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Indicações a partir de Tempo e Ser para pensar o Acontecimento [das Ereignis]

Indications from Time and Being to think about the Event [das Ereignis]

Indicaciones del Tiempo y Ser para pensar el Acontecimiento [das Ereignis]

Resumo

O texto utilizado aqui, o qual corresponde ao período final do pensamento heideggeriano, tem o intuito de propor uma breve iluminação do que Heidegger supõe sobre o sentido do Ser enquanto Ser a partir da analítica existencial do Dasein lograda em Ser e Tempo enquanto fenômeno de compreensão do Ser temporal. O artigo é uma tentativa de pormenorizar os problemas investigados na obra Tempo e Ser enquanto problemas decorrentes da questão em Ser e Tempo. Estará pressuposto, portanto, ao longo do texto, o postulado de que a filosofia de Heidegger é um contínuo temático, uma continuação sempre a cada vez (com o passar dos anos), aprofundada sobre a mesma questão. O que significa dizer que o pensamento do acontecimento não poderia ser posto se não houvesse o estudo próprio do sentido do Ser que vem sendo pensado na tradição, e se não houvesse uma destruição fenomenológico-ontológica desta mesma tradição - uma vez que este pensamento pensa o Ser como a não-subsistência.

Palavras-chave:
Ontologia; Heidegger; Acontecimento; Ser

Abstract

The text used here, which corresponds to the final period of Heideggerian thought, intends to propose a brief illumination of what Heidegger assumes about the meaning of Being as Being from the existential analysis of Dasein achieved in Being and Time as a phenomenon of understanding of temporal Being. The article is an attempt to detail the problems investigated in the text Time and Being as problems arising from the question in Being and Time. It will be assumed, therefore, throughout the text, the postulate that Heidegger's philosophy is a thematic continuum, a continuation always each time (over the years), deepening on the same issue. It means to say that the thought of the event could not be posited if there were not a proper study of the meaning of Being that has been thought of in tradition; and if there were not a phenomenological-ontological destruction of this same tradition - since this thought thinks Being as non-subsistence.

Keywords:
Ontology; Heidegger; Event; Being

Resumen

El texto aquí utilizado, que corresponde al período final del pensamiento heideggeriano, pretende proponer una breve iluminación de lo que Heidegger asume sobre el sentido del Ser en cuanto Ser a partir del análisis existencial del Dasein logrado en Ser y Tiempo como fenómeno de comprensión de lo temporal. Ser. El artículo es un intento de detallar los problemas investigados en Tempo e Ser como problemas derivados de la pregunta en Ser e Tempo. Se asumirá, por tanto, a lo largo del texto, el postulado de que la filosofía de Heidegger es un continuo temático, una continuación siempre cada vez (a lo largo de los años), profundizando sobre un mismo tema. ¿Qué quiere decir que el pensamiento del acontecimiento no podría ser puesto si no existiera el propio estudio del sentido del Ser que ha sido pensado en la tradición, y si no existiera una destrucción fenomenológico-ontológica de esta misma tradición? - ya que este pensamiento piensa que el Ser es como la no subsistencia.

Palabras clave:
Ontología; Heidegger; Evento; Ser

Introdução: O fenômeno do Acontecimento como Ser e Tempo

Creio que precisamos fazer o percurso desde a obra de Heidegger Ser e Tempo (2006) para tentar compreender o que o filósofo quer propriamente pensar: o Ser por respeito ao tempo. Para ele o problema do Ser é compreendido desde os gregos até a modernidade no seu fundamento enquanto presença constante, e isto em função do caráter de permanência atribuído à questão ontológico-metafísica. O que Heidegger tenta indicar é que o tempo não é uma composição de atualidade, passado e futuro (representações fáticas do tempo), mas se constitui pelo caráter de decorrência, isto é, de constância de decorrência do próprio Ser.

Para o filósofo, o tempo é determinado pelo Ser enquanto presença e o Ser é determinado pelo tempo enquanto ocorrência de presença e também de ausência. Heidegger ensina que no é se oculta o dar-se. Em verdade, o Ser pode ser, dá-se Ser, ocorre Ser. Ocorrência, que significa doação, também significa capacidade. “No começo do pensamento ocidental o Ser é pensado, mas não o ‘Se dá’ [‘dá-se’] como tal. Este se subtrai em favor do dom, dom que daí em diante é exclusivamente pensado e conceituado como Ser em vista do ente” (HEIDEGGER, 1996HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996., p. 256). Esse dom é deste modo pensado como Ser, mas por respeito ao ente, o doar-se do ente, e por isso o Ser é pensado como fundamento e como causa. Na tradição metafísica, ao mesmo tempo em que se dá como causa, o Ser e coloca enquanto fundamento do ente, (coisidade, materialidade, essentia). Por isso, o Ser foi pensado como fundamento, e pensado enquanto tal, foi tomado como ente, como presença constante enquanto subsistência, e, assim, pensado como o teor material do ente, a quididade. Por isso, para a fenomenologia da “destruição metafísica” de Heidegger, o Ser não pode ser o fundamento, pois para o Ser aparecer como fundamento, ele mesmo tem que se dar como ente, como uma subsistência essencial no ente. “O princípio do fundamento sem fundamento - isso apresenta-se para nós como irrepreensível. Mas o irrepresentável não é de modo nenhum também impensável, desde que o pensar não se esgote no representar” (HEIDEGGER, 1999, p. 35). Para o filósofo, todas as mudanças históricas fundamentais (da perspectiva da subsistência) sobre o sentido do Ser, em ἰδέα, οὐσία, ἐνέργεια-ἐντελέχεια, essentia, sujeito (consciência), vontade, permanecem destinadas enquanto fundamento subsistente (formal) do ente, e por isso “são destinadas”, pois continuam enquanto a doação (sempre de caráter histórico) que sustenta e possibilita o ente e o Ser enquanto esta presentidade constante [ständige Anwesenheit], a entidade do ente. Nessa perspectiva que a tradição dá, o Ser que fundamenta é, consequentemente, um ente, de modo que podemos dizer então (a partir da filosofia heideggeriana): o Ser não é o fundamento do ente. O Ser é só afundamento - é, portanto, o não-fundamento (subsistente) do ente. “Ser ‘é’ o sem-fundo” (HEIDEGGER, 1999, p. 81).

