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A produção da juventude empreendedora na mídia de negócios: discurso, cultura empreendedora e inspiração1 1 Versão modificada e ampliada de trabalho apresentado no XV Congreso de la Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación, realizado entre os dias 9 e 13 de novembro de 2020, na Universidad Pontificia Bolivariana, Medellín, Colômbia (virtual).

La producción de la juventud emprendedora en los medios de negocios: discurso, cultura emprendedora e inspiración

Resumo

A revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios (PEGN), da editora Globo, é uma mídia de negócios, que se define como a “a maior e mais importante comunidade de empreendedores do Brasil”. Este trabalho tem o objetivo de investigar as concepções de juventude empreendedora presentes em reportagens publicadas no site do veículo, em 2018 e 2019. Por meio da Análise do Discurso, encontramos três grandes eixos semânticos, que estruturam as narrativas. Eles mostram o jovem como um empreendedor que inspira a sociedade; como aquele em que devemos investir, para que o país possa se desenvolver por meio de suas ações empreendedoras; e aquele que transforma a própria juventude em empreendimento. Tais representações são apresentadas na maior parte das vezes como casos de sucesso, ou, quando os erros aparecem, eles surgem para que sirvam à pedagogia empreendedora. O objetivo, em todos eles, é que a juventude brasileira seja unificada pelo ethos empreendedor.

Palavras-chave
Juventude; Cultura da inspiração; Empreendedorismo; Discurso; PEGN

Resumen

La revista “Pequenas Empresas, Grandes Negócios (PEGN)”, de la editora Globo, es una prensa de negocios, que se define como “la mayor y más importante comunidad de emprendedores de Brasil”. Este trabajo tiene el objetivo de investigar las concepciones de juventud emprendedora presentes en reportajes publicadas en el sitio web de vehículo, en 2018 y 2019. A través del Análisis del Discurso, identificamos tres grandes ejes semánticos, que estructuran las narrativas. Ellos muestran el joven como un emprendedor que inspira la sociedad; como aquel que debemos hacer la inversión, para que el país pueda desarrollarse por medio de sus acciones emprendedoras; y aquel que trasforma la propia juventud en emprendimiento. Esas representaciones son presentadas en la gran mayoría de las veces como casos de éxito, o cuando aparecen los errores, ellos surgen para que sirvan a la pedagogía emprendedora. El objetivo, en todos ellos, es que la juventud brasileña sea unificada por el espíritu emprendedor.

Palabras clave
Juventud; Cultura de la inspiración; Emprendimiento; Discurso; PEGN

Abstract

The magazine Pequenas Empresas, Grandes Negócios (PEGN), published by Globo, is a business media, which defines itself as “the largest and most important community of entrepreneurs in Brazil”. This work aims to investigate the conceptions of entrepreneurial youth present in texts published on the vehicle’s website, in 2018 and 2019. Through Discourse Analysis, we identified three major semantic axes, which structure the narratives. They show the youth as an entrepreneur who inspires society; as the one in which we should invest, so that the country can develop through its entrepreneurial actions; and the one who transforms youth into an enterprise. Such representations are presented most of the time as cases of success, or, when errors appear, they serve to the entrepreneurial pedagogy. The goal, in all of them, is to unify Brazilian youth by the entrepreneurial ethos.

Keywords
Youth; Inspiration Culture; Entrepreneurship; Discourse; PEGN

Introdução

Reportagem do portal de notícias G1 publicada em 23 de junho de 2021 traz o seguinte título: “60% dos jovens com até 30 anos querem ser empreendedores, mostra levantamento”2 2 Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/pme/noticia/2021/06/23/60percent-dos-jovens-com-ate-30-anos-querem-ser-empreendedores-mostra-levantamento.ghtml>. Acesso em: 20 jan. 2022. . A pesquisa, feita pela própria Globo, à qual pertence o G1, e que ouviu 1.500 pessoas, indica o desejo juvenil para empreender, motivado por conquistar a independência financeira (67% dos que querem empreender); ter autonomia e ser seu próprio chefe (39%); possuir um tempo mais flexível para o trabalho (33%); e oferecer um serviço/produto inovador ao mercado (31%). Outra matéria, publicada na revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios (também pertencente ao grupo Globo), em 09 de novembro de 2021, baseada em estudo realizado pelo Sebrae (importante organização de fomento ao empreendedorismo brasileiro), tem como título “Jovens são menos de 7% dos empreendedores no Brasil e os que mais lutam contra o desemprego”3 3 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Empreendedorismo/noticia/2021/11/jovens-sao-menos-de-7-dos-empreendedores-no-brasil-e-os-que-mais-lutam-contra-o-desemprego.html. Acesso em: 20 jan. 2022. . Dois textos publicados em 2021 – segundo ano em que convivemos com a pandemia da COVID-19, que vitimou centenas de milhares de brasileiros e desestruturou a já cambaleante economia do país no governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro e seu “superministro”4 4 O termo surgiu na imprensa, por conta do fato de o Ministério da Economia, sob a direção de Guedes, ter sido criado com a fusão de três importantes pastas: Fazenda, Planejamento e Indústria. Paulo Guedes, provocando enorme volume de demissões, fechamento de empresas e negócios dos mais variados setores.

