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Mas o que pode a literatura? (...) O que podem as palavras?

But what can literature do? (...) What can the words?

RESUMO

O presente ensaio visa - a partir de Fluxo-Floema, de Hilda Hilst, e de Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta - discutir as proposições de Jacques Derrida, quando propõe, em “La Loi du Genre” as homologias, analogias e amálgamas existentes entre os gêneros literários e os gêneros sexuais/identitários. Pretende-se, com isso, demonstrar tanto a naturalização entre as formas e identidades, no campo literário, quanto as possibilidades de ruptura dessa lógica ensejadas pelas escrituras da diferença.

PALAVRAS-CHAVE:
gêneros literários; gêneros sexuais e identitários; literatura; poder; discursos

ABSTRACT

This essay aims - starting with Fluxo-Floema, by Hilda Hilst, and New Portuguese Letters, by Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa and Maria Teresa Horta - to discuss Jacques Derrida’s proposals, when he proposes, in “La Loi du Genre” the homologies, analogies and amalgams between literary and sexual / identity genres. It is intended, with this, to demonstrate both the naturalization between forms and identities, in the literary field, as well as the possibilities of rupture of this logic brought about by the writings of difference.

KEYWORDS:
literary genres; sexual and identity genders; literature; power; speeches

Mi cuerpo desnudo está aqui

y no en otra parte

pasa y verás lo que hay

tras el esmalte de dientes.

Mirian Reyes

Pode-se dizer que, a partir do século XIX, todo ato literário se apresenta e

toma consciência de si como transgressão da essência pura e inacessível da literatura.

Michel Foucault

As perguntas que dão título a este ensaio podem ser meramente retóricas. Ou não! Redundam, de fato, da reapropriação, à portuguesa, de um verso/frase de Reinaldo Arenas, autor cubano, vitimado pelo HIV em 1990. E desde essa “proposta” se desdobram tantas outras, que visam não aferir, mas provocar - ao crítico e ao leitor - acerca do potencial submerso que tem o concerto literário no mundo: dos potenciais eruptivos e transgressores à formatação do senso comum e dos valores ideológicos vigentes, apenas sob um viés estético. Opto aqui pela primeira opção, muito pra dialogar com a epígrafe emprestada de Michel Foucault, quando nos lembra de que, fim último, a literatura assume também seu lugar como discurso de poder e que, enquanto tal, se institucionaliza, perdendo com isso sua capacidade de ser um contradiscurso ou, para usar uma terminologia à Foucault, “suspeição” e “suspensão” das estratégias que reúnem poder e saber. As perguntas lançadas por Arenas e depois reapropriadas em Novas Cartas Portuguesas (1973 [2010BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010.]), por Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, ensejam questionar o estatuto muito assentado que tem a produção literária como um lugar com classe social específica, raça específica e identidade de gênero idem. Se a literatura “pode” tudo, é normal que imaginemos aqui que ela possa “rasurar” os três índices acima referidos, sem ocupar, no entanto, o lugar “salvífico” e algo etéreo que muitos lhe atribuem. Antes disso, cabe lembrar que a literatura e que seus estudos ocupam no mundo um lugar “outro”, que hoje tem dentre outros objetivos colaborar para os processos de dessubalternização e de realocação dos sujeitos e indivíduos no mundo, deslegitimando as falas de poder, as dicotomias inúteis e a diferença negativa. E isso não nos afasta nem do propósito inicial do texto literário - o gozo, à Barthes - nem de desvirtuar tarefa crítica, já que pelo menos desde o Livro X, de A República, de Platão, a literatura vive a urgência de constituir-se e saber-se no fora, pensando-se, por princípio, no local da diferença e como discurso diverso. E, à esteira de um cada vez mais potente “comparatismo periférico, subalterno e das diferenças”, cabe, dentre tantas e múltiplas tarefas, pensar como certas categorias naturalizadas pelo espaço da crítica literária podem, certa maneira, estar refletindo os lugares e discursos hegemônicos que - a despeito da defesa de um conteúdo crítico intrinsecamente literário - corroboram para a construção de jogos de alteridade excludente, sobretudo quando se trata de produtos estéticos que redundam dos (auto)nomeados sujeitos da diferença.

Nas primeiras páginas de Fluxo-floema, o narrador de “Fluxo”, primeiro texto dessa obra, dirige a um capitão um pedido de licença para escrever as “coisas de dentro” (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003., p. 20-21), vestindo, para tanto, murça e carmesim, para que assim consiga “escrever com dignidade” (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003., p. 20). Se, por um lado, o trecho prenuncia, no “fluxo”, a necessidade de uma escritura que exige pompa, própria, aliás, de uma visão mais tradicional de texto literário e escrita, por outro, aponta o processo que se instaurará no correr do texto: o que começa como narrativa fabular, transmuda-se em fluxo de consciência, em confissão do enunciador, poema, cantiga medieval, como resultante do fato de não se poder escrever “com uma língua dessas”, fato a que o enunciador renunciará, tanto em favor da criativa utilização de “formas” sem nenhum sentido que irrompem dentro do tecido textual quanto em nome da deriva de gêneros literários, em coerência com os propósitos daquele enunciado resultante de processos físicos e escatológicos: a escrita, para Ruiska, a instância que se enuncia naquele fluxo, é vísceras, excremento, escarro, cuspe, cólica, palavras cujo campo semântico explora lógicas extremas do corpo, mas que também sugerem elaboração, mescla, processo e transformação (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003., p. 21; 24 e 33).

