Acessibilidade / Reportar erro

Bloqueio do quadrado lombar: estamos cientes de seus efeitos colaterais? Relato de dois casos

Resumo

Justificativa e objetivos

O bloqueio do quadrado lombar foi primeiramente descrito em 2007 e tem como objetivo o bloqueio dos mesmos nervos envolvidos no bloqueio do plano transverso abdominal, ao atingir algumas inervações viscerais, bem como devido à maior proximidade com o neuroeixo e cadeia simpática. Dada a sua versatilidade, temos usado esse bloqueio com sucesso em uma grande variedade de procedimentos. Relatamos dois casos nos quais acreditamos que a dispersão do anestésico local pode ter levado a uma complicação não descrita previamente.

Relatos clínicos

Relatamos dois casos nos quais realizamos o bloqueio do quadrado lombar tipo II e anestesia geral para gastrectomia total e hemicolectomia direita. Não houve eventos notáveis durante o bloqueio e a indução da anestesia geral, mas, dentro de 30 a 40 minutos, observamos grave hipotensão e taquicardia. Como outros motivos para a hipotensão foram descartados, o evento foi interpretado como simpatólise induzida pelo bloqueio devido à dispersão cefálica do anestésico local para os espaços paravertebral e epidural e tratado com sucesso com efedrina e aumento da taxa de infusão de cristaloides.

Conclusões

O bloqueio do quadrado lombar oferece segurança na execução e fornece analgesia eficaz à parede abdominal e vísceras. Porém, a possibilidade de provocar episódios indesejáveis requer cautela em sua execução e, por conseguinte, os médicos precisam estar atentos. As questões relacionadas à dosagem ideal, aos volumes, ao tempo de bloqueio e à pertinência dos cateteres permanecem indefinidas.

PALAVRAS-CHAVE
Quadrado lombar; Ultrassom; Dor; Anestesia regional; Bloqueio de nervos periféricos

Abstract

Background and objectives

The quadratus lumborum block was initially described in 2007 and aims at blocking the same nerves as the ones involved on the Transverse Abdominis Plane block, while accomplishing some visceral enervation as well due to closer proximity with the neuroaxis and sympathetic trunk. Given its versatility, we have successfully used it in a wide range of procedures. We report two cases where we believe the dispersion of local anesthetic is likely to have led to a previously undescribed complication.

Clinical reports

We report two cases in which we performed a quadratus lumborum type II block and general anesthesia for total gastrectomy and right hemicolectomy. There were no noteworthy events while performing the block and inducing general anesthesia, but within 30-40 min serious hypotension and tachycardia were noted. As other motives for hypotension were ruled out, the event was interpreted as block-induced sympatholysis due to cephalad dispersion of the local anesthetic to the paravertebral and epidural space, and successfully managed with ephedrine and increase of the crystalloid infusion rate.

Conclusions

The quadratus Lumborum block is safe to execute and provides effective abdominal wall and visceral analgesia. However, the possibility of eliciting undesired episodes should prompt caution when performing this block and practitioners should thereafter remain vigilant. Questions regarding ideal dosing, volumes, timing of block and pertinence of catheters remain to be answered.

KEYWORDS
Quadratus lumborum; Ultrasound; Pain; Regional anesthesia; Peripheral nerve block

Introdução

Em 2007, R. Blanco descreveu o bloqueio do quadrado lombar (QLB) guiado por ultrassom, que consiste na deposição guiada por ultrassom de anestésico local (AL) na superfície anterolateral do músculo QL, atinge os mesmos nervos que os envolvidos no bloqueio do plano transverso abdominal (TAP) enquanto também atinge algumas enervações viscerais devido à maior proximidade com o neuroeixo e o tronco simpático. Em 2013, uma técnica opcional foi descrita com as mesmas referências anatômicas usadas para o bloqueio do plexo lombar (método shamrock), sob o argumento der que há uma disseminação menos redundante de AL em uma direção anterolateral.11 Børglum J, Origgl B, Jensen K, et al. Ultrasound - guided transmuscular quadratus lumborum blockade. Br J Anaesth. 2013;March:. Finalmente, Blanco descreveu o tipo 2 de QLB (QLB2), uma variação que consiste na deposição de AL posteriormente ao QL, que agora é de sua preferência graças à disseminação mais previsível de AL no espaço paravertebral, ao melhor perfil de segurança e à melhor resolução ultrassonográfica devido ao ponto mais superficial da injeção.22 Blanco R, Ansari T, Girgis E. Quadratus lumborum block for postoperative pain after caesarean section. Eur J Anaesthesiol. 2015;32:812-8. Recentemente, abordagens oblíquas parassagitais foram desenvolvidas, mas ainda não há dados definitivos sobre sua eficácia.33 Elsharkawy H. Quadratus lumborum block with paramedian sagittal oblique (subcostal) approach. Anaesthesia. 2016;71:241-2.