As duas reportagens apresentam faces contrastantes de um mesmo fenômeno, relacionado ao trabalho dos jovens: o ideário positivo, imaginado, quase utópico do empreendedorismo de nosso tempo; e a dura realidade do desemprego, do desamparo e da impossibilidade de empreender. São diferentes edições de mundo, componentes do midiapanorama (APPADURAI, 1999APPADURAI, A. Disjunção e diferença na economia cultural global. In: FEATHERSTONE, M. (org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 311-327.) que enquadram a juventude brasileira de forma a articulá-la ao cenário econômico e, simultaneamente, ao espírito do tempo, em que o empreendedor se torna figura paradigmática.

Neste artigo, o objeto de nosso estudo é um dos veículos citados acima, a revista Pequenas Empresas, Grandes Negócios – PEGN, que faz parte das chamadas “mídias de negócios” brasileiras (COSTA; BARROS; MARTINS, 2012COSTA, A. M.; BARROS, D. F.; MARTINS, P. E. M. A alavanca que move o mundo: o discurso da mídia de negócios sobre o capitalismo empreendedor. Cadernos EBAPE.BR, v. 10, n. 2, p. 357-375, 2012.). Segundo o site da empresa publicadora, o magazine “reúne a maior e mais importante comunidade de empreendedores do Brasil”5 5 Disponível em: <https://www.publicidadeeditoraglobo.com.br/pegn>. Acesso em: 20 jan. 2022. , e “tem por missão encorajá-los e capacitá-los, além de inspirar as novas gerações que sonham fundar uma empresa”. Além da publicação impressa, a PEGN conta com um site, perfis em redes sociais, aplicativo e programa televisivo. Trata-se, como vemos, de um objeto midiático que se constrói na junção da atividade econômica com a formação de uma comunidade imaginada, e que tem o objetivo de promover a “inspiração” – uma estratégia alinhada ao projeto de sociedade empreendedora (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.).

Por meio da Análise do Discurso, temos o objetivo principal de entender como a revista, nas matérias publicadas em seu site, busca “inspirar as novas gerações”, a partir das representações da juventude empreendedora. Partimos da concepção sobre inspiração de Trash e Elliot (2003)THRASH, T. M.; ELLIOT, A. J. Inspiration as a psychological construct. Journal of Personality and Social Psychology, vol. 84, n. 4, p. 871-889, 2003., que descrevem, como uma das vertentes desse fenômeno, a “motivação para a ação” derivada de “fatores ambientais”, como histórias exemplares e trajetórias de vida de sucesso, que servem de modelo aos sujeitos “inspirados”. Esse tipo de discurso está atrelado à cultura relacionada ao empreendedorismo, que se estabelece como o espírito paradigmático do nosso tempo, segundo Boltanski e Chiapello (2009)BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.: o empreendedor se torna o modelo ideal a ser replicado em todas as esferas da vida; a vida, em si, torna-se um empreendimento.

Para isso, vamos analisar de que forma o ideário do empreendedorismo se associa a uma noção de juventude construída pela revista, e como são prescritas receitas de sucesso e diretrizes para a existência a partir dessa produção discursiva. Partimos da noção de discurso social de Angenot (2010)ANGENOT, M. El discurso social: los limites históricos de lo pensable y lo decible. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010.: para o autor, o que é pensável e dizível em dado momento histórico está, em certo grau, delimitado pelo espírito do tempo. Sendo assim, a ideia de juventude empreendedora emerge como modelo significado e valorizado por dado enquadramento histórico, associado à cultura regida pelos preceitos da sociedade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.). O projeto de sociedade neoliberal está relacionado com a formação de mentalidades e com os modelos de conduta, no sentido foucaultiano (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Birth of biopolitics. New York: Palgrave Macmillan, 2008.); a inspiração é, na verdade, a intencionalidade de construir a identidade do outro – no nosso caso, o jovem – por meio de um posicionamento no sistema capitalista e da incorporação de certos valores.

O ideal contemporâneo de adolescência e juventude, por sua vez, surge na virada dos séculos XIX para o XX, a partir da concepção dessa fase como uma preparação para a vivência adulta e, ao mesmo tempo, como potencial de mudança e transformação, por todo o seu vigor físico (PAIS, 2009PAIS, J. M. A Juventude como fase de vida: dos ritos de passagem aos ritos de impasse. Saúde e Sociedade, v. 18, n. 3, p. 371-381, 2009.). González e Feixa (2014, p. 70-71, tradução e grifos nossos) citam Benjamin como um dos primeiros autores a reproduzir essa construção discursiva, em texto de 1905, ao tratar os estudantes universitários “como uma reprodução em miniatura de um estado histórico mais elevado, metafísico”. Fonseca (2003)FONSECA, J. C. F. Adolescência e trabalho. São Paulo: Summus, 2003., por sua vez, diz ainda que a escolha profissional, que ocorre durante essa fase, é fundamental para a construção da identidade desses jovens, o que obviamente vai interferir em processos de socialização futuros.

Adotamos como metodologia de investigação a Análise do Discurso, que, segundo Maingueneau (1997)MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Editora Unicamp, 1997., tem o objetivo de trazer à tona sentidos opacos presentes no texto. Esses significados, como já dissemos, em nossa perspectiva, estão amplamente conectados aos cenários econômicos e sociais do nosso tempo: “Toda dificuldade consiste, como vimos, em admitir que o sentido e a linguagem não se superpõem às relações econômicas e sociais, mas consistem em uma dimensão constitutiva dessas relações” (MAINGUENEAU, 1997MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Editora Unicamp, 1997., p. 188).