Segundo a fenomenologia de Heidegger, a história da ontologia não se determina a partir de um suposto ocorrer sem vínculo, espontaneamente ou sem linhagem; mas, de acordo com a estrutura histórica (temporal) da compreensão, determina-se na tradição a partir deste destino mantido. O Ser que destina a compreensão do ente de tal e tal modo, se atem à própria manifestação da doação ela mesma. Nestes termos “época” significa: retenção da compreensão em um sentido do Ser (no sentido metafísico). Para o filósofo, o fundamento (sempre de caráter histórico) vincula as épocas, e isto quer dizer que o Ser é a mesma coisa (fundamento - subsistente - do ente) em todas as épocas do pensamento metafísico, a despeito de suas formas de transformação. “Apenas aquilo que é trazido à permanência num representar fundamentado pode valer como ente” (HEIDEGGER, 1999HEIDEGGER, M. O Princípio do Fundamento. Tradução de Jorge Telles Menezes. Lisboa: Instituto Piaget, 1999., p. 48). Com isso, a questão de como vem se dando a presentidade do Ser ela mesma foi perdendo a força de questão em nome das configurações de fundamentação. Para Heidegger, o que deve ser demolido, portanto, é o posicionamento do Ser enquanto destino na perspectiva do que seja essa destinação, que é a perspectiva do destino enquanto fundamento subsistente do ente [entidade do ente]. “Somente o desfazer destes encobrimentos - é isso que quer dizer ‘destruição’ - garante ao pensamento um lance de olhos provisórios (pre-cursor) àquilo que então se desvela como destino-do-Ser” (HEIDEGGER, 1996, p. 257). O filósofo mostra que isso ocorre porque o “dar-se Ser que se oculta ao dar o ente” deixa implicitamente uma instrução (um fundamento) implícita em cada explanação filosófica, instrução esta que fica sempre à disposição. E é esta instrução implícita do Ser enquanto subsistência, fundamento formal último, desde os primórdios do pensamento ocidental, que fez o Ser aparecer como ἰδέα, οὐσία, ἐνέργεια, substantia, essentia, sujeito, vontade. Por isso não há engano na ontologia; há uma instrução do Ser, de acordo com a estrutura temporal-histórica da compreensão, na medida mesmo em que o dar-se se oculta em favor do “dom”, isto é, em favor do ente (teorias, filosofias, verdades, etc.). O Ser, portanto, se mantém sempre como problema, pois é resguardado em cada destinação epocal, mas, por conta da instrução destinada, deixa-se descerrar faticamente em cada transmutação epocal na forma implícita da subsistência, da presentidade constante, da entidade do ente. “O fundamento, que pretende a sua entrega, exige, simultaneamente, que ele seja suficiente como fundamento, isto é, que baste plenamente” (HEIDEGGER, 1999, p. 56).

A presença do Ser, do que é, do que não é, dura enquanto presença, mas ela não é só este durar como um durar indeterminado. O facultar presença faculta presença. Pois então, o que é presença? E o que é este “facultar presença”? Isso é o que, para Heidegger, escapou ao pensamento metafísico, uma vez que a presença ficou implicitamente pensada como uma mera subsistência. Não é que o dar-se não foi pensado tradicionalmente, mas ficou preso à destinação do sentido do Ser ocidental enquanto um dar-se de fundamento subsistente do ente. Até o pensamento heideggeriano, o Ser tem sido pensado enquanto subsistência. Heidegger começa então a pensar o sentido essencial de presença enquanto descerramento. A presença como facultar presença - ou seja, enquanto um puro deixar-ser - é descerramento, abertura: é compreensão. Ser é abertura e doação constante de abertura: onde está aqui, a constancialidade pleiteada pela tradição metafísica para o Ser? Heidegger associa a presença a um durar.

Contudo, nós, até agora, deixamos de indicar mais claramente o que significa o presente no sentido da presentidade. Através desta o Ser é determinado unitariamente enquanto presença [Anwesen] e facultar-presença, i. e., descerração. Em que matéria devemos pensar quando dizemos presença [Anwesen]? Essência [Wesen] significa durar [Währen]. Mas, muito rápido nos tranquilizamos, quando concebemos o durar enquanto o mero prolongar [dauern] e a prolongamento [Dauer] no fio condutor da representação habitual do tempo enquanto uma distância de tempo de um agora para um agora seguinte. O discurso da presença exige, todavia, que percebamos no durar enquanto o perdurar [Anwähren] o encontrar-se [Weilen] e o demorar-se [Verweilen] (HEIDEGGER, 1976HEIDEGGER, M. Zeit und Sein. In: Zur Sache des Denkens - 2., unveränd. Aufl. - Tübingen: Niemeyer, 1976., p. 9).

Em alemão o verbo durar “währen” tem o mesmo radical que a palavra verdade “Wahrheit”. A palavra grega para verdade é a-letheia, a qual Heidegger traduz por descerramento. Durar é, portanto, neste sentido o manter descerrado: presença, Ser. O tempo é concessão de abertura (compreensão), doação e sustentação de abertura. O Ser, nessa perspectiva, não é mais destinação de fundamento subsistente nem de causa, mas apenas doação de abertura; e duração é sustentação, é o manter-se da compreensão: tempo. O sentido do Ser enquanto presença é, portanto: presença enquanto descerramento e contínua doação de descerramento (verdade), é tempo enquanto duração de presença. Mas tradicionalmente não há o problema da perspectiva do Ser enquanto presença tomada pela presentificação e despresentificação. Contudo, mesmo na tradição não foi possível abolir o problema do tempo porque mesmo na perspectiva da subsistência para o Ser insiste um problema de tempo que é uma certa duração [eternidade].

Heidegger discute o dar-se do Ser e do tempo enquanto dom, no que o propósito é discutir o caráter próprio desse se. Ele quer mostrar a articulação entre o dar-se Ser e o dar-se tempo, mostrando que o tempo se constitui necessariamente da destinação (história) do Ser. O tempo se dá como o alcançar iluminador [lichtenden Reichen]; e este alcançar iluminador é o alcançar do destino. Mas o que o destino dá? A presença, a presentidade. “Presentidade significa: o constante demorar-se que, concernindo ao homem, o alcança e é por ele alcançado” (HEIDEGGER, 1976HEIDEGGER, M. Zeit und Sein. In: Zur Sache des Denkens - 2., unveränd. Aufl. - Tübingen: Niemeyer, 1976., p. 9). Para o Ser se destinar enquanto doação de presentidade (não ainda presentidade constante), ele depende do tempo, o qual é o caráter próprio deste destinar, pois concerne à projeção compreensiva do Dasein. Nesse sentido, é que o tempo é, enquanto um caráter, necessário desse destinar compreensivo, pois enquanto a forma possível desse destinar, se constitui como o alcançar iluminador (o movimento da tríplice estrutura temporal da compreensão - futuro, sido, presente) da presença que o Ser se destina enquanto linguagem.