Usamos o QLB2 com sucesso em uma grande variedade de procedimentos, inclusive gastrectomias, colectomias, prostatectomias, nefrectomias, cistectomias, cesarianas e histerectomias. Apresentamos dois casos nos quais o uso de QLB2 levou a uma complicação não descrita e discutiremos suas implicações, bem como o seu potencial como uma arma analgésica versátil.

Caso 1

Paciente do sexo masculino, 83 anos, apresentou-se em nosso hospital para gastrectomia total eletiva devido a carcinoma de células gástricas em anel de sinete responsável por sua perda de peso (65-52 kg em três meses), astenia e obstrução parcial do trato gastrointestinal. A história pregressa revelou hiperplasia prostática benigna e bloqueio completo do ramo esquerdo. O hemograma revelou apenas anemia microcítica hipocrômica leve. Como o paciente recusou uma peridural para o controle da dor, nossa equipe visou a obter benefícios semelhantes com um QLB2 bilateral.

O paciente foi monitorado de acordo com padrões da Sociedade Americana de Anestesiologistas (PA 124/62 mmHg, FC 73 bpm) e pré-medicado com midazolam (1 mg) e fentanil (0,05 mg). Um QLB2 bilateral foi feito com 20 mL de levobupivacaína a 0,25% em cada lado, com uma agulha de 100 mm e calibre 21G (Stimuplex® Ultra 22G, B. Braun, Melsungen, Alemanha), guiado por ultrassom (Venue 40 Ultrasound, GE Healthcare, com transdutor de matriz linear de banda larga de 5-13 MHz), com abordagem em plano, de lateral para medial. Após o bloqueio, a indução em sequência rápida e intubação foram feitas sem intercorrências com fentanil (3 mcg.kg-1), propofol (2 mg.kg-1) e rocurônio (1,2 mg.kg-1). A anestesia foi mantida com sevoflurano e mistura de O2/ar (50/50).

Aproximadamente 40 minutos (min) após o bloqueio, o paciente apresentou uma súbita queda da PA (70/40 mmHg) e aumento da FC (100 bpm), que não poderiam ser explicados por medicamentos ou evento cirúrgico agudo. Esse acontecimento foi interpretado como simpatólise secundária ao QLB2 (com taquicardia reflexa) e controlado com efedrina (10 mg) e aumento da taxa de infusão de cristaloides. A produção urinária permaneceu bem acima de 1 mL.kg-1.h-1 durante todo o procedimento.

A analgesia consistiu em apenas 1 g de paracetamol 30 min antes do término do procedimento. O paciente também recebeu 4 mg de ondansetrona para profilaxia de náusea e vômito no pós-operatório (NVPO). Sob outros aspectos, o procedimento transcorreu sem incidentes e durou três horas (h).

Após a recuperação da anestesia em sala de recuperação pós-anestesia (SRPA), o paciente não relatou dor ou desconforto. Um dispositivo de PCA com morfina para analgesia de resgate endovenosa sem infusão basal foi oferecido ao paciente. O primeiro bolus foi solicitado 6 h após o bloqueio. O paciente recebeu alta da SRPA em 4 h e durante os três dias seguintes não relatou dor com paracetamol (1 g a cada 6 h) e PCA (consumo total de 12 mg de morfina por dia). Analgesia suplementar não foi necessária e não houve efeitos secundários durante esse período, após o qual o paciente recebeu alta de nossos cuidados.