Indicamos acima a obra de Hilda Hilst a partir de termos neutros, híbridos, que se dispensam sobre qualquer modalidade textual justamente porque, em se tratando de uma possível compartimentalização em gêneros textuais, este texto ocuparia vários lugares e nenhum: se graficamente nos lembra uma longa narrativa, dividida apenas em dois parágrafos, o gesto de leitura sempre resulta em um escape a qualquer perspectivação, já que o aparentemente narrado, abruptamente ou não, oscila para a prosa poética, daí para o poema em prosa, para o poema mais tradicional. Em termos de expressão linguística e semântica, seus encadeamentos não estão pressupostos dentro de uma lógica apenas narrativa ou apenas poemática ou, ainda, confessional, mas atendem, incorporam e compreendem todos os gêneros sem ser nenhum. Há, portanto, atinente à obra, uma coerência muito particular, um princípio de verossimilhança, este mesmo, inclusive, fora de qualquer compromisso mimético mais imediato. Podemos, a partir dessa breve apresentação de Fluxo-floema, imaginar que a autora, Hilda Hilst, conforma uma “lei” particular para a sua obra, o que, em última instância, é a própria inexistência de um ordenamento capaz de sustentar a existência de uma lei. Partindo dessa observação, que ecoa de uma das obras privilegiadas como corpus, inicia-se a proposição de um solo teórico capaz de colaborar na compreensão tanto do fenômeno que acima adiantamos quanto daquele que se verá também em Novas Cartas PortuguesasBARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010., obra portuguesa, de 1973, de autoria de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta.

Em conferência apresentada em 1979, intitulada “A lei do gênero” / “La loi du genre” (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 249-287), o filósofo Jacques Derrida problematiza a questão dos gêneros literários, demonstrando sua ineficácia - ou eficácia parcial - para a compreensão da Literatura. Entretanto, valendo-se de seu contumaz domínio das derivas e clivagens da própria linguagem, o autor de Gramatologia inicia por declarar, em gesto metatextual, que ele mesmo não mesclará os gêneros de seu próprio ato de fala, de forma a atender ao que esperam seus ouvintes, arregimentando, assim, seu próprio discurso. Entretanto, a proposição de Derrida é falaciosa, já que, na tentativa de demonstrar o quão frágil é a estruturação genológica de que dispomos no campo literário, o autor mesmo vai lançando mão do que ora parece tratado filosófico, ora resvala para a crítica literária, ao mesmo tempo em que, a certa altura, passa a relacionar esteticamente o par homófono/homônimo “gênero” (literário) / “gênero” (sexual). A proposição derridiana é expressiva: “desde que se intenta pensar em gênero, um limite se desenha” (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 257), ainda que isso não se trate de uma tipologia natural, mas, sim, orientada por leis culturais, técnicas, metodológicas e que tais, nascidas da tendência propriamente humana de tipificar, arrolar e restringir espaços, discursos e atos de fala.

Tal “acontecimento”, para aqui nos apropriarmos do vocabulário do filósofo, recai tanto sobre os objetos estéticos quanto também - ao que parece indicar - sobre o desdobramento do gênero humano - instância ontológica das suas possibilidades - em dois: o feminino e o masculino - instâncias sexuais, sociais e políticas, àquela altura, ainda de caráter ôntico, portanto restrito a um campo estático, mormente dicotômico.

Subvertendo indiretamente a premissa saussureana de que tudo na Língua se dá por oposição (gênero masculino/gênero feminino; número singular/número plural; narrativa/poema/drama), recorre ao princípio da desconstrução para comprovar que, em última instância, o que a história da Linguagem e da Literatura tomam por excludentes são, na verdade, traços complementares, nos quais a presença do “outro gênero” vem sempre indireta e silenciosamente marcada. Em outras palavras, um gênero/Gênero se constitui em alteridade, ainda assim buscando uma unidade - o humano, a linguagem, a Literatura - e suas diversas possibilidades:

Mas em todo o enigma do gênero [Gênero] tem-se talvez mais perto esta divisão entre os dois tipos de gênero que não são nem separáveis nem inseparáveis, casal irregular do um sem o outro, que se citam regularmente, convocando-se mutuamente a comparecerem um na figura do outro, dizendo-se simultaneamente e indiscernivelmente “eu” e “nós”. (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 253)

Ainda que nos pareça dada como assentada em sua interatividade, a estrutura de gênero/Gênero de forma alguma se livra de uma norma que a regulamente, já que se baseia em um telos que rejeita a impureza, a mistura, a anormalidade e a monstruosidade, baseando-se, para tanto, nas estruturas que sustentam o pensamento e, claro está, as relações sociais e culturais como um todo. Em outras palavras, há uma lei dentro da própria lei do gênero/Gênero, que lhe garante condições de separar, excluir, hierarquizar e normatizar sejam os indivíduos da espécie humana, sejam as formas artísticas quais forem, já que a lei demanda uma pureza identitária essencial. Entretanto, o filósofo estabelece uma suspensão do discurso da lei para compreendê-la a partir de outro dado que a desestabiliza e compromete a sua forma de conceber o ordenamento, o sentido e a razão: uma espécie de “contralei”, que põe em xeque a suposta perenidade e estabilidade dos gêneros e que cria para estes uma espécie de regulação impositiva e sem a qual a “lei do gênero” não pode existir.