Mídia de negócios e o discurso neoliberal: o caso da PEGN

Como bem aponta Guilbert (2020, p. 24)GUILBERT, T. As evidências do discurso neoliberal na mídia. Campinas: Editora Unicamp, 2020., “as palavras empregadas para fundar a doutrina formam o contexto ideológico: o conhecimento delas é indispensável para desmontar as ‘evidências econômicas’ e discursivas do DNL [discurso neoliberal]”. Assim, o trabalho de análise do discurso sobre a juventude, no contexto de um produto midiático contemporâneo que trata especificamente de negócios, baseia-se no olhar para as palavras, para as formações discursivas, para o imaginário do neoliberalismo: “a juventude começa por ser uma categoria socialmente manipulada e manipulável e, como refere Bourdieu, o facto de se falar dos jovens como uma ‘unidade social’, um grupo dotado de ‘interesses comuns’ [...] constitui, já de si, uma evidente manipulação” (PAIS, 1990PAIS, J. M. A construção sociológica da juventude — alguns contributos. Análise Social, v. XXV, p. 139-165, 1990., p. 140). Esse discurso, conforme nossa abordagem, é uma construção complexa, que abrange princípios econômicos, representação de subjetividades, descrição de comportamentos, prescrições e convocações biopolíticas (PRADO, 2017PRADO, J. L. A. Decifrando os pontos sintomáticos do capitalismo comunicacional. In: PRADO, J. L. A.; PRATES, V. (org.). Sintoma e fantasia no capitalismo comunicacional. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017. p. 13-25.) dirigidas a um leitor imaginado (CHARAUDEAU, 2007CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007.), à audiência projetada pela revista PEGN.

Na aba “Anuncie” da revista digital, encontramos esta autodescrição (em parte citada acima), que revela o posicionamento ideológico do veículo, dá pistas desse seu leitor imaginado e, principalmente, aponta a sua intencionalidade comunicacional de “inspirar” – o que conecta explicitamente essa publicação à cultura da inspiração (CASAQUI, 2017CASAQUI, V. Abordagem crítica da cultura da inspiração: produção de narrativas e o ideário da sociedade empreendedora. E-Compós, v. 20, n. 2, 2017.):

Pequenas Empresas & Grandes Negócios reúne a maior e mais importante comunidade de empreendedores do Brasil.

Nossa missão é ajudar pessoas inovadoras a transformar suas ideias em grandes realizações.

PEGN é uma love brand, com reportagens inspiracionais e com teor didático, que ensina COMO FAZER.

As reportagens da revista apresentam oportunidades de negócios para micro, pequenas e médias empresas e têm o compromisso de informar o que há de mais moderno em conceitos de gestão, marketing, estratégia finanças e tecnologia6 6 Disponível em: <https://www.publicidadeeditoraglobo.com.br/pegn>. Acesso em: 20 jan. 2022. Destaques do original. .

Alguns pontos merecem destaque nessa descrição da PEGN: como dissemos anteriormente, a revista assume para si o objetivo de “inspirar”, de “ajudar” e “ensinar COMO FAZER” – elementos que caracterizam a presença de uma pedagogia empreendedora em sua produção discursiva. Essa pedagogia está direcionada a uma comunidade imaginada: “a maior e mais importante comunidade de empreendedores do Brasil”. Uma comunidade forjada a partir da mentalidade de mercado (POLANYI, 2012POLANYI, K. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.), altamente engajada no ideário propagado da revista – sentido que é conotado pelo uso de um termo derivado do campo do marketing: “love brand”. Ou seja, a PEGN se apresenta em dois sentidos distintos e simultâneos: como produtora de vínculos emocionais e duradouros com seus leitores (ou consumidores, como deixa entrever o uso de um conceito do universo do branding, da abordagem mercadológica sobre as marcas) e como mediadora, agregadora, organizadora de uma comunidade imaginada de empreendedores brasileiros. Entre seus objetivos, está também a ênfase no municiamento de “ferramentas”, de técnicas, conhecimentos e experiências práticas para a chamada cultura maker – uma das denominações que povoam o universo simbólico que emana do Vale do Silício, na Califórnia (Estados Unidos da América), berço da cultura contemporânea de startups, dos projetos e negócios associados à Nova Economia.

Outras informações sobre os consumidores da publicação dão pistas para delimitar um perfil de público para o qual o magazine se dirige preferencialmente: ainda de acordo com a página destinada a possíveis anunciantes, a predominância é masculina tanto entre leitores da revista digital (56% homens; 44% mulheres) quanto entre os do magazine impresso, com destaque ainda maior para os homens neste último caso (73% homens; 27% mulheres). Não há dados sobre raça, mas os números relacionados às classes econômicas (77% para classe AB na revista digital; 68% da mesma classe na impressa) permitem deduzir que a maioria dos leitores é também branca, a etnia predominante das elites econômicas brasileiras. Por fim, o indicativo de faixa etária demonstra ser o público jovem o leitor preferencial da revista: tanto na edição digital (52% estão na faixa até 34 anos, sendo metade disso até 24 anos) quanto na impressa (27% até 24 anos e 30% entre 25 e 34 anos), nota-se esse perfil etário.

Homem, jovem, branco e com estatuto econômico privilegiado. Esse desenho do público leitor da PEGN é representado visualmente pelas duas imagens a seguir (Figuras 1 e 2), que correspondem à primeira e terceira páginas do mídia kit – o material de divulgação desses dados sobre os leitores, formatos e preços dos espaços publicitários.