Mas por que Heidegger traz o impessoal se (dá-se) para a discussão? Porque ele não diz “o Ser dá”, mas sim “dá-se Ser”? O filósofo quer sair da configuração de causa e efeito, de sujeito-objeto. Se tomarmos o Ser simplesmente como o que dá, diríamos implicitamente que o Ser é o sujeito e que o que ele dá é o objeto. Ou diríamos que o Ser é a causa e o que ele dá é o efeito. O Ser rapidamente se transformaria em um ente. É exatamente disso que o pensamento de Heidegger quer escapar, pois esse dar-se Ser não parte de nenhum sujeito, de nenhum ponto ou ente subsistente. Presentidade, Ser, significa uma presença, um demorar-se do sentido manifesto. O alcançar (do tempo) dá a presentidade porque ele é o que ilumina a presença desde futuro e sido1 1 Optamos por usar a palavra “sido” ao invés de “passado”, para tentar trazer à compreensão um sentido mais aproximado o qual Heidegger tenta constantemente ensinar. “Sido” remete a “o que vem sendo” e não simplesmente ao passado como algo linear já passado e encerrado. enquanto os êxtases temporais da compreensão que fundam o presente. O Ser destina a presença, e há uma projeção do Dasein que se constitui ela própria de tempo (sido, futuro) na medida em que o tempo é o determinante da projeção da compreensão enquanto o futuro; ou seja, é a própria projeção da compreensão - nas formas do sido, reiteração e presente - a abertura possibilitadora do emergir do ente enquanto tal. O tempo constitui a projeção do Dasein porque este, ao se projetar, projeta-se para o ainda não um sido, ou seja, projeta um já não para o futuro, e o faz sempre por respeito a um presente, isto é, por respeito ao ente no qual ele é atual: sempre em uma presentificação. É nesse sentido que o tempo, para Heidegger, constitui o alcance iluminador, enquanto o qual a significação é possível. Tempo é alcance iluminador a todo momento, uma vez que, através das três dimensões temporais da compreensão, possibilita a iluminação (significação) do ente. Quando lido com o ente concreto, atual, a presença está explícita; mas quando lido com um ente expectado, ou com o ente da lembrança, estou com o ente presente já não mais (sido) ou ainda não (futuro) enquanto uma presença. Nestes termos, fundamentalmente, a ausência se manifesta por conta da tridimensionalidade do tempo, ela só nos concerne porque é por respeito a um sido e a um futuro, a um já não e ainda não presente (se pensarmos o presente como o concreto atual). Tudo que tem sido está presente para nós como o que nos constitui enquanto uma presença, isto é, um ente que só aparece no interior da temporalidade da compreensão do Ser. A presença é o lugar de determinação da existência2 2 Todavia, traduzir Dasein por “presença” não distingue propriamente o Dasein, pois o ente que não tem a forma do Ser do Dasein também é (para a compreensão) presente enquanto presença - daí “existência”, “existir”, talvez serem termos mais completos para as implicações semânticas do fenômeno Dasein, uma vez que sua presença, à diferença da presença dos outros entes, é “ex-sistência”, “insistência fora”, si-adiante, não-subsistência, finitude. .

No sido, a presença é alcançada como a presença do não-mais, e isto quer dizer que tudo que é histórico está presente enquanto não mais atual. Se não posso apagar o sido, pois que me constitui, então ele é presença com caráter de não mais (pres)ente. Também o futuro só se presencia enquanto futuro, enquanto ainda-não. Para Heidegger futuro é o presente de dois modos: ou o presente da expectativa (da concretização, da positivação do possível) do ente ou o presente do pré-cursar o Ser (da espera no possível: a abertura da compreensão enquanto Entschlossenheit3 3 Cf. Ser e Tempo, § 54. ). Portanto, o tempo alcança iluminando, ou seja, presentificando e, consequentemente, significando no já não e no ainda não presente. “Alcance” é o que Heidegger chama de tempo, pois o sido é presença retida (alcançada pela tríplice estrutura temporal da compreensão) como já não e o futuro é a presença recusada (alcançada) como o ainda não. Na verdade, então, os dois modos do tempo ficam retidos fora (daí o filósofo os nomeia de êxtases: ex-stasis). O sido não é presente enquanto presente, é presente (alcançado) enquanto sido; e o futuro não é presente enquanto presente, mas presente (alcançado) enquanto futuro.

O tempo autêntico [próprio] é a proximidade unificante do tríplice alcançar iluminador de presença a partir do presente, do passado e do futuro. Esse tempo já alcançou o homem enquanto tal, de tal maneira que ele só pode ser homem enquanto está colocado no tríplice alcançar, e sustenta a proximidade que, recusando e retendo, determina este alcançar. O tempo não é obra do homem; o homem não é obra do tempo. Aqui não há um obrar. Somente há o dar, no sentido do supramencionado alcançar que ilumina o espaço-de-tempo (HEIDEGGER, 1996HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996., p. 262).

Cada unidade alcança através da outra a si mesma: o futuro se alcança com o ainda não, o sido se alcança com o já não e o presente como atualidade. “Durante a exposição já foi pensado mais, mas não foi propriamente dito, a saber, o seguinte: que o dar como destinar pertence à suspensão, isto é, no alcançar do passado [sido] e do porvir acontece o jogo da recusa do presente e da retenção do presente” (HEIDEGGER, 1996HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996., p. 266). Heidegger ensina que os êxtases temporais são pura reportação (ou seja: são fora), são somente movimento, devir, e alcançam a si mesmos pela diferenciação um dos outros. “Espaço-tempo” significa, nesta concepção, o tempo nas três dimensões, no vão compreensivo de cada uma. É vão porque a compreensão tem o sido como não mais presente, tem o futuro como ainda não presente e tem o presente ele mesmo que “não é” sido nem futuro. Espaço, para o filósofo, tem o sentido próprio de compreensão. Espaço é dar lugar: dar lugar ao presente enquanto presente, ao sido enquanto sido e ao futuro enquanto futuro. “Dar lugar” significa aqui: a compreensão comporta a diferença. Só pode haver a experiência de algo como ainda não e algo como já não na forma do tempo. O Ser doa presença, mas no ainda não se ilumina a (presença enquanto) ausência de presente, e assim é com o já não também. A clareira do Ser é então o presente por conta do reporto mútuo de sido e futuro. Não haveria o presente sem esse reporto, não haveria presente sem o movimento, portanto. Isto é: não haveria a concepção de uma presença constante ou eternidade sem o movimento possibilitador dela. É dentro dessa estrutura existencial da compreensão em movimento que aparece a possibilidade de uma formalização.