Para o filósofo, esta tensão está no cerne do aparecimento da Literatura como um tipo particular de fala esteticizada, regulada por aspectos que são, por um lado, dados como assentes, mas que, na verdade, redundam de uma atribuição de sentido e circunscrição a um campo de circulação e a uma comunidade receptora capacitada para reconhecer como discurso específico, do que ecoaria a falsa ideia de um “absolutamente literário”, naturalizado no espaço cultural. Se tomarmos como ponto de ancoragem o princípio do “balizamento” dos gêneros literários, há, no subtexto desse postulado, a certeza de que o princípio da contaminação, da impureza e do transbordamento aí também compareceria, já que não podemos conceber nenhum ato de fala ou discurso na sua essencialidade: qualquer construção da Linguagem ou nela baseada traz, como horizonte material, como bem indica Michel FoucaultFOUCAULT, Michel. “Linguagem e Literatura”. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a Filosofia e a Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 137-174. em A ordem do discurso, um ordenamento baseado em formações ideológicas, históricas e discursivas, que lhe circunscrevem semântica e politicamente (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 257-258).

O resgate etimológico do radical grego genos, do qual se origina o termo “gênero” nas suas duas acepções, propiciará a Derrida localizar o ordenamento de gênero como parte de um processo de derivações (geração, genealogia, engendramento) que sempre se apoiam no aspecto classificatório, uma vez que recorrem a um universo restrito de características que dimensionam o objeto, a arte e o próprio sexo dentro de um campo limitado de possibilidades. Mas recorda, na sequência, que, no embate travado, em seu interior, entre natureza e história, toda e qualquer noção de gênero é inclassificável, posto que se revela como uma “dobra” sempre posta em relação aos outros gêneros, aos quais não necessariamente deslegitima, mas com quem mantém estreitada relação; assim, a “mescla de gêneros” ou sua hibridização não indicaria, por esta “dobra”, uma dissolução, mas a criação de novas leis, cuja aplicação e abrangência restringir-se-ia ao espaço (literário, corpóreo, identitário) em que esta mistura ocorre. Não haveria, por conseguinte, na mescla de gêneros, a negação do gênero nem na sua natureza e nem na historicidade; todavia, a percepção de que há possibilidades que se constroem no intervalo entre a lei e a anomia, entre o modelo fechado e um outro, em que o transbordamento cria outra ideia de pertencimento, que não admite nomeação ou taxonomia.

Ora, na sequência enunciativa “ela diz: tive uma ideia, querido, se você escrever uc? Não, não adianta, essa é a primeira possibilidade que ocorre a qualquer um, invente... invente novas, novas possibilidade em torno do” (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003., p. 22), o enunciador já referido suspende a intencionalidade narrativa para discorrer sobre a linguagem; o fragmento metatextual aponta, ao mesmo tempo, para uma reflexão acerca das possibilidades da expressão literária e para o próprio texto, já que dele faz parte. O transbordamento aludido por Derrida demonstrar-se-ia à medida que Hilst concebe, como expressão, um enunciado entrecortado, em potência, que transgride limites e subverte arranjo, construção, colocação e sintaxe, apropriando-se de recursos contumazes ao gênero poético e associando-os a uma discussão filosófica sobre o lugar mesmo da linguagem no campo da Literatura. Sobretudo se levarmos em consideração tanto o “formalismo” de que Hilda Hilst fora acusada por suas primeiras obras quanto o referencial estético que lhe é imediato: o Concretismo Paulista e a Poesia Marginal, ambos contemporâneos de boa parte da produção hilstiana e, por conseguinte, de Fluxo-Floema. Os dois movimentos referidos, o primeiro recuperando o sentido antropofágico oswaldiano e o segundo desacademicizando a poesia e o enunciado, embora não tratem o texto (literário ou não) com a mesma tangência, trazem consigo a percepção de que a produção estética escrita coloca-se para além do drama de linguagem que tomou de assalto parte da poesia brasileira dos anos de 1950 e 60: contra uma linguagem que não diz tudo e em favor desta certeza, cabia ao artista dizer-se dentro daquilo que havia, das formas que havia.

Ao proporem o redimensionamento da relação entre significado e significante no interior do poema, conscientes da imotivação e da arbitrariedade do signo, os Concretistas se autoimpõem uma forma de dizer que traz ao poema possibilidades gráficas, semânticas e estéticas baseadas na deriva que a própria linguagem literária favorece. A Poesia Marginal, sobretudo aquela que se começa a produzir no Rio de Janeiro em fins dos anos de 1960, estará preocupada, por sua vez, com o “suporte” nos quais o “texto” irrompe: se o livro é o espaço sagrado da literatura, há que se propor outros suportes que mantenham o potencial transgressivo, mas que ressignifiquem a própria ideia de Literatura. Daí o uso de grafites em muros, folhas mimeografadas, reprografia, inscrições em tapumes de obras, publicação de poemas em páginas de classificados de jornais. No âmbito de uma possível “Lei do Gênero”, cabe-nos lembrar que esta mesma lei impõe ao gênero uma forma, um suporte, uma manifestação prioritária e única em termos de materialização do texto literário. Ao proporem seja a revisão da lógica do signo linguístico, seja o não-sentido como sentido possível e o deslocamento dos suportes naturalizados como veículos do texto literário, os dois movimentos contemporâneos à publicação de FF, se não transgridem ou criam uma contralei, pelo menos colocam em xeque o estatuto da lei que lhes antecede. Hilda Hilst, como toda e qualquer artista, não estava alheia ao que fazia sentido em seu tempo e, ainda que não dialogasse nem com um nem com outro movimento vanguardista brasileiro, tinha noção das desestabilizações que ambos trouxeram e ainda trariam para o campo literário e poético brasileiro. Retomando a sequência enunciativa de FF, o que podemos inferir é que a revisão da forma e do conteúdo não se baseia apenas em uma questão localizada na “espuma” da linguagem, para aqui nos apropriarmos de uma expressão derridiana no texto a que nos referimos, mas que deve necessariamente aprofundar-se em favor de “novas possibilidades” que sobram para além das margens da lei naturalizada para os gêneros literários (débordement): “quenuncamaisdevescrever... há meios mais eficientes de comunicação, a coisa é visual agora, entendes?” (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003., p. 64).