Figura 1
Primeira página do mídia kit da revista PEGN
Figura 2
Terceira página do mídia kit da revista PEGN

Algumas características se fazem notar pelas imagens: são jovens, brancos e com um estilo visual (da vestimenta a detalhes como o tipo de barba, as tatuagens etc.) em sintonia com os espaços onde estão nas fotos, que se assemelham a lugares de trabalho e confraternização ocupados pela “comunidade” de jovens empreendedores – como as barbearias com decoração vintage e restaurantes e cafés de mesmo estilo (que servem a eventos do chamado networking, a troca de contatos para formar redes de colaboração e parcerias de negócios).

O uso dos termos anglófonos nas linhas acima evidencia uma das características dos discursos da cultura empreendedora: a presença de palavras da língua inglesa é recorrente, como uma espécie de esperanto que é compartilhado e identifica essa comunidade imaginada da cultura maker (este, mais um termo constante nessa cena). Um último ponto a se destacar desse material: a expressão sorridente, leve, confiante dos dois personagens caracterizam uma representação visual de felicidade (FREIRE FILHO, 2010FREIRE FILHO, J. (org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010.) associada ao imaginário da atividade empreendedora. Esse imaginário ressalta imperativamente o ideal da junção entre trabalho e lazer, que caracteriza o engajamento (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.) das novas gerações no capitalismo de nosso tempo.

Na trilha dessas evidências do discurso autorreferencial da publicação, delimitamos como corpus do estudo as reportagens publicadas no site da revista PEGN7 7 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com>. Acesso em: 4 nov. 2019. , durante os anos de 2018 e 2019, resultantes da busca em sua própria página através das expressões “jovem empreendedor” e “jovens empreendedores” – que apresentou 40 páginas de resposta, com o total de 385 matérias, de 2013 (data dos primeiros textos disponíveis) a 2020 (até meados de setembro). Do total, 144 itens correspondem aos anos de 2018 e 2019, o recorte delimitado para este trabalho – por serem os dois anos completos mais recentes no histórico da produção da revista quando este estudo foi realizado, e por abarcarem sozinhos um número significativo em relação à amostra global. Em observação prévia das reportagens de todos os anos, identificamos ainda que o período definido para a amostra representa uma saturação de temas recorrentes, não se apresentando outros resultados significativamente desviantes do padrão visto nos dois anos. Vale ressaltar que uma exceção a essa saturação é a presença recente do tema da pandemia da COVID-19 e dos cenários associados a ela, desde 2020 – no entanto, como essa produção da revista ainda está em desenvolvimento, uma vez que a pandemia continua presente no planeta, com seus impactos imediatos na saúde e na economia, analisaremos esse material em trabalho posterior e com algum distanciamento para melhor concluir sobre o acontecimento em sua repercussão na cena empreendedora a partir da revista PEGN.

A construção da juventude empreendedora em PEGN

Nosso trabalho de análise da mídia de negócios PEGN parte de um processo de observação do conjunto de matérias, e da categorização como forma de identificação de diferentes campos semânticos, de universos de sentido produzidos por agrupamentos menores do corpus, em relação a determinados perfis juvenis associados a discursos sobre a sociedade empreendedora encontrados nos textos.

Ao analisarmos as reportagens publicadas no site da revista em 2018 e 2019, em que consta a expressão “jovem empreendedor” ou “jovens empreendedores”, percebemos que as abordagens desenvolvidas podem ser divididas em três grandes categorias, que denominamos como: jovem empreendedor inspirador; jovem empreendedor investido; e juventude como empreendimento. Explicaremos em detalhes essa tipologia a seguir. Vale ressaltar ainda que, em um mesmo texto, encontramos elementos de várias categorias; daí nossa preocupação em não classificar os textos de modo quantitativo, mas apresentar alguns exemplos mais claros dos eixos semânticos a partir dos quais as matérias se organizam. Não se trata assim de elencar os tipos de representação em hierarquias numéricas, mas ressaltar as suas principais nuances, que muitas vezes aparecem conjugadas.

Uma parte dos textos trazem abordagens que ressaltam o caráter inspirador, tal como expusemos acima, de certos representantes da juventude brasileira que investem em negócios próprios. E essa fonte de inspiração se dá tanto pelo sucesso em seus empreendimentos como pelo modo positivo com o qual lidam com os seus fracassos, fazendo dessas experiências fontes de conhecimento para novas estratégias empresariais. Muitas organizações estruturadas por esses jovens envolvem ações relacionadas a um “propósito”, daí seu caráter inspirador, ainda que os modos de administrar que permitem que a atividade seja lucrativa também sejam valorizados. Fazem parte dessa categoria reportagens como as seguintes: “Sete histórias inspiradoras de latino-americanos que fazem sucesso no e-commerce” (02/10/2018); “Jovem transforma garrafas do lixo em copos e fatura mais de R$ 350 mil” (19/10/2018); “Jovens empreendedores lidam melhor com o erro nos negócios” (05/11/2018); “Este jovem criou banco que ajuda empresários da periferia de SP” (01/02/2019); “Jovens criam aplicativo para cobrar por atendimento via mensagem” (22/08/2019); “Este jovem levou a administração do condomínio para o celular” (03/05/2019); “Com a venda de seus relógios, empreendedor leva uniformes e calçados para crianças na África” (20/08/2019); “Empreendedora que ajuda MEIs é selecionada para prêmio internacional de jovens contra a pobreza” (sobre uma jovem de 29 anos, que criou a empresa aos 24; de 20/11/2019); “Este jovem espanhol quer ser o ‘rei das lavanderias’ no Brasil” (10/01/2019); “Empreendedores abrem restaurante japonês e faturam R$ 40 milhões” (05/12/2019). Neste último caso, um dos fundadores do negócio está retratado na foto a seguir (Figura 3):