Não se pode, portanto, atribuir somente o presente à presença. A presença é “produto” da estrutura quadridimensional do tempo. Mas são quatro dimensões? “O dar, no ‘dá-Se tempo’, mostrou-se como o alcançar iluminador do âmbito quadridimensional”(HEIDEGGER, 1996HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996., p. 263). Heidegger ensina que a quarta dimensão é o movimento, o tramitar, a reportação ela mesma de um êxtase para o outro; o sido se projetando para o futuro e este se reiterando no sido fundando o presente - isto o que essencialmente funda a História. O alcançar ele mesmo é a quadridimensionalidade, “a quarta dimensão”, o “movimento propriamente”, pois é o caráter pleno do tempo enquanto o alcançar determinante. O alcançar, para ser tal, tem que ser na diferença, ou seja: ele separa distinguindo, mas mantém próximos os êxtases enquanto dimensões em interação; e porque os mantém próximos e em interação, vincula uns aos outros. Esta é a estrutura do compreender que se determina enquanto a estrutura da possiblidade da distinção na medida em que o alcançar deixa o sido, o já não mais, se estender até muito para atrás e deixa o ainda não se estender até muito para frente. A quarta dimensão não aceita nem o sido como presente ele mesmo, nem o futuro como presente ele mesmo e, por isso, ela aproxima. Enquanto aproxima um êxtase temporal ao outro, a quarta dimensão necessariamente afasta também, no sentido de que é distintiva, pois o sido é sempre compreendido (presentificado) enquanto sido, assim como o futuro. O sido é presentificado enquanto sido e não enquanto presente. Deste modo, o presente também fica retido no vir da chegada enquanto chegada, ele não se mantém como atualidade, mas fica retido no ainda-não. O sido é a presentificação do já-não e o futuro é a presentificação do ainda-não. O alcançar é enquanto iluminando estas distinções. Os momentos alcançam a atualidade evidenciando a condição dessa atualidade, dessa presença enquanto a presença do ainda não e do já não. Quando o passado está diante de mim, ele está presente enquanto já não. “A proximidade que aproxima tem o caráter da recusa e da retenção” (HEIDEGGER, 1996, p. 262).

A proximidade é, portanto, o que permite a distinção. Heidegger mostra então que o que está inserido no triplo alcançar e suporta essa proximidade é o ser-no-mundo e não o ser humano enquanto sujeito ou consciência. O tempo não causa o ser humano e vice-versa, ou seja, o tempo não é um ente causador do ser humano enquanto outro subsistente. Quando colocamos um poder indeterminado aí, põe-se um ente, põe-se, portanto, uma causa. O dar do dar-se Ser é o destinar e o destinado da presentidade em suas transmutações epocais; e o dar do dar-se tempo se mostra como o alcançar iluminador do âmbito quadridimensional (futuro, sido, presente, movimento: o âmbito quadridimensional iluminado pela compreensão do Ser). O Ser dá a presença no modo do tempo. Se não houvesse o Ser como doador e destinador de presença não haveria o alcance. O Ser, enquanto destinador, se possibilita dar na forma do tempo. O tempo é o próprio dom do Ser. Não há aqui nenhuma causa subsistente produzindo um efeito. Creio que, para Heidegger, isto é o fundamental a ser compreendido. O dar enquanto destino (Ser) é o dar enquanto o alcançar iluminador (tempo). Ambos se pertencem enquanto o acontecimento. Nem o Ser dá a presença sem este alcançar, nem o tempo dá o alcançar sem o destinar, isto é, sem a compreensão do Ser. Com tudo isso, Heidegger tenta dar uma indicação do que seja o acontecimento que é o fenômeno que contém essas duas determinações de Ser e tempo possibilitando-as. Isto é para que tentemos pensar o tempo para além da representação cronológica do tempo e, com isso, pensar o Ser enquanto Ser.

Penso que Heidegger faz uma tentativa sobre-humana de falar de algo fora da perspectiva subsistente de sujeito-predicado, criador-criatura, sujeito-objeto: fora da perspectiva de causa-efeito. O filósofo tenta neutralizar o acontecimento retirando-o da perspectiva de causa; pois se digo que o Ser é, e penso esse Ser como algo, de novo penso Ser enquanto presença de algo, algo de presente: ente. O acontecimento não é presença de ente, mas a presentidade móvel que se constitui no destino e no alcançar. Não se pode, portanto, falar do “Ser do acontecimento” porque o Ser depende do acontecimento para ser. O acontecimento é a implicação do Ser e do tempo, não é causa (como o medieval deus criador, por exemplo, ou como o sujeito moderno), pois o acontecimento não é ente. Acontecimento é o acontecimento do fenômeno de destinação de presença e do fenômeno de alcance iluminador da presença destinada. O acontecimento não é causa do Ser e não é causado pelo Ser, nem é causa do tempo, nem é causado pelo tempo; é a possibilidade de tempo e Ser na forma como são. Ser e tempo já são sempre isso: destinação de presença e alcance iluminador de presença. E por que o tempo é o alcance iluminador do Ser? Porque é o próprio movimento enquanto a passagem de um êxtase para o outro, uma vez que tem o caráter quadridimensional. A (presença enquanto) ausência ainda não e já não, e (a presença enquanto) o presente, são os modos do Ser da presença. O lugar da passagem dos êxtases da presença é o espaço da lida, a cura [Sorge]. Só pode alcançar, o que foi destinado na implicação de destinação e alcance, na implicação de Ser e tempo.

Tradicionalmente, pensa-se o Ser como uma ocorrência última e eminente do ente. Mas o Ser não pode ser pensado enquanto acontecimento nestes termos, porque o acontecimento não é nenhum predicado real do Ser. O Ser enquanto acontecimento implica um é. Mas se o acontecimento não é um predicado real do Ser, então continuamos com uma indeterminação para o acontecimento, pois o que é o acontecimento, isto não pode precisamente ser respondido nestes termos de “o que é”. Não é uma forma geral do Ser (como a ἰδέα ou a ένέργεια, como a essentia medieval ou o sujeito moderno). A partir do acontecer, o dar e o dom de Ser e tempo recebem sua determinação enquanto apropriação; o dar dos dois é a apropriação mútua. Portanto, o Ser não pode se comprovar como subordinado a nada porque sempre haverá a pergunta pelo Ser de algo. Mas não posso perguntar pelo Ser do acontecimento no sentido de dar ao Ser um lugar privilegiado por respeito ao acontecimento. O Ser depende dessa doação que é a implicação dele ao tempo, que é o acontecimento que permite.