Para Derrida, a lei que arregimenta o gênero textual cria um código baseado em traços e recorrências identificáveis como atinentes às “classes” compreendidas dentro de um gênero, necessárias à criação de traços distintivos aprioristicamente remarcáveis, dado seu teor metatextual. Por exemplo, uma sequência narrativa qualquer, mesmo que seja temporariamente suspensa em favor de uma descrição ou de um juízo sentencioso por parte do narrador, será sempre retomada e os acontecimentos textuais que puseram em espera o tema narrado são sempre demarcados como pertencentes ao princípio da economia narrativa, no qual todo e qualquer elemento deve, antes de mais, favorecer ao que se narra. Em outras palavras, a flutuação de formas dentro de um gênero específico reforça a lei deste gênero, quando na verdade deveria demonstrar o quanto foram naturalizados determinados recursos que, na sequência, passaram a fazer parte da historicidade do próprio gênero.

Contra essa “naturalização”, Novas Cartas PortuguesasBARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010. irrompem de maneira bem pouco usual, já que as autoras, ao se basearem no princípio epistolográfico (cartas) e antecederem o referente com um adjetivo que o requalifica (novas) diante das Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado, sugerem, como pacto de leitura, uma contralei para o gênero textual carta - misto de texto narrativo e informativo -, desnaturalizando-o e rompendo com a historicidade que esta modalidade discursiva aparentemente detinha. Ao proporem um novo pacto de leitura, propõem conjuntamente a criação de uma teia (as enunciadoras, “aranhas”) discursiva que desmarca a lei do gênero narrativo-informativo e o coloca em suspeição, rechaçando os pressupostos que circunscrevem o gênero narrativo em favor de uma expressão exponencial da linguagem, que, ao fim, está em favor da Literatura como gênero ilimitado e transbordante.

Jacques Derrida e as autoras de Fluxo-FloemaHILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003. e Novas Cartas PortuguesasBARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010. parecem pensar de maneira correlata a atribuição do rótulo “literário” a uma obra: as “três Marias”, ao imaginarem que a literatura “é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível” (BARRENO; COSTA; HORTA, 2010BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010., p. 3), supõem que esta atribuição se dê no gesto da escritura e não necessariamente pela anuência apenas de um outro que leia e atribua sentido; o “interlocutor possível” é, antes, um leitor-modelo, conforme nos aponta Umberto Eco, porque aquele capaz de observar e esteticizar o gesto de escrita, tornando o texto legível e que pode com as autoras compartilhar o fato de que Novas CartasBARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010. é, efetivamente, um texto literário. Claro está, como bem enfatiza o filósofo, que não se pode depreender que todo o texto e qualquer texto tenha a pretensão de sê-lo, já que nisso concorre a impressão do tempo, bem como o jogo entre pertencimento e despertencimento deste texto àquela série a que chamamos literária. Pertencer ou despertencer, são, ipso facto, atribuições de sentido, da mesma forma que a lei que arregimenta o gênero literário também o é, já que todo os textos participam de um ou vários gêneros, não havendo nem texto sem gênero literário (ou com marca identitária de Gênero sexual) ou que não os tenha por horizonte, mesmo que isto não redunde no fato de que devam pertencer a um gênero: todo texto literário é, antes, um transbordamento de riqueza estética, livre produtividade anárquica e, portanto, inclassificável. Marcando-se dentro de um gênero textual, um texto se borra em intencionalidade, perde seu sentido como escritura e compromete sua própria fruição (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 263-265). E é disso que talvez se trate o inclassificável conserto das obras que aqui tratamos: a consciência da problemática tanto literária quanto genológica acerca de sua inclusão dentro de um campo de registro, já que a cláusula do gênero implica sempre situar um topos na obra, mas também fora dela; ao incluir-se num gênero, exclui-se necessariamente a possibilidade de bordejar outro.

Daí que declare Derrida que “esta inclusão e esta exclusão não permanecem externas uma em relação à outra, não se excluem, nem são imanentes ou idênticas umas às outras” (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 265). Um jogo paradoxal: a cláusula “legal” que determina o gênero por si mesma exclui, desclassificando, no campo estético ou da linguagem, aquilo que pretendia classificar; entretanto, sem este pacto não há nem gênero e nem literatura.

A laçada seguinte que Jacques Derrida proporciona ao seu “La loi du genre” é analisar a obra La folie du jour, de Maurice Blanchot, tendo como base justamente as proposições desse crítico e filósofo acerca do que seria a sua obra e contrastando-a com as observações já feitas. Ainda que não nos interesse diretamente para a economia deste ensaio a exposição da “análise” derridiana, cabe lembrar o fato de que, segundo o filósofo, ao relacionar, na capa de sua obra, o gênero “relato”, Blanchot condiciona a sua leitura, bem como a abordagem de seu texto, criando um protocolo de leitura baseado na existência de um relato, dado necessário à existência de uma lei. Em contrapartida, ainda na observação de Derrida, aquilo que se atribui à obra de Blanchot efetivamente não ocorre, justo porque não há relato formal, que atenda a uma lei de gênero, mas a intenção de construção de um relato, só alcançável pelo escritor-leitor que o constrói e que é o único capaz de identificar aquele fluxo narrativo como um relato.