Figura 3
Foto de Gabriel Abrão, um dos fundadores do restaurante de comida japonesa abordado pela PEGN

Jovens brancos e de classes altas, como o que aparece na foto, são, aliás, os mais retratados nas reportagens que trazem essas narrativas inspiradoras, reforçando o estereótipo do jovem empreendedor sobre o qual falamos anteriormente, e também refletindo o leitorado predominante da revista. A cor de pele mais escura aparece no caso dos personagens (como o jargão jornalístico chama seus entrevistados) originários das periferias das grandes cidades, mas mesmo nesses casos a figura masculina continua tendo destaque. É o caso da reportagem “Este jovem criou banco que ajuda empresários da periferia de SP” (01/12/2019)8 8 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Impacto-social/noticia/2019/02/este-jovem-criou-banco-que-ajuda-empresarios-da-periferia-de-sp.html>. Acesso em: 20 jan. 2022. , que apresenta Thiago Vinicius, “criador do Banco Comunitário União Sampaio, que gerou uma onda de empreendedorismo no Campo Limpo”, bairro da zona sul de São Paulo, como diz a linha fina do texto.

O tom eufórico dessa primeira categoria é a demonstração de jovens que servem de modelo de sucesso a partir do empreendedorismo, como aposta de um projeto de sociedade, valorado pela visão imaculada, necessariamente positiva da prática de negócios. São imagens que remetem também a um ideal de juventude como a classe de idade que tem o potencial de reformar o mundo, ao negar as crenças e práticas das gerações anteriores, com as quais não se identificaria. E agora isso é feito por meio do empreendedorismo, discurso totalizante do nosso tempo, com propósitos em torno do bem comum. Por outro lado, cobra-se dos jovens a adesão e adequação ao sistema capitalista, já que é necessário tornar o mundo um lugar melhor, mas sem deixar de garantir a sustentabilidade e o lucro do negócio. Daí talvez a presença maior da representação de homens empreendedores, já que a racionalidade necessária para a condução de empresas de sucesso seria um traço associado ao gênero masculino, e não às mulheres: “Se, quando manejadas, as emoções femininas poderiam ser úteis para melhorar a produtividade no mundo do trabalho, há o reforço da ideia de que elas podem se tornar perigosas e inadequadas se não forem submetidas a rigorosas práticas de controle” (LEAL, 2016LEAL, T. “Elas são muito emotivas”: representações de gênero, emoções e trabalho no discurso jornalístico. Fronteiras, v. 18, n. 2, 2016., p. 178). Uma síntese dessa visão está no trecho extraído da reportagem de 05/11/2018 (destaque do original):

Futuro

Os jovens são uma esperança para fortalecer o empreendedorismo no Brasil.

Não há dúvidas que eles são o caminho para o país criar empresas de alto impacto para a sociedade.

(Reportagem “Jovens empreendedores lidam melhor com o erro nos negócios”)9 9 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Como-abrir-uma-empresa/noticia/2018/11/jovens-empreendedores-lidam-melhor-com-o-erro-nos-negocios.html>. Acesso em: 31 jan. 2022. .

Estamos situados na cultura do “case”, das narrativas que reportam e publicizam as trajetórias e passos para o empreendimento bem-sucedido, o que revela um caráter pedagógico. Não à toa, os casos de sucesso são instrumentos de ensino de escolas de negócios, de cursos de Publicidade e Administração. Nesse espectro, a reportagem mais emblemática é a intitulada “Sete histórias inspiradoras de latino-americanos que fazem sucesso no e-commerce”, que cobre a etapa final do prêmio “Histórias que inspiram”, ao reiterar a vinculação da mídia de negócios com a cultura da inspiração (CASAQUI, 2017CASAQUI, V. Abordagem crítica da cultura da inspiração: produção de narrativas e o ideário da sociedade empreendedora. E-Compós, v. 20, n. 2, 2017.). Essa cultura compreende um contrato comunicativo entre o enunciador que busca inspirar, ao trazer os modelos da cultura que representa, e os enunciatários que são projetados como sujeitos à procura dessas histórias, de inspiração para aplicar o empreendedorismo em suas vidas. A amplitude das sete histórias dos finalistas do prêmio, que abarcam diferentes países latino-americanos (incluindo o Brasil, as maiores economias da região, como Chile e México, e também a Venezuela – país recorrentemente associado ao “comunismo” no senso comum conservador), é uma evidência de que, apesar das particularidades culturais e dos contextos socioeconômicos, os jovens empreendedores são unidos por uma espécie de mentalidade universal, de uma convergência superior, elevada, a partir do seu espírito empreendedor. Projeta-se, assim, um imaginário de comunidade juvenil articulada às práticas de negócios, que são também unificados pelo aspecto tecnológico, pela economia no contexto digital, ou o chamado “e-commerce”. Este último detalhe reforça um perfil de negócios com uma carga identitária bastante associada aos jovens, como as startups, ou novos empreendimentos baseados em aplicativos, que configuram a chamada economia de plataforma.