Caso 2

Paciente do sexo masculino, 61 anos, 76 kg, com hipertensão arterial, diabetes melito tipo II, doença coronariana estável e psoríase, programado para hemicolectomia direita devido a um adenocarcinoma. Não havia outra história relevante ou mudanças significativas em sua avaliação pré-cirúrgica. Uma lesão psoríaca na área toracolombar mediana advertiu prudência quanto à feitura de peridural; portanto, propusemos um QLB2 como opcional. O paciente foi monitorado (PA 142/84 mmHg, FC 66 bpm), pré-medicado com midazolam (1 mg) e fentanil (0,05 mg) e o QLB2 bilateral e a indução anestésica foram feitos exatamente como no Caso 1.

De forma também semelhante ao Caso 1, o paciente apresentou uma súbita queda da PA (80/38 mmHg) e aumento da FC (96 bpm) 30 min após o bloqueio, para o qual não tínhamos uma causa justificável além de simpatólise secundária. O evento foi tratado conforme descrito anteriormente e nenhum outro evento notável ocorreu durante a cirurgia. A analgesia no intraoperatória e a profilaxia de NVPO consistiram em 1 g de paracetamol, 100 mg de tramadol e 4 mg de ondansetrona. O procedimento durou 90 min até a conclusão.

O paciente não relatou dor durante a permanência na SRPA; dor leve foi mencionada na enfermaria 8 h após o bloqueio. Durante os dois dias seguintes, prescrevemos 30 mg de cetorolac a cada 8 h e 1 g de paracetamol a cada 6 h. O controle da dor foi excelente, não houve queixa de efeitos secundários, analgesia de resgate não foi necessária e o paciente recebeu alta de nossos cuidados posteriormente.

Discussão

O bloqueio TAP anterior abrange principalmente os aferentes somáticos da parede abdominal, significa que seria suficiente para o controle da dor incisional, mas não visceral, nos casos descritos. Pode-se argumentar também que, embora o bloqueio TAP requeira um grau menor de compreensão anatômica e, portanto, tem uma curva de aprendizagem mais amigável, o QLB2 oferece uma opção mais segura, pois é quase sempre mais superficial, é blindado anteriormente pelo psoas maior e não é tão tecnicamente propenso a dificuldades relacionadas à respiração profunda ou irregular do paciente.

Um estudo da propagação do AL demonstrou que, por um lado, o QLB2 provoca o agrupamento de AL entre a fáscia transversal, o QL e o músculo psoas e, por outro lado, aumenta o contraste paravertebral, epidural e linfático não contíguo até nível torácico T5.44 Carney J, Finnerty O, Rauf J, et al. Studies on the spread of local anaesthetic solution in transversus abdominis plane blocks. Anaesthesia. 2011;66:1023-30. Blanco comparou imagens de ressonância magnética, isso indica que o AL viaja medialmente ao longo da camada fascial média até o espaço paravertebral, desloca-se cefalicamente depois.22 Blanco R, Ansari T, Girgis E. Quadratus lumborum block for postoperative pain after caesarean section. Eur J Anaesthesiol. 2015;32:812-8. Essa distribuição justifica tanto a analgesia visceral quanto a simpatólise que levou à hipotensão.

De acordo com nossa pesquisa, somos o primeiro grupo a destacar essa complicação. Funcionalmente, o QLB2 parece ser mais semelhante ao bloqueio paravertebral ou epidural torácico do que ao bloqueio TAP. Portanto, a nossa hipótese foi que maiores volumes, concentrações ou o uso bilateral do QLB2 aumentariam a probabilidade de simpatólise (inclusive bradicardia caso o AL atingisse as fibras cardioaceleradoras em T4). Uma explicação possível é que usamos concentrações de levobupivacaína superiores àquelas relatadas por Blanco (0,25 vs. 0,125%, respectivamente). As doses de AL a serem injetadas ainda não estão padronizadas na literatura: grandes volumes com baixas concentrações garantem a disseminação cefálica sem exceder as doses tóxicas, mas teoricamente podem representar um risco adicional de episódios hipotensivos. Devemos também assinalar que o evento observado poderia ter representado a toxicidade sistêmica do AL, embora consideremos que isso seja improvável dada a sua resposta imediata ao tratamento, o ritmo cardíaco ser taquicardia sinusal, a falta de instabilidade cardiovascular e a dose total de AL usada.