Derrida, pois, localiza o “relato” de Blanchot dentro de uma espécie de prega, plissado; se materializarmos tais proposições, devemos lembrar que a prega aproxima duas partes de um tecido (textual, biológico, material), com o intuito de tornar uma estrutura mais justa, mais coesa, mais compacta. Da mesma forma que aproxima o que não está tão próximo, a prega, quando realizada pelo ato da costura que lhe percorre de um extremo a outro, atada e mantida por linhas que se entrelaçam, passa a esconder uma parte, que, embora continue a compor a estrutura, deixa de habitar o campo de visão. O plissado, por sua vez, constitui-se como uma dobra atada por um de seus lados apenas e, diferentemente da prega, que ata e circunscreve, sua existência garante movimento, um constante jogo entre abrir e fechar-se em si mesmo, mostrando o interior da dobra, mas também convenientemente o escondendo.

Se aplicamos este pensamento à conjuntura de uma lei do gênero - ou mesmo à Literatura como uma lei/contralei, é possível pensar que a Literatura seja uma roupa da linguagem - não seria demais imaginar que o tecido textual constitui-se nesse duplo procedimento: é prega, posto que, estruturalmente, encobre e aproxima partes distantes, dando um novo sentido ao que aparentemente é exposto pela linguagem, mas sem perder do horizonte aquilo que fora encoberto pela costura.

Simultaneamente, quando observamos a função do plissado nesse tecido, temos de observar que, se, por um lado, permite o movimento tanto dentro da série - o literário - quanto de um gênero - poético, narrativo, dramático -, também se abre como um leque às diversas possibilidades, constituindo, pois, um movimento dialético que implica expansão, tensão, elasticidade e retorno à condição primeira de superfície estriada. Cabe lembrar que prega, dobra, plissado ou estria guardam uma memória estética, discursiva e histórica da superfície lisa que um dia foram, condição de alteridade que lhes constitui sua atual condição de diferença, bem como nos aponta Ana Luísa Amaral, quando nos afirma que o poema, na sua dinâmica como texto literário, é “uma via para o conhecimento, entre espaços de vazio. Também uma prega no tempo da língua, ou uma língua que efetua uma relação com os mortos e com aqueles que ainda não nasceram. Situada entre o passado e o futuro” (AMARAL, 2011AMARAL, Ana Luísa. Vozes. Lisboa: Dom Quixote, 2011., p. 28).

Pensando ao largo de Fluxo-FloemaHILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003. e Novas Cartas PortuguesasBARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010., poderíamos inferir que se tratam de obras que intercambiam as noções de prega e plissado, uma vez que, quando pensadas na sua inserção sistêmica, ou seja, nas literaturas em que insurgem, trazem em si tanto a memória de uma experiência literária que lhes é anterior em termos de cânone como também articulam a tensão entre o que são e os dizeres que lhes antecedem, sejam estes literários, culturais e mesmo no âmbito do Gênero Sexual, considerando aqui o fato de que são mulheres que escrevem em sistemas literários - que, mesmo se recortarmos, como parâmetro, apenas o século XX - em que não foram absorvidas outras escritoras e, se o foram, desconsiderou-se, nesta inclusão, sua posição social como mulheres. E como “cláusula” é uma palavra perseguida tanto por Derrida em seu artigo quanto pelas autoras a que nos referimos, não custa, pois, relacionar o fato de que não se pretende uma nova lei de gêneros, mas sua superação: “Considerai a cláusula proposta, a desclausura” (BARRENO; COSTA; HORTA, 2010BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010., p. 6).

Na esteira de sua análise de La folie du jour, Derrida estender-se-á à compreensão das duas bordas do “relato”, compreendidas como sua primeira linha e, consequentemente, sua última; este interstício abriria, no corpus narrativo, uma espécie de bolsa cujo conteúdo (interior) existe em relação a sua borda (exterior) e a borda (continente) em relação ao conteúdo, em um interminável processo a que ele chamará “invaginação”: o texto de Blanchot, assim, gestaria um gênero só existente no interior das duas bordas, criando, com isso, sua própria lei e abdicando, ao mesmo tempo, da existência de uma lei que lhe regulamente, já que interior e exterior, continente e conteúdo bastam-se no âmbito do processo criativo e criam para o objeto um ordenamento que lhe é particular, original e único, que, na prática, rege a lei.

Ao localizar o gênero literário nessa perspectiva, Derrida questionará o processo de subjetivação presente no texto e a “mot impossible” (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 278-280): eu. Considerando que a pessoa do discurso do texto de Blanchot constitui-se em negação, daí sua impossibilidade de subjetivar-se no “relato”, sendo apenas dele objeto, a análise apontada pelo filósofo do desconstrucionismo apontará o fato de que, se há uma perspectiva afirmativa ou positiva no texto em questão, esta estaria nas mãos do Gênero Feminino, este capaz do “prazer sem limites” e de uma “satisfação sem limites”, os quais o enunciador se vê impedido de alcançar. No relato de Blanchot, são elas que se abrem às possibilidades e por isso não se conformam dentro de uma estrutura genérica de poder, mas, antes, o questionam, abrindo assim espaços, vivendo as dobras, as bordas e fazendo transbordar as leis que o que se enuncia e não se subjetiva não consegue vencer. Partindo dessa possibilidade do Feminino abrir-se, envaginar-se no tecido textual, Derrida localiza, nas potencialidades atribuídas a este Gênero em La folie du jour, a capacidade de mesclar gêneros/Gêneros, numa acepção ampla da abrangência dessas categorias. Assim, observando as possíveis relações entre Gênero Sexual e gêneros literários, o filósofo refere-se indiretamente a Simone de Beauvoir - “Não se nasce mulher. Torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009., p. 13) - e a outra narrativa que marca essa deriva dupla a que nos reportamos - Orlando, de Virgínia Woolf.

