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Antônio Luis Paixão 1947-1996

Antônio Luis Paixão 1947-1996

Edmundo Campos Coelho

Port, o depressivo personagem de The Sheltering Sky, comparava o viver ao vício de fumar. Estamos sempre prometendo abandoná-lo, dizia ele a Kit, mas seguimos em frente cultivando-o. Por contraste, a referência lembrou-me meu amigo Paixão que nunca cogitou de abdicar dos seus Hollywood, usufruindo deles e de tudo o mais com a joie de vivre que falta às magoadas criaturas de Bowles. Paixão não cultivava mágoas ou ressentimentos da vida, e creio que a morte para ele consistia em pouco mais do que num cálculo de probabilidade, um jogo, uma associação do mórbido evento com a lei dos grandes números. Se, de fato, era assim, ele perdeu a aposta. Na manhã de 23 de agosto, uma dessas luminosas manhãs de Belo Horizonte, em alguma exata fração do tempo, no correr de um infinito e nevrálgico segundo seu coração parou. E contra todas as probabilidades, Paixão que raramente estava só, morreu em solidão, fechado em seu quarto, o telefone sobre o peito.

Para mim a data assinala um re-nascimento ou melhor, uma revelação. Pois iniciei o re-conhecimento do Paixão, a experiência de recuperá-lo pela lembrança com a nitidez que a longa e fraterna convivência insistiu em enevoar. Por décadas, e com a displicência das velhas amizades, elaborei do Paixão uma imagem distraída feita de idéias gerais, de instantâneos fugidios; de editoriais diários, diria Nabokov com característica crueldade. Mas ocupados em demasia com nós mesmos, de que instrumentos dispomos para construir a versão cotidiana dos seres que mais amamos? Da perspicácia do investigador? Da grave sabedoria do filósofo? Da sensibilidade do artista? Provavelmente, apenas de uma pesada bagagem de taken for granted. Do mais raso senso comum, esse "exasperante amador que sempre chega ao local por acaso antes de nós" da irritada queixa de Auden. Clichês, lugares comuns, trivialidades até que o inusitado, o surpreendente, o inesperado rompa a delicada película da realidade aparente. Mas então já não se pode curar a tardia dor de jamais ter verdadeiramente conhecido.

Ainda assim, lembrança por lembrança, pacientemente, irei reconstituindo, traço a traço, uma presença menos fugaz. O espírito de concórdia do Paixão, a docilidade do seu gênio, o tranqüilo zelo com o qual cultivava todas as diferenças. Na legião dos seus amigos cabiam soldados de todos os exércitos, adeptos de todas as religiões, sectários de todas as crenças, agnósticos e místicos. Anacrônicos hippies perdidos no tempo, mauricinhos de carteirinha, sisudos professores universitários. PMs, poetas de botequim. Filósofos e vagabundos, o clássico e o grunge. Nesta generosa aceitação da diversidade da criatura humana Paixão desprovincianizava o mundo ao seu redor. E éramos todos gloriosamente universais no frágil coração do querido amigo.

Este amor das diferenças se manifestava na área profissional num sincero e divertido ecumenismo. Lembro-me da última vez que nos falamos. Liguei para Belo Horizonte, por volta de meia-noite, e conversamos um bocado sobre a nova escola brasileira da Sociologia Emergente: textos cravejados de griffes pós-modernas, argumentos ornados com as mais iridescentes jóias das desconstruções parisienses, idéias ocultadas em longas e indevassáveis limousines conceituais, estilo borbulhante como penteados em cascata. Pois Paixão gostava imensamente dos sociólogos emergentes. Sabiam fazer sua festa, dizia ele, ovacionar de pé os conceitos amestrados de Bourdieu, os saltos mortais de Baudrillard, as piruetas de Derrida entre a écriture e a différence, as cabriolas sinistras do velho Foucault em seu sombrio uniforme à porta do circo-manicômio teórico.

Ele mesmo, o Paixão, era um exemplar da Sociologia Submergente. A idéia clara, o texto enxuto, a economia semântica. O estilo nem tanto, é verdade, mas o argumento era sempre erguido sobre referências sólidas, imunizado contra a metástase do modismo sociológico. Quase um clássico, ou de fato um clássico na maneira pela qual deu status acadêmico a temas para os quais torcia-se e ainda se torce o nariz. Os dramas das prisões, a barbárie da violência policial, os criminosos sem redenção, todos estes pingüins de geladeira da analgésica estética sociológica dos irrelevantes, foram emoldurados com a melhor tradição teórica da sociologia e com o mais inspirado humanismo. Também é verdade que alguns textos do Paixão sofrem de irremediáveis equívocos. Ele tinha idéias por demais ligeiras sobre a criminalidade no Rio de Janeiro, idéias de segunda mão, compreensíveis talvez para quem olhava para a Baixada Fluminense do alto das tranqüilas montanhas de Minas. Também sua percepção da discriminalização das drogas era simplesmente utópica, e isto era menos compreensível pois ele conhecia bem a questão. Sobre estes e outros pontos não eram poucas as nossas discordâncias. Mas havíamos tacitamente concordado em não falar delas, nossa mineira maneira de duvidar, embora crendo, da solidez de uma ininterrupta amizade de trinta anos.

E nisso não sei se procedemos bem, meu amigo. Mas seja como for, ponho nessa derradeira e tardia dúvida toda a tristeza de uma solitária saudade. Pelo menos nisso podes realmente crer, Antônio!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 1998
  • Data do Fascículo
    1996
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