Carney questionou se o uso de relaxantes musculares ou de ventilação com pressão positiva teria influência na dispersão cefálica do AL e, consequentemente, diminuiria a sua eficácia.44 Carney J, Finnerty O, Rauf J, et al. Studies on the spread of local anaesthetic solution in transversus abdominis plane blocks. Anaesthesia. 2011;66:1023-30. Seria interessante comparar os resultados da dispersão de um QLB2 feito após versus antes da cirurgia sob anestesia geral ou em modalidades de ventilação espontânea versus controlada.

Quanto à dispersão para o espaço epidural, também nos questionamos se o QLB2 tem alguns dos benefícios da epidural torácica; isto é, redução da resposta ao estresse cirúrgico. Hipoteticamente, essa redução da resposta ao estresse cirúrgico poderia significar taxas mais baixas de eventos cardiovasculares, respiratórios e tromboembólicos, infecção ou recidiva tumoral. Alguns estudos sugerem uma melhoria na sobrevida livre da doença quando anestesia regional e analgesia foram usadas, o que poderia ser mais uma vantagem desse bloqueio.

Finalmente, Blanco publicou um ensaio clínico randomizado que avaliou a eficácia do QLB2 em cesarianas, no qual argumentou que os cateteres perineurais não pareciam ser benéficos nesse bloqueio porque o seu tempo de ação poderia prolongar-se até 48 h. Apesar das descobertas, ainda nos questionamos sobre a existência de uma região específica para a qual o AL se dispersa e na qual o efeito "desaparece" primeiro e, nesse caso, se há algum benefício em fazer um bloqueio contínuo do QL para cirurgias mais agressivas e dolorosas. Também questionamos se o uso de "QLB2 contínuo" pode levar a episódios mais frequentes de hipotensão. No entanto, outros autores obtiveram resultados satisfatórios com essas técnicas.55 Spence NZ, Olszynski P, Lehan A, et al. Quadratus lumborum catheters for breast reconstruction requiring transverse rectus abdominis myocutaneous flaps. J Anesth. 2016;30:506-9.

Em geral, o QLB2 parece ser uma arma versátil em nosso arsenal para o controle da dor. É seguro de executar, fornece analgesia eficaz à parede abdominal e vísceras em uma variedade de cenários e pode estar relacionado à melhoria no resultado e na sobrevivência do paciente. Apesar de todos esses fatos, a possibilidade de induzir episódios hipotensivos indesejados (e tardios) deve incitar cautela na feitura desse bloqueio e os praticantes devem, posteriormente, permanecer vigilantes. Estudos adicionais sobre dosagens, volumes, tempo de bloqueio e pertinência dos cateteres certamente produzirão uma discussão envolvente nos próximos anos.

References

  • 1
    Børglum J, Origgl B, Jensen K, et al. Ultrasound - guided transmuscular quadratus lumborum blockade. Br J Anaesth. 2013;March:.
  • 2
    Blanco R, Ansari T, Girgis E. Quadratus lumborum block for postoperative pain after caesarean section. Eur J Anaesthesiol. 2015;32:812-8.
  • 3
    Elsharkawy H. Quadratus lumborum block with paramedian sagittal oblique (subcostal) approach. Anaesthesia. 2016;71:241-2.
  • 4
    Carney J, Finnerty O, Rauf J, et al. Studies on the spread of local anaesthetic solution in transversus abdominis plane blocks. Anaesthesia. 2011;66:1023-30.
  • 5
    Spence NZ, Olszynski P, Lehan A, et al. Quadratus lumborum catheters for breast reconstruction requiring transverse rectus abdominis myocutaneous flaps. J Anesth. 2016;30:506-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    9 Jul 2016
  • Aceito
    21 Set 2016
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org