Na segunda categoria aparece o que chamamos de jovem empreendedor investido, ou seja, aquele em quem a sociedade deve investir, alvo de estudos, de políticas públicas e de iniciativas de agentes da cena empreendedora. São textos que buscam compreender melhor o empreendedorismo juvenil e apontar caminhos para que os problemas encontrados possam ser sanados. Isso inclui problematizações acerca do jovem contemporâneo, em que a revista reverbera debates e pesquisas sobre as dificuldades enfrentadas por essas pessoas no cenário educacional e no mercado de trabalho para que a prática e a mentalidade empreendedora possam florescer e agir. Tais medidas possibilitam que, a partir desse agente, a sociedade possa avançar em seu desenvolvimento e edificar o seu futuro de maneira sustentável, sem abrir mão da lógica do capital. Isto é, o objetivo é possibilitar que se melhorem as condições para que todo jovem empreenda, já que é isso que se espera dele.

Aqui, ao contrário do que vemos na primeira categoria, a voz juvenil não aparece: são especialistas que falam por ele – ou seja, a sociedade age ou pensa sobre o jovem –, reverberando cenários já demonstrados em estudos anteriores, em que os mais novos não aparecem como fonte recorrente do jornalismo (DORETTO, 2015DORETTO, J. “Fala connosco!”: o jornalismo infantil e a participação das crianças, em Portugal e no Brasil. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade Nova de Lisboa, 2015.). Nessa categoria, há uma maior presença de representações visuais genéricas, extraídas de bancos de imagens, que buscam ilustrar o mundo do empreendedorismo (Figura 4). Como exemplos de reportagens que se enquadram nessa categorização, temos: “O que as startups podem ensinar às escolas” (19/04/2018); “Professores serão capacitados para ensinar empreendedorismo em escolas públicas” (07/05/2018); “Cresce a participação de jovens que abrem negócios” (25/05/2018); “Número de jovens empreendedores iniciais aumentou 58% nos últimos” (31/10/2018); “Pesquisa mostra perfil do jovem empreendedor brasileiro” (18/01/2019); “Capital Empreendedor [ONG] reduz as distâncias entre empresários e investidores” (iniciativa abarca sobretudo jovens empreendedores; 23/08/2018); “ENEJ 2019 reunirá mais de 5 mil jovens empreendedores em Gramado (RS)” (04/09/2019); “Espaço colaborativo incentiva jovens empreendedores” (24/09/2018); “Esse jovem largou o emprego para abrir uma startup. E perdeu” (27/09/2018); “Brasil já tem mais de 500 fintechs em operação” (reportagens que já na legenda de sua primeira foto mostra que “fundadores de fintechs são jovens inquietos”; 10/11/2019).

Figura 4
Uma das ilustrações de bancos de imagens das reportagens da categoria jovem empreendedor investido

Identificamos, entre os discursos da categoria jovem empreendedor investido, a cobertura sobre iniciativas na área da educação, mais especificamente da chamada pedagogia empreendedora. Nesse contexto, a educação muitas vezes é vista como um mercado, como qualquer outro setor da economia, devendo ser transformada a partir de uma perspectiva do consumo:

O jovem empreendedor [Gustavo Fuga, empreendedor fundador de uma escola de línguas] defende que a revolução na educação brasileira não virá a partir da criação “do novo iPad”, mas sim da reavaliação dos métodos que todas as escolas possuem. “Por que nós podemos avaliar o motorista do Uber e não o professor?”.

(Reportagem “O que as startups podem ensinar às escolas”)10 10 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Startups/noticia/2018/04/o-que-startups-podem-ensinar-escolas.html>. Acesso em: 31 jan. 2022. .

Além disso, a própria revista assume uma postura pedagógica, ao trazer casos de fracasso no empreendedorismo e falas de especialistas para que se possa aprender com tais erros. Como vemos no seguinte trecho do texto “Esse jovem largou o emprego para abrir uma startup. E perdeu” (27/09/2018), que conta a jornada empreendedora de David Casarez, latino que não obteve sucesso em ação feita na Califórnia: “Quando se é jovem, é comum pensar que ser bem-sucedido é fácil. Mas as ‘pessoas não querem investir em uma startup gerenciada por um jovem sem experiência e sem um plano, não importa o quão boa seja a ideia’, diz Marks. Casarez aprendeu isso da forma mais difícil”, aponta o texto. Como uma publicação da Editora Globo que tem parcerias para promover o conteúdo sobre empreendedorismo, com entidades como o Sebrae, a revista traz a voz e a missão dessa e de outras organizações sobre o jovem, como alvo de seus projetos, missões e valores:

O Sebrae parte do princípio de que a educação empreendedora contribui para a formação de cidadãos autônomos, responsáveis e preparados para assumir o papel de protagonistas na construção da própria história e de uma sociedade mais justa e sustentável.

(Reportagem “Professores serão capacitados para ensinar empreendedorismo em escolas públicas”)11 11 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Empreendedorismo/noticia/2018/05/professores-serao-capacitados-para-ensinar-empreendedorismo-em-escolas-publicas.html>. Acesso em: 31 jan. 2022. .