Em outras palavras, a palavra forte de Beauvoir apontaria para a construção de uma subjetividade feminina, para a consciência de si, para além das questões meramente biológicas que marcam a atribuição “mulher” em relação ou em contraste a um ser humano nascido sob o sexo masculino. Portanto, o processo de trans-formação, subentendido no uso do verbo “tornar”, acrescido de um pronome reflexivo que lhe redireciona a ação, supõe que “ser mulher” não é uma questão apriorística, mas sim derivada da construção de uma consciência sobre ser. Quando Derrida afirma que o eu enunciativo do “relato” em análise tem a possibilidade de ser mulher e de trocar de sexo, indiretamente aduz ao fato de que, nas possibilidades do feminino está, inclusive, não ser mulher. Por extensão e por oposição, esta possibilidade não se abre aos seres do gênero masculino - homens, portanto -, já que esta é uma condição estática e imóvel, perenizada na natureza - o macho, o líder - e socialmente circunscrita a um não-agenciamento identitário, ao atendimento à lei do gênero e à manutenção de um ordenamento discursivo que não só lhe resguarda seu papel social como lhe garante continuar ocupando os espaços de poder e legitimando as lógicas discursivas.

Em relação a Orlando, temos que acrescentar o aspecto aludido por Derrida quando refere que a mudança de sexo, a trans-sexualidade, na mulher, lhe permite, de modo mais que metafórico, engendrar, no sentido de criar, gerar, proceder a um empreendimento não apenas biológico, mas sobretudo linguístico. Se tomarmos o corpo de Orlando como ponto de partida e como ilustração do posicionamento de Derrida, podemos inferir, a partir daí, que o corpo antes masculino liberta-se da lei do gênero que lhe fora imposta e, a partir daí, engendra-se como um corpo de possibilidades, que se esteticiza e cria. Nesse sentido, o corpo de Orlando, mediado pela lei, desregulamenta-se ao avançar rumo não apenas ao Gênero Feminino, mas à possibilidade de ser homem, mulher e tudo ao mesmo tempo, apenas optando por um encapsulamento circunstancial: seu corpo. Mesmo em termos de textualidade, o “romance” de Woolf parece-nos transcender à lei aludida por Derrida, já que o que a crítica circunscreve ao gênero nobre da narrativa na verdade é um não-gênero, uma biografia, classe de relato tida como menor na hierarquia das formas literárias. Derrida prossegue sua aproximação entre lei do gênero e do Gênero apelando para o fato de que, se o relato e o Gênero masculino são negativos no âmbito da narrativa de Maurice Blanchot, o feminino se opõe, tanto porque engendra quanto porque se afirma como possibilidade de, inclusive, gerar uma lei que deverá ser seguida e que, reiteramos, está no feminino, mas não na mulher (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 281-282).

Se tomarmos a apreensão gramatical e linguística dos gêneros, percebemos o alcance da questão proposta por Derrida: o masculino e o singular são consideradas formas não-marcadas, ou seja, não trazem em si marcas nem de gênero e nem de número gramatical. Entretanto, a forma marcada é o feminino e o plural, demonstrando-se, pela compreensão gramatical do tema, como formas que agregam e expandem um suposto grau zero da expressão linguística e que são, por isso, denominadas formas “marcadas”. Assim, não nos parece forçoso admitir que podemos observar o fenômeno gramatical antes descrito às avessas: é o gênero feminino quem condiciona o outro, e não o contrário; portanto, a lei nasce em função disso, e não ao contrário, como sempre fomos levados a supor: “La loi est au féminin” [“A lei é feminina”], sabendo claramente que a lei “n’est pas femme” [“não é a mulher”] (DERRIDA, 1986DERRIDA, Jacques. Parages. Paris: Galilée, 1986., p. 282).

A relação entre gênero literário e Gênero Sexual, nesse sentido, nasceria do fato de, no caso das mulheres, lhes ter sido historicamente cerceado o acesso à manutenção de sua memória cultural como um povo, às narrativas que constituíam a subjetividade desse povo e, mais recentemente, à educação formal que lhes garantisse narrar para existir. Olhado em relação ao homem, ao masculino, o Gênero feminino teria sua legitimidade construída na diferença daqueles que deteriam o poder e a autoridade, já que, embora no feminino figure a lei, não é arrolado entre aqueles que a representam. Parafraseando Derrida, ao feminino não caberia sequer o direito autoral de relatar a sua existência, de instituir-se como voz narrativa, já que o “eu” enunciativo e os demais pronomes que dele decorrem comparecem gramatical e historicamente no masculino.

O arremate do texto da conferência de Jacques Derrida propõe o enlouquecimento da lei como condição necessária a uma anomia própria da linguagem, já que ela, ontologicamente, constrói-se como espaço de possibilidades e qualquer lei, toda a lei, pressupõe a restrição, a univocalização circunscrevendo o que deve ser ou o que não pode existir. Tanto o gênero literário quanto o Gênero Sexual, nesse sentido, deveriam necessariamente ser pensados dentro de um espaço polissêmico e dinâmico, capaz de engendrar possibilidades e não de eliminá-las; daí que a taxonomia, o limite, a classificação e o ordenamento, quando se aplicam ao campo literário, por exemplo, redundem em um gesto falacioso que, mais que criar formas de ler, silencia o texto literário, negligenciando suas dobras, seu transbordamento, levando-nos a esquecer que a Literatura se estabelece onde o pragmatismo da linguagem entra em comprometimento e onde o tecido textual se esgarça.