O acontecimento não é o conceito superior globalizante sob o qual Ser e tempo se deixassem registrar. Reportações de ordem lógicas não dizem nada aqui. Pois, na medida em que meditamos sobre o Ser ele mesmo e seguimos o seu próprio, ele se comprova enquanto o dom do destino da presentidade garantido pelo o alcançar do tempo. O dom da presença é o peculiar do acontecimento (HEIDEGGER, 1976HEIDEGGER, M. Zeit und Sein. In: Zur Sache des Denkens - 2., unveränd. Aufl. - Tübingen: Niemeyer, 1976., p. 15).

Se o acontecimento fosse um conceito superior, o Ser estaria num lugar inferior como a ideia, pois a ideia é um fenômeno de configuração (ente). Mas o que dizer do Ser então? O Ser desaparece no acontecimento. O “Ser enquanto acontecimento”, significa que o Ser é destinado no acontecer e o tempo é alcançado no acontecer, na implicação de um pelo outro.

E o dar-se dá no modo da contenção, no modo da retenção da negação (futuro e sido), e no modo da própria presentificação. O presente é retido fora do porvir e é negado no sido. O acontecimento não é só a apropriação, mas a sustentação da permanência de cada êxtase temporal enquanto tal. Ele contém, mas mantém a distinção. Se não houvesse a possibilidade de sustentação do sido enquanto sido, do porvir enquanto porvir, também não haveria a possibilidade do presente enquanto tal. A recusa pertence ao acontecimento como sustentação da manutenção da distinção. Além disso, há, segundo Heidegger, a recusa do acontecimento enquanto acontecimento. E o Ser, que pertence ao acontecimento, se recusa ao destinar, isto é, ele não se atém a ele mesmo, pois se recusa ao dar as configurações, ao dar ente.

Não só a negação é a possibilidade de distinção dos êxtases, mas é a possibilidade para a percepção de tempo, como também a recusa dessa implicação como apresentação. Essa implicação de tempo e Ser não se apresenta como um ente, ou seja: não se apresenta. Isto quer dizer que o próprio desvelamento (ἀληθείᾳ) é limitado ao ente. O acontecimento mesmo não se deixa apropriar, no sentido de que não se deixa descerrar como um ente. Não posso tomar o acontecimento e predicar nada dele, como também não posso fazer isso com o Ser e com o tempo. Podemos dizer que, para Heidegger, tempo é a forma de alcance do destinamento do Ser.

Tudo isso repousa no âmbito do transporte da passagem dos êxtases, ou seja, repousa na própria lida. O Dasein é lida neste âmbito quadridimenisonal da compreensão, isto é, é enquanto reitera sido, se projeta para o futuro (porvir) presentificando assim o ente no presente. Se não posso colocar o acontecimento diante de mim como algo que se confronta a mim, um objeto, nem como um todo abarcante, então o pensar representativo tradicional não pode corresponder ao acontecer e, portanto, não se pode dizer do acontecimento na forma da proposição. Pois o acontecimento é nada (de ente) e a proposição só serve para dizer o que é ou que é. Heidegger então fala de algo que ele próprio não consegue determinar completamente, pois que, com a linguagem proposicional, que é a única que nós, ocidentais, dispomos, não podemos dizer o que é o acontecimento. Podemos dizer conjuntamente com o filósofo: o acontecimento nem é ente e nem é Ser. Dizer que ele é ou que “se dá” é inverter a matéria problemática, é colocá-la no curso, quando é a fonte. O acontecimento apropria a possibilidade da abertura (compreensão) enquanto tempo e enquanto Ser, enquanto duração e presença: o dar enquanto destino e o dar enquanto alcançar iluminador. Ambos se pertencem. “Essa questão é inacessível para a Metafísica enquanto Metafísica. O Ser ainda está à espera de que ele mesmo se torne digno de ser pensado” (HEIDEGGER, 2005HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Editora Centauro, 2005., p. 22).

Numa experiência com seus alunos na conferência Tempo e Ser, Heidegger tentou preparar o pensamento para o que foi dito em toda sua filosofia. O filósofo tentou mostrar que a questão do Ser não pode ser tratada somente sob a forma do conhecimento teorético. A questão do Ser é uma questão de experiência própria. O Ser enquanto acontecimento, isto é, enquanto o puro dar, é Aquilo que se recusa vir ao enunciado. Como o acontecimento não é nenhum ente, ele não pode ser esquadrinhado, ou conceitualizado, pode apenas ser indicado como fenômeno. Portanto, a compreensão daquilo que precisa ser compreendido só pode se consumar se a experiência for consumada.

Esse pensamento de Heidegger se caracteriza, portanto, precisamente pelo talvez vindouro desaparecimento da forma da filosofia tradicional; a filosofia continua existindo como teoria do ente, mas esse não é o trabalho do pensamento do filósofo.

Esse desaparecimento se mostra num múltiplo semblante. Na medida em que por Filosofia se compreende a Metafísica, o desaparecimento se expressa nisso que a matéria do pensamento não é mais a matéria da Metafísica - junto a qual a Metafísica ela mesma, presumivelmente, permanecerá subsistindo. Já se tornam visíveis as aparências de substituição da Filosofia, suas possibilidades de evasiva: por um lado a mera interpretação de textos tradicionais da Filosofia, o elaborar e estafar da Metafísica; por outro, o impulsionamento da Filosofia para a Lógica (Logística), para a Psicologia e para a Sociologia, em síntese, para a Antropologia (HEIDEGGER, 1976HEIDEGGER, M. Zeit und Sein. In: Zur Sache des Denkens - 2., unveränd. Aufl. - Tübingen: Niemeyer, 1976., p. 18).

Heidegger fala em um desaparecimento radical da filosofia, pois, por um lado, a filosofia tradicional, a Metafísica, está perdendo lugar porque está se reduzindo à lógica, à psicologia, à antropologia, à autoajuda até. E, por outro, no caso de Heidegger, dá-se um desaparecimento da filosofia porque a matéria problemática fundamental que este pensamento pretende tratar não é matéria da Metafísica.