Além de apresentar os cenários a serem transformados em favor do empreendedorismo, as reportagens dessa categoria problematizam instituições que seriam entraves para as políticas voltadas à construção dessa “sociedade mais justa e sustentável” imaginada pelo Sebrae. Destacam-se como antagonistas o setor público, as resistências (e ineficácia) de professores, a falta de estrutura tecnológica e outros incentivos. Por outro lado, os atores econômicos assumem o papel de mentores, de “coaches” visionários de um Brasil mais eficiente e moderno, responsáveis por projetar os jovens como empreendedores do futuro, “protagonistas”, ou seja, detentores do poder. Vê-se, como pano de fundo, uma abordagem relacionada à crença baseada no mito da “mão invisível do mercado” como regulador divino da livre iniciativa do homo economicus (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Birth of biopolitics. New York: Palgrave Macmillan, 2008.). Esse mito alimenta o imaginário da eficiência e da superioridade dos agentes econômicos em relação a projetos sociais, políticas inclusivas e iniciativas de Estado.

Por fim, a terceira categoria, denominada juventude como empreendimento, abarca jovens que concretizam uma das facetas da idealização do jovem, reafirmada a partir de uma noção de empreendedorismo que é interdependente dessa condição juvenil. A adolescência, segundo Calligaris (2003)CALLIGARIS, C. A. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2003., seria uma época da vida vista como idílica pelos adultos, já que nessa fase os jovens têm muito vigor físico, mas ainda não carregam as obrigações laborais. Os sujeitos juvenis retratados na revista tornam esse estado de prazer algo permanente, mesmo após a entrada no mercado de trabalho (o que pode, inclusive, ocorrer mais cedo do que acontece com a média dos jovens de classes médias e altas). Por esse motivo, o empreendedorismo aqui não é de qualquer ordem, mas sim uma extensão de certas práticas juvenis em sua expressão idealizada, em que o jovem tem como condição inerente o ato de brincar. Isso ocorre porque os jovens representados tornaram as brincadeiras, as diversões, os hobbies e os prazeres da adolescência negócios rentáveis – o que seria o aval para sua aceitação no contexto de um capitalismo neoliberal. Ou seja, essas atividades viram mercadoria nos casos reportados. O tema é noticiado nesse caso por conta da estranheza das características do empreendimento: faz-se dinheiro com algo que teria tido seu fim com o amadurecimento desses jovens; ou seja, com o fim da sua juventude. Algo que remete ao valor-notícia, no campo do jornalismo (SILVA, 2005SILVA, G. Para pensar critérios de noticiabilidade. Estudos em Jornalismo e Mídia. v. 2, n. 1, p. 95-107, 2005.), da curiosidade. São, sobretudo, matérias que falam de casos do exterior.

Pertencem a essa tipologia reportagens como estas: “Garoto de 16 anos fatura quase R$ 2 milhões com gravatas-borboleta” (03/01/2018); “Jovens montam empresa de carteiras de ‘papel’ e ganham R$ 200 mil por mês” (10/01/2018); “Pets: Jovem autodidata cria coleira que mantém a temperatura ideal dos cães” (17/07/2018); “Esta jovem transforma pets em pinturas e faz sucesso na internet” (14/09/2018); “Jovem de 13 anos cria ‘miniskate’ e vira empresário milionário” (21/11/2018); “Jovem de 14 anos fatura mais de R$ 50 mil com velas aromáticas” (21/04/2019); “Jovem de 17 anos fatura revendendo tênis raros” (18/06/2019); “Jovens transformam TCC em negócio e faturam com marca de barrinhas com cafeína” (25/07/2019); “Conheça o escritor que também é empreendedor social” (fala de Geovani Martins, 26 anos; 09/08/2019); “Empreendedores criam vinho em lata para popularizar consumo da bebida” (31/10/2019).

É nessa categoria que conhecemos a história de Moziah Bridges, um garoto negro americano que fundou sua própria loja de gravatas:

Vestir uma estilosa gravata-borboleta não é um desejo restrito ao mundo dos adultos. O americano Moziah Bridges experimentou o acessório pela primeira vez aos quatro anos. No entanto, as gravatas disponíveis no mercado não despertavam muito o seu interesse – ele as achava muito sem graça.

Com nove anos, ele decidiu fundar a sua própria loja de gravatas: a Mo’s Bows.

(Reportagem “Garoto de 16 anos fatura quase R$ 2 milhões com gravatas-borboleta”)12 12 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Banco-de-ideias/Moda/noticia/2018/01/garoto-de-16-anos-fatura-quase-r-2-milhoes-com-gravatas-borboleta.html>. Acesso em: 21 jan. 2022. .

Moziah (Figura 5) contou com o apoio da mãe e da avó, e se tornou relativamente famoso ao participar de um programa televisivo, o Shark Tank, que espetaculariza os chamados pitches – apresentações curtas de ideias e projetos de negócios para um grupo de possíveis investidores. São esses players que decidem quais são os merecedores de seus aportes financeiros, seguindo os seus próprios critérios sobre o que é viável e produtivo para o mercado que representam. E, dessa forma, o garoto chamou a atenção de um empresário milionário do ramo da moda, que investiu em sua ideia e a transformou em negócio.

