., p. 42, tradução nossa) afirma que “O arquivo nem sempre corresponde a um fundo [...]” e que, portanto, os termos não podem ser tomados como sinônimos. Apenas são a mesma coisa quando o Arquivo abriga um único fundo, qual seja, o fundo da própria instituição. A autora faz a distinção entre arquivo com “a” minúsculo e Arquivo com “A” maiúsculo, sendo o último a entidade que custodia o primeiro. Nesta acepção do termo, para Heredia Herrera (2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013., p. 40, tradução nossa), arquivo é o “[...] conteúdo documental de um Arquivo, que pode ser formado por um ou vários fundos, por grupos de fundos ou uma fração de fundo, e também, em alguns casos, por uma ou mais coleções.”. Essa definição de arquivo nos remete à forma com que, muitas vezes, empregamos a palavra acervo no Brasil, como a “Totalidade de documentos de uma entidade custodiadora.” ( CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS, 2006CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (Brasil). NOBRADE: norma brasileira de descrição arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. , p. 14).

A discussão em torno da definição de fundo é complexa, como se pode notar. Há quem o entenda como uma entidade física e outros como uma abstração conceitual. Da mesma forma, não há consenso em relação aos princípios de Proveniência e de Respeito aos Fundos. Alguns autores os consideram como equivalentes, outros entendem que são distintos, embora, neste caso, a interpretação é de que um seja parte integrante do outro, compondo uma de suas dimensões - externa ou interna.

Pensando um pouco fora da caixa, seria possível conceber o fundo sem que esse fosse totalmente o oposto da coleção ou vice-versa? Essa é a proposta de Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.), conforme veremos a seguir.

4 Fundo e/ou coleção: uma maneira diferente de pensá-los

Ante a discussão apresentada até o momento, quais seriam, afinal, as diferenças entre fundo e coleção? Sobre esses conceitos, Heredia Herrera (2013HEREDIA HERRERA, Antonia. Manual de Archivística básica: gestión y sistemas. Puebla: Benemérita Universidade Autónoma de Puela, 2013.) nos fornece algumas características que vale a pena justapor. Para a autora, o fundo é um todo orgânico e funcional, enquanto a coleção, um conjunto artificial; o fundo está vinculado ao princípio da proveniência e por ele delimitado, ao passo que, sobre a coleção, tal princípio não incide; o fundo é produzido, a coleção é criada; o fundo tem produtor, a coleção, colecionador; o fundo tem nome que coincide com o do próprio produtor, a coleção tem título que lhe é atribuído. Além disso, de sua obra, é possível depreender que tanto um documento de arquivo pode fazer parte de uma coleção como uma coleção pode fazer parte de um arquivo.

A autora consegue sintetizar de forma muito clara as ideias centrais a respeito dos dois conceitos. Apesar das nuances nas definições dos termos, evidenciadas nas seções anteriores, os aspectos expostos por Heredia Herrera, em linhas gerais, resumem bem o pensamento arquivístico a respeito do dualismo existente e, com frequência, manifestado na produção científica da área.

Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.) apresenta uma outra maneira de olhar para esses dois conceitos: propõe a diferenciação entre fundo conceitual ( conceptual fonds) e coleção física ( physical collection). De acordo com Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 52, tradução nossa), “Em última análise, qualquer agregação que resulte da ação humana consciente é uma criação artificial”. O autor reconhece que os documentos são produzidos, grosso modo, de forma natural no curso das atividades de uma pessoa ou instituição, mas afirma que “[...] nenhum indivíduo ou organização retém tudo automaticamente.” ( YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 59, tradução nossa). Por consequência, o conjunto físico de documentos que guardamos como subproduto dessas atividades é, antes de mais nada, uma coleção, que raramente coincide com o fundo conceitual. O que define uma coleção, primordialmente, não são as características em comum de seus itens, mas o fato deles terem sido reunidos, conforme a própria etimologia da palavra sugere - do latim, o verbo colligere significa reunir (coisas ou pessoas) ( YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.).