Sob a força violenta da tradição metafísica, uma força que não é mais quase pressentida e que, assim, libera pela primeira vez seu peso, poderia parecer quase impossível pensar a essência inicial da palavra a partir do acontecimento apropriativo. [...] Mas a superação da metafísica já está em curso. Ela não coloca de maneira alguma de lado “a metafísica” como algo falso. Mas também não suspende “dialeticamente” “a metafísica” ao nível de uma verdade mais elevada e gradual e abrangentemente “diversa”. A metafísica é, considerada historicamente, o decurso do pensamento de Platão até Nietzsche e, em relação ao transcurso desse decurso como um todo o caso intermediário entre o primeiro e o outro início. [...] A metafísica só conhece a verdade do ente. [...] O homem da metafísica conhece somente o ente em sua entidade. O seer é para ele inexperenciável, e, por isso, a palavra também permanece para ele velada, a palavra que essencialmente é a palavra “do” seer. Por isso, a tentativa de, na superação metafísica para o outro início, chamar a atenção para o seer e dizer a palavra do seer, usando, para tanto, de maneira diversa a linguagem, se depara com barreiras, que não têm como ser suplantadas e afastadas pelas vias do pensamento metafísico (HEIDEGGER, 2013HEIDEGGER, M. Do Acontecimento Apropriativo. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013., p. 178s).

Para Heidegger, quando compreendemos que Ser e tempo não se dão como ente (Metafísica), conquistamos uma via de acesso para pensar o Ser enquanto o dar-se, enquanto o se que dá o Ser. O filósofo colocou o acontecimento do dar no se, porque o Ser é o que destina, mas enquanto se ele é o que se recusa, o que fica tácito. Dizemos “dá-se” e imediatamente vem a pergunta à luz: quem dá? Esse “quem” está oculto. Por isso o pensador pôs no se o dar, para mostrar que o se é muito mais a questão da recusa do aparecimento do que questão da doação: o se destina se ocultando4 4 Heráclito, fragmento 123: “Φύσις κρύπτεσθαι φιλεῖ”. “O Dar [Ser] ama se ocultar”. . O se é o caráter mais originário do Ser, pois, além de destinar o ente (enquanto nada de ente ou entidade), o Ser se recusa à representação.

Em Ser e Tempo o próprio tempo foi pensando por respeito à temporalidade do Dasein. O passo à frente que Heidegger dá após o estudo profundo da questão do Ser (pensado enquanto subsistência) na tradição culminando em Ser e Tempo, é o de ultrapassar a clareira do Dasein em direção à clareira do Ser ele mesmo. Pois o filósofo descobriu que é da clareira do Ser que é possível um Dasein. Concluiu-se então que o Ser destina se recusando a ele mesmo. Em Ser e Tempo se coloca o problema do Ser não ser nenhum ente; enquanto tal, o Ser não se deixa representar com nenhum teor material do ente. Mas Heidegger não esclarece ali como é essa recusa na doação, apesar de já indicá-la. O fato do Ser se distinguir do ente é apontado no modo da indicação no parágrafo 28 de Ser e Tempo. Não se trata de superar o esquecimento do Ser, mas de nos colocarmos (filosóficos) no interior do esquecimento do Ser, mantendo o esquecimento permanentemente diante de nós. O esquecimento do Ser é um fenômeno do próprio Ser, que doa se ocultando, o que significa dizer que o esquecimento do Ser não é para ser resolvido e abolido, mas deve ser trazido à luz enquanto esquecimento do Ser. A clareira para o encobrir-se (do Ser) na doação do ente, do presente, não é percebida imediata e regularmente.

O ente encontra-se em uma claridade, na luz, e libera o acesso e o transcurso - ele é clareado. Falamos de uma clareira na floresta, de um lugar livre, claro. A abertura do ente é uma tal clareira. Ao mesmo tempo, porém, o ente é cercado, e, em verdade, não apenas por aquele ente que ainda não nos é acessível e que talvez nunca nos seja acessível, mas por algo velado, que se encobre precisamente quando nós, nos mantendo na clareira, somos entregues totalmente ao ente aberto ou mesmo decaímos totalmente nele. Justamente então, é que atentamos o mínimo possível para ele e somos o mais raramente possível tocados pelo fato de que, sempre, a cada vez, esse ente “é” no aberto - ou, como dizemos, “possui” um seer. Aquilo que distingue o ente em relação ao não-ente, o fato de que ele é e de que é de tal e tal modo, não se encontra na clareira, mas no velamento. Quando nós, apontando para isso, fazemos a tentativa de captar esse seer - por assim dizer, como um ente -, pegamos um vazio. O seer não é simplesmente e apenas velado - mas ele se subtrai e se encobre. Daí deduzimos uma intelecção essencial: a clareira, na qual o ente é, não é simplesmente limitada e demarcada por algo velado, mas por aquilo que se encobre. [...] Então a clareira não se revela apenas como limitada ao que se encobre. Ao contrário, ela é a clareira para o encobrir-se (HEIDEGGER, 2017HEIDEGGER, M. As Questões Fundamentais da Filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Ed. Martin Fontes, 2017., p. 265s).

Esse pensamento, portanto, mostra que não há previamente uma configuração (ontificação) do para onde do passo de volta, um conhecimento teórico, só há este para onde quando o Dasein, a cada vez, conseguir experimentá-lo e assim, chegar à compreensão.

Não se pode julgar e mensurar nem a filosofia nem a arte nem absolutamente nenhuma confrontação criativa com o ente com o auxílio do saudável entendimento humano ou do “instinto” supostamente saudável, mas já há muito tempo deformado e desencaminhado, assim como não se pode julgá-las nem mensurá-las com a argúcia vazia do assim chamado “elemento intelectual”. Tudo, tanto quanto o particular, só é possível de ser experimentado, aqui, na realização, no esforço da subida. Quem apenas fisga proposições particulares não acompanha a subida (HEIDEGGER, 2017HEIDEGGER, M. As Questões Fundamentais da Filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Ed. Martin Fontes, 2017., p. 33).