Figura 5
Moziah Bridges, o jovem empresário que transformou a paixão por gravatas-borboleta em negócio

Na mesma trilha da trajetória de sucesso de Moziah, outros jovens são apresentados a partir de uma estrutura narrativa que traz inicialmente seus gostos, seus costumes e paixões, mostrando depois como isso transcendeu o cotidiano para se transformar em negócio rentável. Também é recorrente a mediação do adulto que vê o hobby, a paixão como uma oportunidade para ganhar dinheiro, tendo como imagem protagonista o filho, a criança, o adolescente. Já alguns adolescentes e jovens adultos aparecem como mentores e viabilizadores da própria ideia para o mercado, como é o caso do californiano Carson Kropfl – que, aos 13 anos, se tornou milionário vendendo “miniskates”:

O jovem empreendedor sempre gostou de skate e por isso decidiu investir nesse setor. A ideia de criar a empresa surgiu em 2016, na Califórnia.

Um dia, o estudante foi para a escola e não conseguiu encaixar seu skate no armário. Ele é um adepto da “cultura maker” (faça você mesmo). Assim, começou a pensar em construir seu próprio “miniskate”.

(Reportagem “Jovem de 13 anos cria ‘miniskate’ e vira empresário milionário”)13 13 Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Banco-de-ideias/Diversao-e-turismo/noticia/2018/11/jovem-de-13-anos-cria-miniskate-e-vira-empresario-milionario.html>. Acesso em: 31 jan. 2022. .

Novamente, um capitalista bilionário (Richard Branson, proprietário da empresa Virgin e um dos investidores em projetos espaciais com capital privado, juntamente com Jeff Bezzos, proprietário da Amazon, e Elon Musk, da Tesla) faz um aporte financeiro, que representa uma espécie de paternidade no mundo dos negócios para esses jovens, reconhecidos por sua mentalidade capitalista. Ser “adepto da ‘cultura maker’”, como diz o texto, é a forma como a reportagem identifica o jovem Carson, alinhando-o ao comportamento desejável do empreendedor de nosso tempo. Nesse aspecto, as histórias dessa categoria produzem o imaginário de que viver a infância e a juventude pode ser uma expressão do capitalismo, e de forma prazerosa e lúdica, desde que as práticas, desejos, invencionices comuns dessa época da vida sejam filtrados pela ótica reificadora do capitalismo, de transformação da cultura e da existência em mercadoria inovadora. Dessa maneira, a PEGN demonstra como a produção do sujeito neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.) pode se estabelecer desde os primeiros anos de vida, como inspiração para que os leitores se insiram nesse projeto de sociedade o quanto antes, quase como uma vocação biológica. Mais uma vez, os casos bem-sucedidos são os modelos desejáveis, as histórias exemplares do universo simbólico do capital e de sua retórica de engajamento. Os fracassos, as impossibilidades por restrições das classes economicamente desfavorecidas, os demais percalços e obstáculos da atividade empreendedora dão lugar a uma ode às iniciativas individuais, ao espírito empreendedor juvenil, à exuberância do sucesso. Dessa forma, o empreendedorismo em si é ressignificado como uma atividade jovem, inventiva, espontânea, e ao mesmo tempo capaz de dar vazão aos interesses particulares, às inquietações e à expressividade de seus agentes. O que escapa a esse imaginário é o cultivo de uma monocultura, de uma mentalidade única aderente ao sistema de reprodução do capital.

Em síntese, as três categorias apontadas em nosso estudo representam um jovem enquadrado em um projeto de sociedade empreendedora da PEGN: os modelos ideais são apresentados de forma destacada, em uma galeria de casos de sucesso, para servirem de inspiração para os leitores. Quando a situação do jovem pode se tornar uma notícia distante da narrativa de sucesso, isso é tema de certas falas dos adultos ouvidos nos textos, para que haja uma correção de rota, para que seja feita uma análise reflexiva sobre o caminho a seguir. O objetivo, em todos os casos, é que a juventude brasileira (principalmente os homens) seja, agora e no futuro, uma juventude unificada pelo ethos empreendedor.

Considerações finais

Nos textos da versão digital da PEGN publicados entre 2018 e 2019, em que surgem a expressão “jovem empreendedor” ou “jovens empreendedores”, encontramos o ideal de juventude empreendedora como fonte de inspiração para progresso, já que os jovens são representados como empreendedores – de negócios com objetivo de lucro ou de projetos da economia social –, munidos do propósito de “ajudar a comunidade”, e da crença de “que a causa do empreendedorismo é capaz de gerar desenvolvimento econômico social e transformar realidades”, como dizem certos trechos das reportagens. Esse jovem ideal emerge dos discursos como protagonista de um processo de transformação, tornando-se uma “inspiração para a comunidade”. Assim, reforça-se a ideia de juventude como fase geradora de mudança social, minimizando as dificuldades encontradas por esses sujeitos para se inserir no mercado de trabalho formal; o receituário da revista serve como discurso positivo que se sobrepõe às mazelas do capitalismo que atingem os mais jovens em idade laboral.

O cenário do capitalismo flexível (SENNETT, 2007SENNETT, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2007.) é o contexto em que o “autoemprego” surge como tábua de salvação, como solução mágica diante da escassez de alternativas para os jovens em busca do primeiro emprego ou de progressão para uma atividade relacionada com seus interesses e ideais de vida. Nesse sentido, o discurso inspiracional acerca do empreendedorismo juvenil serve como antídoto para um cenário social de precarização, flexibilização, “uberização” do trabalho – que tem nos jovens um dos principais grupos sociais atingidos por esse processo, que acirra as desigualdades sociais e econômicas do capitalismo contemporâneo.

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Editado por

Editora responsable: Maria Ataide Malcher
Asistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    03 Nov 2022
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