O autor não descarta a ideia de totalidade contida no conceito de fundo, dado que o concebe como uma construção intelectual, diferentemente da coleção, que considera ter fisicalidade. Desse modo, a coleção pode coincidir ou não com o fundo, embora seja cada vez menos provável que tenham uma relação de um para um, principalmente pela dificuldade de guarda do grande volume de documentos produzidos atualmente, seja por uma pessoa ou por uma instituição ( YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.).

Quando do início de sua formação, fundo e coleção se correspondem, todavia esta última tende a sofrer baixas frequentes e, por vezes, acréscimos de outras proveniências. É comum que seus itens passem por dispersões, transferências, eliminações, degradações, sinistros etc. Assim, a cada mudança em seus limites externos, a coleção passa a ficar gradativamente mais distante da concepção de fundo. Mesmo os documentos que não mais existem na coleção física devem ser representados em seu fundo imaterial, tanto quanto haja informações sobre eles ( YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.).

O fundo é, então, entendido como representação de atividades, uma abstração conceitual e lógica, cujos componentes não precisam estar reunidos fisicamente. Ele apresenta limites subjetivos, o que não significa, porém, que não tenha limites. Podemos ficar em dúvida sobre a que fundo pertencem as cartas com destinatário coletivo - A ou B -, mas jamais cogitaremos que essas pertencem a alguma entidade não envolvida na ação - C ou D. 6 6 Heymann (2012, p. 180), em seu livro O Lugar do Arquivo, relata que no papelório de Darcy Ribeiro “há cartas endereçadas a ‘Berta e Darcy’”. Nesta circunstância, questionamos: tais cartas pertencem ao fundo de Berta, Darcy ou do casal? Ou, ainda, elas não poderiam fazer parte dos três fundos, se o concebermos como conceitual? O fundo cessa quando a instituição deixa de existir ou o indivíduo falece, enquanto a coleção continua a sua trajetória, podendo permanecer a mesma, aumentar ou diminuir. No entanto, os limites externos da coleção são mais facilmente identificáveis em dado espaço-tempo, em contraste com os limites do fundo, mais fluidos e sujeitos a interpretações ( YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.).

Ao contrário de Millar (2015MILLAR, Laura. A morte dos fundos e a ressurreição da proveniência: o contexto arquivístico no espaço e no tempo. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 144-162, 2015. ), que sugere o abandono do conceito de fundo, Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 63, tradução nossa) o defende, afirmando que “[...] pode-se argumentar que as pessoas e as organizações guardam documentos porque se sentem impelidas a manter representações de suas atividades, e que um fundo marca a representação mais completa que podemos, de forma viável, postular.”. É o fundo, mediante as relações e os contextos de produção e uso dos documentos, que melhor representa o planejamento, a execução e os resultados das atividades de uma entidade.

Pensando em termos concretos e práticos, a contraposição entre fundo e coleção ganha bastante repercussão quando se constata que a ISAD(G): Norma geral internacional de descrição arquivística, em seu Glossário de Termos Associados às Regras Gerais, acautela o usuário para “Não confundir [coleção] com um fundo arquivístico.” ( CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2000CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. ISAD (G): norma geral internacional de descrição arquivística. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2000. , p. 14). Apesar disso, admite que “[...] as mesmas regras usadas para descrever um fundo e suas partes podem ser aplicadas à descrição de uma coleção.” ( CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2000CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. ISAD (G): norma geral internacional de descrição arquivística. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2000. , p. 12).

Curioso notar que, com exceção de discretas menções, a ISAD(G) não contempla as coleções de forma explícita em seu texto, diferentemente da NOBRADE: Norma brasileira de descrição arquivística, uma “[...] adaptação das normas internacionais à realidade brasileira [...]” ( CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS, 2006CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (Brasil). NOBRADE: norma brasileira de descrição arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. , p. 9). A NOBRADE possui 28 elementos de descrição, dos quais sete são obrigatórios. Dentre esses, pelo menos três têm desdobramentos diretos relacionados ao dualismo fundo-coleção: título, nível de descrição e nome(s) do(s) produtor(es). 7 7 Na ISAD (G), esses elementos “são considerados essenciais para o intercâmbio internacional de informação descritiva” ( CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2000, p. 13). O nível de descrição (nível 1) parece ser o elemento mais crítico, uma vez que é nele que se define, obrigatoriamente, segundo a Norma, se o conjunto de documentos a ser descrito é uma coleção ou um fundo.