Se esse pensamento não é um pensamento de representação, só posso ter claro o “para onde” ele leva ao fazer o percurso. A questão é que esse para onde não leva a nenhum ente assim como não leva a nenhum saber representativo do ente; ele leva ao saber da manifestabilidade, isto é, da compreensão. Usualmente, a questão para nós é a de aumentar o saber: quero saber mais para saber como isso ou aquilo resulta para o meu saber. O saber é assim considerado como conhecimento que depois pode-se repetir e aplicar. Mas o passo de volta que o pensamento heideggeriano propõe é experimentação, ou seja: o passo tem que ser feito permanentemente, e isto quer dizer que não posso ter este saber constituído como conhecimento teórico para projetar. Isso é, por exemplo, um comportamento como o da φρόνησις [phronesis] aristotélica, e não um comportamento da ἐπιστήμη [episteme]. O para onde do pensar só é fixado no constante passo de volta, nunca como um conhecimento subsistente.

É da compreensão do tempo que podemos compreender propriamente o que seja a consciência. Talvez pelo fato desse fundamento, o tempo, não ser ôntico, foi abandonada historicamente a questão da analítica fundamental. A consciência, o sujeito moderno, então se quis enquanto um fundamento ôntico que não decorre de nada - incondicionado; mas o fundamento é justamente o contrário, ele é decorrente, é condicionado, e não é ôntico, de modo que mesmo a palavra “fundamento” dentro da perspectiva da Metafísica fica em contradição com a da analítica existencial. Todo este trabalho é de uma dificuldade descomunal de ser apreendido, pois uma vez que nossa constituição compreensiva é estruturalmente histórica, só temos a possibilidade de pensar a partir da perspectiva do Ser pensado como fundamento ôntico (entidade) do ente.

Para Heidegger, a manifestabilidade do Ser está pensada, desde Parmênides até os dias de hoje, enquanto percepção da presença enquanto presente constante, e isto vale como configuração do ser humano, pois a percepção seria por parte do pensamento - por parte do ser humano, portanto. A questão é que, tradicionalmente, o pensamento recebe a sua determinação a partir do ente na medida em que, metafisicamente, é no ente que o Ser ganha sua distinção, que tem sua manifestabilidade. Pensando a partir do acontecimento, o ente sai de questão. O pensamento explanador, se ele pode vir a configurar o pensamento pensado a partir do acontecimento, não vai mais caracterizar o pensamento enquanto o pensamento que percebe, porque o ente não é mais a questão do Ser do pensamento, tomado a partir do acontecimento. Metafisicamente, o Ser é distinguido como determinante do ente. Determinar é configurar; configurar é ontificar: Ser = ente. Mas o Ser é o que torna visível o ente desde uma configuração sem que ele mesmo se mostre. O Ser é pensado aqui enquanto doação do ente; mas, ainda mais além, trata-se de pensar agora o facultar Ser ele mesmo, na medida em que a presença é concedida.

O pensamento que começa com Ser e Tempo, por um lado é o despertar do esquecimento do Ser - esquecimento no qual deve ser compreendido enquanto um lembrar-se de algo o que ainda não foi pensado - mas, por outro, enquanto este despertar ele não é nenhum extinguir o esquecimento do Ser, mas antes o pôr-se nele e um estar nele (HEIDEGGER, 1976HEIDEGGER, M. Zeit und Sein. In: Zur Sache des Denkens - 2., unveränd. Aufl. - Tübingen: Niemeyer, 1976., p. 21).

O pensamento, que mira o esquecimento, deve agora pensar o facultar presença enquanto facultar presença do presente e o facultar presença ele mesmo: o acontecimento. Na Metafísica, o Ser faculta presença, mas a presença é a presença do presente somente; o facultar é então o Ser e a presença enquanto presente é do ente enquanto ente. Segundo Heidegger, a clareira ou o aberto da Metafísica dá este horizonte como presente. Este aberto, posteriormente, passa a se chamar consciência, de modo que o ente só é admitido através do facultar enquanto presente na consciência. Permanece inquestionado de onde é o aberto; isto não é dito porque é pensado como evidente: o aberto é na consciência do sujeito. A questão de Heidegger é a presença por respeito ao próprio facultar dela, e não mais a presença do ente. E o que faculta a presença? Como podemos entender essa proporção entre o facultar da presença ele mesmo e o facultar da presença do ente? Heidegger diz que a Metafísica segue subsistindo porque as determinações do ente, os pressupostos fundamentais, continuam sendo procedidos, discutidos, implicitamente ou não. Mas o saber originário não diz mais respeito à descrição desta ou daquela determinação do ente, e sim à forma como uma determinação está sendo possibilitada. O ente sai de questão e a possibilidade de determinação ela mesma é o que fica como questão. Por isso o filósofo diz que esse pensamento é “simples”:

Quanto mais simples for o que há de digno de questão, mais difícil será conceber simplesmente esse simples em sua plenitude interna, retendo-o de maneira una como algo digno de questão, isto é, como algo estranho, a fim de desdobrá-lo em sua própria essência e assim, refundá-lo em seu fundamento velado (HEIDEGGER, 2017HEIDEGGER, M. As Questões Fundamentais da Filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Ed. Martin Fontes, 2017., p. 27).

A questão é tanto como o Ser está se explanando, como está compreendendo e como está invocando, quanto o Ser ele mesmo enquanto doação de concretude (Natureza, verdade) e doação de velamento (enquanto abertura), se é que podemos falar de uma dualidade.

Heidegger ensina que o acontecimento é o sem destino, não é histórico; pois ele não é destino da presença do ente. O destinamento é o próprio ente na sua verdade, e o Ser destina, se velando, a presença do ente, destina a presença do ente nas suas diversas cunhagens; mas sempre é o recursar que se destina (se recusando) a favor das destinações do facultar presença concedidas no destinar. O Ser doa ocultando-se: ou seja, ao mesmo tempo em que doa o aberto enquanto aberto (ente), doa o oculto enquanto oculto.

Uma coisa é abrigar o escuro, uma outra é tropeçar no escuro como um limite. Abrigar o obscuro no modo do pensamento é essencialmente diferente de qualquer “mística” ou de qualquer mergulho nas trevas. Uma vez que o pensamento originário pensa aquilo à cuja essência pertence o encobrimento, o obscuro permanece aqui, sempre necessariamente um tema do pensamento (HEIDEGGER, 2017HEIDEGGER, M. As Questões Fundamentais da Filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Ed. Martin Fontes, 2017., p. 47).