A “novidade literária” tecida por “seis patinhas sonsas” (BARRENO; COSTA; HORTA, 2010BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010., p. 6), associada à “língua” que “é matéria vibrátil” (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003., p. 237) de outras duas mãos que escrevem parece também nos ilustrar o intento de Derrida ao associar as leis de balizamento do texto e de Gênero/sexualidades nos textos: os quatro corpos que escrevem nos parecem conscientes de que a tarefa que lhes cabe diante do ordenamento discursivo não é necessariamente criar a desordem, mas observá-la na sua capacidade de afirmação e potência; ou, em outras palavras, Fluxo-floemaHILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003. e Novas Cartas PortuguesasBARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010. não pretendem, em nenhum momento, constituírem-se como novas leis de gênero literário, agora baseado na mescla, justo porque, como textos que trazem o corpo imanente para o espaço literário, sabem que este corpo também existe na sua particularidade e na sua diferença. Criar uma lei da mescla, da hibridização seria manter a lei que as duas obras questionam, apenas que agora moldada pelas vozes de mulheres que escrevem. E a questão está na construção plena de uma coerência interna às obras, uma contralei particular que só a elas se aplique, nelas se demarque, delas transborde, mas que não crie ordenamentos e regimes de clausura de nenhuma ordem: a liberdade de escrever(-se), portanto. A liberdade atinente à escritura.

Pelo contrário, a cláusula de “desclausura”, proposta reiteradamente em Novas Cartas Portuguesas (BARRENO; COSTA; HORTA, 2010BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010.), o eixo que une poço e claraboia, em Fluxo-Floema (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003.) denota possibilidades e não fechamentos; são circunferências em que fora e dentro atuam e se complementam, parábolas em aberto, no mesmo sentido aludido por Derrida quando recorre à ideia de uma “invaginação” do texto, a criação de uma elipse entre princípio e fim, em cujo meio o sentido e o significado se constroem. A recorrência do filósofo à vagina e a um processo de “tornar” vagina parece-nos oportuno, já que ele mesmo recusa a ideia de vagina como metonímia, como recorte, mas, pelo contrário, a incorpora como marca, traço distintivo que gera sentido, deixando claro, pois, que a invaginação do texto demanda um corpo textual que a sustente, que seu interior (o meio da elipse) só existe porque há um corpo nas bordas, que lhe transborda, para usarmos novamente um termo caro ao texto a que nos referimos. Se, a partir disso, retomarmos a ideia de um texto-corpo e de um corpo-texto, estes corpos que escrevem, femininos, são, como aduz Derrida, cobertos de particularidades, de transformações, são trans, transcendem à lei dos gêneros, dos Gêneros e dos discursos.

E a isso acrescento, com auxílio de Michel Foucault (FOUCAULT, 1992FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992. e 2007FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2007.) que a história dos discursos é a história dos discursos sobre o corpo: o corpo feminino, todo ele história da própria Vida e de sua genealogia. Assim, não nos parece agora forçoso inferir que não se possam compreender as redes discursivas que estas mulheres escrevem, no feminino e não apenas, sem que também entendamos como é que esses corpos se manifestam no campo literário e cultural.

Parece-nos, portanto, evidente que não se pode pensar a respeito da tensão entre gêneros literários e Gêneros Sexuais, e mesmo nos textos produzidos por mulheres, sem pensarmos, em paralelo, que não podemos reduzir o ser que escreve a uma mera instância autoral ou a uma assinatura na capa de uma obra, suspendendo-lhe o corpo e metonimizando-o em mão apenas. Defendemos a ideia de que na quebra desses dispositivos legais há um corpo autoral que escreve e escreve o próprio corpo, já que a lei do gênero literário pressuporia o distanciamento entre corpo e linguagem, entre autor e obra e, claro, entre realidade e ficção, entre o indivíduo que escreve e o conteúdo escrito.

Se o autor morre enquanto indivíduo para dar lugar a um sujeito autoral, passando a desempenhar uma função e não mais uma condição, como nos apontam Michel Foucault (1997FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.) e Roland Barthes (2004BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.) em certa altura de seu pensamento, fatalmente esbarraríamos na falta de necessidade de buscar também especificidades atinentes à autoria feminina, já que, como bem apontam o filósofo e o semiólogo, a autoria estaria diluída na sua imanência, não importando, portanto, quem escreve. Embora não se “autodesdigam”, cabe lembrar que, a respeito da esteticização da existência, apontada por Foucault em sua História da Sexualidade e mesmo nos inúmeros artigos dispersos em seus Ditos e Escritos, nos quais se dedica a pensar Sade, Blanchot ou Klossowsky, por exemplo, o filósofo indica outras saídas que não o desfazimento completo da instância autoral, bem como esclarece que o que alguns autores produziram fora resultado mesmo da forma como se colocavam diante da vida e da linguagem. Um adendo: Michel Foucault vai, ao longo das conclusões dos três volumes de História da Sexualidade, construindo a hipótese de que o uso do corpo na contemporaneidade redundará em uma estética de si, uma estética da existência. Daí que tenha paralelamente observado novas práticas em que o prazer e o erotismo são deslocados em favor da vivência dos desejos, como ocorre em experiências alternativas como as práticas sadomasoquistas, o fist fucking, a modificação corporal (body modification), dentre outros “usos” dos corpos. Logo, não nos parece forçoso crer que uma vida menos fascista, como bem comenta Foucault, incluiria necessariamente - como resistência e “empoderamento” do indivíduo diante da sistemática Poder-Saber e do Biopoder - a Literatura como forma de esteticizar a existência dos indivíduos silenciados pela ou na História.