Contudo, na prática arquivística, especialmente em arquivos pessoais, é frequente dúvidas quanto à definição se um documento é de arquivo ou não, se possui relações orgânicas ou artificiais, se pertence a esse ou àquele fundo (ou a ambos); se o conjunto deles é um fundo ou uma coleção ou, ainda, se é uma coleção dentro de um fundo.

A proposta de Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 52, tradução nossa) é interessante para se pensar sobre essas questões, pois trabalha com a ideia de continuum, segundo a qual “[...] distinções rígidas entre ‘orgânico’ e ‘artificial’ são insustentáveis [...]”. O que há, assim, é um continuum, “[...] com inúmeras gradações intermediárias” ( YEO, 2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012., p. 52, tradução nossa), que vai desde os conjuntos produzidos no desempenho das atividades de uma entidade (física ou jurídica) - considerando-se a contingência de inclusão ou exclusão de documentos por terceiros - até aqueles que foram adquiridos de proveniências diversas.

5 Conclusão

Uma terminologia própria para uma dada área do conhecimento é de extrema importância. Ela tem um caráter instrumental para a comunicação e a formação profissional que é imprescindível para uma disciplina que se quer científica. Em certo grau, garante a permanência, a estabilidade, a precisão e a eficácia do que é transmitido. Ademais, a terminologia se configura como um elemento essencial de identidade da disciplina, diferenciando-a das demais ( BELLOTTO, 2014BELLOTTO, Heloísa Liberalli. A terminologia nas áreas do saber e do fazer: o caso da arquivística. In: BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivo: estudos e reflexões. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 144-55.). Na Arquivologia, a falta de consenso em torno dos termos coleção e fundo não significa, necessariamente, uma fragilidade. O movimento de construção e desconstrução de conceitos faz parte da própria dinâmica do conhecimento científico.

Buscamos, assim, explanar sobre tais conceitos, matizando-os num primeiro momento, confrontando-os num segundo, para, em seguida, enunciar uma forma alternativa de pensá-los, a partir das reflexões de Yeo (2012YEO, Geoffrey. The conceptual fonds and the physical collection. Archivaria, Ottawa, n. 73, p. 43-80, 2012.). Estas consideramos pertinentes e, ao mesmo tempo, desafiadoras. Parecem permitir ao menos algumas saídas em relação ao tratamento dos conjuntos documentais nas situações em que: o Princípio da Proveniência ou do Respeito aos Fundos foi transgredido; há dúvidas quanto à organicidade dos documentos; há documentos com mais de uma proveniência; houve dispersão de fundos.

Fundo ou coleção? Pergunta obrigatória para quem for realizar a descrição de um conjunto documental seguindo a NOBRADE. A resposta, também obrigatória, nem sempre é possível de forma objetiva. Em determinadas circunstâncias, a existência da organicidade é controversa, questionável. Duchein (1986DUCHEIN, Michel. O respeito de fundos em Arquivo: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 1, p. 14-33, 1986. , p. 14) salientou que, “Como a maioria dos princípios, mais fácil se torna enunciá-lo que defini-lo e defini-lo que aplicá-lo”. Posto que a Arquivologia integra as Ciências Sociais Aplicadas, seria interessante um estudo de caso para verificar a relevância das concepções de fundo conceitual e coleção física para a realidade arquivística brasileira. Para além da definição dualista entre fundo e coleção, significativo também se faz entender o como se deu a formação do conjunto a ser analisado, assim teremos mais nuances sobre a sua natureza, que pode ser nem totalmente orgânica nem totalmente artificial, mas um continuum. A abordagem de continuum tem o potencial, senão de interromper o dualismo entre fundo e coleção, de pelo menos matizar o que se considera orgânico e artificial. O continuum pode ser o caminho para a descontinuidade ou a mudança de rumo deste contínuo debate, travado até então.

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  • 7
    Na ISAD (G), esses elementos “são considerados essenciais para o intercâmbio internacional de informação descritiva” ( CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2000CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS. ISAD (G): norma geral internacional de descrição arquivística. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2000. , p. 13).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2022
  • Aceito
    16 Set 2022
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