O pensamento do acontecimento é, para o filósofo, o fim da história da recusa do Ser porque o ente deixa de ser a questão. (A história da recusa é a história das diversas manifestações do Ser na história, nada de universal, portanto). Deste modo o esquecimento do Ser se anula com o despertar no acontecimento, pois o encobrimento ele mesmo enquanto tal é o que vem à temática. O problema da recusa do Ser é que esta é esquecida e o Ser se torna fundamento, ele doa o ente e é tomado pelo ente, pelo subsistente. Com o pensamento do acontecimento, o que doa e se recusa (ao mesmo tempo), fica latente permanentemente enquanto recusa. A Metafísica continuará decidindo o questionamento filosófico provavelmente por muitos séculos ainda, pois a tendência estrutural da compreensão é sempre decair no ente; a Metafísica terá sempre que ser superada, portanto.

Conclusão: o fim da Metafísica e a tarefa do pensamento

Heidegger, na conferência Tempo e Ser, nos diz que a história do Ser tem seu fim na instauração do acontecimento. Mas o desaparecer do Ser é por respeito à abordagem do Ser enquanto fundamento do ente. É nesse sentido que, ao pensar o acontecimento, o Ser desaparece enquanto fundamento. A questão do Ser se torna a questão do acontecimento, isto é, a questão da ocultação vista enquanto ocultação, e não mais da ocultação em favor do ente (Metafísica), ἀ-λήθεια, isto é, do desencobrimento, que não é, e necessariamente não poderia ser visto enquanto ocultação. “À diferença do ordinário, dá-se não designa, porém, o ser disponível daquilo que há [Was es gibt], mas justamente como algo indisponível, aquilo que se aproxima como algo estranho, o demoníaco” (HEIDEGGER, 1996HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996., p. 286).

Nos enganamos se pensamos que o pensamento de Ser e Tempo tinha tudo resolvido; Ser e Tempo é um marco no percurso do pensamento ocidental, assim como a questão da práxis aristotélica e a da história do Ser são marcos no percurso da questão de Ser e Tempo, um marco inicial, instaurador, mas isto não a partir da πρᾶξις em si, e sim a partir da questão do Ser enquanto Ser imposta lá no início do pensamento heideggeriano (como demonstram os estudos do filósofo dos anos 20 sobre a filosofia platônico-aristotélica). No interior da questão há os marcos no percurso, pois é um problema de grande envergadura que não se resolveria sem décadas de aprofundamento sobre a questão. Ser e Tempo não é um tratado estanque considerado insuficiente por respeito à fase do acontecimento. E também a fase do pensamento heideggeriano sobre a πρᾶξις aristotélica não é estanque, mas o meio de sua fenomenologia para ir as matérias elas mesmas e por isso são marcos fundamentais no percurso. Penso que Heidegger reporta (principalmente) o pensamento aristotélico da facticidade a Ser e Tempo e este ao acontecimento como uma instituição de afundamento, cada vez mais originária, da questão do Ser enquanto Ser. “A cada vez o pensamento retorna o passo. Com isso, a forma do proceder desse pensamento poderia ser vista em analogia ao método de uma Teologia negativa. Isso se mostra mesmo no fato e no modo como os modelos ônticos dados na linguagem serem estafados e destruídos” (HEIDEGGER, 1996HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996., p. 32s). A questão heideggeriana do descerrar não é a questão do conhecimento dos diversos âmbitos do ente. Mas, ao contrário: o pensamento, ao alojar-se no pensamento do acontecimento, suspende a ocultação do ocultamento. A ocultação entra em cena enquanto ocultação e não mais como algo a ser clarificado ou configurado como ente.

O Ser se mostra como ένέργεια na filosofia grega, como actualitas na filosofia medieval, se mostra como consciência e vontade na filosofia moderna: estas são, para Heidegger, as transformações epocais do sentido metafísico do Ser. No final da Metafísica, o saber absoluto, a consciência hegeliana, aparece como o próprio Ser ele mesmo; e Heidegger diz que neste fim do pensamento metafísico, o Ser ele mesmo recusa maximamente sua essência.

Assim, permite-se dizer que a história do Ser é a história do crescente esquecimento do Ser. Entre as transformações epocais do Ser e a recusa, deixa ver-se uma proporção, mas não uma proporção de causalidade. Permite-se dizer que, quanto mais se afasta da aurora do pensamento ocidental, da alétheia, quanto mais prospera o esquecimento desta, mais claramente emerge o saber, a consciência, e, assim, mais se recusa o Ser. Além disso, essa recusa do Ser permanece oculta. No Kryptesthai de Heráclito é exprimido pela primeira e última vez o que seja a recusa. O recuar da alétheia enquanto alétheia libera a transformação do Ser da enérgeia para a actualitas, etc. (HEIDEGGER, 1976HEIDEGGER, M. Zeit und Sein. In: Zur Sache des Denkens - 2., unveränd. Aufl. - Tübingen: Niemeyer, 1976., p. 35).

Mas o pensamento heideggeriano do acontecimento não é outra transformação metafísica do sentido do Ser. O pensamento do acontecimento pretende liberar o próprio pensamento do pensar metafísico. Invocar filosoficamente o acontecimento seria, portanto, talvez um erro.

Referências

  • HEIDEGGER, M. As Questões Fundamentais da Filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Ed. Martin Fontes, 2017.
  • HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Editora Centauro, 2005.
  • HEIDEGGER, M. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996.
  • HEIDEGGER, M. Do Acontecimento Apropriativo. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
  • HEIDEGGER, M. O Princípio do Fundamento. Tradução de Jorge Telles Menezes. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
  • HEIDEGGER, M. Zeit und Sein. In: Zur Sache des Denkens - 2., unveränd. Aufl. - Tübingen: Niemeyer, 1976.
  • 1 Optamos por usar a palavra “sido” ao invés de “passado”, para tentar trazer à compreensão um sentido mais aproximado o qual Heidegger tenta constantemente ensinar. “Sido” remete a “o que vem sendo” e não simplesmente ao passado como algo linear já passado e encerrado.
  • 2 Todavia, traduzir Dasein por “presença” não distingue propriamente o Dasein, pois o ente que não tem a forma do Ser do Dasein também é (para a compreensão) presente enquanto presença - daí “existência”, “existir”, talvez serem termos mais completos para as implicações semânticas do fenômeno Dasein, uma vez que sua presença, à diferença da presença dos outros entes, é “ex-sistência”, “insistência fora”, si-adiante, não-subsistência, finitude.
  • 3 Cf. Ser e Tempo, § 54.
  • 4 Heráclito, fragmento 123: “Φύσις κρύπτεσθαι φιλεῖ”. “O Dar [Ser] ama se ocultar”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2023
  • Aceito
    11 Maio 2023
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