Relendo a morte do autor tal qual concebida por Foucault e Barthes, podemos pensar que se trata do falecimento de certa autoria celebrizada pela grande literatura do século XIX, Romântica ou Realista, que trata a instância autoral como se ela ali não estivesse e cuja talvez grande exceção seja o famoso “J’Accuse”, de Émile Zola. Se, em Vigiar e Punir (2007FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2007.), o próprio Foucault indica que o indivíduo, ao dominar os discursos, tornava-se sujeito e objeto de seus próprios discursos, não nos custa crer que neste processo incluamos as mulheres que escrevem, assim como os temas que tangenciam em seus textos, como forma de se inscreverem nos discursos vigentes para, a partir disso, colocá-los tanto em suspensão quanto em suspeição.

No caso de Poder, Autoridade e Lei formarem uma tríade que se autorrecorre, se sustenta e que não se separa, bem como sustenta discursos e práticas nas quais a Literatura está incluída, e se são, conforme Pierre Bourdieu sugere em A Dominação Masculina (1999BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.), instâncias cuja manipulação é negada às mulheres, aos homossexuais e às crianças, esta relação triádica não só sustentaria o ordenamento social, político e discursivo (e estético-cultural também) como restringiria, por negação e necessidade, o acesso dos “vencidos” à construção de sua própria história, de sua inclusão na História e do domínio de sua fala.

Se as obras do corpus intentam a mescla, a hibridização, o transbordamento de formas e procedimentos talvez em paralelo e no processo de cisão com a lei e, no resgate incisivo do potencial transgressivo da Literatura, possam resgatar do umbral o autor morto, trazendo-o de volta à vida na materialidade de um corpo marcado em gênero feminino: “mulher que escreve ostentando-se de fêmea enquanto freira, desautorizando a lei, a ordem, os usos, o hábito que vestia[:] (...) de lésbicas por isso nos chamarão” (BARRENO; COSTA; HORTA, 2010BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010., p. 70; 77), “Porque o que vale é poesia e não os tratados” (HILST, 2003HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003., p. 50).

Se a concepção de Literatura na modernidade emana e faz valer as instâncias a que antes nos referimos, posso presumir que, no campo literário, o jogo entre ordenamento simbólico e material não se dê de maneira distinta do que antes apontei. Não fosse isso, deveríamos pensar que a “condenação”, imputada por Harold Bloom em seu Cânone Ocidental, àqueles a quem denomina “escola do ressentimento” (BLOOM, 1995BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva: 1995., p. 28) de quererem transformar a Literatura em espaço de luta de classes ou de embate e reinvindicação política, não deveria haver. Porque, afinal, os “ressentidos” são mulheres, ex-colonizados, negros, mais pobres, escritoras e escritores de países periféricos, sem contar também com críticos oriundos da chamada “Teoria Crítica” ou Crítica Marxista. Se o mesmo crítico defende a Literatura como uma entidade autossuficiente, autoteleológica e autorreferenciada, não deveria, claro, haver preocupação com artistas que escrevem a partir de sua experiência mais particular, pessoal e intransferível: seus corpos. Em uma palavra: se há a necessidade da referência aos “outros” do cânone, ou melhor, aos que reivindicam outros cânones dos quais possam ser participantes, parece-me que haja certa preocupação com uma via estética e crítica que corre em paralelo à visada imanentista. Soma-se a isso o fato de que mesmo os canônicos gênios de Bloom tangenciam ou tematizam as experiências ligadas ao corpo - há, em William Shakespeare e Luís de Camões, um corpo que sente -, mas a fratura se estabelece em autores como Sade, por exemplo: esvaziam-se os corpos e experiências ali representados em função de um filosofismo e de um esteticismo que mais lhe parece atribuído posteriormente que atinente às suas obras, mesmo que se leve em consideração que aquilo que ali se dê ocorra no nível da ficção e não correspondendo a uma reprodução direta do real.

REFERÊNCIAS

  • AMARAL, Ana Luísa. Vozes Lisboa: Dom Quixote, 2011.
  • BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas [edição anotada]. Lisboa: Dom Quixote: 2010.
  • BARTHES, Roland. O grau zero da escrita 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
  • BLOOM, Harold. O cânone ocidental Rio de Janeiro: Objetiva: 1995.
  • BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
  • DERRIDA, Jacques. Parages Paris: Galilée, 1986.
  • FOUCAULT, Michel. “Linguagem e Literatura”. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a Filosofia e a Literatura Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 137-174.
  • FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1992.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir Petrópolis: Vozes, 2007.
  • HILST, Hilda. Fluxo-Floema São Paulo: Globo, 2003.
  • RAMALHO, Maria Irene. “Os estudos sobre as mulheres e o saber: donde se conclui que o poético é feminista”. EX AEQUO, v. 5, 2001, p. 107-122.
  • REYES, Miriam. “Mi cuerpo”. In: REYES, Miriam. El poder del cuerpo - antologia de poesia femenina contemporanea Madrid: Castalia, 2009, p. 19.

Editado por

Editor-chefe:

Gerson Roberto Neumann

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2021
  • Aceito
    15 Jun 2021
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